Eu nada sabia a respeito da grande batalha cósmica entre
Aquino e LaVey para ter o controle do que o público pudesse pensar acerca do
satanismo. Isto porque me achava profundamente envolvido no que chamávamos de
“a coisa profunda”, ou “a coisa preta”. O que, definitivamente, não era “a
Coisa Certa”!
Do que ouvíamos dizer, por pessoas ligadas ao ocultismo,
achávamos que tanto Aquino como LaVey ou estavam passando de leve sobre a
superfície do satanismo, ou então estariam agindo como “promotores de venda” de
uma mercadoria, alardeando suas qualidades para o público, a fim de atraí-lo
para “a coisa profunda”. De qualquer modo, não eram objeto da nossa
preocupação. Estávamos nos desenvolvendo sobre os fundamentos do que havíamos
aprendido em nossos vários encontros satânicos e prosseguindo até além da
bizarra metafísica de Aquarius.
O poder da magia fluía através de mim como nunca antes.
Detesto dizer isto, mas o satanismo assumido é algo muito
parecido com um sistema de “marketing de rede”. Ou seja, eu me senti
“arremessado para cima” para vir a me tornar um distribuidor de “produtos”.
Desde que conseguira os meus “sete” adeptos, que assinaram o pacto com o diabo,
fiquei em condições de ser ordenado no sacerdócio satânico e nos níveis mais
elevados — europeus — da Maçonaria. Satanás, de fato, “honra” seus escravos
enquanto estiverem lhe dando resultados.
Ele começou a me conceder pequenas “gratificações
adicionais”, especialmente depois de ter me tornado sacerdote satânico.
Narcóticos fluíam como água pelos nossos grupos. Eu tinha
tudo de que necessitava e nunca pagava um centavo sequer. As coisas
simplesmente apareciam, de algum modo. Pequenos “milagres”, e às vezes não tão
pequenos assim, aconteciam.
Descobrimos, por meio de nossa cristalomancia (arte de visão
física através de relances de olhar em espelhos, cristais ou vidros convexos)
que um grupo satânico rival tinha surgido, não muito distante de nós,
proveniente de uma igreja jesuíta. Percebemos que estavam até mesmo envolvidos
com o sacrifício de crianças — uma prática que, pelo menos até então, eu
considerava repreensível.
Nossos grupos declararam guerra espiritual a eles por meio
da magia, e maldições fluíram de nós para eles e deles para nós com enorme
rapidez. Uma noite, um ataque astral entrou em nosso quarto na forma de enorme
e obscura figura, toda paramentada, com um punhal na mão. Enviamos nossos
demônios para atacá-la, e dela não sobrou nada. Em uma semana, o grupo rival
fez as malas e mudou-se da cidade; declaramos então a vitória, promovendo uma
grande festa.
Como sacerdote de Satanás, eu podia, agora, ministrar cerimônias
de pacto. Nunca me esquecerei de uma delas em particular. Havíamos estabelecido
o nosso “sério” templo satânico no sótão de uma enorme casa que alugáramos,
próximo da Universidade Marquette, em Milwaukee. Havíamos pintado a parede do
fundo do sótão totalmente de preto e colocado um enorme círculo mágico sobre o
chão. Este era o local onde fazíamos nossos rituais “mais pesados”, por ser o
ponto mais secreto da casa. Naturalmente, não permitíamos que nenhum de nossos
alunos de “feitiçaria branca” entrasse ali.
Nesse local, eu me sentava num trono e ministrava como
sacerdote do Desolado — “o Poderosíssimo Príncipe Lúcifer” — com as pessoas
ajoelhadas diante de mim, despindo-se de seu corpo e alma e entregando-os a
ele, por meu intermédio. Enquanto cumpria-se esse antigo ritual, eu sentia a
presença de Lúcifer em todo o meu ser. Era como estar envolto num lençol de
fogo intenso, que queimava, e às vezes, meu cérebro parecia estar derretendo.
Quando eu falava, acreditava que era Lúcifer que estava falando por meu
intermédio, embora não tenha como confirmar que era isso mesmo. Como já foi
dito, Lúcifer — diferentemente de Deus — não pode estar em mais de um lugar ao
mesmo tempo, e, portanto, poderia ser um dos príncipes do inferno — como os
chamávamos.
