quarta-feira, 5 de maio de 2021

Este mundo tenebroso - volume 01 - Capítulo 12


 As folhas eram verdes, aquele verde claro de folha nova que elas ostentam nos primeiros meses do verão. Da mesinha na praça de tijolos vermelhos, Sandy e Shawn podiam olhar para cima e ver as folhas fulgurantes iluminadas pelo sol, e observar os pássaros saltitando nos galhos, quando não estavam pro­curando migalhas de pão e batatas fritas. Esse era o lugar do campus predileto de Sandy. Era tão calmo, quase um mundo de distância das desavenças, perguntas e disputas de casa.

Shawn gostava de observar os pardais piando e correndo atrás de cada migalha de pão que ele jogava sobre os tijolos.

— Adoro o modo pelo qual o Universo todo se encaixa — disse ele. — A árvore cresceu aqui a fim de nos dar sombra, sentamo-nos aqui e comemos e damos comida para os pássaros que vivem na árvore. Tudo se encaixa.

O conceito fascinou Sandy. Na superfície parecia tão simples, quase um conto de fadas, mas parte dela estava muito sedenta por esse tipo de paz.

— O que acontece quando o Universo não se ajusta? — perguntou. Shawn sorriu.

— O Universo sempre se encaixa. O problema só surge quando as pessoas não percebem essa harmonia.

— Então como você explica os problemas que estou tendo com meus pais?

— Nenhuma das suas mentes está sintonizada corretamente. É como uma estação de FM no rádio. Se o sinal está fraco e as vozes chiam e soam intermitentes, não culpe a transmissora, acerte o rádio. Sandy, o Universo é perfeito. É unificado, harmonioso. A paz, a unidade, a inteireza realmente existem, e todos nós fazemos parte do Universo; somos feitos da mesma matéria, por isso não há motivo para não nos ajustarmos com precisão no esquema total das coisas. Se não nos ajustamos, é porque tomamos a estrada errada em algum lugar. Estamos fora de contato com a verdadeira realidade.

— Puxa, acho que sim — murmurou Sandy. — Mas é isso que eu não entendo! Meus pais e eu supostamente somos cristãos e nos amamos e estamos perto de Deus e tudo o mais, mas nada fazemos além de discutir sobre quem está certo e quem está errado.

Shawn riu e assentiu com a cabeça.

— Sim, sei como são essas coisas. Também já passei por isso.

— Muito bem, como foi que você resolveu o problema?

— Consegui resolver só a minha parte do problema. Não posso fazer outras pessoas mudarem de idéia, apenas eu mesmo. É um pouco difícil de explicar, mas se você estiver em sintonia com o Universo, umas pequenas peculiaridades que não estejam em sin­tonia não a incomodarão tanto. Essas coisas não passam de ilusão mental, afinal de contas. Assim que você deixar de dar ouvidos às mentiras que sua mente lhe tem pregado, verá claramente que Deus é grande bastante para todos e em todos. Ninguém pode colocá-lo dentro de um vidro e guardá-lo só para si, segundo seus próprios caprichos e idéias.

— Eu gostaria de encontrá-lo, de verdade. Shawn olhou-a, confortando-a, e tocou-lhe a mão.

— Ei, ele não é difícil de encontrar. Somos todos parte dele.

— O que quer dizer?

— Bem, é como eu disse, tudo no Universo todo se encaixa; é feito da mesma essência, do mesmo espírito, da mesma... energia. Certo? — Sandy deu de ombros e assentiu. — Bem, seja lá qual for o conceito que você tem de Deus, todos nós sabemos que existe algo: uma força, um princípio, uma energia, que mantém tudo junto. Se essa força é parte do Universo, então deve ser parte de nós.

Sandy não estava conseguindo entender.

— Tudo isso é bastante estranho para mim. Pertenço à antiga escola de pensamento judaico-cristã, como sabe.

— Então tudo o que já aprendeu é religião, certo? Ela pensou por um momento, então concordou.

