quinta-feira, 6 de maio de 2021

Este mundo tenebroso - volume 01 - Capítulo 14


 Bem, pensou Marshall, mais cedo ou mais tarde vou ter de fazer isso. Quinta-feira à tarde, quando estava tudo tran­qüilo, ele se fechou no escritório e deu alguns telefonemas, tentando localizar a professora Juleen Langstrat. Ligou para a facul­dade, conseguiu o número do Departamento de Psicologia, e falou com duas recepcionistas diferentes em dois escritórios diferentes antes de finalmente descobrir que Langstrat não estava e que o te­lefone da sua casa não constava da lista. Então Marshall pensou no prestativo Albert Darr, e ligou para o escritório dele. Darr estava em aula, mas lhe ligaria de volta se ele quisesse deixar recado. Marshall deixou um recado. Duas horas mais tarde, Albert Darr ligou, e tinha o número do apartamento de Juleen Langstrat que não constava da lista. Marshall discou. A linha estava ocupada.

 A sala de estar do apartamento de Juleen Langstrat, iluminada apenas por um pequeno abajur, estava quase escura. A sala era quieta, cálida e confortável. As persianas estavam fechadas para evitar dis trações, luz forte e qualquer outra perturbação. O telefone estava fora do gancho.

Juleen Langstrat, sentada na cadeira, falava baixinho com a pessoa que estava aconselhando, sentada à sua frente.

— Você ouve apenas o som da minha voz... — disse ela, repetindo a seguir diversas vezes a sentença baixinho e claramente. — Você ouve apenas o som da minha voz...

A cena prolongou-se por diversos minutos até a pessoa entrar em profundo transe hipnótico.

— Você está descendo... descendo profundamente dentro de si mesma...

Langstrat observava com cuidado o rosto da paciente. Então, es­tendeu as mãos espalmadas, e começou a movê-las para cima e para baixo a poucos centímetros do corpo da paciente, como se tentasse encontrar algo. — Liberte o seu verdadeiro eu... liberte-o... ele é infinito... está em união com toda a existência... Sim! Posso senti-­lo! Consegue sentir minha energia voltando?

A pessoa murmurou:

— Sim...

— Você está livre do corpo agora... seu corpo é ilusão... sente os limites do corpo se dissolvendo...

Langstrat inclinou-se mais perto, ainda usando as mãos.

— Você está livre agora...

— Sim... sim, estou livre...

— Posso sentir sua força vital expandindo.

— Sim, posso senti-la.

— Basta. Pode parar aí. — Langstrat estava atenta, observando tudo cuidadosamente. — Volte... volte... Sim, posso sentir que está re­trocedendo. Em um instante, sentirá que estou-me distanciando de você; não se alarme, ainda estou aqui.

Durante os próximos minutos, ela fez a pessoa sair lentamente do transe, passo a passo, sugestão a sugestão. Finalmente, disse:

— Está bem, quando eu contar até três, você acordará. Um, dois, três.

Sandy Hogan abriu os olhos, revirou-os atordoada, então respirou fundo, voltando completamente a si.

— Puxa vida! — foi a sua reação. Os três riram ao mesmo tempo.

— Não foi tremendo? — perguntou Shawn, sentado ao lado de Langstrat.

— Puxa vida — foi tudo o que Sandy conseguiu dizer.

Foi uma experiência totalmente inédita para Sandy. A idéia tinha partido de Shawn e, embora ela tivesse hesitado no começo, agora estava muito contente por haver concordado.

As persianas foram abertas, e Sandy e Shawn se prepararam para retornar às aulas da tarde.

— Bem, obrigada por ter vindo — disse a professora à porta.

— Eu é que agradeço — disse Sandy.

— E obrigada por tê-la trazido — disse Langstrat a Shawn. Então ela se dirigiu aos dois:

— Agora, lembrem-se, eu não os aconselharia a falar com ninguém a respeito disto. É uma experiência muito pessoal e íntima que a todos devemos respeitar.

