Por motivos óbvios, a congregação da Igreja da Comunidade de Ashton
estava muito menor e mais fragmentada nessa manhã de domingo, mas Hank tinha de
admitir que o ambiente era mais tranqüilo. Ao postar-se atrás do velho púlpito
a fim de dar início ao culto, ele podia ver os rostos sorridentes dos que o
apoiavam espalhados pela pequena multidão. Sim, lá estavam os Colemans sentados
no lugar de sempre. Vovó Duster também estava presente, muito melhor de saúde,
louvado seja o Senhor, e lá estavam os Coopers, os Harris, e Ben Squires, o
carteiro. Alf Brummel não comparecera, mas Gordon Mayer e a esposa estavam
presentes, bem como Sam e Helen Turner. Alguns dos não muito ativos estavam lá
para a sua costumeira visitinha mensal, e Hank deu-lhes olhares e sorrisos
especiais, demonstrando-lhes que haviam sido notados.
Enquanto Mary atacava com entusiasmo "Louvai ao
nome de Jesus" no piano e Hank dirigia o hino, outro casal entrou pela
porta dos fundos e assentou-se num dos últimos bancos, como costumam fazer os visitantes. Hank não os reconheceu.
Scion permaneceu perto da porta dos fundos, observando
Andy e June Forsythe tomarem seu lugar. Depois olhou na direção da plataforma e fez
uma saudação amistosa a Krioni e Triskal. Eles sorriram e devolveram o gesto.
Alguns demônios haviam entrado com os humanos, e não ficaram nada contentes ao
verem o novo estranho celestial rondando por ali, e muito menos por estar ele
trazendo gente nova à igreja. Mas Scion saiu inofensivamente de costas pela
porta.
Hank não conseguia explicar por que se sentia tão exultante essa
manhã. Talvez fosse por Vovó Duster estar presente, e os Colemans, e o novo
casal. E depois havia aquele outro sujeito, também novo, o loiro grandalhão
sentado no fundo. Tinha de ser algum lutador ou algo parecido.
Hank estava a lembrar-se do que a Vovó Duster lhe havia dito:
"Precisamos orar para que o Senhor os reúna..."
Ele chegou ao sermão e abriu a Bíblia em Isaías 55.
—
"Buscai o Senhor enquanto se pode achar, invocai-o enquanto está perto. Deixe
o perverso o seu caminho, o iníquo os seus pensamentos; converta-se ao Senhor,
que se compadecerá dele, e volte-se para o nosso Deus, porque é rico em
perdoar. Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os
vossos caminhos os meus caminhos, diz o Senhor, porque, assim como os céus são
mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os
vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos.
Porque assim como descem a chuva e a neve dos céus, e para lá não tornam, sem
que primeiro reguem a terra e a fecundem e façam brotar, para dar semente ao
semeador e pão ao que come, assim será a palavra que sair da minha boca: não
voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz, e prosperará naquilo para que
a designei. Saireis com alegria, e em paz sereis guiados; os montes e os
outeiros romperão em cânticos diante de vós, e todas as árvores do campo
baterão palmas."
Hank amava essa passagem, e não pôde deixar de sorrir ao
começar a explicá-la. Algumas pessoas simplesmente o fitavam, ouvindo por
obrigação. Mas outras até se inclinavam para a frente em seus lugares, bebendo
cada palavra. O novo casal, sentado no fundo, assentia com a cabeça, expressão
atenta. O loiro grandalhão sorria, assentia com a cabeça, chegou até a gritar
um "Amém!"
As palavras continuavam a chegar à mente e coração de Hank.
Tinha de ser a unção do Senhor. Ele ia ao púlpito de vez em quando a fim de
consultar as anotações, mas na maior parte do tempo passeava por toda a
plataforma, sentindo-se como se estivesse em algum lugar entre o céu e a terra,
anunciando a Palavra de Deus.
Os poucos demoniozinhos que rondavam pelo ambiente
podiam apenas encolher-se e zombar. Alguns conseguiram fechar os ouvidos das
pessoas que possuíam, mas a investida desta manhã era particularmente severa e dolorosa.
Para eles, a pregação de Hank tinha um efeito tão calmante quanto uma
britadeira.
