quinta-feira, 6 de maio de 2021

Este mundo tenebroso - volume 01 - Capítulo 15


 Kate agarrou uma toalha de pratos e enxugou às pressas as mãos a fim de atender ao telefone. — Alô?

— Oi.

Era Marshall.

Kate sabia o que se seguiria; era o que havia acontecido muitas vezes nas últimas duas semanas.

— Marshall, estou fazendo o jantar, e estou preparando o suficiente para nós quatro...

— Sei, bem... — A voz de Marshall tinha o tom que ele sempre usava quando estava querendo livrar-se de alguma coisa.

— Marshall! — Entáo Kate deu as costas à sala de estar onde Sandy e Shawn estavam estudando e conversando, mas principalmente con­versando; não queria que eles percebessem o aborrecimento em seu rosto. Abaixou a voz. — Gostaria que estivesse em casa para o jantar. Você ficou fora até tarde a semana toda, tem estado tão ocupado e preocupado que nem parece que tenho mais marido...

— Kate! -— interrompeu Marshall. — Não é tão ruim quanto pensa; estou ligando apenas para avisar que vou atrasar um pouco, mas irei.

— Quanto tempo de atraso?

— Puxa.. . — Marshall não tinha certeza. — Acho que cerca de uma hora.

Kate não conseguiu pensar em nada para dizer. Apenas suspirou de desagrado e zanga. Marshall tentou acalmá-la.

— Escute, irei assim que puder.

Kate resolveu falar; podia ser que jamais tivesse outra oportuni­dade.

— Marshall, estou preocupada com Sandy.

— O que há de errado com ela agora?

Oh, ela podia socá-lo por aquele tom de voz!

— Marshall, se você pelo menos estivesse em casa de vez em quando, saberia! Ela está... não sei. Apenas não é mais a antiga Sandy. Estou com medo do que Shawn está fazendo com ela.

— O que Shawn está fazendo com ela?

— Não posso falar pelo telefone. Agora foi a vez de Marshall suspirar.

— Está bem, está bem. Falaremos sobre esse assunto.

— Quando, Marshall?

— Oh, hoje à noite, quando eu chegar.

— Não podemos falar disso na frente deles...

— Quero dizer... oh, você sabe o que quero dizer! — Marshall estava-se cansando da conversa.

— Bem, apenas venha para casa, Marshall, por favor!

— Está bem, está bem!

Marshall desligou o telefone sem dizer nada amoroso. Por um átimo, ele sentiu remorso pelo que fizera, e pensou sobre como Kate devia sentir-se, mas forçou os pensamentos ao próximo e premente projeto: entrevistar a professora Juleen Langstrat.

Noite de sexta-feira. Ela devia estar em casa. Ele discou o número, e desta vez o telefone tocou. E tocou. E tocou mais uma vez.

Clique.

— Alô?

— Alô, aqui fala Marshall Hogan, redator do Clarim de Ashton. Estou falando com a Professora Juleen Langstrat?

— Sim, está. Em que posso servi-lo, Sr. Hogan?

— Minha filha Sandy participa de algumas de suas classes. Ela pareceu contente ao saber disso.

— Oh, ótimo!

— De qualquer maneira, gostaria de saber se poderíamos marcar uma entrevista.

— Bem, o senhor teria de falar com um dos meus assistentes. Eles é que são responsáveis pela averiguação do progresso e problemas dos alunos. As classes são grandes, o senhor compreende.

— Oh, bem, não era exatamente isso que eu queria. Estava pen­sando em entrevistar a senhora.

— Com relação à sua filha? Temo não conhecê-la. Não poderia dizer-lhe muita coisa...

— Bem, poderíamos falar um pouco acerca da aula, naturalmente, mas eu estava curioso também quanto aos outros interesses com que a senhora se ocupa na faculdade, os cursos eletivos que vem dando à noite...

— Oh — disse ela, terminando com uma nota descendente que não soava muito promissora. — Bem, eles são parte de uma idéia experimental universitária que estamos tentando. Se desejar verificar esse fato, a secretaria pode ter alguns folhetos antigos disponíveis. Mas devo informá-lo de que me sinto muito pouco à vontade em dar uma entrevista à imprensa, e realmente não posso fazê-lo.