— Sim, certo, certo — disse Sandy. Shawn levou-a de volta ao campus.

 Era sexta-feira, e Hank estava sentado em casa, no canto que era o seu pequeno escritório, olhando ansioso em direção ao relógio. Mary geralmente cumpria a palavra. Ela tinha dito que estaria em casa antes que Carmem chegasse para o aconselhamento. Hank não tinha a menor idéia se havia espias vigiando a casa, mas nunca podia ter certeza. Tudo o de que precisava era alguém achar que Carmem fora vê-lo enquanto Mary estava fazendo compras. O lado temeroso de Hank enxergava todo o tipo de conspiração que os inimigos po­diam estar tramando contra ele, tal como mandar uma mulher es­tranha e sedutora a fim de comprometê-lo e arruiná-lo.

Bem, de uma coisa ele sabia: Se Carmem não se mostrasse genui­namente receptiva ao aconselhamento e começasse a aplicar soluções reais a um problema real, seria o fim dessa história, no que lhe dizia respeito.

A campainha soava. Ele deu uma espiada pela janela. O Fiat ver­melho de Carmem estava estacionado em frente. Sim, ela estava à porta, em plena luz do dia, bem à vista de dez ou quinze casas. A maneira pela qual ela estava vestida aquele dia fez Hank pensar que o melhor era mandá-la entrar depressa, ainda que fosse apenas para ocultá-la à vista do público.

Onde, oh, onde estava Mary?

 Mary não sabia se gostava dos novos donos da mercearia que fora do Joe. Oh, não era o atendimento ou a administração; estava tudo bem na maioria dessas áreas, e Mary achava também que levaria tempo para que viessem a conhecer todo o mundo e vice-versa. O que incomodava Mary era a reserva óbvia quando ela lhes perguntava que fim levaram Joe Carlucci e sua família. Pelo que Mary conseguiu descobrir, Joe, Angelina e os filhos deixaram Ashton abruptamente sem dizer a ninguém, e até aquele momento ninguém aparecera que soubesse pelo menos aonde eles tinham ido.

Ora bolas. Ela saiu depressa da mercearia e dirigiu-se ao carro, um empregado da mercearia empurrando um carrinho de compras atrás dela. Ela abriu o porta-malas e observou o menino carregar as com­pras.

Foi então que sentiu, subitamente, sem nenhuma razão aparente, uma inexplicável emoção, uma estranha mistura de receio e depres­são. Sentiu-se fria, nervosa, um tanto trêmula, e não podia pensar em coisa alguma além de sair daquele lugar e correr para casa.

Triskal a estava acompanhando, guardando-a, e ele também sentiu a mesma coisa. Com retinir metálico e um lampejo faiscante, sua espada estava instantaneamente na mão.

Tarde demais! De algum lugar atrás dele um golpe estonteante atingiu-lhe a nuca. Ele caiu para a frente. Suas asas abriram-se de chofre a fim de equilibrá-lo, mas um peso incrível recaiu-lhe sobre as costas como um bate-estacas, prendendo-o ao chão.

Ele podia ver os pés dos atacantes, como as patas cheias de garras de hediondos répteis, e o rubro tremeluzir de suas lâminas; podia ouvir-lhes o chiar sulfuroso. Olhou para cima. Cercavam-no pelo menos uma dúzia de guerreiros demoníacos. Eram muito altos, ferozes, e possuíam ardentes olhos amarelados e presas gotejantes, ar de es­cárnio e riso gorgolejante.

Triskal olhou para Mary. Ele sabia que a segurança da moça seria logo ameaçada se ele não agisse. Mas o que podia fazer?

O que era aquilo? Triskal sentiu de súbito intensa onda de maldade rolando sobre si.

— Ergam-no — disse uma voz de trovão.

