quinta-feira, 6 de maio de 2021

Este mundo tenebroso - volume 01 - Capítulo 13

Por motivos óbvios, a congregação da Igreja da Comunidade de Ashton estava muito menor e mais fragmentada nessa manhã de domingo, mas Hank tinha de admitir que o am­biente era mais tranqüilo. Ao postar-se atrás do velho púlpito a fim de dar início ao culto, ele podia ver os rostos sorridentes dos que o apoiavam espalhados pela pequena multidão. Sim, lá estavam os Colemans sentados no lugar de sempre. Vovó Duster também estava presente, muito melhor de saúde, louvado seja o Senhor, e lá estavam os Coopers, os Harris, e Ben Squires, o carteiro. Alf Brummel não comparecera, mas Gordon Mayer e a esposa estavam presentes, bem como Sam e Helen Turner. Alguns dos não muito ativos estavam lá para a sua costumeira visitinha mensal, e Hank deu-lhes olhares e sorrisos especiais, demonstrando-lhes que haviam sido notados.

Enquanto Mary atacava com entusiasmo "Louvai ao nome de Je­sus" no piano e Hank dirigia o hino, outro casal entrou pela porta dos fundos e assentou-se num dos últimos bancos, como costumam fazer os visitantes. Hank não os reconheceu.

Scion permaneceu perto da porta dos fundos, observando Andy e June Forsythe tomarem seu lugar. Depois olhou na direção da pla­taforma e fez uma saudação amistosa a Krioni e Triskal. Eles sorriram e devolveram o gesto. Alguns demônios haviam entrado com os hu­manos, e não ficaram nada contentes ao verem o novo estranho ce­lestial rondando por ali, e muito menos por estar ele trazendo gente nova à igreja. Mas Scion saiu inofensivamente de costas pela porta.

Hank não conseguia explicar por que se sentia tão exultante essa manhã. Talvez fosse por Vovó Duster estar presente, e os Colemans, e o novo casal. E depois havia aquele outro sujeito, também novo, o loiro grandalhão sentado no fundo. Tinha de ser algum lutador ou algo parecido.

Hank estava a lembrar-se do que a Vovó Duster lhe havia dito:

"Precisamos orar para que o Senhor os reúna..."

Ele chegou ao sermão e abriu a Bíblia em Isaías 55.

— "Buscai o Senhor enquanto se pode achar, invocai-o enquanto está perto. Deixe o perverso o seu caminho, o iníquo os seus pen­samentos; converta-se ao Senhor, que se compadecerá dele, e volte-se para o nosso Deus, porque é rico em perdoar. Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos cami­nhos os meus caminhos, diz o Senhor, porque, assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos. Porque assim como descem a chuva e a neve dos céus, e para lá não tornam, sem que primeiro reguem a terra e a fecundem e façam brotar, para dar semente ao semeador e pão ao que come, assim será a palavra que sair da minha boca: não voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz, e prosperará naquilo para que a designei. Saireis com alegria, e em paz sereis guiados; os montes e os outeiros romperão em cânticos diante de vós, e todas as árvores do campo baterão palmas."

Hank amava essa passagem, e não pôde deixar de sorrir ao começar a explicá-la. Algumas pessoas simplesmente o fitavam, ouvindo por obrigação. Mas outras até se inclinavam para a frente em seus lugares, bebendo cada palavra. O novo casal, sentado no fundo, assentia com a cabeça, expressão atenta. O loiro grandalhão sorria, assentia com a cabeça, chegou até a gritar um "Amém!"

As palavras continuavam a chegar à mente e coração de Hank. Tinha de ser a unção do Senhor. Ele ia ao púlpito de vez em quando a fim de consultar as anotações, mas na maior parte do tempo pas­seava por toda a plataforma, sentindo-se como se estivesse em algum lugar entre o céu e a terra, anunciando a Palavra de Deus.

Os poucos demoniozinhos que rondavam pelo ambiente podiam apenas encolher-se e zombar. Alguns conseguiram fechar os ouvidos das pessoas que possuíam, mas a investida desta manhã era parti­cularmente severa e dolorosa. Para eles, a pregação de Hank tinha um efeito tão calmante quanto uma britadeira.