— Então a senhora não está disposta a discutir as pessoas muito influentes que constam de seu círculo de amizades?

— Não entendo a pergunta — e parecia que também não havia gostado dela.

— Ali Brummel, Delegado de polícia, o Reverendo Oliver Young, Delores Pinckston, Dwight Brandon, Eugene Baylor, o Juiz John Ba­ker. ..

— Nada tenho a comentar — disse ela em tom cortante — e real­mente tenho outras coisas urgentes que me esperam. Alguma outra coisa em que possa ajudá-lo?

— Bem... — Marshall pensou que levaria adiante a pergunta para ver o que acontecia. — Acho que a única outra coisa que eu poderia perguntar-lhe é por que a senhora me expulsou da sua aula.

Agora ela estava ficando indignada.

— Não sei de que o senhor está falando.

— Sua aula da tarde de segunda-feira, há duas semanas. "A Psi­cologia do Eu", acho que era. Eu sou o sujeito grandalhão que a senhora mandou sair.

Ela pôs-se a rir incrédula.

— Não tenho a menor idéia de que está falando! Deve estar pen­sando em outra pessoa.

— Não se lembra de ter-me mandado esperar fora da sala?

— Estou convencida de que o senhor está-me confundindo com outra pessoa.

— Bem, a senhora tem cabelo comprido e loiro? Ela disse simplesmente:

— Boa noite, Sr. Hogan — e desligou.

Marshall esperou um momento, depois perguntou-se: "Vamos, Ho­gan, o que você esperava?"

Ele largou o telefone no gancho e dirigiu-se ao escritório da frente onde uma pergunta de Berenice prendeu-lhe a atenção.

— Então, gostaria de saber quando vai finalmente chegar a Langstrat na parede — brincou ela, revirando alguns papéis sobre a escri­vaninha.

Marshall sentiu-se como se seu rosto estivesse muito vermelho.

— Puxa, o seu rosto está bem vermelho — confirmou Berenice.

— É isso o que dá conversar com muitas mulheres temperamentais na mesma noite — explicou ele. — Langstrat foi uma delas. Arre, e eu tinha pensado que Harmel era difícil!

Berenice voltou-se, animada.

— Você conseguiu falar com a Langstrat?

— Pelo total de trinta e dois segundos. Ela não tinha absolutamente nada a me dizer, e não se lembrava de ter-me expulsado de sua classe.

Berenice fez uma careta.

— Não é engraçado como ninguém parece lembrar-se de ter nos encontrado? Marshall, acho que somos invisíveis!

— Que tal muito indesejáveis e muito inconvenientes?

— Bem — disse Berenice, voltando a atenção à papelada — Langs­trat provavelmente tem estado muito ocupada, ocupada demais para falar com repórteres metidos...

Uma bola de papel atingiu-lhe a cabeça. Ela olhou para trás e viu Marshall correndo os olhos por umas listas. Ele dava a impressão de que era impossível ter sido quem atirara aquele pequeno projétil.

Ele disse:

— Puxa, será que eu conseguiria falar com Harmel outra vez? Mas ele também não quer saber de conversa.

A mesma bola de papel bateu-lhe na orelha. Ele olhou para Be­renice e ela estava absolutamente séria, toda profissional.

— Bem, é óbvio que ele sabia demais. Aposto que tanto ele quanto o antigo deão Strachan estão bastante assustados.

— É —. Uma lembrança aflorou à mente de Marshall. — Harmel falou dessa maneira, me avisando. Disse algo como: eu iria ficar na rua da amargura como todos os outros.

— E quem são todos os outros?

— Sim, quem mais conhecemos que poderia ter sido removido? Berenice correu os olhos por algumas anotações.

— Bem, sabe, agora que examino esta lista, nenhuma destas pes­soas está no cargo há muito tempo.

A bola de papel ricocheteou da cabeça da moça e deslizou leve­mente pela escrivaninha.

— E quem foi que elas substituíram? — perguntou Marshall. Berenice apanhou solenemente a bola de papel, dizendo:

— Podemos averiguar. Enquanto isso, a coisa mais óbvia a fazer é ligar para Strachan e ver o que — ela atirou a bola em Marshall — ele diz!