Uma mão fechou-se como prensa em torno do seu pescoço e o sacudiu no ar como se fosse mero brinquedo. Agora ele olhava todos os espíritos nos olhos. Haviam chegado a Ashton recentemente. Ja­mais Triskal tinha visto tal tamanho, força e desfaçatez. Os corpos eram cobertos de escamas espessas, semelhante a ferro, os braços ondulavam de poder, as caras eram zombeteiras, o hálito era sulfuroso e sufocante.

Eles o voltaram para o outro lado e o seguraram firmemente, e ele encontrou-se face a face com uma visão de puro horror.

Flanqueado por nada menos que outros dez enormes guerreiros demoníacos estava um espírito gigantesco com uma espada curvada em S na monstruosa mão negra.

Rafar! O pensamento percorreu a mente de Triskal como uma sen­tença de morte; cada centímetro do seu ser contraiu-se na antecipação de golpes, derrota, dor insuportável.

A grande boca, abrindo-se num sorriso escarninho e hediondo, mostrou as presas; saliva âmbar pingava, e enxofre saía em nuvens repugnantes quando o gigantesco comandante galhofava zombeteiro.

— Está tão surpreso? — perguntou Rafar. — Devia sentir-se pri­vilegiado. Você, anjinho, é o primeiro a me ver.

 — E como está hoje? — perguntou Hank, indicando à moça uma confortável cadeira no escritório.

Ela se afundou na cadeira com um arrulho e um suspiro, e Hank começou a perguntar-se onde tinha deixado o gravador. Ele sabia ser inocente, mas era bom ter alguma prova.

— Estou muito melhor — respondeu ela, e a voz era suave e estável. — Sabe, talvez possa me dizer por que, mas não ouvi nenhuma voz falando comigo a semana toda.

— Oh... hum... sim — disse Hank, finalmente engrenando os pensamentos de conselheiro. — Era disso que estávamos falando, não era?

 Triskal olhou em direção a Mary. Ela estava agradecendo ao empacotador e fechando o porta-malas. Rafar observou Triskal, divertido.

— Oh, entendo. Você é responsável pela proteção dela. Protegê-la de quê? Esperava estapear meras moscas? — Triskal não teve res­posta. O tom de Rafar tornou-se mais cruel e mordaz. — Não, está enganado, anjinho. É com um poder muito maior que terá de se haver.

Rafar bateu com a espada no chão, e Triskal sentiu imediatamente as mãos férreas de dois demônios apertando-lhe os braços por trás. Ele olhou na direção de Mary. Ela estava procurando a chave da porta do carro. Estava entrando no carro. Outro demônio estendeu a espada e atravessou o capô. Mary tentou dar partida. Nada.

Rafar olhou na direção de uma lavanderia próxima, na frente da qual encontrava-se um sujeito jovem, seboso, encostado a um poste. Triskal percebeu que o homem estava possuído por um dos capangas de Rafar, de fato, diversos deles. A um aceno de Rafar, os demônios entraram em ação e o homem pôs-se a andar rumo ao carro de Mary.

Mary verificou as luzes. Não, ela não as havia deixado ligadas. Ela virou a chave e ligou o rádio. Tocou. A buzina tocou. Mas o que estava errado? Ela viu o sujeitinho chegando. Oh, ótimo.

Enquanto Triskal observava impotente, os demônios guiaram o homem à janela do carro.

— Ei, belezinha — disse ele — algum problema aqui?

Mary olhou para ele. Era magricela, sujo, e usava roupas de couro preto e correntes cromadas. Ela disse através da janela:

— Ah... não, obrigada. Estou bem.

Ele deu um risinho, olhando-a da cabeça aos pés enquanto dizia:

— Por que não abre e deixa-me ver o que posso fazer?

Hank não se sentia bem com a situação. Onde estava Mary? Pelo menos Carmem estava falando mais racionalmente. Parecia estar tra­tando os problemas de forma inteligente e com genuíno desejo de mudar. Talvez hoje as coisas corressem de modo diferente, mas Hank não contava com isso.