Contudo, fosse quem fosse, dizia ser Lúcifer.
Por vezes, a voz que falava fazia vibrar as vigas daquele
velho porão, e pequenas porções de poeira, de teias de aranha e de pó de
madeira caíam sobre nós. Eventualmente, a pessoa que estava fazendo o pacto
encolhia-se para trás com medo daquela voz, e eu me sentia profundamente
satisfeito em meu interior.
Certa noite, uma mulher não se encolheu de medo. Sem nenhum
constrangimento, sem receio algum, ajoelhou-se diante de seu novo “dono” no
centro do círculo mágico, dentro de um triângulo de manifestação.
Isto não é o que normalmente ocorre. O círculo é usado pelos
praticantes da magia e pelos feiticeiros, de modo geral, para protegê-los de
ataques demoníacos (ou, no caso da Wicca, para reprimir o cone de poder que se
eleva de dentro do corpo dos bruxos). O triângulo de manifestação geralmente é
colocado fora do círculo, e é onde o demônio tem permissão de aparecer, nas
nuvens da fumaça do incenso. Assim, o feiticeiro fica dentro do círculo mágico
e a energia do demônio é retida e concentrada dentro do triângulo. Naquele
tempo, entretanto, achávamos que não precisávamos de proteção alguma em relação
aos demônios.
Na verdade, dávamos boas-vindas à presença deles e até à
possessão do nosso corpo Assim, aquela mulher ajoelhou-se bem no meio do que
considerávamos o “ponto de impacto” dos demônios e prostrou-se, rogando que
todo demônio do inferno viesse para ela. Ela jurou pertencer a Lúcifer de
corpo, alma e espírito.
No encerramento da cerimônia, depois de ter vestido o manto
de adoradora do diabo e escrito o seu nome no pacto, o poder ficou muito mais
intenso ao meu redor. As muralhas tremeluzentes de ofuscante energia branca ao
meu redor penetraram, queimando, na mente dela também. Então formou-se uma
pirâmide de poder que se arremeteu até as vigas do teto como um rojão, e o
lugar voltou a ficar escuro e em silêncio, exceto... pelo ruído característico
de algo como uma moeda de prata de um dólar caindo no piso de madeira negra,
ali onde estávamos.
Nós dois abrimos os olhos e... veja! Uma medalha dourada
(talvez de bronze ou latão), não muito pequena, ainda rodopiando no chão, até
que parou. Ficou então com sua face voltada para cima, e nela estava estampada
um dos selos de Lúcifer. Tudo o que podemos dizer é que aquela medalha surgiu
do ar, pois não havia mais ninguém no templo do porão!
Naturalmente, a candidata ficou emocionada, pegou o medalhão
e depois passou a usá-lo como um pendente, levando-o para onde quer que fosse.
Ela olhou para mim com temor, pois “eu” tinha feito algo aparecer do nada (se
bem que eu nem sabia como aquilo tinha acontecido). Claro que eu não mencionei
nada a ela de que tudo acontecera sem meu conhecimento e participação alguma de
minha parte. O que acontecera é nas áreas do espiritismo, como sendo obra de um
médium físico, um fenômeno bastante raro de ocorrer. Assim, ambos nos sentimos
bem satisfeitos com nós mesmos. Era mais um “ossinho” que Satanás lançava para
o seu cachorro (eu) a fim de mantê-lo interessado na “brincadeira”.
O que o astuto leitor por certo já observou na vida de
pessoas como eu, praticantes do ocultismo, é que elas se encontram numa
constante busca para obter mais conhecimentos ocultos, pois “aprendem sempre e
jamais podem chegar ao conhecimento da verdade” (2 Tm 3.7). Isto quer dizer que
eu passei minha vida indo de um lugar para outro, atrás de novas iniciações,
novas ordens secretas, novos princípios do conhecimento ocultista. É verdade.
Aleister Crowley, meu ídolo de então (provavelmente no
sentido mais literal possível), observou certa vez que o caminho de quem
conhece a magia (daquele que já está num estágio avançado) - é bastante
semelhante ao alpinismo — esporte que ele conhecia muito bem. Disse ele que na
magia, assim como acontece no esporte de escalar montanhas, é tudo uma questão
de permanente esforço para subir, com pouco tempo para descanso.
