terça-feira, 4 de maio de 2021

Lúcifer destronado - Capítulo 09


 A catedral da dor

Eu nada sabia a respeito da grande batalha cósmica entre Aquino e LaVey para ter o controle do que o público pudesse pensar acerca do satanismo. Isto porque me achava profundamente envolvido no que chamávamos de “a coisa profunda”, ou “a coisa preta”. O que, definitivamente, não era “a Coisa Certa”!

Do que ouvíamos dizer, por pessoas ligadas ao ocultismo, achávamos que tanto Aquino como LaVey ou estavam passando de leve sobre a superfície do satanismo, ou então estariam agindo como “promotores de venda” de uma mercadoria, alardeando suas qualidades para o público, a fim de atraí-lo para “a coisa profunda”. De qualquer modo, não eram objeto da nossa preocupação. Estávamos nos desenvolvendo sobre os fundamentos do que havíamos aprendido em nossos vários encontros satânicos e prosseguindo até além da bizarra metafísica de Aquarius.

O poder da magia fluía através de mim como nunca antes.

Detesto dizer isto, mas o satanismo assumido é algo muito parecido com um sistema de “marketing de rede”. Ou seja, eu me senti “arremessado para cima” para vir a me tornar um distribuidor de “produtos”. Desde que conseguira os meus “sete” adeptos, que assinaram o pacto com o diabo, fiquei em condições de ser ordenado no sacerdócio satânico e nos níveis mais elevados — europeus — da Maçonaria. Satanás, de fato, “honra” seus escravos enquanto estiverem lhe dando resultados.

Ele começou a me conceder pequenas “gratificações adicionais”, especialmente depois de ter me tornado sacerdote satânico.

Narcóticos fluíam como água pelos nossos grupos. Eu tinha tudo de que necessitava e nunca pagava um centavo sequer. As coisas simplesmente apareciam, de algum modo. Pequenos “milagres”, e às vezes não tão pequenos assim, aconteciam.

Descobrimos, por meio de nossa cristalomancia (arte de visão física através de relances de olhar em espelhos, cristais ou vidros convexos) que um grupo satânico rival tinha surgido, não muito distante de nós, proveniente de uma igreja jesuíta. Percebemos que estavam até mesmo envolvidos com o sacrifício de crianças — uma prática que, pelo menos até então, eu considerava repreensível.

Nossos grupos declararam guerra espiritual a eles por meio da magia, e maldições fluíram de nós para eles e deles para nós com enorme rapidez. Uma noite, um ataque astral entrou em nosso quarto na forma de enorme e obscura figura, toda paramentada, com um punhal na mão. Enviamos nossos demônios para atacá-la, e dela não sobrou nada. Em uma semana, o grupo rival fez as malas e mudou-se da cidade; declaramos então a vitória, promovendo uma grande festa.

Como sacerdote de Satanás, eu podia, agora, ministrar cerimônias de pacto. Nunca me esquecerei de uma delas em particular. Havíamos estabelecido o nosso “sério” templo satânico no sótão de uma enorme casa que alugáramos, próximo da Universidade Marquette, em Milwaukee. Havíamos pintado a parede do fundo do sótão totalmente de preto e colocado um enorme círculo mágico sobre o chão. Este era o local onde fazíamos nossos rituais “mais pesados”, por ser o ponto mais secreto da casa. Naturalmente, não permitíamos que nenhum de nossos alunos de “feitiçaria branca” entrasse ali.

Nesse local, eu me sentava num trono e ministrava como sacerdote do Desolado — “o Poderosíssimo Príncipe Lúcifer” — com as pessoas ajoelhadas diante de mim, despindo-se de seu corpo e alma e entregando-os a ele, por meu intermédio. Enquanto cumpria-se esse antigo ritual, eu sentia a presença de Lúcifer em todo o meu ser. Era como estar envolto num lençol de fogo intenso, que queimava, e às vezes, meu cérebro parecia estar derretendo. Quando eu falava, acreditava que era Lúcifer que estava falando por meu intermédio, embora não tenha como confirmar que era isso mesmo. Como já foi dito, Lúcifer — diferentemente de Deus — não pode estar em mais de um lugar ao mesmo tempo, e, portanto, poderia ser um dos príncipes do inferno — como os chamávamos.

