—
Oi.
Era Marshall.
Kate sabia o que se seguiria; era o que havia
acontecido muitas vezes nas últimas duas semanas.
—
Marshall, estou fazendo o jantar, e estou preparando o suficiente para nós
quatro...
—
Sei, bem... — A voz de Marshall tinha o tom que ele sempre usava quando estava
querendo livrar-se de alguma coisa.
—
Marshall! — Entáo Kate deu as costas à sala de estar onde Sandy e Shawn estavam
estudando e conversando, mas principalmente conversando; não queria que eles
percebessem o aborrecimento em seu rosto. Abaixou a voz. — Gostaria que
estivesse em casa para o jantar. Você ficou fora até tarde a semana toda, tem
estado tão ocupado e preocupado que nem parece que tenho mais marido...
—
Kate! -— interrompeu Marshall. — Não é tão ruim quanto pensa; estou ligando
apenas para avisar que vou atrasar um pouco, mas irei.
—
Quanto tempo de atraso?
—
Puxa.. . — Marshall não tinha certeza. — Acho que cerca de uma hora.
Kate não conseguiu pensar em nada para dizer. Apenas suspirou de
desagrado e zanga. Marshall tentou acalmá-la.
—
Escute, irei assim que puder.
Kate resolveu falar; podia ser que jamais tivesse outra
oportunidade.
—
Marshall, estou preocupada com Sandy.
—
O que há de errado com ela agora?
Oh, ela podia socá-lo por aquele tom de voz!
—
Marshall, se você pelo menos estivesse em casa de vez em quando, saberia! Ela
está... não sei. Apenas não é mais a antiga Sandy. Estou com medo do que Shawn
está fazendo com ela.
—
O que Shawn está fazendo com ela?
—
Não posso falar pelo telefone. Agora foi a vez de Marshall suspirar.
—
Está bem, está bem. Falaremos sobre esse assunto.
—
Quando, Marshall?
—
Oh, hoje à noite, quando eu chegar.
—
Não podemos falar disso na frente deles...
—
Quero dizer... oh, você sabe o que quero dizer! — Marshall estava-se cansando
da conversa.
—
Bem, apenas venha para casa, Marshall, por favor!
—
Está bem, está bem!
Marshall desligou o telefone sem dizer nada amoroso.
Por um átimo,
ele sentiu remorso pelo que fizera, e pensou sobre como Kate devia sentir-se,
mas forçou os pensamentos ao próximo e premente projeto: entrevistar a
professora Juleen Langstrat.
Noite de sexta-feira. Ela devia estar em casa. Ele
discou o número,
e desta vez o telefone tocou. E tocou. E tocou mais uma vez.
Clique.
—
Alô?
—
Alô, aqui fala Marshall Hogan, redator do Clarim de Ashton. Estou
falando com a Professora Juleen Langstrat?
—
Sim, está. Em que posso servi-lo, Sr. Hogan?
—
Minha filha Sandy participa de algumas de suas classes. Ela pareceu contente ao
saber disso.
—
Oh, ótimo!
—
De qualquer maneira, gostaria de saber se poderíamos marcar uma entrevista.
—
Bem, o senhor teria de falar com um dos meus assistentes. Eles é que são
responsáveis pela averiguação do progresso e problemas dos alunos. As classes
são grandes, o senhor compreende.
—
Oh, bem, não era exatamente isso que eu queria. Estava pensando em entrevistar
a senhora.
—
Com relação à sua filha? Temo não conhecê-la. Não poderia dizer-lhe muita
coisa...
—
Bem, poderíamos falar um pouco acerca da aula, naturalmente, mas eu estava
curioso também quanto aos outros interesses com que a senhora se ocupa na
faculdade, os cursos eletivos que vem dando à noite...
—
Oh — disse ela, terminando com uma nota descendente que não soava muito
promissora. — Bem, eles são parte de uma idéia experimental universitária que
estamos tentando. Se desejar verificar esse fato, a secretaria pode ter alguns
folhetos antigos disponíveis. Mas devo informá-lo de que me sinto muito pouco à
vontade em dar uma entrevista à imprensa, e realmente não posso fazê-lo.
—
Então a senhora não está disposta a discutir as pessoas muito influentes que
constam de seu círculo de amizades?