O alpinista praticamente não tem tempo para descansar quando
se encontra na parte íngreme de uma grande montanha, segurando-se com os dedos
ou pinos encravados na rocha.
E uma situação em que ocorre um desgaste contínuo de
energias até a exaustão muscular e que exige muita força de vontade. E muito
raro o alpinista chegar a uma parte plana ou a um ponto sem declive em que
possa finalmente descansar. E é isso que o praticante
da magia vive. Se relaxar, se “afrouxar” por um pouco mais
de tempo, corre o risco de se soltar do seu gancho e cair no “abismo”, que é,
como já foi dito, o equivalente ao inferno no ocultismo, onde se acaba morrendo
de “acidente” causado pela magia.
Isso acontece, em parte, porque na magia há sempre quem
queira ou arruinar ou acabar com a vida de outros praticantes.
É tal como ser um atirador. Há sempre alguém querendo provar
ser melhor do que outros. As compensações por esse tipo de interação selvagem
são muitas, pois há uma crença de que quem mata outro participante da magia
recebe todo o poder de que o morto era dotado, e ainda os seus demônios e a sua
sabedoria, em herança. Deste modo, aquele que mata vários outros bem
desenvolvidos na magia acaba ficando com um enorme poder.
Por exemplo, quando, numa determinada ocasião, o avião em
que estava LaVey desapareceu no radar, os boatos na confraria eram de que ele
fora assassinado secretamente por sua filha Zeena, que assim se
"beneficiaria”, recebendo toda a sabedoria do seu pai, todo o seu poder
mágico e os seus poderosos demoníacos. Aparentemente, esses boatos não
correspondiam a verdade, mas esse tipo de coisa de fato ocorre com certa
freqüência com satanistas menos conhecidos. E por que não?... O que, nessa sua
ética totalmente distorcida, impediria de ocorrer tais guerras para obterem
mais poder? É a sobrevivência do mais forte, não é?
Outra razão para dedicarmos um permanente esforço em buscar
novas iniciações, mais conhecimentos e maior poder é que Satanás fica
empurrando seus adeptos para a frente. E a velha técnica de se conseguir alguma
coisa com incentivos e, depois, com ameaças, se a pessoa fraquejar. Nessa
“roda-viva” de Satanás, não dá para saber nunca o que a gente está para obter.
Ele é um capataz demasiadamente cruel, que espera 110 % de seus escravos.
Assim, o satanismo tem suas estranhas formas de legalismo, tal como ocorre em
qualquer religião que Satanás tenha criado, por todos os séculos.
Fica-se permanentemente sob uma forte tensão, pois, se
diminuir um pouco que seja o ritmo do nosso progresso, então, de duas, uma: ou
isso fará com que a gente caia no seu desagrado total (condição em que ele nos
expulsa, com a perda de todos os seus favores, podendo até nos matar), ou um
outro adepto da magia, em ascensão, nos ultrapassará, recebendo de Satanás um
“poder extra” de magia que o capacitará a matar-nos ou, pelo menos, nos reduzir
à condição de um debilóide total. E tal como no jogo Calabouços e Dragões,
exceto que os riscos são inimaginavelmente mais elevados.
Essa situação leva o adepto da magia a ser um
superempreendedor. Isso o torna extremamente ocupado, sem condições de dar um
passo para trás e não tendo tempo para considerar, de um modo crítico, o que
realmente está fazendo na vida. E desse modo que Satanás gosta de ver seus
servos! E no contexto dessa desesperada, quase desvairada busca por obter “mais
luz, mais sabedoria, mais verdade” que o estranho episódio narrado a seguir
deve ser entendido.
Eu não tinha compreendido muito bem o fenômeno dessa luz
ofuscante que experimentara quando da evidente presença de Lúcifer (ou, pelo
menos, diante de energias luciferianas). De quando em quando, Orion deixava
escapar um riso de escárnio alusivo à “luz”, mas ele se mantinha
irredutivelmente calado a esse respeito. Eu nunca lhe disse que, por vezes,
havia passado por estranhas experiências de “fundir a cuca”, e não sei se ele
dispunha de outros meios para saber disso.