Contudo, fosse quem fosse, dizia ser Lúcifer.

Por vezes, a voz que falava fazia vibrar as vigas daquele velho porão, e pequenas porções de poeira, de teias de aranha e de pó de madeira caíam sobre nós. Eventualmente, a pessoa que estava fazendo o pacto encolhia-se para trás com medo daquela voz, e eu me sentia profundamente satisfeito em meu interior.

Certa noite, uma mulher não se encolheu de medo. Sem nenhum constrangimento, sem receio algum, ajoelhou-se diante de seu novo “dono” no centro do círculo mágico, dentro de um triângulo de manifestação.

Isto não é o que normalmente ocorre. O círculo é usado pelos praticantes da magia e pelos feiticeiros, de modo geral, para protegê-los de ataques demoníacos (ou, no caso da Wicca, para reprimir o cone de poder que se eleva de dentro do corpo dos bruxos). O triângulo de manifestação geralmente é colocado fora do círculo, e é onde o demônio tem permissão de aparecer, nas nuvens da fumaça do incenso. Assim, o feiticeiro fica dentro do círculo mágico e a energia do demônio é retida e concentrada dentro do triângulo. Naquele tempo, entretanto, achávamos que não precisávamos de proteção alguma em relação aos demônios.

Na verdade, dávamos boas-vindas à presença deles e até à possessão do nosso corpo Assim, aquela mulher ajoelhou-se bem no meio do que considerávamos o “ponto de impacto” dos demônios e prostrou-se, rogando que todo demônio do inferno viesse para ela. Ela jurou pertencer a Lúcifer de corpo, alma e espírito.

No encerramento da cerimônia, depois de ter vestido o manto de adoradora do diabo e escrito o seu nome no pacto, o poder ficou muito mais intenso ao meu redor. As muralhas tremeluzentes de ofuscante energia branca ao meu redor penetraram, queimando, na mente dela também. Então formou-se uma pirâmide de poder que se arremeteu até as vigas do teto como um rojão, e o lugar voltou a ficar escuro e em silêncio, exceto... pelo ruído característico de algo como uma moeda de prata de um dólar caindo no piso de madeira negra, ali onde estávamos.

Nós dois abrimos os olhos e... veja! Uma medalha dourada (talvez de bronze ou latão), não muito pequena, ainda rodopiando no chão, até que parou. Ficou então com sua face voltada para cima, e nela estava estampada um dos selos de Lúcifer. Tudo o que podemos dizer é que aquela medalha surgiu do ar, pois não havia mais ninguém no templo do porão!

Naturalmente, a candidata ficou emocionada, pegou o medalhão e depois passou a usá-lo como um pendente, levando-o para onde quer que fosse. Ela olhou para mim com temor, pois “eu” tinha feito algo aparecer do nada (se bem que eu nem sabia como aquilo tinha acontecido). Claro que eu não mencionei nada a ela de que tudo acontecera sem meu conhecimento e participação alguma de minha parte. O que acontecera é nas áreas do espiritismo, como sendo obra de um médium físico, um fenômeno bastante raro de ocorrer. Assim, ambos nos sentimos bem satisfeitos com nós mesmos. Era mais um “ossinho” que Satanás lançava para o seu cachorro (eu) a fim de mantê-lo interessado na “brincadeira”.

O que o astuto leitor por certo já observou na vida de pessoas como eu, praticantes do ocultismo, é que elas se encontram numa constante busca para obter mais conhecimentos ocultos, pois “aprendem sempre e jamais podem chegar ao conhecimento da verdade” (2 Tm 3.7). Isto quer dizer que eu passei minha vida indo de um lugar para outro, atrás de novas iniciações, novas ordens secretas, novos princípios do conhecimento ocultista. É verdade.

Aleister Crowley, meu ídolo de então (provavelmente no sentido mais literal possível), observou certa vez que o caminho de quem conhece a magia (daquele que já está num estágio avançado) - é bastante semelhante ao alpinismo — esporte que ele conhecia muito bem. Disse ele que na magia, assim como acontece no esporte de escalar montanhas, é tudo uma questão de permanente esforço para subir, com pouco tempo para descanso.

