Juleen Langstrat, sentada na cadeira, falava baixinho
com a pessoa que estava aconselhando, sentada à sua frente.
—
Você ouve apenas o som da minha voz... — disse ela, repetindo a seguir diversas
vezes a sentença baixinho e claramente. — Você ouve apenas o som da minha
voz...
A cena prolongou-se por diversos minutos até a pessoa entrar em
profundo transe hipnótico.
—
Você está descendo... descendo profundamente dentro de si mesma...
Langstrat observava com cuidado o rosto da paciente.
Então, estendeu
as mãos espalmadas, e começou a movê-las para cima e para baixo a poucos
centímetros do corpo da paciente, como se tentasse encontrar algo. — Liberte o
seu verdadeiro eu... liberte-o... ele é infinito... está em união com toda a
existência... Sim! Posso senti-lo! Consegue sentir minha energia voltando?
A pessoa murmurou:
—
Sim...
—
Você está livre do corpo agora... seu corpo é ilusão... sente os limites do
corpo se dissolvendo...
Langstrat inclinou-se mais perto, ainda usando as mãos.
—
Você está livre agora...
—
Sim... sim, estou livre...
—
Posso sentir sua força vital expandindo.
—
Sim, posso senti-la.
—
Basta. Pode parar aí. — Langstrat estava atenta, observando tudo
cuidadosamente. — Volte... volte... Sim, posso sentir que está retrocedendo.
Em um instante, sentirá que estou-me distanciando de você; não se alarme, ainda
estou aqui.
Durante os próximos minutos, ela fez a pessoa sair lentamente do
transe, passo a passo, sugestão a sugestão. Finalmente, disse:
—
Está bem, quando eu contar até três, você acordará. Um, dois, três.
Sandy Hogan abriu os olhos, revirou-os atordoada, então respirou fundo, voltando
completamente a si.
—
Puxa vida! — foi a sua reação. Os três riram ao mesmo tempo.
—
Não foi tremendo? — perguntou Shawn, sentado ao lado de Langstrat.
—
Puxa vida — foi tudo o que Sandy conseguiu dizer.
Foi uma experiência totalmente inédita para Sandy. A idéia tinha
partido de Shawn e, embora ela tivesse hesitado no começo, agora estava muito contente por haver concordado.
As persianas foram abertas, e Sandy e Shawn se
prepararam para retornar às aulas da tarde.
—
Bem, obrigada por ter vindo — disse a professora à porta.
—
Eu é que agradeço — disse Sandy.
— E
obrigada por tê-la trazido — disse Langstrat a Shawn. Então ela se dirigiu aos
dois:
—
Agora, lembrem-se, eu não os aconselharia a falar com ninguém a respeito disto.
É uma experiência muito pessoal e íntima que a todos devemos respeitar.
—
Sim, certo, certo — disse Sandy. Shawn levou-a de volta ao campus.
Bem, de uma coisa ele sabia: Se Carmem não se mostrasse genuinamente
receptiva ao aconselhamento e começasse a aplicar soluções reais a um problema
real, seria o fim dessa história, no que lhe dizia respeito.
A campainha soava. Ele deu uma espiada pela janela. O
Fiat vermelho de Carmem estava estacionado em frente. Sim, ela estava à porta, em plena luz do
dia, bem à vista de dez ou quinze casas. A maneira pela qual ela estava vestida
aquele dia fez Hank pensar que o melhor era mandá-la entrar depressa, ainda que
fosse apenas para ocultá-la à vista do público.
Onde, oh, onde estava Mary?
Ora bolas. Ela saiu depressa da mercearia e dirigiu-se
ao carro, um empregado da mercearia empurrando um carrinho de compras atrás dela. Ela abriu o
porta-malas e observou o menino carregar as compras.
Foi então que sentiu, subitamente, sem nenhuma razão aparente, uma
inexplicável emoção, uma estranha mistura de receio e depressão. Sentiu-se
fria, nervosa, um tanto trêmula, e não podia pensar em coisa alguma além de
sair daquele lugar e correr para casa.