Em cima da igreja, Signa e seus guerreiros se recusavam
a curvar-se ou voltar atrás. Lucius apareceu com um bando considerável de demônios bem
a tempo para o culto, mas Signa não abriu caminho.
—
Você sabe que é melhor não mexer comigo! — ameaçou Lucius. Signa foi
revoltantemente bem educado.
—
Sinto muito, não podemos permitir a entrada de mais demônios na igreja esta
manhã.
Lucius deve ter tido coisas mais importantes para seus
demônios
fazerem aquela manhã do que forçar a passagem através de um cerco de anjos
obstinados. Ele lhes dirigiu alguns insultos seletos e então o bando todo
zarpou com estrondo pelo espaço, rumo a algum outro malfeito.
Terminado o culto, algumas pessoas marcharam em linha
reta para a porta. Outras se dirigiram em linha reta para Hank.
—
Pastor, meu nome é Andy Forsythe, e esta é a minha esposa, June.
—
Alô, alô — disse Hank, e podia sentir um largo sorriso a esticar-lhe o rosto.
—
Foi ótimo — disse Andy, sacudindo a cabeça admirado e ainda apertando a mão de
Hank. — Foi... nossa, foi realmente ótimo!
Falaram de banalidades por alguns minutos, descobrindo
coisas a respeito um do outro. Andy era o proprietário e administrador de uma
serraria nos arredores da cidade; June era secretária. Tinham um filho, Ron,
que estava envolvido com drogas e precisava do Senhor.
—
Bem — disse Andy — não faz muito tempo que nós dois aceitamos a Cristo.
Costumávamos freqüentar a igreja Cristã Unida de Ashton... — A voz dele sumiu.
June era menos inibida.
—
Estávamos morrendo de fome. Mal podíamos esperar para sair dela.
Andy interrompeu.
—
É, isso mesmo. Ouvimos falar desta igreja; bem, para dizer a verdade, ouvimos
falar de você; disseram que estava meio encrencado por ser tão apegado à
Palavra de Deus, e pensamos: "Devíamos sondar esse sujeito." Agora
estou contente por termos feito isso.
—
Pastor — continuou ele — quero que saiba que há muita gente faminta nesta
cidade. Alguns de nossos amigos amam ao Senhor mas não têm aonde ir. Tem sido
bem estranho estes últimos anos. Uma a uma as igrejas nestas redondezas meio
que morreram. Oh, ainda estão de pé, não há dúvida, e têm as pessoas e o dinheiro,
mas... sabe o que quero dizer. Hank não estava certo de saber.
—
O que exatamente você quer dizer? Andy sacudiu a cabeça.
—
Satanás está brincando com esta cidade, acho. Ashton não costumava ser assim,
com tanta coisa esquisita acontecendo. Olhe, você pode achar difícil acreditar,
mas temos amigos que saíram de três, não, quatro igrejas locais.
June trocou olhares com Andy enquanto repassava uma
lista mental de nomes.
—
Greg e Eva Smith, os Bartons, os Jennings, Clint Neal...
—
É, certo, certo — afirmou Andy. — Como eu disse, há uma porção de pessoas
famintas, ovelhas sem pastor. As igrejas simplesmente não dão conta do recado.
Elas não pregam o evangelho.
Nesse instante, Mary chegou, toda sorridente. Alegre,
Hank a apresentou. Depois Mary disse:
—
Hank, quero apresentar — e se voltou para o salão vazio. Seja lá quem fosse que
devia estar lá não estava. — Ora... ele se foi!
—
Quem era? — perguntou Hank.
—
Oh, você se lembra daquele sujeito grandalhão que estava sentado no fundo?
—
O loiro alto?
—
Sim. Tive oportunidade de falar com ele. Ele me falou que lhe dissesse que —
Mary tornou a voz bem grave a fim de imitá-lo: "o Senhor está com você,
continue orando e continue ouvindo".
—
Ah, que bom. Você ficou sabendo o nome dele?
—
Não... acho que ele não chegou a dizer. Andy perguntou:
—
Quem era?
—
Você sabe — disse Hank — aquele sujeito grande no fundo. Ele estava sentado bem
ao seu lado.