— Certo.

— Bem, você entende, o problema com a religião, qualquer religião, é o de ser uma perspectiva basicamente limitada, apenas uma visão parcial da verdade total.

— Agora você está parecendo a Langstrat.

— Oh, acho que ela está certa. Quando se pensa no assunto por tempo suficiente, faz muito sentido. É como aquela história antiga a respeito dos cegos que encontraram o elefante.

— Sim, sim, já a ouvi contar essa história também.

— Bem, você está vendo? A perspectiva que cada homem tinha do elefante se limitava à parte que tocava, e como todos tocaram partes diferentes, não conseguiram chegar a um acordo sobre a verdadeira aparência do elefante. Brigaram por causa disso, da mesma forma que os religiosos de todos os tempos têm feito, e tudo o que preci­savam perceber era que o elefante era um único elefante. Não foi culpa do elefante eles não conseguirem chegar a um acordo. Eles não estavam em sintonia uns com os outros e com o elefante todo.

— Então, somos todos como aqueles cegos... Shawn assentiu firmemente com a cabeça.

— Somos como um bando de insetos rastejando pelo chão, sem jamais olhar para cima. Se a formiga falasse, você poderia perguntar-lhe se ela sabia o que é uma árvore, e se ela jamais tivesse saído da grama e na realidade chegado a subir numa árvore, provavelmente argumentaria com você que árvore não existe. Mas quem está errada? Quem realmente está cega? É assim que somos. Permitimos que nossa percepção limitada nos engane. Você gosta de Platão?

Sandy riu um pouco e sacudiu a cabeça.

— Estudei no trimestre passado, e acho que também não entendi nada.

— Pois olhe, ele teve a mesma iluminação. Calculou que devia existir uma realidade mais elevada, uma existência ideal, perfeita, da qual tudo o que vemos é cópia. É mais ou menos como se o que vemos com nossos sentidos limitados fosse tão limitado, tão imper­feito, tão fragmentado que não percebemos o Universo da forma como realmente é, todo perfeito, funcionando suavemente, tudo se ajus­tando, tudo da mesma essência. Pode-se dizer que a realidade, como a conhecemos, é apenas uma ilusão, um truque do nosso ego, da nossa mente, dos nossos desejos egoístas.

— Tudo isso parece muito distante da realidade.

— Mas é maravilhoso quando a pessoa consegue entrar nessa. Res­ponde a uma porção de perguntas e soluciona uma porção de pro­blemas.

— Se a pessoa conseguir entrar. Shawn inclinou-se para a frente.

— A pessoa não entra nela, Sandy. Ela já está dentro da pessoa. Pense nisso por um momento.

— Não sinto nada dentro de mim...

— E por que não? Adivinhe!

Ela girou um invisível botão de rádio com os dedos.

— Não estou sintonizada? Shawn riu com gosto.

— Certo! Certo! Ouça. O Universo não muda, mas nós podemos mudar; se não estamos ajustados com ele, se não estamos sintoni­zados, somos nós que estamos cegos, que estamos vivendo uma ilu­são. Veja, se sua vida está bagunçada, é realmente uma questão de como você vê as coisas.

Sandy caçoou.

— Ora, vamos! Não me venha dizer que tudo isso só existe na minha cabeça!

Shawn ergueu a mão em advertência.

— Ei, não caçoe até ter experimentado —. Olhou novamente para a luz do sol, as árvores verdes, os pássaros ocupados. — Escute só por um momento.

— Escutar o quê?

— A brisa. Os pássaros. Veja aquelas folhas verdes balançando ao vento lá em cima.

Por um instante, ficaram em silêncio. Shawn falou mansinho, quase num sussurro:

— Vamos, admita. Você ainda não sentiu uma espécie de... afi­nidade com as árvores, com os pássaros, com quase tudo? Você não acharia falta deles se não existissem? Você já falou com as plantas?