Triskal a estava acompanhando, guardando-a, e ele também sentiu a mesma coisa.
Com retinir metálico e um lampejo faiscante, sua espada estava instantaneamente
na mão.
Tarde demais! De algum lugar atrás dele um golpe
estonteante atingiu-lhe a nuca. Ele caiu para a frente. Suas asas abriram-se de
chofre a fim de equilibrá-lo, mas um peso incrível recaiu-lhe sobre as costas
como um bate-estacas, prendendo-o ao chão.
Ele podia ver os pés dos atacantes, como as patas cheias de garras de hediondos
répteis, e o rubro tremeluzir de suas lâminas; podia ouvir-lhes o chiar
sulfuroso. Olhou para cima. Cercavam-no pelo menos uma dúzia de guerreiros
demoníacos. Eram muito altos, ferozes, e possuíam ardentes olhos amarelados e
presas gotejantes, ar de escárnio e riso gorgolejante.
Triskal olhou para Mary. Ele sabia que a segurança da moça seria logo
ameaçada se ele não agisse. Mas o que podia fazer?
O que era aquilo? Triskal sentiu de súbito intensa onda de
maldade rolando sobre si.
—
Ergam-no — disse uma voz de trovão.
Uma mão fechou-se como prensa em torno do seu pescoço e o sacudiu
no ar como se fosse mero brinquedo. Agora ele olhava todos os espíritos nos
olhos. Haviam chegado a Ashton recentemente. Jamais Triskal tinha visto tal
tamanho, força e desfaçatez. Os corpos eram cobertos de escamas espessas,
semelhante a ferro, os braços ondulavam de poder, as caras eram zombeteiras, o
hálito era sulfuroso e sufocante.
Eles o voltaram para o outro lado e o seguraram
firmemente, e ele encontrou-se face a face com uma visão de puro horror.
Flanqueado por nada menos que outros dez enormes
guerreiros demoníacos estava um espírito gigantesco com uma espada curvada em S na
monstruosa mão negra.
Rafar! O pensamento percorreu a mente de Triskal como
uma sentença
de morte; cada centímetro do seu ser contraiu-se na antecipação de golpes,
derrota, dor insuportável.
A grande boca, abrindo-se num sorriso escarninho e
hediondo, mostrou as presas; saliva âmbar pingava, e enxofre saía em nuvens repugnantes
quando o gigantesco comandante galhofava zombeteiro.
—
Está tão surpreso? — perguntou Rafar. — Devia sentir-se privilegiado. Você,
anjinho, é o primeiro a me ver.
Ela se afundou na cadeira com um arrulho e um suspiro,
e Hank começou
a perguntar-se onde tinha deixado o gravador. Ele sabia ser inocente, mas era
bom ter alguma prova.
—
Estou muito melhor — respondeu ela, e a voz era suave e estável. — Sabe, talvez
possa me dizer por que, mas não ouvi nenhuma voz falando comigo a semana toda.
—
Oh... hum... sim — disse Hank, finalmente engrenando os pensamentos de
conselheiro. — Era disso que estávamos falando, não era?
—
Oh, entendo. Você é responsável pela proteção dela. Protegê-la de quê? Esperava
estapear meras moscas? — Triskal não teve resposta. O tom de Rafar tornou-se
mais cruel e mordaz. — Não, está enganado, anjinho. É com um poder muito maior
que terá de se haver.
Rafar bateu com a espada no chão, e Triskal sentiu
imediatamente as mãos férreas de dois demônios apertando-lhe os braços por
trás. Ele olhou na direção de Mary. Ela estava procurando a chave da porta do
carro. Estava entrando no carro. Outro demônio estendeu a espada e atravessou o
capô. Mary tentou dar partida. Nada.