Por vezes, ele fazia veladas referências aos Illuminati
(vocábulo latino que significa “Iluminados”). Fora-me dito, alguns anos antes,
por um grão-mestre druida, que Illuminati era um termo que se referia aos
níveis mais elevados da magia e do druidismo, também conhecido como “A Grande Irmandade
Branca”, ou a A... A... (que significa Argentinium Astrum, ou “Ordem da Estrela
de Prata”).
Eu já tinha também ouvido dizer que os Illuminati eram
líderes de uma conspiração internacional de judeus, de anciãos de Sião, de
jesuítas, extraterrestres malignos, comunistas ou banqueiros (ou de todos
eles), que procurariam destruir os Estados Unidos. Como eu me mantinha
demasiadamente ocupado, não dava tempo para sequer investigar e assim descobrir
se quaisquer das explicações acima tinham algo a ver com a verdade. Nos meses
que se seguiram à minha experiência inicial de “epifania” daquela luz branca,
quente e ardente, Orion fez obscuras referências aos Illuminatti.
Então, numa noite, passei por uma experiência bastante fora
do comum. Não posso dizer se foi um sonho ou se foi real, mas foi uma viagem
para fora do meu corpo físico (que se chama de projeção astral). O fato é que
as consequências do que aconteceu foram definitivamente reais.
Aquela altura, eu já era um “viajante astral” frequente.
Saía do meu corpo repetidas vezes, por várias razões. Eu vinha praticando a
projeção astral por quase dez anos. No entanto, naquele dia em particular, foi
muito diferente. Fui arrancado do meu corpo antes que pudesse me dar conta do
que estava acontecendo. A imagem que eu tinha era a de ter sido puxado para
cima, indo pelos “caminhos” da Árvore da Vida em direção à região de Binah, ou
Saturno.
Essa estranha e involuntária viagem levou-me a um enorme
templo escuro, em meio a estrelas que giravam próximas do que parecia ser o
anelado planeta Saturno. O templo era completamente escuro, sem reflexo algum
em sua superfície. Era angular, estranho e diferente de qualquer estrutura que
eu tivesse já visto, exceto que o motivo arquitetônico predominante era o
trapézio.
(O trapézio é uma das formas mais sagradas para Satanás, por
motivos por demais complexos para relatar aqui.)
As torres do templo inclinavam-se o suficiente para deixar
qualquer um apreensivo, e, até mesmo do exterior, os ângulos e a geometria do
lugar pareciam fora de padrão. Fui levado a uma porta trapezoidal, que era
ainda mais escura do que o próprio templo, se é que isso seria possível.
Uma vez dentro daquele templo negro, observei haver salas
externas cheias de uma misteriosa luz esverdeada. O lugar parecia ser de fato
real, e dei uns beliscões em mim mesmo para ver se eu não estava dormindo, mas
não senti nada. O que eu sentia era a lisura do piso, gelado e negro, sob os
meus pés descalços, e a pele arrepiada em todo o meu corpo como uma realidade.
Alguém se aproximou, vestido com um simples manto branco.
Era um senhor honrado e de certa idade, com uma bela cabeça de cabelos brancos
e ondulados, tendo um delicado bigode bem aparado. Ele não era, absolutamente,
quem eu esperaria encontrar num lugar como aquele. Com uma voz amável e
ressonante, ele cumprimentou-me e apresentou-se como sendo “Mestre H”.
Disse-me que seria o meu mentor e guia e me convidou a
segui-lo, dirigindo-se às partes interiores daquela soturna cidadela negra.
Nada poderia ter-me preparado para o que me esperava.
O salão ao qual entrei assemelhava-se a um templo, talvez
tão amplo quanto o de uma igreja de bom tamanho. Não havia em que sentar-se,
apenas um altar em forma trapezoidal numa plataforma um pouco elevada, no
centro. O altar era feito de um concreto aparente e rústico. Nele havia vigas
de ferro retorcido projetando-se em todas as direções e estavam visivelmente
manchadas de sangue. Uma dessas vigas levantava-se atrás do altar formando uma
rude cruz de cabeça para baixo. Por trás do altar, havia um trono, num plano
mais elevado, que chamava a atenção de um modo impressionante. Era preto,
absolutamente liso, e estava vago. Senti-me um pouco aliviado por não haver
ninguém nele sentado.
Contudo, era a única coisa naquele lugar que tinha uma
aparência tranquilizante.