Sandy assentiu com a cabeça. Shawn estava certo nesse ponto.

— Ora, não resista porque o que está sentindo é um vislumbre do verdadeiro Universo, está-se sentindo unida a tudo. Tudo está ajus­tado, entrelaçado, entrosado. Ora, já sentiu isso antes, não sentiu?

Ela acenou que sim com a cabeça.

— Então, é isso que estou tentando mostrar-lhe; a verdade já está dentro de você. Você é parte dela. Você é parte de Deus. Apenas nunca soube disso. Você não se permitia saber.

Sandy ouvia os pássaros claramente agora, e o vento parecia quase melodioso mudando de tom e intensidade nos galhos das árvores. O sol era cálido, benevolente. De repente ela teve uma sensação muito forte de já haver estado naquele lugar antes, de ter conhecido essas árvores e esses pássaros. Eles estavam tentando entrar em contato com ela, conversar com ela.

Então percebeu que pela primeira vez em muitos meses sentia paz interior. Seu coração descansava. Não era uma paz completa, e ela não sabia se duraria, mas podia senti-la e sabia que desejava mais.

— Acho que estou sintonizando um pouquinho — disse. Shawn sorriu e apertou-lhe a mão encorajadoramente. Entrementes, em pé atrás de Sandy, como que a penteá-la com movimentos muito suaves, muito sutis de suas garras, Engano lhe alisava a cabeleira cor de fogo e lhe falava doces palavras de conforto à mente.

 Tal e suas tropas reuniram-se de novo na igrejinha, e desta vez estavam mais animados. Haviam provado as primeiras promessas da batalha; haviam conquistado uma vitória, embora pequena, na noite anterior. Acima de tudo, o número deles era maior. Os vinte e três originais haviam aumentado para quarenta e sete à medida que mais guerreiros poderosos se haviam reunido, chamados pelas orações do...

— O Remanescente! — disse Tal com uma nota de antecipação, correndo os olhos por uma lista preliminar que lhe foi apresentada.

Scion, um lutador raivo e sardento das Ilhas Britânicas, explicou o progresso da busca.

— Eles estão lã, Capitão, e em número mais do que suficiente, mas são estes os que com certeza estamos trazendo para participar.

Tal leu os nomes.

— John e Patrícia Coleman... Scion explicou:

— Eles estiveram aqui ontem à noite e falaram a favor do pregador. Agora estão mais a favor dele ainda e caem de joelhos com a maior facilidade. Eles estão trabalhando.

— Andy e June Forsythe.

— Ovelhas perdidas, pode-se dizer. Deixaram a Cristã Unida de Ashton por causa de pura fome. Vamos trazê-los à igreja amanhã. Têm um filho, Ron, que está buscando o Senhor. Um pouco extra­viado por enquanto, mas está começando a se entediar do que faz.

— E muitos outros, pelo que vejo — disse Tal com um sorriso, e entregou a lista a Guilo. — Designe alguns dos que chegaram recen­temente para cuidarem do pessoal desta lista. Tragam essa gente para a igreja. Quero que todos estejam orando.

Guilo tomou a lista e conferenciou com diversos dos novos guer­reiros.

— E os parentes, amigos em outros lugares? — perguntou Tal a Scion.

— Um número mais do que suficiente já está redimido e pronto para orar. Devo enviar emissários a fim de incumbi-los dessa res­ponsabilidade?

Tal meneou a cabeça.

— Não posso permitir que guerreiro algum se ausente por muito tempo. Em vez disso, envie mensageiros aos guardiões das cidades dessas pessoas, e incumbam os guardiões de fazê-las sentir a res­ponsabilidade de orar pelos seus queridos daqui.

— Feito.

Scion pôs mãos à obra, designando mensageiros que prontamente desapareceram no cumprimento de suas missões.

Guilo também havia enviado os seus guerreiros e estava excitado em ver a campanha em ação.

— Gosto da sensação que isto me dá, capitão.