Rafar olhou na direção de uma lavanderia próxima, na frente da qual
encontrava-se um sujeito jovem, seboso, encostado a um poste. Triskal percebeu
que o homem estava possuído por um dos capangas de Rafar, de fato, diversos
deles. A um aceno de Rafar, os demônios entraram em ação e o homem pôs-se a
andar rumo ao carro de Mary.
Mary verificou as luzes. Não, ela não as havia
deixado ligadas. Ela virou a chave e ligou o rádio. Tocou. A buzina tocou. Mas
o que estava errado? Ela viu o sujeitinho chegando. Oh, ótimo.
Enquanto Triskal observava impotente, os demônios guiaram o homem à
janela do carro.
—
Ei, belezinha — disse ele — algum problema aqui?
Mary olhou para ele. Era magricela, sujo, e usava
roupas de couro preto e correntes cromadas. Ela disse através da janela:
—
Ah... não, obrigada. Estou bem.
Ele deu um risinho, olhando-a da cabeça aos pés enquanto dizia:
—
Por que não abre e deixa-me ver o que posso fazer?
Hank não se sentia bem com a situação. Onde estava Mary? Pelo menos
Carmem estava falando mais racionalmente. Parecia estar tratando os problemas
de forma inteligente e com genuíno desejo de mudar. Talvez hoje as coisas
corressem de modo diferente, mas Hank não contava com isso.
—
Então — perguntou ele — o que você acha que aconteceu com as vozes amorosas?
—
Eu já não as escuto — respondeu ela. — É uma coisa que você me ajudou a
perceber, ao falar sobre elas. As vozes não eram reais. Eu estava apenas
enganando a mim mesma.
Hank foi muito gentil ao concordar:
—
Sim, acho que tem razão.
Ela soltou um profundo suspiro e olhou para ele com
aqueles grandes olhos azuis.
—
Estava tentando vencer a minha solidão, só isso. Acho que era o que acontecia.
Pastor, você é tão forte. Gostaria de poder ser assim.
—
Bem, a Bíblia diz: "Posso todas as coisas mediante Cristo que me
fortalece.'1
—
Ah. Onde está a sua esposa?
—
Foi à mercearia. Deve estar de volta a qualquer momento.
—
Bem... — Carmem inclinou-se para a frente e sorriu com muita doçura. — Estou
realmente derivando força da sua companhia. Quero que saiba disso.
O homem inclinou-se de encontro à janela e seu hálito
embaçou o vidro:
—
Escute, boneca, por que não me diz o seu nome?
Rafar agarrou Tiiskal pelos cabelos e puxou-lhe com força a cabeça para o outro
lado. Triskal achou que o pescoço arrebentaria. Rafar soprou enxofre no rosto
de Triskal, dizendo-lhe:
—
E agora, anjinho, trocarei palavras com você —. A ponta da longa espada subiu à
garganta de Triskal. — Onde está o seu capitão?
Triskal não respondeu.
Rafar, com um safanão, voltou-lhe a cabeça e permitiu-lhe olhar na direção
de Mary.
O homem tentava abrir a porta do carro. Mary estava
aterrorizada. Tateando, conseguia alcançar cada botão de trava do carro, e empurrá-los
segundos antes de o homem poder agarrar o trinco de fora. Ele tentou todas as
portas, um sorriso malicioso no rosto. Mary tocou a buzina de novo. Um demônio
já cuidara dela; não funcionou. Rafar torceu a cabeça de Triskal de volta, e a
lâmina fria comprimiu o rosto do anjo.
—
Perguntarei outra vez: Onde está o seu capitão?
—
Bem — conseguiu dizer, afinal — você tem outras pessoas em sua vida que a fazem
sentir-se importante no que diz respeito a força, apoio, amizade, esse tipo de
coisas?
Ela o olhou um tanto chorosa.
—
Mais ou menos. Tenho amigos que freqüentam o bar. Mas nada jamais dura —. Ela
deixou os pensamentos fervilharem por um momento, então perguntou: — Você me
acha atraente?