Marshall agarrou a bola antes que esta o tocasse e depressa amassou outra para aumentar o seu arsenal, devolvendo as duas na direção de Berenice. A moça pôs-se a preparar um contra-ataque adequado.

— Está bem — disse Marshall, caindo na gargalhada — ligarei para ele —. De repente, ele se viu no meio de uma tempestade de bolas de papel. — Mas acho melhor irmos embora daqui, minha esposa está esperando.

Berenice ainda não havia terminado a batalha, de modo que aca­baram a guerra e então tiveram de fazer a limpeza antes de sair.

 Rafar andava de um lado para outro no escuro porão, expelindo baforadas quentes que formavam uma camada de nuvem que o ocul­tava do ombro para cima. Ele batia com um punho no outro, estra çalhava inimigos invisíveis com as garras estendidas, praguejava e fervia de raiva.

Lucius, ao lado dos outros guerreiros, esperava que Rafar se acal­masse e desse o motivo da reunião. Lucius bem que se divertia com a pequena cena que tinha diante de si. Era óbvio que Rafar, o grande gabola, havia sido humilhado na reunião que tivera com o Chefe! Lucius mal podia evitar que um sorriso hediondo lhe aflorasse à fisionomia.

— O anjinho não lhe disse onde poderia encontrar esse... como é mesmo o nome dele? — perguntou Lucius, sabendo muito bem o nome de Tal.

— TAL! — rugiu Rafar, e Lucius conseguia detectar a humilhação de Rafar ao pronunciar aquele nome.

— O anjinho, o inofensivo anjinho, não lhe disse nada?

A pronta reação de Rafar foi um monstruoso punho negro agar­rando no mesmo instante em torno da garganta de Lucius.

— Está caçoando de mim, seu diabinho?

Lucius havia aprendido o tom certo de servilidade que agradava ao tirano.

— Oh, não fique ofendido, grande senhor. Apenas procuro o que lhe agrada.

— Então procure esse Tal! — rosnou Rafar. Soltou Lucius e voltou-se para os outros demônios. — Todos vocês, procurem esse Tal! Quero-o nas mãos para poder estraçalhá-lo à vontade. Esta batalha poderia facilmente ser resolvida entre nós dois. Encontrem-no! Tra­gam-me notícias!

Lucius tentou ocultar as palavras atrás de um tom lamuriento, mas elas foram selecionadas especialmente com outro objetivo.

— É o que faremos, grande senhor! Mas seguramente esse Tal deve ser um inimigo estupendo para tê-lo derrotado quando da queda da Babilônia! O que fará com ele, se o encontrarmos? Ousará atacá-lo novamente?

Rafar riu, as presas brilhando.

— Verão de que o seu Baal é capaz!

— Espero que não vejamos o que esse Tal pode fazer!

Rafar aproximou-se de Lucius e fitou-o com ardentes globos ama­relos até o outro abaixar o olhar.

— Quando eu tiver vencido esse Tal e lançado os pedacinhos dele pelos céus como sinal de vitória, certamente darei a você a oportu­nidade de me vencer. Saborearei cada minuto.

Rafar voltou-se, e por um instante as suas asas negras encheram o aposento antes de ele lançar-se através do prédio rumo ao céu.

Durante as horas que se seguiram, enquanto anjos em toda a cidade observavam de seus esconderijos, o Baal voou lentamente sobre a cidade, como um abutre sinistro, a espada visível e desafiadora. Para cima, para baixo, para diante, para trás, ele voou, serpeando entre os prédios do centro, elevando-se a seguir bem alto sobre a cidade em arcos graciosos.

Lá embaixo, através da janela de obscura loja num porão, Scion observava enquanto Rafar sobrevoava novamente. Ele se voltou para o seu capitão, sentado por perto nuns engradados de eletrodomés­ticos com Guilo, Triskal e Mota. Triskal, com a ajuda dos outros, estava conseguindo curar-se e consertar os estragos.

— Não compreendo — disse Scion. — O que ele acha que está fazendo?

Tal ergueu os olhos dos ferimentos de Triskal e disse com natu­ralidade:

— Está tentando forçar-me a sair. Mota acrescentou:

— Ele quer o capitão. Aparentemente, ele ofereceu grandes honrarias ao demônio que encontrar o capitão Tal e informá-lo sobre o seu paradeiro.