— É um bom começo — disse Tal.

— E Rafar? Acha que ele desconfia da sua presença aqui?

— Nós dois nos conhecemos muito bem.

— Então ele estará esperando briga, e logo.

— Justamente o motivo pelo qual não vamos brigar, pelo menos por enquanto. Não até que a cobertura de orações seja suficiente e saibamos por que Rafar está aqui. Ele não é príncipe de cidadelas, mas de impérios, e jamais viria por uma tarefa abaixo do seu orgulho. O que já vimos é muito menos do que o inimigo planejou. Como vai o Sr. Hogan?

— Ouvi dizer que o demoniozinho Complacência foi banido por ter fracassado e que o Baal está furioso.

Tal riu-se.

— Hogan reviveu como uma semente em hibernação. Natã! Ar­mote! — Eles apareceram imediatamente. — Vocês têm mais guer­reiros agora. Levem quantos precisarem para cercar Marshall Hogan. Maiores números podem intimidar onde espadas não podem.

Guilo estava visivelmente indignado e olhou anelante a espada embainhada. Tal advertiu:

— Ainda não, bravo Guilo. Ainda não.

 Logo depois do telefonema que Marshall deu a Harmel, o telefone de Berenice quase pulou da parede. Marshall não lhe pediu, ordenou:

— Esteja no escritório às sete da noite, temos trabalho a fazer. Agora, às 7:10hs, o resto do escritório do Clarim estava deserto e escuro. Marshall e Berenice estavam na sala dos fundos, desencavando dos arquivos antigas edições. Ted Harmel havia sido muito meticuloso: a maior parte dos números antigos estavam arrumados cuidadosamente em enormes pastas.

— Quando Harmel foi expulso da cidade? — perguntou Marshall dando uma olhada rápida em diversas páginas antigas de uma edição passada.

— Cerca de um ano — respondeu Berenice, trazendo mais pastas para a grande mesa de trabalho. — O jornal operou com uma equipe reduzida durante meses antes de você comprá-lo. Edie, Tom, eu e alguns dos alunos de jornalismo da faculdade o mantivemos vivo. Algumas edições foram boas, outras saíram com cara de jornal es­tudantil.

— Como esta aqui?

Berenice viu a edição de agosto.

— Ficaria grata se você não a examinasse muito de perto. Marshall voltou as páginas de trás para a frente.

— Quero ver os jornais até a época em que Harmel foi embora.

— Está bem. Ted se foi no fim de julho. Aqui estão junho... maio... abril. Mas o que você está procurando?

— O motivo pelo qual o expulsaram.

— Você conhece a história, naturalmente.

— Brummel diz que ele molestou uma menina.

— Sim, Brummel diz um monte de coisas.

— Bem, molestou ou não?

— A menina disse que sim. Ela tinha mais ou menos doze anos, acho, filha de um dos diretores da faculdade.

— Qual deles?

Berenice sondou o cérebro, e finalmente forçou a lembrança a sair.

— Jarred. Adam Jarred. Acho que ele ainda está lá.

— Ele consta da lista que você conseguiu com Darr?

— Não. Mas talvez devesse constar. Ted conhecia Jarred muito bem. Os dois costumavam ir pescar juntos. Ele conhecia a filha, tinha freqüente acesso a ela, o que ajudou o caso contra ele.

— Então por que ele não foi processado?

— Acho que a coisa nunca chegou a esse ponto. Ele foi indiciado perante o juiz distrital...

— Baker?

— Sim, que consta da lista. O caso foi discutido no gabinete do juiz e aparentemente fizeram um acordo. Ted se foi alguns dias de­pois.

Marshall deu um tapa raivoso na mesa.

— Puxa vida, gostaria de não ter deixado aquele sujeito escapar. Você não me disse que estaria metendo o punho num ninho de vespas.

— Eu não sabia muita coisa a respeito.