O alpinista praticamente não tem tempo para descansar quando se encontra na parte íngreme de uma grande montanha, segurando-se com os dedos ou pinos encravados na rocha.

E uma situação em que ocorre um desgaste contínuo de energias até a exaustão muscular e que exige muita força de vontade. E muito raro o alpinista chegar a uma parte plana ou a um ponto sem declive em que possa finalmente descansar. E é isso que o praticante

da magia vive. Se relaxar, se “afrouxar” por um pouco mais de tempo, corre o risco de se soltar do seu gancho e cair no “abismo”, que é, como já foi dito, o equivalente ao inferno no ocultismo, onde se acaba morrendo de “acidente” causado pela magia.

Isso acontece, em parte, porque na magia há sempre quem queira ou arruinar ou acabar com a vida de outros praticantes.

É tal como ser um atirador. Há sempre alguém querendo provar ser melhor do que outros. As compensações por esse tipo de interação selvagem são muitas, pois há uma crença de que quem mata outro participante da magia recebe todo o poder de que o morto era dotado, e ainda os seus demônios e a sua sabedoria, em herança. Deste modo, aquele que mata vários outros bem desenvolvidos na magia acaba ficando com um enorme poder.

Por exemplo, quando, numa determinada ocasião, o avião em que estava LaVey desapareceu no radar, os boatos na confraria eram de que ele fora assassinado secretamente por sua filha Zeena, que assim se "beneficiaria”, recebendo toda a sabedoria do seu pai, todo o seu poder mágico e os seus poderosos demoníacos. Aparentemente, esses boatos não correspondiam a verdade, mas esse tipo de coisa de fato ocorre com certa freqüência com satanistas menos conhecidos. E por que não?... O que, nessa sua ética totalmente distorcida, impediria de ocorrer tais guerras para obterem mais poder? É a sobrevivência do mais forte, não é?

Outra razão para dedicarmos um permanente esforço em buscar novas iniciações, mais conhecimentos e maior poder é que Satanás fica empurrando seus adeptos para a frente. E a velha técnica de se conseguir alguma coisa com incentivos e, depois, com ameaças, se a pessoa fraquejar. Nessa “roda-viva” de Satanás, não dá para saber nunca o que a gente está para obter. Ele é um capataz demasiadamente cruel, que espera 110 % de seus escravos. Assim, o satanismo tem suas estranhas formas de legalismo, tal como ocorre em qualquer religião que Satanás tenha criado, por todos os séculos.

Fica-se permanentemente sob uma forte tensão, pois, se diminuir um pouco que seja o ritmo do nosso progresso, então, de duas, uma: ou isso fará com que a gente caia no seu desagrado total (condição em que ele nos expulsa, com a perda de todos os seus favores, podendo até nos matar), ou um outro adepto da magia, em ascensão, nos ultrapassará, recebendo de Satanás um “poder extra” de magia que o capacitará a matar-nos ou, pelo menos, nos reduzir à condição de um debilóide total. E tal como no jogo Calabouços e Dragões, exceto que os riscos são inimaginavelmente mais elevados.

Essa situação leva o adepto da magia a ser um superempreendedor. Isso o torna extremamente ocupado, sem condições de dar um passo para trás e não tendo tempo para considerar, de um modo crítico, o que realmente está fazendo na vida. E desse modo que Satanás gosta de ver seus servos! E no contexto dessa desesperada, quase desvairada busca por obter “mais luz, mais sabedoria, mais verdade” que o estranho episódio narrado a seguir deve ser entendido.

Eu não tinha compreendido muito bem o fenômeno dessa luz ofuscante que experimentara quando da evidente presença de Lúcifer (ou, pelo menos, diante de energias luciferianas). De quando em quando, Orion deixava escapar um riso de escárnio alusivo à “luz”, mas ele se mantinha irredutivelmente calado a esse respeito. Eu nunca lhe disse que, por vezes, havia passado por estranhas experiências de “fundir a cuca”, e não sei se ele dispunha de outros meios para saber disso.