Em cima da igreja, Signa e seus guerreiros se recusavam a curvar-se ou voltar atrás. Lucius apareceu com um bando considerável de demônios bem a tempo para o culto, mas Signa não abriu caminho.

— Você sabe que é melhor não mexer comigo! — ameaçou Lucius. Signa foi revoltantemente bem educado.

— Sinto muito, não podemos permitir a entrada de mais demônios na igreja esta manhã.

Lucius deve ter tido coisas mais importantes para seus demônios fazerem aquela manhã do que forçar a passagem através de um cerco de anjos obstinados. Ele lhes dirigiu alguns insultos seletos e então o bando todo zarpou com estrondo pelo espaço, rumo a algum outro malfeito.

Terminado o culto, algumas pessoas marcharam em linha reta para a porta. Outras se dirigiram em linha reta para Hank.

— Pastor, meu nome é Andy Forsythe, e esta é a minha esposa, June.

— Alô, alô — disse Hank, e podia sentir um largo sorriso a esticar-lhe o rosto.

— Foi ótimo — disse Andy, sacudindo a cabeça admirado e ainda apertando a mão de Hank. — Foi... nossa, foi realmente ótimo!

Falaram de banalidades por alguns minutos, descobrindo coisas a respeito um do outro. Andy era o proprietário e administrador de uma serraria nos arredores da cidade; June era secretária. Tinham um filho, Ron, que estava envolvido com drogas e precisava do Se­nhor.

— Bem — disse Andy — não faz muito tempo que nós dois acei­tamos a Cristo. Costumávamos freqüentar a igreja Cristã Unida de Ashton... — A voz dele sumiu.

June era menos inibida.

— Estávamos morrendo de fome. Mal podíamos esperar para sair dela.

Andy interrompeu.

— É, isso mesmo. Ouvimos falar desta igreja; bem, para dizer a verdade, ouvimos falar de você; disseram que estava meio encren­cado por ser tão apegado à Palavra de Deus, e pensamos: "Devíamos sondar esse sujeito." Agora estou contente por termos feito isso.

— Pastor — continuou ele — quero que saiba que há muita gente faminta nesta cidade. Alguns de nossos amigos amam ao Senhor mas não têm aonde ir. Tem sido bem estranho estes últimos anos. Uma a uma as igrejas nestas redondezas meio que morreram. Oh, ainda estão de pé, não há dúvida, e têm as pessoas e o dinheiro, mas... sabe o que quero dizer. Hank não estava certo de saber.

— O que exatamente você quer dizer? Andy sacudiu a cabeça.

— Satanás está brincando com esta cidade, acho. Ashton não cos­tumava ser assim, com tanta coisa esquisita acontecendo. Olhe, você pode achar difícil acreditar, mas temos amigos que saíram de três, não, quatro igrejas locais.

June trocou olhares com Andy enquanto repassava uma lista men­tal de nomes.

— Greg e Eva Smith, os Bartons, os Jennings, Clint Neal...

— É, certo, certo — afirmou Andy. — Como eu disse, há uma porção de pessoas famintas, ovelhas sem pastor. As igrejas simples­mente não dão conta do recado. Elas não pregam o evangelho.

Nesse instante, Mary chegou, toda sorridente. Alegre, Hank a apre­sentou. Depois Mary disse:

— Hank, quero apresentar — e se voltou para o salão vazio. Seja lá quem fosse que devia estar lá não estava. — Ora... ele se foi!

— Quem era? — perguntou Hank.

— Oh, você se lembra daquele sujeito grandalhão que estava sen­tado no fundo?

— O loiro alto?

— Sim. Tive oportunidade de falar com ele. Ele me falou que lhe dissesse que — Mary tornou a voz bem grave a fim de imitá-lo: "o Senhor está com você, continue orando e continue ouvindo".

— Ah, que bom. Você ficou sabendo o nome dele?

— Não... acho que ele não chegou a dizer. Andy perguntou:

— Quem era?

— Você sabe — disse Hank — aquele sujeito grande no fundo. Ele estava sentado bem ao seu lado.

Andy olhou para June, e os olhos dela se arregalaram. Andy pôs-se a sorrir, depois começou a rir, em seguida pôs-se a bater palmas e praticamente a dançar.

— Louvado seja o Senhor! — exclamou ele, e Hank não tinha visto tanto entusiasmo assim em muito tempo. — Louvado seja o Senhor, não havia ninguém lá. Pastor, não vimos a ninguém!