Rafar acenou com a cabeça para um guerreiro cuja mão passou através da janela
de Mary e agarrou o botão da trava, pronto a erguê-lo quando Rafar desse a
ordem. Os demônios dentro do rapazola estavam babando e preparados. Sua mão
apoderou-se do trinco.
Rafar assegurou-se de que Triskal pudesse ver tudo o
que se passava, e depois disse:
—
Sua resposta?
Triskal falou, afinal, gemendo:
— O freio...
Rafar apertou-o mais ainda, chegando mais perto.
—
Não ouvi o que disse. Triskal repetiu.
—
O freio.
Mary teve uma súbita idéia. O carro estava estacionado numa ladeira.
Não era muito forte, mas poderia ser suficiente para fazê-lo movimentar-se. Ela
soltou o freio de mão e o carro começou a rolar. O sujeitinho não esperava por
essa; esmurrou a janela, tentou dar a volta pela frente, a fim de deter o
carro, mas o veículo começou a ganhar velocidade, e logo o homem percebeu que
seus esforços estavam-se tornando óbvios demais.
Um robusto empreiteiro em pé ao lado de sua reforçada
caminhonete finalmente percebeu o que estava ocorrendo e berrou:
—
Ei, seu malandro, o que você está fazendo?
Rafar viu o que acontecia, a raiva crescente fluindo
pelo grande punho de ferro, apertando-o mais em torno de Triskal. O anjo achava
que o pescoço
arrebentaria a qualquer momento. Mas então Rafar pareceu ceder.
—
Cessar! — ordenou ele aos demônios. Eles se afastaram; o homem desistiu de
seguir o carro e tentou afastar-se como se nada estivesse acontecendo. O
empreiteiro grandalhão começou a segui-lo e ele sai correndo.
O carro continuou a rodar. Uma saída do estacionamento dava
para uma viela que tinha uma ladeira razoável. Mary dirigiu-se para lá,
esperando não cruzar com pedestres ou carros.
Triskal viu que ela conseguiria salvar-se.
Rafar também viu. O aço frio da sua lâmina pressionou a garganta
de Triskal.
—
Muito bem, anjinho. Você salvou a sua protegida até uma ocasião mais oportuna.
Deixo-o com apenas uma mensagem por hoje. Preste muita atenção.
Tendo dito isso, Rafar soltou Triskal nas mãos dos capangas. Um
demônio enorme, verrugoso, socou o punho de ferro no tronco do anjo o que o fez
revirar pelo ar onde outro demônio o interceptou com um golpe da espada,
abrindo um corte profundo em suas costas. Triskal volteou e caiu atordoado, nas
garras de outros dois demônios que socaram-lhe o corpo flácido com punhos de
ferro e o estraçalharam com as garras dos pés. Durante diversos horríveis
minutos os demônios brincaram violentamente com ele enquanto Rafar observava
impassível. Finalmente, o grande Baal rosnou uma ordem, e os guerreiros
soltaram Triskal. Ele caiu ao chão, e a grande pata de Rafar pisou-lhe com
força o pescoço. A espada enorme desceu com um floreio e descreveu pequenos
círculos diante dos olhos de Triskal enquanto o demônio falava.
—
Você dirá ao seu capitão que Rafar, o Príncipe da Babilônia, o está procurando
—. O grande pé de Rafar pressionou com mais força. — Você lhe dirá!
De súbito, Triskal se encontrava sozinho, um farrapo flácido e
roto. Com esforço, colocou-se em pé. A única coisa em que conseguia pensar
naquele momento era Mary.
—
Carmem — disse com voz suave e compreensiva. — Sinto-me muito lisonjeado por
você estar tão impressionada com as minhas qualidades masculinas... e realmente
duvido que uma mulher com as suas qualidades tenha problema em encontrar um bom
homem com quem construir um relacionamento permanente e
significativo. Mas escute, não quero parecer abrupto, mas preciso enfatizar uma coisa
aqui e agora: Não sou esse homem. Estou aqui como ministro e conselheiro, e
temos de manter este relacionamento estritamente ao de conselheiro e cliente.