Andy olhou para June, e os olhos dela se arregalaram.
Andy pôs-se a
sorrir, depois começou a rir, em seguida pôs-se a bater palmas e praticamente a
dançar.
—
Louvado seja o Senhor! — exclamou ele, e Hank não tinha visto tanto entusiasmo
assim em muito tempo. — Louvado seja o Senhor, não havia ninguém lá. Pastor,
não vimos a ninguém!
A boca de Mary caiu, e ela a cobriu com os dedos.
Marshall tinha ouvido bastante desse mesmo tipo de
coisas antes, por isso nesse domingo específico ficou remoendo as perguntas que não podia esperar
para lançar sobre Young quando o culto acabasse.
Young continuava.
—
Deus não disse: "Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa
semelhança"? O que havia permanecido na escuridão da tradição e da
ignorância, descobrimos agora revelado dentro de nós. Descobrimos, não, antes,
redescobrimos o conhecimento que sempre tivemos como raça: somos inerentemente
divinos em nossa essência, e temos dentro de nós a capacidade para o bem, o potencial
para tornar-nos como que deuses, feitos à exata semelhança do Deus Pai, o fonte
final de tudo o que existe...
Marshall deu uma olhada furtiva para o lado. Lá estava Kate, e lá estava
Sandy tomando notas feito doida, e ao lado dela estava Shawn Ormsby. Sandy e
Shawn estavam-se dando muito bem, e ele estava exercendo uma influência
positiva marcante na vida dela. Hoje, por exemplo, ele havia feito um trato com
Sandy: ele iria à igreja com ela se ele fosse com os pais. Bem, tinha
funcionado.
Marshall tinha de admitir, embora com alguma relutância, que Shawn conseguia
comunicar-se com Sandy de uma forma que Marshall jamais conseguira. Tinha
havido diversas ocasiões em que Shawn servira como ligação ou intérprete entre
Sandy e Marshall, abrindo canais de comunicação que nenhum dos dois pensavam
jamais se pudessem materializar. Até que enfim as coisas estavam ficando
tranqüilas em casa. Shawn parecia um tipo gentil com um verdadeiro dom para
arbitrar disputas.
E então, o que faço agora? perguntou-se Marshall. Pela primeira
vez não sei em quanto tempo, toda a minha família está sentada junta na igreja,
e isso é nada menos do que um milagre, um verdadeiro milagre. Mas realmente
escolhemos uma droga de igreja para freqüentar juntos, e quanto àquele
pregador...
Seria tão confortável e tão bom deixar as coisas como estavam, mas
ele era repórter, e esse Young estava escondendo algo. Bolas! Falar em conflito
de interesses!
Assim, enquanto o Pastor Oliver Young lá em cima tentava explicar
as suas idéias acerca do "infinito potencial divino dentro do homem aparentemente finito", Marshall se ocupava com os próprios problemas
aflitivos.
O culto terminou ao meio-dia em ponto, e o carrilhão da torre automaticamente
começou a tocar um acompanhamento musical muito tradicional, que soava muito
cristão, a todos os cumprimentos, conversinhas e despedidas.
Marshall e a família entraram no fluxo do tráfego que se escoava em
direção ao saguão. Oliver Young estava em pé ao lado da porta da frente, seu
lugar de sempre, cumprimentando a todos os seus paroquianos, apertando as mãos,
fazendo agradinhos aos nenês, sendo pastoral. Não demorou para que Marshall,
Kate, Sandy e Shawn chegassem diante dele.
—
Ora, Marshall, que prazer em vê-lo — disse efusivamente, apertando a mão do jornalista.
—
Você conhece a Sandy? — perguntou Marshall, e apresentou formalmente Young à
filha.
Young foi muito caloroso.
—
Sandy, fico muito contente em vê-la.
Sandy pelo menos agia como se estivesse contente em
estar ali.
—
E Shawn! — exclamou Young. — Shawn Ormsby! — Os dois apertaram-se as mãos.
—
Oh, então vocês dois já se conhecem? — perguntou Marshall.
—
Oh, conheço Shawn desde que ele era um toquinho de gente. Shawn, veja se
aparece de vez em quando, está bem?
—
Está certo — respondeu Shawn com um sorriso tímido.