A boca de Mary caiu, e ela a cobriu com os dedos.

 Oliver Young era um verdadeiro artista; sabia trabalhar uma au­diência até cada lágrima ou riso, e cronometrá-los com tanta precisão que as pessoas se transformavam em marionetes. Ele se postava atrás do púlpito com incrível dignidade, e suas palavras eram tão bem escolhidas que qualquer coisa que dissesse tinha de estar certa. A vasta congregação certamente parecia pensar que sim; o templo es­tava lotado. Muitos dos presentes eram profissionais liberais: mé­dicos, professores, pessoas que se diziam filósofas e poetas; um segmento muito grande vinha da faculdade ou era de alguma forma ligado a ela. Tomavam notas meticulosas da mensagem de Young, como se fosse uma preleção.

Marshall tinha ouvido bastante desse mesmo tipo de coisas antes, por isso nesse domingo específico ficou remoendo as perguntas que não podia esperar para lançar sobre Young quando o culto acabasse.

Young continuava.

— Deus não disse: "Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança"? O que havia permanecido na escuridão da tradição e da ignorância, descobrimos agora revelado dentro de nós. Descobrimos, não, antes, redescobrimos o conhecimento que sempre tivemos como raça: somos inerentemente divinos em nossa essência, e temos dentro de nós a capacidade para o bem, o potencial para tornar-nos como que deuses, feitos à exata semelhança do Deus Pai, o fonte final de tudo o que existe...

Marshall deu uma olhada furtiva para o lado. Lá estava Kate, e lá estava Sandy tomando notas feito doida, e ao lado dela estava Shawn Ormsby. Sandy e Shawn estavam-se dando muito bem, e ele estava exercendo uma influência positiva marcante na vida dela. Hoje, por exemplo, ele havia feito um trato com Sandy: ele iria à igreja com ela se ele fosse com os pais. Bem, tinha funcionado.

Marshall tinha de admitir, embora com alguma relutância, que Shawn conseguia comunicar-se com Sandy de uma forma que Mars­hall jamais conseguira. Tinha havido diversas ocasiões em que Shawn servira como ligação ou intérprete entre Sandy e Marshall, abrindo canais de comunicação que nenhum dos dois pensavam jamais se pudessem materializar. Até que enfim as coisas estavam ficando tranqüilas em casa. Shawn parecia um tipo gentil com um verdadeiro dom para arbitrar disputas.

E então, o que faço agora? perguntou-se Marshall. Pela primeira vez não sei em quanto tempo, toda a minha família está sentada junta na igreja, e isso é nada menos do que um milagre, um verdadeiro milagre. Mas realmente escolhemos uma droga de igreja para fre­qüentar juntos, e quanto àquele pregador...

Seria tão confortável e tão bom deixar as coisas como estavam, mas ele era repórter, e esse Young estava escondendo algo. Bolas! Falar em conflito de interesses!

Assim, enquanto o Pastor Oliver Young lá em cima tentava explicar as suas idéias acerca do "infinito potencial divino dentro do homem aparentemente finito", Marshall se ocupava com os próprios pro­blemas aflitivos.

O culto terminou ao meio-dia em ponto, e o carrilhão da torre automaticamente começou a tocar um acompanhamento musical muito tradicional, que soava muito cristão, a todos os cumprimentos, conversinhas e despedidas.

Marshall e a família entraram no fluxo do tráfego que se escoava em direção ao saguão. Oliver Young estava em pé ao lado da porta da frente, seu lugar de sempre, cumprimentando a todos os seus paroquianos, apertando as mãos, fazendo agradinhos aos nenês, sendo pastoral. Não demorou para que Marshall, Kate, Sandy e Shawn chegassem diante dele.

— Ora, Marshall, que prazer em vê-lo — disse efusivamente, aper­tando a mão do jornalista.

— Você conhece a Sandy? — perguntou Marshall, e apresentou formalmente Young à filha.

Young foi muito caloroso.

— Sandy, fico muito contente em vê-la.

Sandy pelo menos agia como se estivesse contente em estar ali.

— E Shawn! — exclamou Young. — Shawn Ormsby! — Os dois apertaram-se as mãos.