—
Não entendo a pergunta — e parecia que também não havia gostado dela.
—
Ali Brummel, Delegado de polícia, o Reverendo Oliver Young, Delores Pinckston,
Dwight Brandon, Eugene Baylor, o Juiz John Baker. ..
—
Nada tenho a comentar — disse ela em tom cortante — e realmente tenho outras
coisas urgentes que me esperam. Alguma outra coisa em que possa ajudá-lo?
—
Bem... — Marshall pensou que levaria adiante a pergunta para ver o que
acontecia. — Acho que a única outra coisa que eu poderia perguntar-lhe é por
que a senhora me expulsou da sua aula.
Agora ela estava ficando indignada.
—
Não sei de que o senhor está falando.
—
Sua aula da tarde de segunda-feira, há duas semanas. "A Psicologia do
Eu", acho que era. Eu sou o sujeito grandalhão que a senhora mandou sair.
Ela pôs-se a rir incrédula.
—
Não tenho a menor idéia de que está falando! Deve estar pensando em outra pessoa.
—
Não se lembra de ter-me mandado esperar fora da sala?
—
Estou convencida de que o senhor está-me confundindo com outra pessoa.
—
Bem, a senhora tem cabelo comprido e loiro? Ela disse simplesmente:
—
Boa noite, Sr. Hogan — e desligou.
Marshall esperou um momento, depois perguntou-se:
"Vamos, Hogan, o que você esperava?"
Ele largou o telefone no gancho e dirigiu-se ao escritório da frente onde uma
pergunta de Berenice prendeu-lhe a atenção.
—
Então, gostaria de saber quando vai finalmente chegar a Langstrat na parede —
brincou ela, revirando alguns papéis sobre a escrivaninha.
Marshall sentiu-se como se seu rosto estivesse muito
vermelho.
—
Puxa, o seu rosto está bem vermelho — confirmou Berenice.
—
É isso o que dá conversar com muitas mulheres temperamentais na mesma noite —
explicou ele. — Langstrat foi uma delas. Arre, e eu tinha pensado que Harmel
era difícil!
Berenice voltou-se, animada.
—
Você conseguiu falar com a Langstrat?
—
Pelo total de trinta e dois segundos. Ela não tinha absolutamente nada a me
dizer, e não se lembrava de ter-me expulsado de sua classe.
Berenice fez uma careta.
—
Não é engraçado como ninguém parece lembrar-se de ter nos encontrado? Marshall,
acho que somos invisíveis!
—
Que tal muito indesejáveis e muito inconvenientes?
—
Bem — disse Berenice, voltando a atenção à papelada — Langstrat provavelmente
tem estado muito ocupada, ocupada demais para falar com repórteres metidos...
Uma bola de papel atingiu-lhe a cabeça. Ela olhou para trás e
viu Marshall correndo os olhos por umas listas. Ele dava a impressão de que era
impossível ter sido quem atirara aquele pequeno projétil.
Ele disse:
—
Puxa, será que eu conseguiria falar com Harmel outra vez? Mas ele também não
quer saber de conversa.
A mesma bola de papel bateu-lhe na orelha. Ele olhou
para Berenice e ela estava absolutamente séria, toda profissional.
—
Bem, é óbvio que ele sabia demais. Aposto que tanto ele quanto o antigo deão
Strachan estão bastante assustados.
—
É —. Uma lembrança aflorou à mente de Marshall. — Harmel falou dessa maneira,
me avisando. Disse algo como: eu iria ficar na rua da amargura como todos os
outros.
—
E quem são todos os outros?
—
Sim, quem mais conhecemos que poderia ter sido removido? Berenice correu os
olhos por algumas anotações.
— Bem,
sabe, agora que examino esta lista, nenhuma destas pessoas está no cargo há
muito tempo.
A bola de papel ricocheteou da cabeça da moça e deslizou levemente
pela escrivaninha.
—
E quem foi que elas substituíram? — perguntou Marshall. Berenice apanhou
solenemente a bola de papel, dizendo:
—
Podemos averiguar. Enquanto isso, a coisa mais óbvia a fazer é ligar para
Strachan e ver o que — ela atirou a bola em Marshall — ele diz!