Guilo disse asperamente:

— Os demônios estão rastejando por toda a igreja com esse único objetivo. Foi o primeiro lugar que examinaram.

Tal previu a próxima pergunta de Scion e a respondeu.

— Signa e os outros ainda estão na igreja. Tentamos manter a nossa guarda ali com a mesma aparência de sempre.

Scion viu Rafar circular sobre o limite distante da cidade e voltar para outra sobrevoada.

— Eu estaria em apuros se fosse desafiado por alguém como ele! Tal falou a verdade, sem se envergonhar.

— Se eu tivesse de defrontá-lo agora, é quase certo que perderia, e ele sabe disso. Nossa cobertura de oração é insuficiente, enquanto ele tem todo o apoio de que precisa.

Todos ouviram o ruflar das enormes asas de couro de Rafar e viram a sombra do demônio recair sobre o prédio por um instante enquanto ele o sobrevoava.

— Teremos todos de ser muito, muito cuidadosos.

 Hank estava caminhando pela cidade novamente, para cima e para baixo, passando pelas ruas e casas comerciais, conduzido pelo Se­nhor e orando a cada passo que dava. Ele sentia que Deus tinha algum propósito particular para esse pequeno passeio, mas nem po­dia começar a imaginar qual fosse.

Krioni e Triskal caminhavam ao lado dele; haviam obtido alguns reforços para ficar na casa e tomar conta de Mary. Eles estavam cautelosos e alerta, e Triskal, ainda recuperando-se do recente encontro com Rafar, sentia-se especialmente nervoso ao considerar aonde estavam conduzindo Hank.

Hank virou para um lado onde jamais estivera antes, desceu uma rua à qual jamais olhara antes, e finalmente se deteve do lado de fora de um estabelecimento comercial a respeito do qual apenas ouvira péssimas referências mas que jamais conseguira encontrar. Parado do lado de fora da porta, ele olhou, admirado do número de garotos que entravam e saiam como abelhas. Por fim, entrou.

Krioni e Triskal fizeram o possível para parecer humildes e ino­fensivos ao seguirem-no.

A Caverna era um nome apropriado: a eletricidade consumida para acionar as fileiras e mais fileiras de jogos eletrônicos luminosos e ruidosos era compensada pela total ausência de qualquer outra luz, exceto um pequenino globo azul aqui e ali no teto preto, pelos quais serpeava de vez em quando um fiozinho de luz. Havia mais som do que iluminação; pesada música "rock" de metaleiros tonitruava de alto falantes em toda a volta do aposento e chocava-se dolorosamente com as miríades de sons eletrônicos que rolavam das máquinas. Um único proprietário assentado atrás da pequena máquina registradora, lia uma revista pornográfica quando não estava trocando moedas para os jogadores. Hank nunca vira tanta moeda num único lugar.

Ali estavam garotos de todas as idades, com poucos outros lugares onde ir, reunindo-se depois das aulas e durante todo o fim-de-semana para passar o tempo, agüentar-se, jogar, arranjar um par, sair por aí, entrar nas drogas, fazer sexo, fazer fosse lá o que fosse. Hank sabia que aquele lugar era um pedaço do inferno; não por causa das má­quinas, nem da decoração, nem da escuridão — era o pungente mau cheiro espiritual de demônios no auge da atividade. Sentiu-se mal do estômago.

Krioni e Triskal podiam ver centenas de olhos amarelos estreitados fitando-os dos cantos e esconderijos escuros do aposento. Já haviam ouvido diversos sons metálicos de espadas sendo puxadas e colo­cadas de prontidão.

— Pareço suficientemente inofensivo? — perguntou Triskal bai­xinho.

— Eles já não acham que seja inofensivo — disse Krioni secamente.

Os dois olharam em redor a todos os olhos que os vigiavam. Sor­riram de forma apaziguadora, erguendo as mãos vazias para mostrar que não tinham intenções hostis. Os demônios não replicaram, mas podiam-se ver diversas lâminas brilhando no escuro.

— E então, onde está Sete? — perguntou Triskal.

— A caminho, garanto.