— Oh, então vocês dois já se conhecem? — perguntou Marshall.

— Oh, conheço Shawn desde que ele era um toquinho de gente. Shawn, veja se aparece de vez em quando, está bem?

— Está certo — respondeu Shawn com um sorriso tímido.

Os outros continuaram a andar, mas Marshall ficou para trás e aproximou-se de Young pelo outro lado a fim de conversar um pouco mais.

Ele esperou até que Young tivesse acabado de cumprimentar um grupinho de pessoas, e depois inseriu na pausa:

— Olhe, achei que você gostaria de saber que as coisas estão me­lhores agora entre mim e Sandy.

Young sorriu, apertou algumas mãos, então disse de lado:

— Que maravilha! É realmente maravilhoso, Marshall —. Ele ofe­receu a mão a outra pessoa:

— Que bom vê-lo aqui hoje.

Em outra pausa entre os cumprimentos finais, Marshall inseriu:

— Sim, ela realmente gostou do seu sermão esta manhã. Disse que apresentou um grande desafio.

— Ora, muito obrigado por me dizer. Sim, Sr. Beaumont, como está?

— Sabe, parecia até um paralelo ao que Sandy está aprendendo na escola, nas aulas de Juleen Langstrat.

Young não respondeu, e dirigiu toda a sua atenção a um jovem casal com um bebê.

— Nossa, ela está ficando tão grande. Marshall continuou:

— Você precisa conhecer a professora Langstrat. Há um paralelo muito interessante entre o que ela ensina e o que você prega —. Não houve reação por parte de Young. — De fato, pelo que sei a professora está envolvida com ocultismo e misticismo oriental...

— Bem — disse Young — eu nada saberia a esse respeito, Marshall.

— E você definitivamente não conhece essa professora Langstrat?

— Não, eu já lhe disse.

— Você não fez diversas sessões particulares com ela, com regu­laridade, e não apenas você como também Alf Brummel, Ted Harmel, Delores Pinckston, Eugene Baylor, e até mesmo o juiz Baker?

Young corou um pouco, fez uma pausa, então fez uma careta de embaraçada lembrança.

— Oh, céus! — riu-se ele. — Onde estava a minha cabeça? Sabe, todo este tempo estive pensando em outra pessoa!

— Então, você já a conhece, não?

— Sim, claro. Muitos de nós a conhecemos.

Young voltou-se para o lado a fim de cumprimentar outras pessoas. Quando elas se foram, Marshall ainda estava em pé ali. E insistiu:

— E então, o que me diz dessas sessões particulares? É verdade que a clientela dela inclui líderes cívicos, oficiais eleitos, diretores da faculdade...?

Young olhou diretamente para Marshall, e seus olhos estavam um tanto frios.

— Marshall, qual é exatamente o seu interesse em tudo isso?

— Estou apenas tentando fazer o meu trabalho. Seja lá o que for, parece algo de que a população de Ashton deveria tomar conheci­mento, especialmente por envolver tantas pessoas influentes que estão moldando a cidade.

— Bem, se você está preocupado a respeito, não é comigo que deve falar. Deveria perguntar à própria professora Langstrat.

— Oh, é o que tenciono fazer. Apenas queria que você tivesse a chance de dar-me umas respostas honestas, algo que sinto que você não está fazendo totalmente.

A voz de Young tornou-se tensa.

— Marshall, se pareço evasivo é porque aquilo que está tentando descobrir é protegido pela ética profissional. É informação confi­dencial. Eu estava simplesmente com esperança de que você per­cebesse isso sem que eu tivesse de dizer-lhe.

Kate chamava-o da calçada.

— Marshall, estamos esperando por você.

Marshall afastou-se, e foi melhor assim. Só poderia ter-se esquen­tado mais daquele ponto em diante, e não estava levando a nada, afinal de contas. Young era frio, muito duro e escorregadio.

 A alguns estádios de distância, num vale profundo, escondido, cercado por encostas escarpadas, coroado por altas montanhas e acarpetado por espessa cobertura verde e pedras escondidas em tufos de musgo, um pequeno mas bem construído conjunto de prédios se aninhava como um solitário posto avançado, cujo único acesso era uma sinuosa e acidentada estrada de cascalho.