Por vezes, ele fazia veladas referências aos Illuminati (vocábulo latino que significa “Iluminados”). Fora-me dito, alguns anos antes, por um grão-mestre druida, que Illuminati era um termo que se referia aos níveis mais elevados da magia e do druidismo, também conhecido como “A Grande Irmandade Branca”, ou a A... A... (que significa Argentinium Astrum, ou “Ordem da Estrela de Prata”).

Eu já tinha também ouvido dizer que os Illuminati eram líderes de uma conspiração internacional de judeus, de anciãos de Sião, de jesuítas, extraterrestres malignos, comunistas ou banqueiros (ou de todos eles), que procurariam destruir os Estados Unidos. Como eu me mantinha demasiadamente ocupado, não dava tempo para sequer investigar e assim descobrir se quaisquer das explicações acima tinham algo a ver com a verdade. Nos meses que se seguiram à minha experiência inicial de “epifania” daquela luz branca, quente e ardente, Orion fez obscuras referências aos Illuminatti.

Então, numa noite, passei por uma experiência bastante fora do comum. Não posso dizer se foi um sonho ou se foi real, mas foi uma viagem para fora do meu corpo físico (que se chama de projeção astral). O fato é que as consequências do que aconteceu foram definitivamente reais.

Aquela altura, eu já era um “viajante astral” frequente. Saía do meu corpo repetidas vezes, por várias razões. Eu vinha praticando a projeção astral por quase dez anos. No entanto, naquele dia em particular, foi muito diferente. Fui arrancado do meu corpo antes que pudesse me dar conta do que estava acontecendo. A imagem que eu tinha era a de ter sido puxado para cima, indo pelos “caminhos” da Árvore da Vida em direção à região de Binah, ou Saturno.

Essa estranha e involuntária viagem levou-me a um enorme templo escuro, em meio a estrelas que giravam próximas do que parecia ser o anelado planeta Saturno. O templo era completamente escuro, sem reflexo algum em sua superfície. Era angular, estranho e diferente de qualquer estrutura que eu tivesse já visto, exceto que o motivo arquitetônico predominante era o trapézio.

(O trapézio é uma das formas mais sagradas para Satanás, por motivos por demais complexos para relatar aqui.)

As torres do templo inclinavam-se o suficiente para deixar qualquer um apreensivo, e, até mesmo do exterior, os ângulos e a geometria do lugar pareciam fora de padrão. Fui levado a uma porta trapezoidal, que era ainda mais escura do que o próprio templo, se é que isso seria possível.

Uma vez dentro daquele templo negro, observei haver salas externas cheias de uma misteriosa luz esverdeada. O lugar parecia ser de fato real, e dei uns beliscões em mim mesmo para ver se eu não estava dormindo, mas não senti nada. O que eu sentia era a lisura do piso, gelado e negro, sob os meus pés descalços, e a pele arrepiada em todo o meu corpo como uma realidade.


Alguém se aproximou, vestido com um simples manto branco. Era um senhor honrado e de certa idade, com uma bela cabeça de cabelos brancos e ondulados, tendo um delicado bigode bem aparado. Ele não era, absolutamente, quem eu esperaria encontrar num lugar como aquele. Com uma voz amável e ressonante, ele cumprimentou-me e apresentou-se como sendo “Mestre H”.

Disse-me que seria o meu mentor e guia e me convidou a segui-lo, dirigindo-se às partes interiores daquela soturna cidadela negra. Nada poderia ter-me preparado para o que me esperava.

O salão ao qual entrei assemelhava-se a um templo, talvez tão amplo quanto o de uma igreja de bom tamanho. Não havia em que sentar-se, apenas um altar em forma trapezoidal numa plataforma um pouco elevada, no centro. O altar era feito de um concreto aparente e rústico. Nele havia vigas de ferro retorcido projetando-se em todas as direções e estavam visivelmente manchadas de sangue. Uma dessas vigas levantava-se atrás do altar formando uma rude cruz de cabeça para baixo. Por trás do altar, havia um trono, num plano mais elevado, que chamava a atenção de um modo impressionante. Era preto, absolutamente liso, e estava vago. Senti-me um pouco aliviado por não haver ninguém nele sentado.

Contudo, era a única coisa naquele lugar que tinha uma aparência tranquilizante.