Marshall agarrou a bola antes que esta o tocasse e
depressa amassou outra para aumentar o seu arsenal, devolvendo as duas na direção de Berenice. A moça
pôs-se a preparar um contra-ataque adequado.
—
Está bem — disse Marshall, caindo na gargalhada — ligarei para ele —. De
repente, ele se viu no meio de uma tempestade de bolas de papel. — Mas acho
melhor irmos embora daqui, minha esposa está esperando.
Berenice ainda não havia terminado a batalha, de modo que acabaram a
guerra e então tiveram de fazer a limpeza antes de sair.
Lucius, ao lado dos outros guerreiros, esperava que
Rafar se acalmasse e desse o motivo da reunião. Lucius bem que se divertia com a pequena cena que
tinha diante de si. Era óbvio que Rafar, o grande gabola, havia sido humilhado
na reunião que tivera com o Chefe! Lucius mal podia evitar que um sorriso
hediondo lhe aflorasse à fisionomia.
—
O anjinho não lhe disse onde poderia encontrar esse... como é mesmo o nome
dele? — perguntou Lucius, sabendo muito bem o nome de Tal.
—
TAL! — rugiu Rafar, e Lucius conseguia detectar a humilhação de Rafar ao
pronunciar aquele nome.
—
O anjinho, o inofensivo anjinho, não lhe disse nada?
A pronta reação de Rafar foi um monstruoso punho negro agarrando
no mesmo instante em torno da garganta de Lucius.
—
Está caçoando de mim, seu diabinho?
Lucius havia aprendido o tom certo de servilidade que
agradava ao tirano.
—
Oh, não fique ofendido, grande senhor. Apenas procuro o que lhe agrada.
—
Então procure esse Tal! — rosnou Rafar. Soltou Lucius e voltou-se para os
outros demônios. — Todos vocês, procurem esse Tal! Quero-o nas mãos para poder
estraçalhá-lo à vontade. Esta batalha poderia facilmente ser resolvida entre
nós dois. Encontrem-no! Tragam-me notícias!
Lucius tentou ocultar as palavras atrás de um tom lamuriento,
mas elas foram selecionadas especialmente com outro objetivo.
—
É o que faremos, grande senhor! Mas seguramente esse Tal deve ser um inimigo
estupendo para tê-lo derrotado quando da queda da Babilônia! O que fará com
ele, se o encontrarmos? Ousará atacá-lo novamente?
Rafar riu, as presas brilhando.
—
Verão de que o seu Baal é capaz!
—
Espero que não vejamos o que esse Tal pode fazer!
Rafar aproximou-se de Lucius e fitou-o com ardentes
globos amarelos até o outro abaixar o olhar.
—
Quando eu tiver vencido esse Tal e lançado os pedacinhos dele pelos céus como
sinal de vitória, certamente darei a você a oportunidade de me vencer.
Saborearei cada minuto.
Rafar voltou-se, e por um instante as suas asas negras
encheram o aposento antes de ele lançar-se através do prédio rumo ao céu.
Durante as horas que se seguiram, enquanto anjos em
toda a cidade observavam de seus esconderijos, o Baal voou lentamente sobre a
cidade, como um abutre sinistro, a espada visível e desafiadora. Para cima, para baixo, para diante,
para trás, ele voou, serpeando entre os prédios do centro, elevando-se a seguir
bem alto sobre a cidade em arcos graciosos.
Lá embaixo, através da janela de obscura loja num porão, Scion
observava enquanto Rafar sobrevoava novamente. Ele se voltou para o seu
capitão, sentado por perto nuns engradados de eletrodomésticos com Guilo,
Triskal e Mota. Triskal, com a ajuda dos outros, estava conseguindo curar-se e
consertar os estragos.
—
Não compreendo — disse Scion. — O que ele acha que está fazendo?
Tal ergueu os olhos dos ferimentos de Triskal e disse
com naturalidade:
—
Está tentando forçar-me a sair. Mota acrescentou:
—
Ele quer o capitão. Aparentemente, ele ofereceu grandes honrarias ao demônio
que encontrar o capitão Tal e informá-lo sobre o seu paradeiro.
Guilo disse asperamente:
—
Os demônios estão rastejando por toda a igreja com esse único objetivo. Foi o
primeiro lugar que examinaram.