— Então — perguntou ele — o que você acha que aconteceu com as vozes amorosas?

— Eu já não as escuto — respondeu ela. — É uma coisa que você me ajudou a perceber, ao falar sobre elas. As vozes não eram reais. Eu estava apenas enganando a mim mesma.

Hank foi muito gentil ao concordar:

— Sim, acho que tem razão.

Ela soltou um profundo suspiro e olhou para ele com aqueles grandes olhos azuis.

— Estava tentando vencer a minha solidão, só isso. Acho que era o que acontecia. Pastor, você é tão forte. Gostaria de poder ser assim.

— Bem, a Bíblia diz: "Posso todas as coisas mediante Cristo que me fortalece.'1

— Ah. Onde está a sua esposa?

— Foi à mercearia. Deve estar de volta a qualquer momento.

— Bem... — Carmem inclinou-se para a frente e sorriu com muita doçura. — Estou realmente derivando força da sua companhia. Quero que saiba disso.

 Mary sentia o coração bater com força. O que aquele sujeito faria a seguir?

O homem inclinou-se de encontro à janela e seu hálito embaçou o vidro:

— Escute, boneca, por que não me diz o seu nome?

Rafar agarrou Tiiskal pelos cabelos e puxou-lhe com força a cabeça para o outro lado. Triskal achou que o pescoço arrebentaria. Rafar soprou enxofre no rosto de Triskal, dizendo-lhe:

— E agora, anjinho, trocarei palavras com você —. A ponta da longa espada subiu à garganta de Triskal. — Onde está o seu capitão?

Triskal não respondeu.

Rafar, com um safanão, voltou-lhe a cabeça e permitiu-lhe olhar na direção de Mary.

O homem tentava abrir a porta do carro. Mary estava aterrorizada. Tateando, conseguia alcançar cada botão de trava do carro, e em­purrá-los segundos antes de o homem poder agarrar o trinco de fora. Ele tentou todas as portas, um sorriso malicioso no rosto. Mary tocou a buzina de novo. Um demônio já cuidara dela; não funcionou. Rafar torceu a cabeça de Triskal de volta, e a lâmina fria comprimiu o rosto do anjo.

— Perguntarei outra vez: Onde está o seu capitão?

 Carmem ainda estava dizendo a Hank o bem que o aconselhamento lhe estava fazendo, como ele lhe lembrava o seu ex-marido, e como ela estava procurando um homem com as suas qualidades. Hank teve de pôr um paradeiro no negócio.

— Bem — conseguiu dizer, afinal — você tem outras pessoas em sua vida que a fazem sentir-se importante no que diz respeito a força, apoio, amizade, esse tipo de coisas?

Ela o olhou um tanto chorosa.

— Mais ou menos. Tenho amigos que freqüentam o bar. Mas nada jamais dura —. Ela deixou os pensamentos fervilharem por um mo­mento, então perguntou: — Você me acha atraente?

 O homem vestido de couro preto inclinou-se bem perto da janela de Mary, ameaçou-a com horríveis obscenidades, e a seguir começou a bater no vidro com uma grande fivela de metal.

Rafar acenou com a cabeça para um guerreiro cuja mão passou através da janela de Mary e agarrou o botão da trava, pronto a erguê-lo quando Rafar desse a ordem. Os demônios dentro do rapazola estavam babando e preparados. Sua mão apoderou-se do trinco.

Rafar assegurou-se de que Triskal pudesse ver tudo o que se pas­sava, e depois disse:

— Sua resposta?

Triskal falou, afinal, gemendo:

  O freio...

Rafar apertou-o mais ainda, chegando mais perto.

— Não ouvi o que disse. Triskal repetiu.

— O freio.