Marshall continuou correndo os olhos pela página à sua frente; Berenice examinava a edição do mês anterior.

— Você disse que tudo isso explodiu em julho?

— Do meio para o fim de julho.

— O jornal quase nada diz sobre o assunto.

— É claro, Ted não ia publicar nada contra si mesmo, obviamente. Além disso, nem precisou; sua reputação estava em frangalhos, afinal de contas. Nossa circulação caiu criticamente. Diversas semanas se passaram sem pagamento algum.

— O que é isto?

Os olhos dos dois convergiram para uma carta ao redator num número de sexta-feira do começo de julho.

Marshall correu rapidamente os olhos por ela, murmurando en­quanto lia:

"Devo expressar minha indignação pelo tratamento injusto que este conselho diretor vem recebendo por parte da imprensa local... Os recentes artigos publicados pelo Clarim de Ashton constituem nada menos do que impudente mau uso da imprensa, e esperamos que nosso redator local seja profissional o bastante para averiguar os fatos de agora em diante antes de imprimir quaisquer outras in­sinuações infundadas..."

— Sim! — animou-se Berenice, recordando-se. — Essa foi uma carta de Eugene Baylor —. Então ela bateu as mãos nos dois lados do rosto e exclamou:—Oh...! Aqueles artigos! — Berenice começou a voltar apressadamente os números contidos na pasta de junho. — Sim, aqui está um.

A manchete dizia: "STRACHAN PEDE AUDITORIA". Marshall leu a primeira sentença: "A despeito de contínua oposição do conselho diretor da Faculdade Whitmore, o deão da faculdade Eldon Strachan pediu hoje uma auditoria de todas as contas e investimentos da Faculdade Whitmore, expressando ainda sua preocupação quanto a recentes alegações de má administração de fundos."

Os olhos de Berenice rolaram para cima e fitaram os céus enquanto ela dizia:

— Barbaridade, isto pode ser mais do que um ninho de vespas! Marshall leu um pouco adiante: "Strachan afirmou haver prova mais do que adequada para justificar uma auditoria mesmo que seja cara e prematura, segundo o conselho diretor ainda mantém." Berenice explicou:

— Sabe, não prestei muita atenção quando isso tudo estava acon­tecendo. Ted era um tipo agressivo, já havia irritado muita gente antes, e isto parecia apenas outra coisa política de rotina. Eu não passava de uma repórter na inócua equipe dos assuntos de interesse humano... que me importava tudo isto?

— Então — disse Marshall — o deão da faculdade meteu-se em apuros com os diretores. Parece ter sido um verdadeiro feudo.

— Ted era muito amigo de Eldon Strachan. Ele tomou partido e os diretores não gostaram. Aqui está outro, de apenas uma semana mais tarde.

Marshall leu: "DIRETOR MALHA STRACHAN. Eugene Baylor, membro do Conselho Diretor e tesoureiro geral da Faculdade Whit­more, acusou hoje o Deão Eldon Strachan de malicioso ataque po­lítico, afirmando que Strachan está usando métodos deploráveis e antiéticos a fim de promover sua própria dinastia dentro da administração da faculdade." Mais do que um arrufo inofensivo entre amigos.

— Pelo que sei, o negócio ficou feio, bem feio. E Ted provavelmente meteu o nariz um pouco além do que devia. Começou a levar chumbo cruzado.

— Daí a carta irritada de Eugene Baylor.

— Além de pressão política, com certeza. Strachan e Ted fizeram muitas reuniões e Ted estava descobrindo muita coisa, talvez demais.

— Mas você não tem detalhes...

Berenice ergueu as mãos aos céus e meneou a cabeça.

— Temos estes artigos, o número do telefone de Ted e a lista.

— É — disse Marshall, pensativo — a lista. Uma porção dos di­retores estão nela.

— Além do Delegado de polícia e do juiz distrital que arruinou Ted.

— E que fim levou Strachan?

— Demitido.