Tal previu a próxima pergunta de Scion e a respondeu.
—
Signa e os outros ainda estão na igreja. Tentamos manter a nossa guarda ali com
a mesma aparência de sempre.
Scion viu Rafar circular sobre o limite distante da
cidade e voltar para outra sobrevoada.
—
Eu estaria em apuros se fosse desafiado por alguém como ele! Tal falou a
verdade, sem se envergonhar.
—
Se eu tivesse de defrontá-lo agora, é quase certo que perderia, e ele sabe
disso. Nossa cobertura de oração é insuficiente, enquanto ele tem todo o apoio
de que precisa.
Todos ouviram o ruflar das enormes asas de couro de
Rafar e viram a sombra do demônio recair sobre o prédio por um instante enquanto ele o
sobrevoava.
—
Teremos todos de ser muito, muito cuidadosos.
Krioni e Triskal caminhavam ao lado dele; haviam obtido
alguns reforços
para ficar na casa e tomar conta de Mary. Eles estavam cautelosos e alerta, e
Triskal, ainda recuperando-se do recente encontro com Rafar,
sentia-se especialmente nervoso ao considerar aonde estavam conduzindo Hank.
Hank virou para um lado onde jamais estivera antes,
desceu uma rua à qual jamais olhara antes, e finalmente se deteve do lado de fora de um
estabelecimento comercial a respeito do qual apenas ouvira péssimas referências
mas que jamais conseguira encontrar. Parado do lado de fora da porta, ele
olhou, admirado do número de garotos que entravam e saiam como abelhas. Por
fim, entrou.
Krioni e Triskal fizeram o possível para parecer humildes
e inofensivos ao seguirem-no.
A Caverna era um nome apropriado: a eletricidade
consumida para acionar as fileiras e mais fileiras de jogos eletrônicos luminosos e ruidosos
era compensada pela total ausência de qualquer outra luz, exceto um pequenino
globo azul aqui e ali no teto preto, pelos quais serpeava de vez em quando um
fiozinho de luz. Havia mais som do que iluminação; pesada música
"rock" de metaleiros tonitruava de alto falantes em toda a volta do
aposento e chocava-se dolorosamente com as miríades de sons eletrônicos que
rolavam das máquinas. Um único proprietário assentado atrás da pequena máquina
registradora, lia uma revista pornográfica quando não estava trocando moedas
para os jogadores. Hank nunca vira tanta moeda num único lugar.
Ali estavam garotos de todas as idades, com poucos
outros lugares onde ir, reunindo-se depois das aulas e durante todo o
fim-de-semana para passar o tempo, agüentar-se, jogar, arranjar um par, sair por aí, entrar
nas drogas, fazer sexo, fazer fosse lá o que fosse. Hank sabia que aquele lugar
era um pedaço do inferno; não por causa das máquinas, nem da decoração, nem da
escuridão — era o pungente mau cheiro espiritual de demônios no auge da
atividade. Sentiu-se mal do estômago.
Krioni e Triskal podiam ver centenas de olhos amarelos
estreitados fitando-os dos cantos e esconderijos escuros do aposento. Já haviam ouvido diversos
sons metálicos de espadas sendo puxadas e colocadas de prontidão.
—
Pareço suficientemente inofensivo? — perguntou Triskal baixinho.
—
Eles já não acham que seja inofensivo — disse Krioni secamente.
Os dois olharam em redor a todos os olhos que os
vigiavam. Sorriram de forma apaziguadora, erguendo as mãos vazias para mostrar que
não tinham intenções hostis. Os demônios não replicaram, mas podiam-se ver
diversas lâminas brilhando no escuro.
—
E então, onde está Sete? — perguntou Triskal.
—
A caminho, garanto.
Triskal ficou tenso. Krioni seguiu-lhe o olhar e viu um
demônio
carrancudo que se aproximava. A mão do demônio estava na espada;
não a havia puxado, mas havia muitas outras espadas
desembainhadas atrás dele. O espírito negro olhou os dois anjos da cabeça aos
pés e sibilou:
—
Não são bem-vindos aqui! Que vieram fazer? Krioni respondeu rápida e
educadamente:
—
Estamos guardando o homem de Deus.
O demônio deu uma olhada a Hank e perdeu grande parte da
arrogância.