Os outros continuaram a andar, mas Marshall ficou para
trás e
aproximou-se de Young pelo outro lado a fim de conversar um pouco mais.
Ele esperou até que Young tivesse acabado de cumprimentar um grupinho
de pessoas, e depois inseriu na pausa:
—
Olhe, achei que você gostaria de saber que as coisas estão melhores agora
entre mim e Sandy.
Young sorriu, apertou algumas mãos, então disse de lado:
—
Que maravilha! É realmente maravilhoso, Marshall —. Ele ofereceu a mão a outra
pessoa:
—
Que bom vê-lo aqui hoje.
Em outra pausa entre os cumprimentos finais, Marshall
inseriu:
—
Sim, ela realmente gostou do seu sermão esta manhã. Disse que apresentou um
grande desafio.
—
Ora, muito obrigado por me dizer. Sim, Sr. Beaumont, como está?
—
Sabe, parecia até um paralelo ao que Sandy está aprendendo na escola, nas aulas
de Juleen Langstrat.
Young não respondeu, e dirigiu toda a sua atenção a um jovem casal
com um bebê.
—
Nossa, ela está ficando tão grande. Marshall continuou:
—
Você precisa conhecer a professora Langstrat. Há um paralelo muito interessante entre o que ela ensina e o que você prega —. Não houve reação
por parte de Young. — De fato, pelo que sei a professora está envolvida com
ocultismo e misticismo oriental...
—
Bem — disse Young — eu nada saberia a esse respeito, Marshall.
—
E você definitivamente não conhece essa professora Langstrat?
—
Não, eu já lhe disse.
—
Você não fez diversas sessões particulares com ela, com regularidade, e não
apenas você como também Alf Brummel, Ted Harmel, Delores Pinckston, Eugene
Baylor, e até mesmo o juiz Baker?
Young corou um pouco, fez uma pausa, então fez uma careta de
embaraçada lembrança.
—
Oh, céus! — riu-se ele. — Onde estava a minha cabeça? Sabe, todo este tempo
estive pensando em outra pessoa!
—
Então, você já a conhece, não?
—
Sim, claro. Muitos de nós a conhecemos.
Young voltou-se para o lado a fim de cumprimentar
outras pessoas. Quando elas se foram, Marshall ainda estava em pé ali. E insistiu:
—
E então, o que me diz dessas sessões particulares? É verdade que a clientela
dela inclui líderes cívicos, oficiais eleitos, diretores da faculdade...?
Young olhou diretamente para Marshall, e seus olhos
estavam um tanto frios.
—
Marshall, qual é exatamente o seu interesse em tudo isso?
—
Estou apenas tentando fazer o meu trabalho. Seja lá o que for, parece algo de
que a população de Ashton deveria tomar conhecimento, especialmente por
envolver tantas pessoas influentes que estão moldando a cidade.
—
Bem, se você está preocupado a respeito, não é comigo que deve falar. Deveria
perguntar à própria professora Langstrat.
—
Oh, é o que tenciono fazer. Apenas queria que você tivesse a chance de dar-me
umas respostas honestas, algo que sinto que você não está fazendo totalmente.
A voz de Young tornou-se tensa.
—
Marshall, se pareço evasivo é porque aquilo que está tentando descobrir é
protegido pela ética profissional. É informação confidencial. Eu estava
simplesmente com esperança de que você percebesse isso sem que eu tivesse de
dizer-lhe.
Kate chamava-o da calçada.
—
Marshall, estamos esperando por você.
Marshall afastou-se, e foi melhor assim. Só poderia ter-se esquentado
mais daquele ponto em diante, e não estava levando a nada, afinal de contas.
Young era frio, muito duro e escorregadio.
O pequeno conjunto de prédios, antiga e dilapidada casa de fazenda havia-se
expandido, transformando-se em um complexo de edifícios de pedra e tijolos que
agora abrigavam um pequeno dormitório, um complexo de escritórios, um
refeitório, um prédio de manutenção, uma clínica, e diversas residências
particulares. Não havia letreiros, entretanto, nenhuma etiqueta em parte
alguma, nada que identificasse onde se estava ou o que era tudo aquilo.