Carmem pareceu muito perturbada e ofendida.
—
O que está dizendo?
—
Estou dizendo que realmente não podemos continuar com estas consultas. Elas lhe
estão causando conflitos emocionais. Acho que será melhor você procurar outra
pessoa.
Hank não poderia explicar por que, mas mesmo enquanto dizia essas
palavras, sentiu-se como se tivesse acabado de vencer uma batalha. Pelo olhar
gelado que Carmem lhe lançou, calculou que ela havia perdido.
Então, atrás dela pela rua e cerca de três metro acima do chão,
Triskal veio voando, as vestes refulgindo com ardente luz branca e as asas
batendo depressa. Seu vôo seguia um rumo incerto e as asas batiam em ritmo
descompassado, mas mesmo assim ele estava decidido. Seu rosto estava marcado
por profunda preocupação com o bem-estar da moça. Ele abriu as asas
esfarrapadas, frementes, como grande dossel e deixou que elas o freassem até
parar enquanto se acomodava sobre o teto do carro. A essa altura, o veículo mal
se movia e Mary simplesmente continuava a chorar e a gemer, sacudindo
espasmodicamente o corpo em fútil tentativa de forçar o carro a continuar
adiante.
Triskal passou a mão pelo teto e a colocou delicadamente no ombro de
Mary.
—
Acalme-se, está tudo bem agora. Você está a salvo.
Ela olhou para trás novamente e começou a se acalmar um pouco. Triskal
falou-lhe ao coração:
—
O Senhor a salvou. Ele não a deixará. Você está bem.
A essa altura o carro havia parado quase completamente.
Mary dirigiu-o para a beira da calçada e o encostou. Ela puxou o freio de mão e ficou
sentada diversos minutos apenas se recompondo.
—
Isso mesmo — disse Triskal, confortando-lhe o espírito. — Descanse no Senhor.
Ele está aqui.
Triskal escorregou do teto do carro, estendeu o braço através do capô.
Encontrou o que estava procurando.
—
Mary — disse ele — por que náo tenta dar partida novamente? Mary, sentada no
carro, pensava consigo mesma que aquela ignição burra jamais funcionaria
e que hora horrível para estragar, deixando a em tamanho apuro.
—
Vamos — instigou Triskal. — Dê o passo da fé. Confie em Deus. Você nunca sabe o
que ele pode fazer.
Mary resolveu dar partida ao carro, mesmo tendo pouca fé de que alguma coisa
acontecesse. Ela girou a chave. O motor deu uma volta, tossiu, pegou. Ela
acelerou com força diversas vezes só para ter certeza de que ele continuaria
funcionando. A seguir, ainda com grande pressa de chegar em casa e aos braços
protetores de Hank, ela foi voando para casa com Triskal em cima do teto.
Hank sentiu-se muito aliviado ao ouvir a batida da
porta do carro.
—
Oh, deve ser Mary! Carmem ergueu-se.
—
Acho melhor eu ir.
Agora que Mary havia chegado, Hank acrescentou:
—
Escute, não precisa ir-se. Pode ficar mais um pouco.
—
Não, não, estou de saída. Talvez fosse melhor eu sair pela porta dos fundos.
—
Não, que tolice. Olhe. Eu a acompanho à porta. Preciso ajudar Mary a trazer as
compras para dentro, de qualquer forma.
Mas Mary tinha-se esquecido das compras e só pensava em entrar.
Triskal correu ao seu lado. Estava contundido e mancava, as vestes rasgadas, e
ainda podia sentir o corte ardente nas costas.
Hank abriu a porta.
—
Oi, benzinho. Puxa, estava ficando preocupado com você —. Então, ele viu-lhe os
olhos cheios de lágrimas. — Ei, o quê...
Carmem gritou. Foi um grito repentino, de penetrar o
coração, que
fez cessar todo pensamento e sufocou quaisquer palavras. Hank rodopiou nos
calcanhares, sem saber o que esperar.