Meu distinto guia voltou-se para mim e começou a gesticular com muito entusiasmo, mais ou menos como se fosse o maestro de uma orquestra. E disse, então, sem alardes:

— Bem-vindo à Catedral da Dor.

Com estas palavras, luzes com um brilho obscuro surgiram silenciosamente por trás das paredes daquele amplo lugar, e eu fiquei tão assustado com o que vi que senti-me tomado de forte aflição. As paredes, que antes pareciam pedras pretas lisas e inclinadas, revelaram-se como sendo totalmente de vidro transparente, retendo em seu interior um fluido também transparente. Flutuando dentro daquele fluido, havia dezenas, se não centenas, de corpos humanos, nus! Estavam todos mortos, a maioria deles com a expressão de um intenso terror, demonstrado por uma contração em sua face congelada. Muitos estavam mutilados, de modo tal que me causaram asco.

Na sua maior parte, aquela grotesca vitrina, semelhante a um aquário, continha corpos de pessoas jovens. Quase todos pareciam estar entrando na fase adulta, mas entristeci-me ao ver que havia ainda muitos meninos e meninas, e até criancinhas de menos de três anos, flutuando junto com os demais. Era como se estivessem preservados, flutuando num formaldeído ou em alguma funesta substância, tal como uma coleção de borboletas do inferno.

Aquele cenário demoníaco circundava-me de todos os lados, exceto de um, daquele salão que agora dava para ver que tinha nove lados. Nove é um dos números mais apreciados pelos satanistas, pois é o único número que se reduz a si mesmo, sempre. Somente a parede atrás do trono se mostrava ainda como sendo de pedra preta.

— Esses aí são os filhos do Mestre — proclamou meu guia, com um estranho orgulho em sua voz. — Não são belos?

Minha garganta ficou tão seca que eu nem conseguia dar-lhe uma resposta. É incrível, mas de um modo sinistro muitos deles eram belos. Envergonho-me de ter reagido com certa lascívia à

vista de muitas das mulheres que flutuavam à minha frente. Era como se eu estivesse tendo o pesadelo mais desagradável que se possa imaginar, mas tudo me parecia ser muito real.

— Todos os que morrem desta maneira são privilegiados de pertencerem ao Mestre — explicou-me H. — E agora você pertence a ele também, para sempre!

Sua última afirmação foi como um mau agouro já consumado, fazendo sentir-me atingido por dolorosa punhalada de terror, já me vendo flutuando atrás das paredes de vidro daquele maldito lugar.

Antes que tivesse condições de falar ou de fazer qualquer coisa, um raio de luz caiu do teto, trovejando, vindo de cavernas não vistas, atingindo o trono escuro com uma luz tão intensa e brilhante que fez com que eu não conseguisse mais ver aquelas horríveis imagens dos corpos flutuantes ao meu redor.

Saindo daquele feixe de luz, surgiu um enorme ser, difícil de descrever. Vestia também um manto branco e tinha cabelos brancos que caíam sobre seus ombros, dos quais saíam poderosas asas.

Todavia, tudo nele se alterava a cada segundo. Num momento, parecia um homem normal, mas extremamente bonito, vistoso.

No momento seguinte, a cabeça de um touro; e depois, a face de uma bela mulher. O brilho da luz e as rápidas alterações na aparência do parentesco ser diante de mim fizeram com que meus olhos ardessem e lacrimejassem, a ponto de ter que coçá-los. Sentia uma forte disposição de mantê-los abertos e estava totalmente atônito diante da realidade daquela experiência. Meu guia, H., me fez dar uns passos para a frente e ajudou-me a deitar no piso daquele frio altar de concreto. Até me senti aliviado por ele não haver-me acorrentado ou coisa similar.

Perguntava a mim mesmo como fugir dali. Eu não tinha ideia alguma de onde estava, ou se não estava em algum lugar que não fosse na minha cabeça insana. Não podia imaginar, no entanto, como a minha mente poderia ter concebido um lugar tão horrível como aquele, mesmo num pesadelo.