Mary teve uma súbita idéia. O carro estava estacionado numa la­deira. Não era muito forte, mas poderia ser suficiente para fazê-lo movimentar-se. Ela soltou o freio de mão e o carro começou a rolar. O sujeitinho não esperava por essa; esmurrou a janela, tentou dar a volta pela frente, a fim de deter o carro, mas o veículo começou a ganhar velocidade, e logo o homem percebeu que seus esforços es­tavam-se tornando óbvios demais.

Um robusto empreiteiro em pé ao lado de sua reforçada caminho­nete finalmente percebeu o que estava ocorrendo e berrou:

— Ei, seu malandro, o que você está fazendo?

Rafar viu o que acontecia, a raiva crescente fluindo pelo grande punho de ferro, apertando-o mais em torno de Triskal. O anjo achava que o pescoço arrebentaria a qualquer momento. Mas então Rafar pareceu ceder.

— Cessar! — ordenou ele aos demônios. Eles se afastaram; o ho­mem desistiu de seguir o carro e tentou afastar-se como se nada estivesse acontecendo. O empreiteiro grandalhão começou a segui-lo e ele sai correndo.

O carro continuou a rodar. Uma saída do estacionamento dava para uma viela que tinha uma ladeira razoável. Mary dirigiu-se para lá, esperando não cruzar com pedestres ou carros.

Triskal viu que ela conseguiria salvar-se.

Rafar também viu. O aço frio da sua lâmina pressionou a garganta de Triskal.

— Muito bem, anjinho. Você salvou a sua protegida até uma oca­sião mais oportuna. Deixo-o com apenas uma mensagem por hoje. Preste muita atenção.

Tendo dito isso, Rafar soltou Triskal nas mãos dos capangas. Um demônio enorme, verrugoso, socou o punho de ferro no tronco do anjo o que o fez revirar pelo ar onde outro demônio o interceptou com um golpe da espada, abrindo um corte profundo em suas costas. Triskal volteou e caiu atordoado, nas garras de outros dois demônios que socaram-lhe o corpo flácido com punhos de ferro e o estraça­lharam com as garras dos pés. Durante diversos horríveis minutos os demônios brincaram violentamente com ele enquanto Rafar ob­servava impassível. Finalmente, o grande Baal rosnou uma ordem, e os guerreiros soltaram Triskal. Ele caiu ao chão, e a grande pata de Rafar pisou-lhe com força o pescoço. A espada enorme desceu com um floreio e descreveu pequenos círculos diante dos olhos de Triskal enquanto o demônio falava.

— Você dirá ao seu capitão que Rafar, o Príncipe da Babilônia, o está procurando —. O grande pé de Rafar pressionou com mais força. — Você lhe dirá!

De súbito, Triskal se encontrava sozinho, um farrapo flácido e roto. Com esforço, colocou-se em pé. A única coisa em que conseguia pensar naquele momento era Mary.

 Hank tomou com delicadeza a mão de Carmem, tirou-a de cima da sua, e a colocou cortesmente no colo da moça. Ele a segurou ali por apenas um instante e olhou-a bem nos olhos com compaixão mas com firmeza. Soltando-lhe a mão, ele se reclinou de volta na cadeira a uma distância segura.

— Carmem — disse com voz suave e compreensiva. — Sinto-me muito lisonjeado por você estar tão impressionada com as minhas qualidades masculinas... e realmente duvido que uma mulher com as suas qualidades tenha problema em encontrar um bom homem com quem construir um relacionamento permanente e significativo. Mas escute, não quero parecer abrupto, mas preciso enfatizar uma coisa aqui e agora: Não sou esse homem. Estou aqui como ministro e conselheiro, e temos de manter este relacionamento estritamente ao de conselheiro e cliente. Carmem pareceu muito perturbada e ofendida.

— O que está dizendo?

— Estou dizendo que realmente não podemos continuar com estas consultas. Elas lhe estão causando conflitos emocionais. Acho que será melhor você procurar outra pessoa.

Hank não poderia explicar por que, mas mesmo enquanto dizia essas palavras, sentiu-se como se tivesse acabado de vencer uma batalha. Pelo olhar gelado que Carmem lhe lançou, calculou que ela havia perdido.