Berenice repassou outras antigas edições do Clarim. Uma página solta saiu voando e caiu ao chão. Marshall a apanhou. Algo atraiu-lhe a atenção e ele correu os olhos pela página até que Berenice encontrou o que estava procurando, um artigo publicado em fins de junho.

— Sim, aqui está a reportagem — disse ela. — "STRACHAN DE­MITIDO. Citando conflitos de interesse e incompetência profissional como motivos, o conselho diretor da Faculdade Whitmore exigiu hoje por unanimidade o pedido de demissão do Deão Eldon Stra­chan."

— Um artigo não muito longo — comentou Marshall.

— Ted publicou porque tinha de fazê-lo, mas é óbvio que evitou dar qualquer detalhe injurioso. Ele acreditava firmemente que a causa de Strachan era justa.

Marshall continuou a repassar as páginas.

— O que é isto aqui? "WHITMORE PODE ESTAR DEVENDO MI­LHÕES, DIZ STRACHAN" —. Marshall leu o artigo cuidadosamente. — Espere um pouco, ele diz que a faculdade pode estar em grandes dificuldades, mas não diz como sabe disso.

— O negócio foi saindo um pedacinho aqui, outro ali. Nunca che­gamos a conseguir toda a informação até Strachan e Ted serem si­lenciados.

— Mas milhões... estamos falando em dinheiro grosso.

— Mas você vê como tudo se encaixa?

— É. Os diretores, o juiz, o Delegado de polícia, Young, o tesou­reiro, e sabe lá quem mais, todos ligados a Langstrat e muito quietos a esse respeito.

— E não se esqueça de Ted Harmel.

— É, ele também não fala do assunto. Isto é, não fala mesmo. O cara está mais assustado do que peru em véspera de Natal. Mas ele não foi um membro muito fiel do grupo, se tomou o partido de Strachan contra os diretores.

— Foi por isso que o riscaram do mapa, por assim dizer, junta­mente com Strachan.

— Talvez. Por enquanto, temos uma teoria que, por sinal, está bem confusa.

— Mas temos uma teoria, e a minha ida para a cadeia segue o padrão.

— Certinho demais por enquanto — pensou Marshall em voz alta. — Precisamos estar cientes do que estamos dizendo. Estamos falando de corrupção política, abuso de processo, extorsão, quem sabe o que mais? É melhor estarmos bem seguros do que estamos fazendo.

— O que era aquela página ali que caiu?

— Hein?

— Aquela que você pegou.

— Hum. Estava fora de lugar. A data é antiga, de janeiro. Berenice apanhou a pasta apropriada na prateleira do arquivo.

— Não quero que os arquivos se misturem — ei, por que você a dobrou toda?

Marshall deu levemente de ombros, fitou-a com muita brandura e desdobrou a página.

— Contém um artigo a respeito da sua irmã — disse ele.

Ela apanhou a página que ele segurava e olhou o artigo noticioso. O título dizia "A MORTE DE KRUEGER CLASSIFICADA DE SUI­CÍDIO". Ela abaixou rapidamente a folha.

— Achei que você não iria querer lembrar-se — disse ele.

— Eu já a vi antes — disse ela abruptamente. — Tenho uma cópia lá em casa.

— Eu acabei de ler o artigo.

— Eu sei.

Ela tirou outra pasta, abrindo-a sobre a mesa.

— Marshall — disse ela — é melhor você ficar sabendo tudo a esse respeito. O assunto pode surgir novamente. O caso não está resolvido em minha cabeça, e tem sido uma batalha muito difícil para mim.

Marshall suspirou e disse:

— Foi você quem começou isto, não se esqueça.

Berenice manteve os lábios apertados e o corpo reto. Estava ten­tando ser uma máquina desinteressada.

Ela apontou para a primeira história, com data de meados de ja­neiro: "MORTE BRUTAL NO CAMPUS".

Marshall leu em silêncio. Não estava preparado para os horríveis detalhes.