Meu distinto guia voltou-se para mim e começou a gesticular
com muito entusiasmo, mais ou menos como se fosse o maestro de uma orquestra. E
disse, então, sem alardes:
— Bem-vindo à Catedral da Dor.
Com estas palavras, luzes com um brilho obscuro surgiram
silenciosamente por trás das paredes daquele amplo lugar, e eu fiquei tão
assustado com o que vi que senti-me tomado de forte aflição. As paredes, que
antes pareciam pedras pretas lisas e inclinadas, revelaram-se como sendo totalmente
de vidro transparente, retendo em seu interior um fluido também transparente.
Flutuando dentro daquele fluido, havia dezenas, se não centenas, de corpos
humanos, nus! Estavam todos mortos, a maioria deles com a expressão de um
intenso terror, demonstrado por uma contração em sua face congelada. Muitos
estavam mutilados, de modo tal que me causaram asco.
Na sua maior parte, aquela grotesca vitrina, semelhante a um
aquário, continha corpos de pessoas jovens. Quase todos pareciam estar entrando
na fase adulta, mas entristeci-me ao ver que havia ainda muitos meninos e
meninas, e até criancinhas de menos de três anos, flutuando junto com os
demais. Era como se estivessem preservados, flutuando num formaldeído ou em
alguma funesta substância, tal como uma coleção de borboletas do inferno.
Aquele cenário demoníaco circundava-me de todos os lados,
exceto de um, daquele salão que agora dava para ver que tinha nove lados. Nove
é um dos números mais apreciados pelos satanistas, pois é o único número que se
reduz a si mesmo, sempre. Somente a parede atrás do trono se mostrava ainda
como sendo de pedra preta.
— Esses aí são os filhos do Mestre — proclamou meu guia, com
um estranho orgulho em sua voz. — Não são belos?
Minha garganta ficou tão seca que eu nem conseguia dar-lhe
uma resposta. É incrível, mas de um modo sinistro muitos deles eram belos.
Envergonho-me de ter reagido com certa lascívia à
vista de muitas das mulheres que flutuavam à minha frente.
Era como se eu estivesse tendo o pesadelo mais desagradável que se possa
imaginar, mas tudo me parecia ser muito real.
— Todos os que morrem desta maneira são privilegiados de
pertencerem ao Mestre — explicou-me H. — E agora você pertence a ele também,
para sempre!
Sua última afirmação foi como um mau agouro já consumado,
fazendo sentir-me atingido por dolorosa punhalada de terror, já me vendo
flutuando atrás das paredes de vidro daquele maldito lugar.
Antes que tivesse condições de falar ou de fazer qualquer
coisa, um raio de luz caiu do teto, trovejando, vindo de cavernas não vistas,
atingindo o trono escuro com uma luz tão intensa e brilhante que fez com que eu
não conseguisse mais ver aquelas horríveis imagens dos corpos flutuantes ao meu
redor.
Saindo daquele feixe de luz, surgiu um enorme ser, difícil
de descrever. Vestia também um manto branco e tinha cabelos brancos que caíam
sobre seus ombros, dos quais saíam poderosas asas.
Todavia, tudo nele se alterava a cada segundo. Num momento,
parecia um homem normal, mas extremamente bonito, vistoso.
No momento seguinte, a cabeça de um touro; e depois, a face
de uma bela mulher. O brilho da luz e as rápidas alterações na aparência do parentesco
ser diante de mim fizeram com que meus olhos ardessem e lacrimejassem, a ponto
de ter que coçá-los. Sentia uma forte disposição de mantê-los abertos e estava
totalmente atônito diante da realidade daquela experiência. Meu guia, H., me
fez dar uns passos para a frente e ajudou-me a deitar no piso daquele frio
altar de concreto. Até me senti aliviado por ele não haver-me acorrentado ou
coisa similar.
Perguntava a mim mesmo como fugir dali. Eu não tinha ideia
alguma de onde estava, ou se não estava em algum lugar que não fosse na minha
cabeça insana. Não podia imaginar, no entanto, como a minha mente poderia ter
concebido um lugar tão horrível como aquele, mesmo num pesadelo.
Senti-me estranhamente estimulado enquanto deitado no altar.