 Mary chorava, enxugava as lágrimas na manga e orava. "Deus Pai, querido Jesus, salve-me, salve-me, salve-me!" O declive estava co­meçando a nivelar; a velocidade do carro foi diminuindo, vinte e cinco, vinte, quinze quilômetros por hora. Ela olhou para trás e não viu ninguém seguindo, mas a essa altura estava apavorada demais para sentir alívio. Apenas queria chegar em casa.

Então, atrás dela pela rua e cerca de três metro acima do chão, Triskal veio voando, as vestes refulgindo com ardente luz branca e as asas batendo depressa. Seu vôo seguia um rumo incerto e as asas batiam em ritmo descompassado, mas mesmo assim ele estava de­cidido. Seu rosto estava marcado por profunda preocupação com o bem-estar da moça. Ele abriu as asas esfarrapadas, frementes, como grande dossel e deixou que elas o freassem até parar enquanto se acomodava sobre o teto do carro. A essa altura, o veículo mal se movia e Mary simplesmente continuava a chorar e a gemer, sacu­dindo espasmodicamente o corpo em fútil tentativa de forçar o carro a continuar adiante.

Triskal passou a mão pelo teto e a colocou delicadamente no ombro de Mary.

— Acalme-se, está tudo bem agora. Você está a salvo.

Ela olhou para trás novamente e começou a se acalmar um pouco. Triskal falou-lhe ao coração:

— O Senhor a salvou. Ele não a deixará. Você está bem.

A essa altura o carro havia parado quase completamente. Mary dirigiu-o para a beira da calçada e o encostou. Ela puxou o freio de mão e ficou sentada diversos minutos apenas se recompondo.

— Isso mesmo — disse Triskal, confortando-lhe o espírito. — Des­canse no Senhor. Ele está aqui.

Triskal escorregou do teto do carro, estendeu o braço através do capô. Encontrou o que estava procurando.

— Mary — disse ele — por que náo tenta dar partida novamente? Mary, sentada no carro, pensava consigo mesma que aquela ignição burra jamais funcionaria e que hora horrível para estragar, deixando a em tamanho apuro.

— Vamos — instigou Triskal. — Dê o passo da fé. Confie em Deus. Você nunca sabe o que ele pode fazer.

Mary resolveu dar partida ao carro, mesmo tendo pouca fé de que alguma coisa acontecesse. Ela girou a chave. O motor deu uma volta, tossiu, pegou. Ela acelerou com força diversas vezes só para ter cer­teza de que ele continuaria funcionando. A seguir, ainda com grande pressa de chegar em casa e aos braços protetores de Hank, ela foi voando para casa com Triskal em cima do teto.

Hank sentiu-se muito aliviado ao ouvir a batida da porta do carro.

— Oh, deve ser Mary! Carmem ergueu-se.

— Acho melhor eu ir.

Agora que Mary havia chegado, Hank acrescentou:

— Escute, não precisa ir-se. Pode ficar mais um pouco.

— Não, não, estou de saída. Talvez fosse melhor eu sair pela porta dos fundos.

— Não, que tolice. Olhe. Eu a acompanho à porta. Preciso ajudar Mary a trazer as compras para dentro, de qualquer forma.

Mas Mary tinha-se esquecido das compras e só pensava em entrar. Triskal correu ao seu lado. Estava contundido e mancava, as vestes rasgadas, e ainda podia sentir o corte ardente nas costas.

Hank abriu a porta.

— Oi, benzinho. Puxa, estava ficando preocupado com você —. Então, ele viu-lhe os olhos cheios de lágrimas. — Ei, o quê...

Carmem gritou. Foi um grito repentino, de penetrar o coração, que fez cessar todo pensamento e sufocou quaisquer palavras. Hank ro­dopiou nos calcanhares, sem saber o que esperar.