—
Busche! — exclamou nervoso enquanto os que estavam atrás dele se afastaram. — O
que ele está fazendo aqui?
—
Esse não é assunto que desejamos discutir — disse Triskal. O demônio apenas
sorriu zombeteiro.
—
Você é Triskal?
—
Sou.
O demônio riu, tossindo baforadas vermelhas e amarelas.
—
Você gosta de brigar, não gosta? — Diversos demônios riram com ele.
Triskal não tinha a mínima intenção de responder. O demônio não teve
tempo de exigir resposta. Subitamente, todos os espíritos zombeteiros ficaram
tensos e agitados. Seus olhos dispararam por todos os lados, e a seguir, como
um bando de pássaros tímidos, eles se afastaram e se amontoaram nos cantos
escuros. Ao mesmo tempo, Krioni e Triskal sentiram nova força percorrendo-os.
Eles olharam para Hank.
Ele estava orando.
"Querido Senhor", dizia ele silenciosamente
"ajude-nos a alcançar esses garotos; ajude-nos a tocar as suas vidas."
Hank estava orando na hora certa, considerando-se o
tumulto que acabava de entrar pela porta dos fundos. Enquanto os demônios se afastavam
sorrateiramente da entrada, três de seus camaradas entraram no prédio
gritando, sibilando e babando, os braços e as asas a cobrir-lhe a cabeça.
Estavam sendo perseguidos e espicaçados por altíssimo e inabalável guerreiro
angelical.
—
Bem — disse Triskal — Sete nos trouxe Ron Forsythe e mais reforços.
—
Era disso que eu estava com medo — disse Krioni.
Triskal estava-se referindo a um jovem que mal podia
ser visto em baixo de três demônios, a confusa e desorientada vítima de sua influência
destrutiva. Eles se agarravam ao rapaz como sanguessugas, fazendo-o cambalear
de um lado para outro lutando para evitar o aguilhão da ponta da espada do
grande guerreiro. Contudo, Sete os mantinha sob firme controle, e tocou-os bem
na direção de Hank Busche.
—
Ei, Ron — disseram alguns sujeitos diante do jogo de bombardeiros.
—
Ei... — foi tudo o que Ron respondeu, acenando-lhes lenta e pesadamente com a
mão. Não parecia muito contente.
Hank ouviu o nome e viu Ron Forsythe vindo, e por um
instante não
sabia se ficava onde estava ou se salvava a pele. Ron era um jovem alto,
magricela, com longo cabelo descuidado, camiseta e calças de brim sujas, e
olhos que pareciam estar vendo outro universo. Ele cambaleou na direção de
Hank, olhando por sobre o ombro como se um bando de pássaros o estivesse
perseguindo e depois para a frente como se estivesse a um passo do abismo.
Hank, vendo-o aproximar-se, resolveu ficar exatamente onde estava. Se o Senhor
queria que os dois se encontrassem, bem, era o que estava prestes a acontecer.
Nesse momento Ron se deteve bruscamente e recostou-se
contra um jogo de corrida de automóveis. Esse homem à sua frente parecia vagamente
familiar.
Os demônios agarrados a Ron tremiam e choramingavam, lançando
olhares na direção de Sete que estava atrás deles, e de Krioni e Trískal,
diante deles. Quanto aos outros demônios presentes, estavam loucos por uma
briga. Seus olhos amarelos percorriam o ambiente e as lâminas vermelhas
retiniam, mas alguma coisa os detinha: — aquele homem de oração.
—
Oi — disse Hank ao rapazinho. — Sou Hank Busche.
Os olhos vidrados de Ron se arregalaram. Ele fitou Hank
e disse num resmungo quase ininteligível:
—
Já o vi por aí. Você é o pregador em quem meus pais tanto falam. Hank tinha
quase certeza de quem era o rapaz.
—
Ron? Ron Forsythe?
Ron olhou em redor e se remexeu como se tivesse sido
apanhado fazendo algo ilegal.
—
Sim...
Hank estendeu a mão.
—
Ora, Deus o abençoe, Ron, que prazer em conhecê-lo.
Os três demônios rosnaram ao ouvirem aquilo, mas os três guerreiros
inclinaram-se apenas um pouco para a frente e os mantiveram sob controle.