Senti-me estranhamente estimulado enquanto deitado no altar. Era como se o meu medo tivesse sido entorpecido pelo poder que fluía daquele ser cintilante no trono. De repente, surgiram dezenas de pessoas. Homens e mulheres vestidos tal como o meu guia, exceto que portavam um capuz na cabeça. Por estranho que pareça, eu ouvia o fraco som dos seus passos de pés descalços sobre o piso do templo.

Começou então um cântico em Latim: “Ave, Satanás; rege, Satanás” (Salve, Satanás; reina, Satanás) em tons profundos de baixo — como cantos gregorianos, mas em tons muito estranhos.

— Você experimentou da iluminação do nosso Mestre, o Portador da Luz, e foi achado digno de receber a Luz — disse-me o meu guia. — Você se rende à Luz?

Minha cabeça parecia estar zumbindo, mas mesmo assim senti-me calmo e relaxado. Consegui dizer “sim”, e a cantoria cresceu em intensidade. Repentinamente, o ser sobre o trono levantou-se.

Fiquei impressionado ao ver como era alto. Procurou esforçadamente firmar-se de pé, com as pernas abertas, sobre o altar, do mesmo modo que um adulto tentasse montar num velocípede.

Estendeu, então, sua mão esquerda e a colocou sobre a minha testa. Tive que fechar os olhos por causa da luz fortemente brilhante.

Parecia que meus olhos estavam se transformando em ferro derretido. Minha fronte estava prestes a explodir. Senti o rasgo de uma garra no centro da minha testa, um pouco acima das sobrancelhas, entrando até o meu cérebro, como se fosse uma barra metálica incandescente. Quis gritar, mas não consegui. Todo o meu corpo sentia-se como se fosse estourar, por ter-se enchido de uma extraordinária luz ardente.

Outra garra tocou em mim, e senti a dor de uma forte ferroada.

Então, as duas mãos se afastaram, e uma voz falou; era a mesma voz que eu já tinha ouvido e que surgira dentro de mim várias vezes em que estava celebrando um ritual.

— “Agora você me pertence para sempre!”

O som de uma centena de vozes de repente ressoou por todo o salão, cantando:

— “Glória e amor a Lúcifer! Ódio!, ódio!, ódio! a Deus, amaldiçoado!, amaldiçoado!, amaldiçoado!”

Parecia que a garra ardia dentro da minha mente. Meu corpo estremecia-se todo, estendido sobre o altar, com o poder daquele cântico. Sentia-me como um peixe preso num anzol, sendo arrastado para fora d’água pelo meu próprio cérebro. Quis soltar um grito de dor, mas o que saiu foi:

— “Glória e amor a Lúcifer! Ódio!, ódio!, ódio! a Deus, amaldiçoado!, amaldiçoado!, amaldiçoado!”

O ensurdecedor estrondo de um trovão atingiu a catedral. Fui arrastado para fora do altar a uma incrível velocidade e levado para

aquele terrível aquário de cadáveres. Por um segundo, pensei que fosse ser colocado no meio deles. Por fim, consegui dar um grito. Mas, antes que o grito terminasse, eu já havia ultrapassado o aquário e viajava no que parecia ser o relâmpago de um raio passando pelas nuvens e movendo-se rapidamente em direção à terra.

Em menos de um segundo, achei-me deitado, de barriga para baixo, sobre a relva molhada pela chuva do quintal da minha casa, envolvido pelo inconfundível aroma do ozônio. A grama ao meu redor parecia estar estranhamente chamuscada, e uma fumaça subia do gramado como se estivesse sendo assado ao calor do sol da tarde de um dia de verão.

Foi tudo um sonho? Não dá para dizer. Mas, se foi, eu vim, em sonambulismo, do meu quarto para o lado de fora da casa, até o meio do jardim, debaixo de uma forte chuva, sem acordar ninguém. Nunca fui sonâmbulo. E Sharon, por sua vez, desperta ao menor ruído.

Minha vida mudou profundamente a partir daquele dia. Se aquele ser com quem me defrontei era de fato Satanás, ele me dera uma marca que eu levaria por muitos anos, a partir de então.

Essa marca era um sinal de que eu era propriedade dele e me fazia nunca esquecer-me disso. Pode ter sido um pesadelo, mas um pesadelo do qual eu poderia ter nunca mais acordado.