Traçando um risco de carvão pelo céu, um sinistro objeto negro
voou por cima dos cumes das montanhas e começou a descer ao vale, perfurando as
camadas muito finas de neblina que pairavam no ar. Envolto em escuridão espiritual
opressiva, e silencioso como uma nuvem negra, Baal Rafar, o príncipe da
Babilônia, flutuou para o vale. Ia contornando de perto as encostas das
montanhas, manobrando num curso que serpeava entre escarpas e penhascos
rochosos. O pálio de escuridão o seguia como sua própria sombra, como pequenino
círculo de noite na paisagem; um leve traço de vapor vermelho e amarelado
escapava-lhe das narinas e pairava no ar atrás dele como longa fita que se ia
assentando aos poucos.
Lá em baixo, a fazenda parecia um enorme ninho cheio de pavorosos
insetos negros. Diversas camadas de guerreiros implacáveis pairavam quase
estacionárias em vasta cúpula de defesa sobre o complexo, espadas
desembainhadas, olhos amarelos perscrutando o vale. No fundo dessa concha, demônios
de todos os tamanhos, formatos e forças disparavam de um lado para outro,
formando fervilhante massa de atividade. Quando Rafar desceu mais, notou uma
concentração de espíritos negros cercando um casarão de pedra de diversos
andares nas cercanias do conjunto. É ali que está o Homem Forte, pensou ele,
por isso fez suave curva lateral, mudando o rumo para aquele prédio.
As sentinelas externas o viram aproximar-se e deram um
berro sinistro, como uma sirene. Imediatamente os defensores se irradiaram da
trajetória do
vôo de Rafar, abrindo passagem através das camadas de defesa. Rafar mergulhou
agilmente pela passagem enquanto os demônios de todos os lados o
saudavam com espadas erguidas, os olhos ardentes como milhares de pares de
estrelas amarelas contra veludo preto. Ele os ignorou e passou depressa. A passagem
fechou-se novamente atrás dele como se fosse um portão vivo.
Flutuou lentamente através do teto, do sótão, passou pelos caibros, pelas
paredes, pelo cimento, por um quarto do andar superior, através do chão espesso
apoiado sobre vigas e chegou à espaçosa sala de estar do piso inferior.
O mal no aposento era espesso e restritivo, a escuridão como negro líquido que
se revolvia, com qualquer movimento de braços ou pernas. A sala estava
apinhada.
—
Baal Rafar, o Príncipe da Babilônia! — anunciou um demônio de algum lugar, e
monstruosos demônios no perímetro da sala se curvaram em sinal de respeito.
Rafar recolheu as asas de forma a caírem qual manto real, e
postou-se com ar intimidador de realeza e poder, as jóias faiscando de maneira
impressionante. Seus grandes olhos amarelos estudavam cuidadosamente as bem
formadas fileiras de demônios, dispostas ao seu redor. Um horrendo ajuntamento.
Eram espíritos a nível dos principados, príncipes de suas próprias nações,
povos, tribos. Alguns eram da África, outros do Oriente, diversos da Europa.
Todos eram invencíveis. Rafar observou-lhes o incrível tamanho e tremenda aparência;
eram todos seus pares em tamanho e ferocidade, e ele duvidava que jamais se aventurasse
a desafiar qualquer deles. Receber mesura da parte deles era grande honra, um
cumprimento de verdade.
—
Salve, Rafar — disse uma voz gorgolejante no fundo da sala. O Homem Forte. Era
proibido mencionar o seu nome. Ele era uma das poucas majestades que
gozavam da intimidade do próprio Lú-cifer, um malévolo tirano global responsável por
séculos de resistência aos planos do Deus vivo e pelo estabelecimento do reino
de Lúcifer sobre a terra. Rafar e sua espécie controlavam nações; os do nível
do Homem Forte controlavam Rafar e sua espécie.
O Homem Forte ergueu-se do seu lugar, e seu enorme
porte tomou aquela parte do aposento. Podia-se sentir a presença do mal que emanava dele
por toda a parte, quase como uma extensão do seu corpo. Era grotesco, o couro
preto pendurado como sacos e cortinas de seus membros e tronco, a cara era um
macabro cenário de proeminências e sulcos em dobras profundas. Suas jóias
cintilavam em torno do pescoço, no peito, nos braços; suas grandes asas negras
circundavam-lhe o corpo como um manto real e se arrastavam pelo chão.