—
Feitiçaria — disse Triskal, identificando um dos demônios. Feitiçaria
agarrou-se a Ron com garras pontiagudas como agulhas e sibilou:
—
E o que tem a ver conosco?
—
O rapaz — disse Krioni.
—
Não pode nos dizer o que fazer! — cacarejou outro demônio, os punhos teimosamente
fechados.
—
Rebeldia? — perguntou Krioni. O demônio não negou.
—
Ele nos pertence.
Os espíritos no aposento estavam cada vez mais corajosos, aproximando-se
cada vez mais.
—
Vamos tirá-lo daqui — disse Krioni. Hank tocou Ron no ombro e disse:
—
Por que não saímos ali fora a fim de conversar um minuto? Feitiçaria e Rebeldia
perguntaram juntos:
—
Para quê? Ron protestou:
—
Para quê?
Hank simplesmente guiou-o com brandura:
—
Vamos — e eles saíram pela porta dos fundos. Triskal permaneceu à porta, a mão
na espada. Apenas os demônios agarrados a Ron tiveram permissão de sair,
constantemente encurralados por Sete e Krioni.
Ron afundou-se em câmara lenta num banco próximo como uma boneca de pano.
Hank colocou a mão no ombro de Ron e permaneceu olhando dentro daqueles olhos
baços, sem saber onde começar.
—
Como está-se sentindo? — perguntou, afinal.
O terceiro demônio envolveu a cabeça de Ron em seus braços grossos e
viscosos.
A cabeça do rapaz caiu sobre o peito e ele quase adormeceu, alheio
às palavras de Hank.
A ponta da espada de Sete recebeu a atenção do demônio.
—
O quê? — guinchou.
—
Bruxaria?
O espírito riu como que embriagado.
—
O tempo todo, mais e mais. Ele jamais desistirá! Ron pôs-se a rir, sentindo-se
drogado e bobo.
Mas Hank podia detectar algo em seu espírito, a mesma presença
horrível que sentira naquela noite tão assustadora. Espíritos malignos? Em um
rapaz tão jovem? Senhor, o que posso fazer? O que posso dizer?
O Senhor respondeu, e Hank sabia o que tinha de fazer.
—
Ron — disse ele, quer Ron o ouvisse, quer não — posso orar por você?
Apenas os olhos de Ron se voltaram a fim de olhar para
Hank, e Ron chegou a suplicar:
—
Sim. Ore por mim, pregador.
Mas os demônios não queriam saber daquilo. Todos eles bradaram ao
cérebro de Ron a uma voz:
—
Não, não, não! Você não precisa disso!
Ron despertou de repente, a cabeça balançou de um lado para
outro, e ele resmungou:
—
Não, não... não ore... não gosto disso.
A essa altura Hank já não sabia o que Ron realmente queria. Ou era mesmo
Ron que estava falando?
—
Eu gostaria de orar por você, está bem? — perguntou Hank, só para ter certeza.
—
Não, não ore — disse Ron, e depois suplicou:
—
Por favor, ore, vamos...
—
Ore — soprou Krioni. — Ore!
—
Não! — bradaram os demônios. — Não pode obrigar-nos a deixá-lo!
—
Ore — disse Krioni.
Hank achou melhor assumir o comando da situação e orar por aquele
rapaz. Ele já havia colocado a mão sobre Ron, e assim começou a orar com muita
brandura.
—
Senhor Jesus, oro por Ron; por favor, toque-o, Senhor, e chegue à sua mente, e
liberte-o desses espíritos que estão agarrados a ele.
Os espíritos agarraram-se a Ron como crianças malcriadas e choramingaram
diante da oração de Hank. Ron gemeu e sacudiu um pouco mais a cabeça. Ele
tentou erguer-se, em seguida sentou-se outra vez e segurou o braço de Hank.
O Senhor falou novamente a Hank, e deu-lhe um nome.
—
Bruxaria, deixe-o em nome de Jesus.
Ron remexeu-se no banco e gritou como se tivesse levado
uma facada. Hank pensou que Ron lhe arrancaria o braço de tanto apertar.
Mas Bruxaria obedeceu. Ele ganiu e berrou e cuspiu, mas
obedeceu, esvoaçando até as árvores próximas.