O pequeno conjunto de prédios, antiga e dilapidada casa de fa­zenda havia-se expandido, transformando-se em um complexo de edifícios de pedra e tijolos que agora abrigavam um pequeno dor­mitório, um complexo de escritórios, um refeitório, um prédio de manutenção, uma clínica, e diversas residências particulares. Não havia letreiros, entretanto, nenhuma etiqueta em parte alguma, nada que identificasse onde se estava ou o que era tudo aquilo.

Traçando um risco de carvão pelo céu, um sinistro objeto negro voou por cima dos cumes das montanhas e começou a descer ao vale, perfurando as camadas muito finas de neblina que pairavam no ar. Envolto em escuridão espiritual opressiva, e silencioso como uma nuvem negra, Baal Rafar, o príncipe da Babilônia, flutuou para o vale. Ia contornando de perto as encostas das montanhas, mano­brando num curso que serpeava entre escarpas e penhascos rochosos. O pálio de escuridão o seguia como sua própria sombra, como pe­quenino círculo de noite na paisagem; um leve traço de vapor ver­melho e amarelado escapava-lhe das narinas e pairava no ar atrás dele como longa fita que se ia assentando aos poucos.

Lá em baixo, a fazenda parecia um enorme ninho cheio de pavo­rosos insetos negros. Diversas camadas de guerreiros implacáveis pairavam quase estacionárias em vasta cúpula de defesa sobre o complexo, espadas desembainhadas, olhos amarelos perscrutando o vale. No fundo dessa concha, demônios de todos os tamanhos, for­matos e forças disparavam de um lado para outro, formando fervilhante massa de atividade. Quando Rafar desceu mais, notou uma concentração de espíritos negros cercando um casarão de pedra de diversos andares nas cercanias do conjunto. É ali que está o Homem Forte, pensou ele, por isso fez suave curva lateral, mudando o rumo para aquele prédio.

As sentinelas externas o viram aproximar-se e deram um berro sinistro, como uma sirene. Imediatamente os defensores se irradia­ram da trajetória do vôo de Rafar, abrindo passagem através das camadas de defesa. Rafar mergulhou agilmente pela passagem enquanto os demônios de todos os lados o saudavam com espadas erguidas, os olhos ardentes como milhares de pares de estrelas ama­relas contra veludo preto. Ele os ignorou e passou depressa. A pas­sagem fechou-se novamente atrás dele como se fosse um portão vivo.

Flutuou lentamente através do teto, do sótão, passou pelos caibros, pelas paredes, pelo cimento, por um quarto do andar superior, através do chão espesso apoiado sobre vigas e chegou à espaçosa sala de estar do piso inferior.

O mal no aposento era espesso e restritivo, a escuridão como negro líquido que se revolvia, com qualquer movimento de braços ou per­nas. A sala estava apinhada.

— Baal Rafar, o Príncipe da Babilônia! — anunciou um demônio de algum lugar, e monstruosos demônios no perímetro da sala se curvaram em sinal de respeito.

Rafar recolheu as asas de forma a caírem qual manto real, e postou-se com ar intimidador de realeza e poder, as jóias faiscando de ma­neira impressionante. Seus grandes olhos amarelos estudavam cui­dadosamente as bem formadas fileiras de demônios, dispostas ao seu redor. Um horrendo ajuntamento. Eram espíritos a nível dos principados, príncipes de suas próprias nações, povos, tribos. Alguns eram da África, outros do Oriente, diversos da Europa. Todos eram invencíveis. Rafar observou-lhes o incrível tamanho e tremenda apa­rência; eram todos seus pares em tamanho e ferocidade, e ele du­vidava que jamais se aventurasse a desafiar qualquer deles. Receber mesura da parte deles era grande honra, um cumprimento de ver­dade.

— Salve, Rafar — disse uma voz gorgolejante no fundo da sala. O Homem Forte. Era proibido mencionar o seu nome. Ele era uma das poucas majestades que gozavam da intimidade do próprio Lú-cifer, um malévolo tirano global responsável por séculos de resis­tência aos planos do Deus vivo e pelo estabelecimento do reino de Lúcifer sobre a terra. Rafar e sua espécie controlavam nações; os do nível do Homem Forte controlavam Rafar e sua espécie.