Triskal ficou tenso. Krioni seguiu-lhe o olhar e viu um demônio carrancudo que se aproximava. A mão do demônio estava na espada;

não a havia puxado, mas havia muitas outras espadas desembainhadas atrás dele. O espírito negro olhou os dois anjos da cabeça aos pés e sibilou:

— Não são bem-vindos aqui! Que vieram fazer? Krioni respondeu rápida e educadamente:

— Estamos guardando o homem de Deus.

O demônio deu uma olhada a Hank e perdeu grande parte da arrogância.

— Busche! — exclamou nervoso enquanto os que estavam atrás dele se afastaram. — O que ele está fazendo aqui?

— Esse não é assunto que desejamos discutir — disse Triskal. O demônio apenas sorriu zombeteiro.

— Você é Triskal?

— Sou.

O demônio riu, tossindo baforadas vermelhas e amarelas.

— Você gosta de brigar, não gosta? — Diversos demônios riram com ele.

Triskal não tinha a mínima intenção de responder. O demônio não teve tempo de exigir resposta. Subitamente, todos os espíritos zombeteiros ficaram tensos e agitados. Seus olhos dispararam por todos os lados, e a seguir, como um bando de pássaros tímidos, eles se afastaram e se amontoaram nos cantos escuros. Ao mesmo tempo, Krioni e Triskal sentiram nova força percorrendo-os. Eles olharam para Hank.

Ele estava orando.

"Querido Senhor", dizia ele silenciosamente "ajude-nos a alcançar esses garotos; ajude-nos a tocar as suas vidas."

Hank estava orando na hora certa, considerando-se o tumulto que acabava de entrar pela porta dos fundos. Enquanto os demônios se afastavam sorrateiramente da entrada, três de seus camaradas entra­ram no prédio gritando, sibilando e babando, os braços e as asas a cobrir-lhe a cabeça. Estavam sendo perseguidos e espicaçados por altíssimo e inabalável guerreiro angelical.

— Bem — disse Triskal — Sete nos trouxe Ron Forsythe e mais reforços.

— Era disso que eu estava com medo — disse Krioni.

Triskal estava-se referindo a um jovem que mal podia ser visto em baixo de três demônios, a confusa e desorientada vítima de sua in­fluência destrutiva. Eles se agarravam ao rapaz como sanguessugas, fazendo-o cambalear de um lado para outro lutando para evitar o aguilhão da ponta da espada do grande guerreiro. Contudo, Sete os mantinha sob firme controle, e tocou-os bem na direção de Hank Busche.

— Ei, Ron — disseram alguns sujeitos diante do jogo de bombar­deiros.

— Ei... — foi tudo o que Ron respondeu, acenando-lhes lenta e pesadamente com a mão. Não parecia muito contente.

Hank ouviu o nome e viu Ron Forsythe vindo, e por um instante não sabia se ficava onde estava ou se salvava a pele. Ron era um jovem alto, magricela, com longo cabelo descuidado, camiseta e cal­ças de brim sujas, e olhos que pareciam estar vendo outro universo. Ele cambaleou na direção de Hank, olhando por sobre o ombro como se um bando de pássaros o estivesse perseguindo e depois para a frente como se estivesse a um passo do abismo. Hank, vendo-o apro­ximar-se, resolveu ficar exatamente onde estava. Se o Senhor queria que os dois se encontrassem, bem, era o que estava prestes a acon­tecer.

Nesse momento Ron se deteve bruscamente e recostou-se contra um jogo de corrida de automóveis. Esse homem à sua frente parecia vagamente familiar.

Os demônios agarrados a Ron tremiam e choramingavam, lançando olhares na direção de Sete que estava atrás deles, e de Krioni e Trískal, diante deles. Quanto aos outros demônios presentes, estavam loucos por uma briga. Seus olhos amarelos percorriam o ambiente e as lâ­minas vermelhas retiniam, mas alguma coisa os detinha: — aquele homem de oração.

— Oi — disse Hank ao rapazinho. — Sou Hank Busche.

Os olhos vidrados de Ron se arregalaram. Ele fitou Hank e disse num resmungo quase ininteligível:

— Já o vi por aí. Você é o pregador em quem meus pais tanto falam. Hank tinha quase certeza de quem era o rapaz.

— Ron? Ron Forsythe?

Ron olhou em redor e se remexeu como se tivesse sido apanhado fazendo algo ilegal.

— Sim...

Hank estendeu a mão.