Ron deu um suspiro angustiado e olhou para Hank com
olhos cheios de dor e desespero.
—
Vamos, vamos, você está conseguindo!
Hank estava estupefato. Ele segurou a mão de Ron só para dar-lhe
segurança e continuou a olhar nos seus olhos. Estavam mais claros agora. Hank
podia ver uma alma sincera, súplice devolvendo-lhe o olhar.E agora? perguntou
ele ao Senhor.
O Senhor respondeu, e Hank soube outro nome.
—
Feitiçaria...
Ron olhou diretamente para Hank, os olhos selvagens e a
voz rouca.
— Não, eu não, nunca!
Mas Hank não se deteve; olhou bem nos olhos de Ron e disse:
—
Feitiçaria, em nome de Jesus, largue-o.
—
Não! — protestou, mas então Ron disse com a mesma presteza:
—
Vá, Feitiçaria, saia! Não o quero mais comigo!
Feitiçaria obedeceu relutante. Graças àquele homem de oração, oprimir Ron Forsythe já não era divertido. Ron descontraiu-se novamente, fungando
para deter as lágrimas. Sete cutucou o último demoniozinho.
—
E você, Rebeldia?
Rebeldia estava achando difícil resolver o que fazer.
Ron o sentia.
—
Espírito, por favor, vá embora. Já não quero saber de você! Hank orou a mesma
coisa.
—
Espírito, vá. Em nome de Jesus, deixe Ron em paz. Rebeldia considerou as
palavras de Ron, olhou para a espada de Sete, olhou para o homem
de oração, e
finalmente soltou-se.
Ron contorceu-se como se estivesse sofrendo de terrível cólica, e então disse:
—
Sim, sim, ele saiu.
Sete tocou para longe os três demônios, e eles
esvoaçaram de volta à Caverna onde seriam bem-vindos e ninguém os incomodaria.
Hank continuou a segurar a mão de Ron e esperou,
vigiando e orando até saber o que mais fazer. Era tudo tão incrível, tão fascinante,
tão apavorante, mas tão necessário. Essa devia ser a Lição Número Dois em
Combate Espiritual que o Senhor lhe ensinava; Hank sabia que estava aprendendo
algo de que precisaria para vencer essa batalha.
Ron estava-se transformando diante dos olhos de Hank,
descontraindo-se, respirando com mais calma, os olhos voltando ao normal, à realidade.
Hank finalmente disse um "Amém" bem baixinho e
perguntou:
—
Você está bem, Ron?
O rapaz respondeu prontamente:
—
Sim, sinto-me melhor. Obrigado —. Ele olhou para Hank e sorriu um sorriso
fraco, quase um pedido de desculpas. — Engraçado. Não, é legal. Justo hoje eu
estava pensando que precisava de alguém que orasse por mim. Simplesmente não
podia continuar em todo esse negócio com que estive metido.
Hank sabia o que havia acontecido.
—
Foi o Senhor, acho, que arranjou tudo.
—
Ninguém jamais orou por mim.
—
Sei que seus pais oram o tempo todo.
—
Bem, é, eles oram.
—
Todos os outros na igreja também. Estamos todos torcendo por você.
Ron deu o primeiro olhar transparente a Hank.
—
Então, você é o pastor dos meus pais, hein? Achei que seria mais velho.
—
Não muito mais velho — brincou Hank.
—
As outras pessoas da sua igreja são como você? Hank riu-se.
—
Somos todos apenas gente; temos as nossas qualidades e os nossos defeitos, mas
todos temos a Jesus, e ele nos dá um amor especial uns para com os outros.
Conversaram. Falaram da escola, da cidade, dos pais de
Ron, de drogas em geral e em particular, da igreja de Hank, dos cristãos que havia por ali, e de
Jesus. Ron começou a perceber que, fosse qual fosse o assunto ou o problema,
Hank tinha uma maneira de incluir Jesus na conversa. Ron não se importou. Não
era um daqueles falsos papos de vendedor; Hank Busche realmente acreditava que
Jesus Cristo era a resposta para tudo.
Assim, depois de falar de tudo, com Jesus sempre incluído na conversa, Ron deixou que Hank falasse acerca de Jesus, só de Jesus. Não era cacete. Hank realmente mostrava entusiasmo com relação a Jesus.