Rafar fez uma profunda mesura, sentindo a presença do Homem Forte do outro
lado da sala.
—
Salve, meu senhor.
O Homem Forte jamais desperdiçava palavras.
—
Seremos detidos novamente?
—
Os erros do Príncipe Lucius estão sendo corrigidos. A nova resistência está
caindo, senhor. Logo a cidade estará pronta.
—
E o que me diz do exército celestial?
—
Limitado.
O Homem Forte não gostou da resposta de Rafar, o subordinado pôde
percebê-lo distintamente. O chefe disse lentamente:
—
Fomos informados de que um poderoso Capitão do Exército foi enviado a Ashton.
Creio que o conhece.
—
Tenho motivos para crer que Tal foi enviado, mas já o esperava. Os grandes
olhos drapeados em veludo arderam de fúria.
—
Não é esse Tal que o derrotou na queda da Babilônia? Rafar sabia que precisava
responder, e depressa.
—
É esse mesmo.
—
Então os atrasos desfizeram nossa vantagem. Agora tem pela frente um adversário
tão forte quanto você.
—
Meu senhor, verá o que o seu servo é capaz de fazer.
—
Palavras audaciosas, Rafar, mas suas forças só podem ser bem sucedidas se
usadas imediatamente; as forças do inimigo crescem com o tempo.
—
Tudo estará pronto.
—
E o homem de Deus e o jornalista?
—
O meu senhor digna-se a dar-lhes atenção?
—
O seu senhor deseja que você lhes dê a sua!
—
Eles não têm poder, senhor, e logo serão removidos.
—
Mas somente se Tal for removido — disse o Homem Forte escarnecedoramente. —
Quero ver isso acontecer antes que você venha me amolar com a sua gabolice. Até
então, permanecemos confinados a este lugar. Rafar, não esperarei muito tempo!
—
Nem precisará.
O Homem Forte sorriu com afetação.
—
Você tem as suas ordens. Vá!
Rafar curvou-se profundamente, e com um desdobrar das
asas atravessou silenciosamente a casa até o lado de fora.
Então, em furiosa explosão de raiva, ele disparou para o alto,
dando encontrões tão violentos em demônios desatentos que eles viraram
cambalhotas no ar. Ganhou velocidade, o frenético bater das asas formando um
borrão ofuscante, e os defensores mal tiveram tempo de abrir uma passagem antes
que ele explodisse por ela deixando atrás de si um rasto quente de hálito
sulfuroso. Eles fecharam a passagem novamente, entreolhando-se curiosos
enquanto o viam perder-se na distância.
Rafar subiu rugindo como um foguete pela encosta das
montanhas e depois sobre os cumes pontiagudos, voltando em direção à cidadezinha de
Ashton. Em sua fúria, ele não se importava em ser visto, não se importava em
manter o segredo, nem o decoro. Que o mundo inteiro o visse, e tremesse! Ele
era Rafar, príncipe da Babilônia! Que o mundo inteiro se prostrasse diante dele
ou fosse dizimado pelo gume da sua espada!
Tal! O nome em si já lhe trazia amargor à língua. Os senhores servos de
Lúcifer jamais lhe permitiriam esquecer aquela derrota tão antiga. Nunca, até o
dia em que Rafar redimisse a sua honra.
E deveras o faria. Rafar entrevia sua espada estripando
Tal e espalhando-o em tiras e pedacinhos pelo céu; podia sentir o impacto em seus braços, podia ouvir
o som cortante que produziria. Era apenas uma questão de tempo.
Dentre as pedras pontiagudas no cume de uma montanha, um homem de cabelos prateados saiu do seu esconderijo para observar Rafar sumir rapidamente à distância, desenhando uma longa trilha negra no céu, até desaparecer no horizonte. O homem olhou mais uma vez para o conjunto de prédios cheios de demônios no vale, olhou novamente na direção do horizonte, então precipitou-se pelo outro lado da montanha, desaparecendo num brilhar de luz e num adejar de asas.