— A história não está totalmente correta — comentou Berenice em tom de voz muito velado. — Eles não encontraram Pat em seu próprio dormitório; ela estava num quarto desocupado mais adiante no cor­redor. Parece que algumas das garotas usavam esse quarto para fi­carem sozinhas quando queriam estudar e havia muito barulho no andar. Ninguém sabia onde ela estava até que alguém viu o sangue escorrendo por baixo da porta... — A voz falhou e ela fechou com força a boca.

Patrícia Elizabeth Krueger, de dezenove anos, fora encontrada em um dormitório, nua e morta, a garganta cortada. Não havia sinais de luta, a faculdade toda estava em estado de choque, não havia tes­temunhas.

Berenice achou outra página e outra manchete: "NENHUM IN­DÍCIO NA MORTE DE KRUEGER". Marshall leu rapidamente, sen­tindo cada vez mais estar invadindo uma área muito sensível que não lhe dizia respeito. O artigo declarava que nenhuma testemunha se havia apresentado, ninguém tinha visto ou ouvido coisa alguma, não havia nenhum indício de quem o assaltante poderia ser.

— E você leu o último — disse Berenice. — Eles finalmente clas­sificaram de suicídio. Decidiram que minha irmã se havia despido e cortado a própria garganta.

Marshall mostrou-se incrédulo.

— E ficou por isso mesmo?

— Ficou por isso mesmo.

Marshall fechou a pasta de mansinho. Ele nunca vira Berenice parecer tão vulnerável. A destemida repórter que não se deixava intimidar em uma cela cheia de prostitutas estava com uma parte de si ainda desnuda e ferida além de qualquer bálsamo. Ele colocou gentilmente a mão nos ombros da moça.

— Sinto muito — disse.

— É por isso que eu vim para cá, como você sabe —. Ela enxugou os olhos com os dedos e apanhou um lenço de papel para assoar o nariz. — Eu... simplesmente não consegui deixar as coisas como estavam. Eu conhecia Pat. Conhecia-a melhor do que qualquer outra pessoa. Ela não era do tipo de gente que faz uma coisa dessas. Era feliz, bem ajustada, gostava da faculdade. Pelas cartas, parecia estar bem.

— Por quê... por que não guardamos tudo e damos a noite por encerrada?

Berenice fez que não ouviu a sugestão.

— Examinei a disposição do dormitório, o quarto onde ela morreu, a lista dos nomes de todas as moças que moravam no prédio; conversei com todas elas. Verifiquei os laudos policiais, o laudo do legista, examinei todos os pertences de Pat. Tentei encontrar a com­panheira de quarto de Pat, mas ela já tinha ido embora. Ainda não consigo me lembrar do seu nome. Vi-a uma vez apenas quando fui lá fazer uma visita.

— Afinal, resolvi ficar por aqui, arrumar um emprego, esperar e ver o que acontecia. Eu tinha certa experiência em jornalismo, não foi difícil conseguir o emprego.

Marshall colocou o braço em torno dos ombros da moça.

— Bem, ouça. Eu a ajudarei de qualquer maneira que puder. Não precisa carregar todo esse negócio sozinha.

Ela se descontraiu um pouco, recostando-se contra ele apenas o suficiente para mostrar que sentia o abraço.

— Não quero amolar.

— Você não está amolando. Escute, assim que se sentir preparada, podemos repassar tudo, examinar tudo de novo. Pode haver ainda alguma pista em algum canto.

Berenice sacudiu os punhos e choramingou:

— Se ao menos eu conseguisse ser mais objetiva!

Marshall envolveu-a com um risinho gentil, confortante, e um aperto amistoso.

— Bem, talvez eu possa cuidar dessa parte. Você está-se saindo bem, Bernie. Agüente um pouco mais.

Ela era uma boa menina, pensou Marshall e, tanto quanto conse­guia recordar-se, essa fora a primeira vez que a tocara.