— Ora, Deus o abençoe, Ron, que prazer em conhecê-lo.

Os três demônios rosnaram ao ouvirem aquilo, mas os três guer­reiros inclinaram-se apenas um pouco para a frente e os mantiveram sob controle.

— Feitiçaria — disse Triskal, identificando um dos demônios. Feitiçaria agarrou-se a Ron com garras pontiagudas como agulhas e sibilou:

— E o que tem a ver conosco?

— O rapaz — disse Krioni.

— Não pode nos dizer o que fazer! — cacarejou outro demônio, os punhos teimosamente fechados.

— Rebeldia? — perguntou Krioni. O demônio não negou.

— Ele nos pertence.

Os espíritos no aposento estavam cada vez mais corajosos, apro­ximando-se cada vez mais.

— Vamos tirá-lo daqui — disse Krioni. Hank tocou Ron no ombro e disse:

— Por que não saímos ali fora a fim de conversar um minuto? Feitiçaria e Rebeldia perguntaram juntos:

— Para quê? Ron protestou:

— Para quê?

Hank simplesmente guiou-o com brandura:

— Vamos — e eles saíram pela porta dos fundos. Triskal perma­neceu à porta, a mão na espada. Apenas os demônios agarrados a Ron tiveram permissão de sair, constantemente encurralados por Sete e Krioni.

Ron afundou-se em câmara lenta num banco próximo como uma boneca de pano. Hank colocou a mão no ombro de Ron e permaneceu olhando dentro daqueles olhos baços, sem saber onde começar.

— Como está-se sentindo? — perguntou, afinal.

O terceiro demônio envolveu a cabeça de Ron em seus braços grossos e viscosos.

A cabeça do rapaz caiu sobre o peito e ele quase adormeceu, alheio às palavras de Hank.

A ponta da espada de Sete recebeu a atenção do demônio.

— O quê? — guinchou.

— Bruxaria?

O espírito riu como que embriagado.

— O tempo todo, mais e mais. Ele jamais desistirá! Ron pôs-se a rir, sentindo-se drogado e bobo.

Mas Hank podia detectar algo em seu espírito, a mesma presença horrível que sentira naquela noite tão assustadora. Espíritos malig­nos? Em um rapaz tão jovem? Senhor, o que posso fazer? O que posso dizer?

O Senhor respondeu, e Hank sabia o que tinha de fazer.

— Ron — disse ele, quer Ron o ouvisse, quer não — posso orar por você?

Apenas os olhos de Ron se voltaram a fim de olhar para Hank, e Ron chegou a suplicar:

— Sim. Ore por mim, pregador.

Mas os demônios não queriam saber daquilo. Todos eles bradaram ao cérebro de Ron a uma voz:

— Não, não, não! Você não precisa disso!

Ron despertou de repente, a cabeça balançou de um lado para outro, e ele resmungou:

— Não, não... não ore... não gosto disso.

A essa altura Hank já não sabia o que Ron realmente queria. Ou era mesmo Ron que estava falando?

— Eu gostaria de orar por você, está bem? — perguntou Hank, só para ter certeza.

— Não, não ore — disse Ron, e depois suplicou:

— Por favor, ore, vamos...

— Ore — soprou Krioni. — Ore!

— Não! — bradaram os demônios. — Não pode obrigar-nos a deixá-lo!

— Ore — disse Krioni.

Hank achou melhor assumir o comando da situação e orar por aquele rapaz. Ele já havia colocado a mão sobre Ron, e assim começou a orar com muita brandura.

— Senhor Jesus, oro por Ron; por favor, toque-o, Senhor, e chegue à sua mente, e liberte-o desses espíritos que estão agarrados a ele.

Os espíritos agarraram-se a Ron como crianças malcriadas e cho­ramingaram diante da oração de Hank. Ron gemeu e sacudiu um pouco mais a cabeça. Ele tentou erguer-se, em seguida sentou-se outra vez e segurou o braço de Hank.

O Senhor falou novamente a Hank, e deu-lhe um nome.

— Bruxaria, deixe-o em nome de Jesus.

Ron remexeu-se no banco e gritou como se tivesse levado uma facada. Hank pensou que Ron lhe arrancaria o braço de tanto apertar.