—
NAÁÃÃO! — foi o grito estridente da moça, os braços protegendo-lhe o rosto. —
Está doido? Afaste-se de mim, ouviu? Afaste-se!
Diante dos olhos horrorizados de Hank e Mary, Carmem
afastou-se para dentro da sala, abanando os braços como que tentando proteger-se de algum atacante
invisível; saiu aos tropeções pela sala, revirando sobre o mobiliário,
praguejou e soltou um jorro de horríveis obscenidades. Estava aterrorizada e
enraivecida ao mesmo tempo, os olhos esbugalhados e vidrados, o rosto
contorcido.
Krioni tentou agarrar Triskal e detê-lo. Triskal estava
glorificado e reluzia; as asas esfarrapadas enchiam o aposento e refulgiam como
mil arcos-íris. Ele segurava uma espada brilhante na mão, espada que coruscava e cantava em arcos ofuscantes enquanto ele se debatia em
feroz batalha contra Lascívia, um demônio hediondo de corpo escorregadio, cheio de
escamas negras, como o de uma lagartixa, e com uma língua vermelha que espadanava-lhe
pela cara como a cauda de uma serpente. Lascívia defendeu-se a princípio,
depois começou a devolver os golpes com sua brilhante espada vermelha, a lâmina
em forma de meia-lua cortando arcos rubros no ar. As espadas se chocavam com
explosões de chama e luz.
—
Deixe-me em paz, estou-lhe dizendo! — berrou Lascívia, as asas impelindo-o como
uma vespa presa na sala.
—
Deixe-o em paz! — gritou Krioni, tentando deter Triskal enquanto se mantinha
fora do rumo daquela lâmina infinitamente afiada. — Está ouvindo a minha ordem?
Deixe-o em paz!
Finalmente, Triskal retraiu-se, mas segurou a espada
com firmeza e a manteve erguida à sua frente, a luz da lâmina iluminando-lhe o rosto irado,
os olhos ardentes.
Carmem acalmou-se, esfregou os olhos, e correu o olhar
pela sala com expressão amedrontada. Hank e Mary acorreram imediatamente e tentaram
confortá-la.
—
O que está errado, Carmem? — perguntou Mary, os olhos muito abertos e
preocupados. — Sou eu, Mary. Foi alguma coisa que fiz? Não tive a intenção de
assustá-la.
—
Não... não... — gemeu Carmem. — Náo foi você. Foi outra pessoa...
—
Quem? O quê?
Lascívia afastou-se, a espada ainda erguida bem alto. Krioni lhe
disse:
—
Hoje não lhe daremos mais lugar. Suma, e não apareça aqui novamente!
Lascívia dobrou as asas e circulou cuidadosamente em torno dos
dois guerreiros celestiais e alcançou a porta.
—
Eu já estava de saída mesmo — sibilou o demônio.
—
Eu já estava de saída mesmo — disse Carmem, se compondo. — Há... há má energia
neste lugar. Adeus.
Ela escapuliu porta afora. Mary tentou chamá-la, mas Hank tocou o
braço da esposa e deu-lhe a entender que o silêncio seria a melhor coisa no
momento.
Krioni segurou Triskal até que a luz ao seu redor desaparecesse e ele
embainhasse a espada. Triskal tremia.
—
Triskal — repreendeu Krioni — você conhece as ordens de Tal! Estive com Hank o
tempo todo; ele se saiu muito bem. Não havia necessidade... — Foi então que
Krioni viu os muitos ferimentos de Triskal e o profundo corte nas costas. —
Triskal, o que aconteceu?
—
Eu... não podia deixar-me ser atacado por mais um deles — arquejou Triskal. — Krioni, o número deles é superior ao nosso.
Mary finalmente lembrou-se de que estava prestes a
chorar. Ela continuou de onde havia parado.
—
Mary, mas afinal o que está acontecendo? — perguntou Hank, colocando os braços
em torno dela.
— Apenas feche a porta, querido! — bradou ela. — Apenas feche a porta e me abrace. Por favor!