Era como se o meu medo tivesse sido entorpecido pelo poder que fluía daquele
ser cintilante no trono. De repente, surgiram dezenas de pessoas. Homens e
mulheres vestidos tal como o meu guia, exceto que portavam um capuz na cabeça.
Por estranho que pareça, eu ouvia o fraco som dos seus passos de pés descalços
sobre o piso do templo.
Começou então um cântico em Latim: “Ave, Satanás; rege, Satanás”
(Salve, Satanás; reina, Satanás) em tons profundos de baixo — como cantos
gregorianos, mas em tons muito estranhos.
— Você experimentou da iluminação do nosso Mestre, o
Portador da Luz, e foi achado digno de receber a Luz — disse-me o meu guia. — Você
se rende à Luz?
Minha cabeça parecia estar zumbindo, mas mesmo assim
senti-me calmo e relaxado. Consegui dizer “sim”, e a cantoria cresceu em
intensidade. Repentinamente, o ser sobre o trono levantou-se.
Fiquei impressionado ao ver como era alto. Procurou
esforçadamente firmar-se de pé, com as pernas abertas, sobre o altar, do mesmo
modo que um adulto tentasse montar num velocípede.
Estendeu, então, sua mão esquerda e a colocou sobre a minha
testa. Tive que fechar os olhos por causa da luz fortemente brilhante.
Parecia que meus olhos estavam se transformando em ferro
derretido. Minha fronte estava prestes a explodir. Senti o rasgo de uma garra
no centro da minha testa, um pouco acima das sobrancelhas, entrando até o meu
cérebro, como se fosse uma barra metálica incandescente. Quis gritar, mas não
consegui. Todo o meu corpo sentia-se como se fosse estourar, por ter-se enchido
de uma extraordinária luz ardente.
Outra garra tocou em mim, e senti a dor de uma forte
ferroada.
Então, as duas mãos se afastaram, e uma voz falou; era a
mesma voz que eu já tinha ouvido e que surgira dentro de mim várias vezes em
que estava celebrando um ritual.
— “Agora você me pertence para sempre!”
O som de uma centena de vozes de repente ressoou por todo o
salão, cantando:
— “Glória e amor a Lúcifer! Ódio!, ódio!, ódio! a Deus,
amaldiçoado!, amaldiçoado!, amaldiçoado!”
Parecia que a garra ardia dentro da minha mente. Meu corpo
estremecia-se todo, estendido sobre o altar, com o poder daquele cântico.
Sentia-me como um peixe preso num anzol, sendo arrastado para fora d’água pelo
meu próprio cérebro. Quis soltar um grito de dor, mas o que saiu foi:
— “Glória e amor a Lúcifer! Ódio!, ódio!, ódio! a Deus,
amaldiçoado!, amaldiçoado!, amaldiçoado!”
O ensurdecedor estrondo de um trovão atingiu a catedral. Fui
arrastado para fora do altar a uma incrível velocidade e levado para
aquele terrível aquário de cadáveres. Por um segundo, pensei
que fosse ser colocado no meio deles. Por fim, consegui dar um grito. Mas,
antes que o grito terminasse, eu já havia ultrapassado o aquário e viajava no
que parecia ser o relâmpago de um raio passando pelas nuvens e movendo-se
rapidamente em direção à terra.
Em menos de um segundo, achei-me deitado, de barriga para
baixo, sobre a relva molhada pela chuva do quintal da minha casa, envolvido
pelo inconfundível aroma do ozônio. A grama ao meu redor parecia estar
estranhamente chamuscada, e uma fumaça subia do gramado como se estivesse sendo
assado ao calor do sol da tarde de um dia de verão.
Foi tudo um sonho? Não dá para dizer. Mas, se foi, eu vim,
em sonambulismo, do meu quarto para o lado de fora da casa, até o meio do
jardim, debaixo de uma forte chuva, sem acordar ninguém. Nunca fui sonâmbulo. E
Sharon, por sua vez, desperta ao menor ruído.
Minha vida mudou profundamente a partir daquele dia. Se
aquele ser com quem me defrontei era de fato Satanás, ele me dera uma marca que
eu levaria por muitos anos, a partir de então.
Essa marca era um sinal de que eu era propriedade dele e me fazia nunca esquecer-me disso. Pode ter sido um pesadelo, mas um pesadelo do qual eu poderia ter nunca mais acordado.