Mas Bruxaria obedeceu. Ele ganiu e berrou e cuspiu, mas obedeceu, esvoaçando até as árvores próximas.

Ron deu um suspiro angustiado e olhou para Hank com olhos cheios de dor e desespero.

— Vamos, vamos, você está conseguindo!

Hank estava estupefato. Ele segurou a mão de Ron só para dar-lhe segurança e continuou a olhar nos seus olhos. Estavam mais claros agora. Hank podia ver uma alma sincera, súplice devolvendo-lhe o olhar.E agora? perguntou ele ao Senhor.

O Senhor respondeu, e Hank soube outro nome.

— Feitiçaria...

Ron olhou diretamente para Hank, os olhos selvagens e a voz rouca.

  Não, eu não, nunca!

Mas Hank não se deteve; olhou bem nos olhos de Ron e disse:

— Feitiçaria, em nome de Jesus, largue-o.

— Não! — protestou, mas então Ron disse com a mesma presteza:

— Vá, Feitiçaria, saia! Não o quero mais comigo!

Feitiçaria obedeceu relutante. Graças àquele homem de oração, oprimir Ron Forsythe já não era divertido. Ron descontraiu-se novamente, fungando para deter as lágrimas. Sete cutucou o último demoniozinho.

— E você, Rebeldia?

Rebeldia estava achando difícil resolver o que fazer. Ron o sentia.

— Espírito, por favor, vá embora. Já não quero saber de você! Hank orou a mesma coisa.

— Espírito, vá. Em nome de Jesus, deixe Ron em paz. Rebeldia considerou as palavras de Ron, olhou para a espada de Sete, olhou para o homem de oração, e finalmente soltou-se.

Ron contorceu-se como se estivesse sofrendo de terrível cólica, e então disse:

— Sim, sim, ele saiu.

Sete tocou para longe os três demônios, e eles esvoaçaram de volta à Caverna onde seriam bem-vindos e ninguém os incomodaria.

Hank continuou a segurar a mão de Ron e esperou, vigiando e orando até saber o que mais fazer. Era tudo tão incrível, tão fasci­nante, tão apavorante, mas tão necessário. Essa devia ser a Lição Número Dois em Combate Espiritual que o Senhor lhe ensinava; Hank sabia que estava aprendendo algo de que precisaria para vencer essa batalha.

Ron estava-se transformando diante dos olhos de Hank, descontraindo-se, respirando com mais calma, os olhos voltando ao normal, à realidade.

Hank finalmente disse um "Amém" bem baixinho e perguntou:

— Você está bem, Ron?

O rapaz respondeu prontamente:

— Sim, sinto-me melhor. Obrigado —. Ele olhou para Hank e sorriu um sorriso fraco, quase um pedido de desculpas. — Engraçado. Não, é legal. Justo hoje eu estava pensando que precisava de alguém que orasse por mim. Simplesmente não podia continuar em todo esse negócio com que estive metido.

Hank sabia o que havia acontecido.

— Foi o Senhor, acho, que arranjou tudo.

— Ninguém jamais orou por mim.

— Sei que seus pais oram o tempo todo.

— Bem, é, eles oram.

— Todos os outros na igreja também. Estamos todos torcendo por você.

Ron deu o primeiro olhar transparente a Hank.

— Então, você é o pastor dos meus pais, hein? Achei que seria mais velho.

— Não muito mais velho — brincou Hank.

— As outras pessoas da sua igreja são como você? Hank riu-se.

— Somos todos apenas gente; temos as nossas qualidades e os nossos defeitos, mas todos temos a Jesus, e ele nos dá um amor especial uns para com os outros.

Conversaram. Falaram da escola, da cidade, dos pais de Ron, de drogas em geral e em particular, da igreja de Hank, dos cristãos que havia por ali, e de Jesus. Ron começou a perceber que, fosse qual fosse o assunto ou o problema, Hank tinha uma maneira de incluir Jesus na conversa. Ron não se importou. Não era um daqueles falsos papos de vendedor; Hank Busche realmente acreditava que Jesus Cristo era a resposta para tudo.

Assim, depois de falar de tudo, com Jesus sempre incluído na conversa, Ron deixou que Hank falasse acerca de Jesus, só de Jesus. Não era cacete. Hank realmente mostrava entusiasmo com relação a Jesus.