— NAÁÃÃO! — foi o grito estridente da moça, os braços protegendo-lhe o rosto. — Está doido? Afaste-se de mim, ouviu? Afaste-se!

Diante dos olhos horrorizados de Hank e Mary, Carmem afastou-se para dentro da sala, abanando os braços como que tentando pro­teger-se de algum atacante invisível; saiu aos tropeções pela sala, revirando sobre o mobiliário, praguejou e soltou um jorro de horríveis obscenidades. Estava aterrorizada e enraivecida ao mesmo tempo, os olhos esbugalhados e vidrados, o rosto contorcido.

Krioni tentou agarrar Triskal e detê-lo. Triskal estava glorificado e reluzia; as asas esfarrapadas enchiam o aposento e refulgiam como mil arcos-íris. Ele segurava uma espada brilhante na mão, espada que coruscava e cantava em arcos ofuscantes enquanto ele se debatia em feroz batalha contra Lascívia, um demônio hediondo de corpo escorregadio, cheio de escamas negras, como o de uma lagartixa, e com uma língua vermelha que espadanava-lhe pela cara como a cauda de uma serpente. Lascívia defendeu-se a princípio, depois começou a devolver os golpes com sua brilhante espada vermelha, a lâmina em forma de meia-lua cortando arcos rubros no ar. As espadas se chocavam com explosões de chama e luz.

— Deixe-me em paz, estou-lhe dizendo! — berrou Lascívia, as asas impelindo-o como uma vespa presa na sala.

— Deixe-o em paz! — gritou Krioni, tentando deter Triskal en­quanto se mantinha fora do rumo daquela lâmina infinitamente afiada. — Está ouvindo a minha ordem? Deixe-o em paz!

Finalmente, Triskal retraiu-se, mas segurou a espada com firmeza e a manteve erguida à sua frente, a luz da lâmina iluminando-lhe o rosto irado, os olhos ardentes.

Carmem acalmou-se, esfregou os olhos, e correu o olhar pela sala com expressão amedrontada. Hank e Mary acorreram imediatamente e tentaram confortá-la.

— O que está errado, Carmem? — perguntou Mary, os olhos muito abertos e preocupados. — Sou eu, Mary. Foi alguma coisa que fiz? Não tive a intenção de assustá-la.

— Não... não... — gemeu Carmem. — Náo foi você. Foi outra pessoa...

— Quem? O quê?

Lascívia afastou-se, a espada ainda erguida bem alto. Krioni lhe disse:

— Hoje não lhe daremos mais lugar. Suma, e não apareça aqui novamente!

Lascívia dobrou as asas e circulou cuidadosamente em torno dos dois guerreiros celestiais e alcançou a porta.

— Eu já estava de saída mesmo — sibilou o demônio.

— Eu já estava de saída mesmo — disse Carmem, se compondo. — Há... há má energia neste lugar. Adeus.

Ela escapuliu porta afora. Mary tentou chamá-la, mas Hank tocou o braço da esposa e deu-lhe a entender que o silêncio seria a melhor coisa no momento.

Krioni segurou Triskal até que a luz ao seu redor desaparecesse e ele embainhasse a espada. Triskal tremia.

— Triskal — repreendeu Krioni — você conhece as ordens de Tal! Estive com Hank o tempo todo; ele se saiu muito bem. Não havia necessidade... — Foi então que Krioni viu os muitos ferimentos de Triskal e o profundo corte nas costas. — Triskal, o que aconteceu?

— Eu... não podia deixar-me ser atacado por mais um deles — arquejou Triskal. — Krioni, o número deles é superior ao nosso.

Mary finalmente lembrou-se de que estava prestes a chorar. Ela continuou de onde havia parado.

— Mary, mas afinal o que está acontecendo? — perguntou Hank, colocando os braços em torno dela.

— Apenas feche a porta, querido! — bradou ela. — Apenas feche a porta e me abrace. Por favor!