O Homem Forte ergueu-se do seu lugar, e seu enorme porte tomou aquela parte do aposento. Podia-se sentir a presença do mal que emanava dele por toda a parte, quase como uma extensão do seu corpo. Era grotesco, o couro preto pendurado como sacos e cortinas de seus membros e tronco, a cara era um macabro cenário de proeminências e sulcos em dobras profundas. Suas jóias cintilavam em torno do pescoço, no peito, nos braços; suas grandes asas negras circundavam-lhe o corpo como um manto real e se arrastavam pelo chão.

Rafar fez uma profunda mesura, sentindo a presença do Homem Forte do outro lado da sala.

— Salve, meu senhor.

O Homem Forte jamais desperdiçava palavras.

— Seremos detidos novamente?

— Os erros do Príncipe Lucius estão sendo corrigidos. A nova resistência está caindo, senhor. Logo a cidade estará pronta.

— E o que me diz do exército celestial?

— Limitado.

O Homem Forte não gostou da resposta de Rafar, o subordinado pôde percebê-lo distintamente. O chefe disse lentamente:

— Fomos informados de que um poderoso Capitão do Exército foi enviado a Ashton. Creio que o conhece.

— Tenho motivos para crer que Tal foi enviado, mas já o esperava. Os grandes olhos drapeados em veludo arderam de fúria.

— Não é esse Tal que o derrotou na queda da Babilônia? Rafar sabia que precisava responder, e depressa.

— É esse mesmo.

— Então os atrasos desfizeram nossa vantagem. Agora tem pela frente um adversário tão forte quanto você.

— Meu senhor, verá o que o seu servo é capaz de fazer.

— Palavras audaciosas, Rafar, mas suas forças só podem ser bem sucedidas se usadas imediatamente; as forças do inimigo crescem com o tempo.

— Tudo estará pronto.

— E o homem de Deus e o jornalista?

— O meu senhor digna-se a dar-lhes atenção?

— O seu senhor deseja que você lhes dê a sua!

— Eles não têm poder, senhor, e logo serão removidos.

— Mas somente se Tal for removido — disse o Homem Forte escarnecedoramente. — Quero ver isso acontecer antes que você venha me amolar com a sua gabolice. Até então, permanecemos confinados a este lugar. Rafar, não esperarei muito tempo!

— Nem precisará.

O Homem Forte sorriu com afetação.

— Você tem as suas ordens. Vá!

Rafar curvou-se profundamente, e com um desdobrar das asas atra­vessou silenciosamente a casa até o lado de fora.

Então, em furiosa explosão de raiva, ele disparou para o alto, dando encontrões tão violentos em demônios desatentos que eles viraram cambalhotas no ar. Ganhou velocidade, o frenético bater das asas formando um borrão ofuscante, e os defensores mal tiveram tempo de abrir uma passagem antes que ele explodisse por ela deixando atrás de si um rasto quente de hálito sulfuroso. Eles fecharam a passagem novamente, entreolhando-se curiosos enquanto o viam per­der-se na distância.

Rafar subiu rugindo como um foguete pela encosta das montanhas e depois sobre os cumes pontiagudos, voltando em direção à cidadezinha de Ashton. Em sua fúria, ele não se importava em ser visto, não se importava em manter o segredo, nem o decoro. Que o mundo inteiro o visse, e tremesse! Ele era Rafar, príncipe da Babilônia! Que o mundo inteiro se prostrasse diante dele ou fosse dizimado pelo gume da sua espada!

Tal! O nome em si já lhe trazia amargor à língua. Os senhores servos de Lúcifer jamais lhe permitiriam esquecer aquela derrota tão antiga. Nunca, até o dia em que Rafar redimisse a sua honra.

E deveras o faria. Rafar entrevia sua espada estripando Tal e espalhando-o em tiras e pedacinhos pelo céu; podia sentir o impacto em seus braços, podia ouvir o som cortante que produziria. Era ape­nas uma questão de tempo.

Dentre as pedras pontiagudas no cume de uma montanha, um homem de cabelos prateados saiu do seu esconderijo para observar Rafar sumir rapidamente à distância, desenhando uma longa trilha negra no céu, até desaparecer no horizonte. O homem olhou mais uma vez para o conjunto de prédios cheios de demônios no vale, olhou novamente na direção do horizonte, então precipitou-se pelo outro lado da montanha, desaparecendo num brilhar de luz e num adejar de asas.