Tal, Signa, e as outras sentinelas viram a explosão de onde se encontravam.
Com gritos e guinchos de raiva, os demônios se espalharam por toda a parte,
explodindo pelo teto e laterais da igreja como estilhaços, e irradiando em
todas as direções sobre a cidade. Seus gritos formaram um alto e ressonante
estrondear de fúria selvagem que repercutiu por toda a cidade como milhares de
lúgubres apitos de fábrica, sirenas e buzinas.
—
Eles farão estrago violento esta noite — disse Tal.
Mota, Chimon e Guilo estavam presentes para prestar
relatório.
—
Por dois votos — disse Mota. Tal sorriu e disse:
—
Muito bem, então.
—
Mas Lou Stanley! — exclamou Chimon. — Era realmente Lou Stanley?
Tal entendeu a inferência.
—
Sim, aquele era o Sr. Stanley. Não saí daqui desde que trouxe Edith Duster.
—
Vejo que o Espírito tem trabalhado! — riu-se Guilo.
—
Vamos levar Edith a salvo para casa e montar guarda em torno dela. Todos a
postos. Haverá espíritos irados sobre a cidade esta noite.
Aquela noite a polícia esteve ocupada. Brigas estouraram nos bares
locais, lemas foram pichados nas paredes do tribunal, carros foram roubados e,
por molecagem, usados para rodarem no gramado e nas flores do parque.
Os Senhores estavam irados! "Fracassou, fracassou,
fracassou, fracassou", as palavras martelavam-lhe o cérebro e desfilavam diante
dos seus olhos. "Brummel fracassou, você fracassou, ele morrerá, você
morrerá..."
Segurava ela realmente uma faca nas mãos ou isso era também uma
visão das esferas mais elevadas? Sentia um desejo, um impulso terrivelmente
forte de livrar-se daquele tormento, de se libertar da carapaça do corpo, da
prisão de carne que a retinha.
"Junte-se a nós, junte-se a nós, junte-se a nós", diziam as
vozes. Ela apalpou a ponta da lâmina, e sangue escorreu-lhe pelo dedo.
O telefone tocava. O tempo parou. O quarto registrou-se
em suas retinas. O telefone tocava. Ela estava no quarto. Havia sangue no chão. O telefone tocava. A
faca caiu-lhe das mãos. Ela podia ouvir vozes, vozes iradas. O telefone tocava.
Encontrou-se de joelhos no chão do quarto. Havia cortado
o dedo. O telefone ainda tocava. Ela gritou alô, mas ele continuou a tocar.
"Não lhes falharei", disse ela aos seus visitantes.
"Deixem-me. Não lhes falharei."
O telefone tocava.
Alf Brummel estava sentado em casa, ouvindo o telefone
tocar no outro lado. Juleen devia estar fora. Ele desligou, aliviado, embora
apenas temporariamente. Ela não ficaria contente com o resultado da votação. Outro atraso,
ainda outro atraso no Plano. Ele sabia que não podia evitá-la, que ela
descobriria, que ele seria confrontado e censurado pelos outros.
Ele se atirou sobre a cama e contemplou a idéia de demitir-se, fugir,
suicidar-se.
Marshall estava sentado na cozinha, à mesa cheia de material de
anúncios e uma lista dos novos e antigos clientes; o Clarim ainda estava sem
secretária.
A porta da frente abriu-se e Kate entrou.
—
Preciso de uma mãozinha!
Sim, o inevitável descarregar de compras da mercearia.
—
Sandy — berrou Marshall pela porta dos fundos — é a nossa vez! — Com o passar
dos anos a família havia inventado um sistema bem funcional de separar, manejar
e guardar as compras.
—
Marshall — disse Kate, passando legumes de um saco para ele na geladeira — você
ainda está trabalhando nesse material? É sábado!
—
Já está quase terminado. Detesto ver coisas empilhadas por cima de mim. Como
estão Joe e a turma?
Kate deteve um maço de salsão em plena transferência e disse:
—
Sabe uma coisa? Joe se foi. Ele vendeu a mercearia e mudou-se, e nem fiquei
sabendo disso.
—
Nossa. As coisas acontecem depressa por aqui. E quando foi que ele se mudou?
—
Não sei. Ninguém me disse. Para falar a verdade, acho que não gosto do novo
proprietário.
—
E este produto de limpeza aqui?
—
Esse vai para debaixo da pia.
O produto foi para debaixo da pia.
—
Perguntei àquele sujeito acerca de Joe e Angelina e por que tinham vendido a
mercearia e se tinham mudado e para onde se haviam mudado e ele não me informou
nada, disse apenas que não sabia.
—
Esse é o dono da mercearia? Como se chama?
—
Não sei. Nem isso ele quis dizer.
—
Bem, ele fala? Conhece a nossa língua?
—
O bastante para cobrar as compras e tomar o dinheiro dos fregueses, e é só.
Agora podemos tirar todo esse negócio de cima da mesa?
Marshall começou a reunir a papelada ante a iminente invasão de
lataria e verduras. Kate continuou:
—
Acho que me acostumarei com a situação, mas por alguns instantes pensei ter
entrado na mercearia errada. Não reconheci a ninguém. Pode mesmo ser que todos
os empregados sejam recentes.
Sandy falou pela primeira vez.
—
Algo esquisito está acontecendo nesta cidade. Marshall perguntou:
—
É mesmo?
Sandy não deu continuidade ao assunto. Marshall tentou arrancar mais
coisas dela.
— Bem,
o que você acha que é?
—
Ah, nada, nada. Apenas uma impressão minha. As pessoas estão começando
a agir de um modo esquisito. Acho que estamos sendo invadidos por alienígenas.
Marshall não insistiu.
Guardadas as compras, Sandy voltou aos estudos e Kate
preparou-se para trabalhar no jardim. Marshall tinha um telefonema a dar. A menção de alienígenas
estranhos que invadiam a cidade mexeu com sua memória e também com seu faro de
repórter. Talvez a Langstrat não fosse alienígena, mas certamente era esquisita.
Ele se sentou no sofá da sala de estar e tirou da carteira a tirinha de
papel com o número do telefone de Ted Harmel. Uma ensolarada manhã de sábado
seria uma hora estranha para encontrar alguém dentro de casa, mas Marshall
resolveu tentar.
O telefone do outro lado da linha tocou diversas vezes
e então uma
voz masculina atendeu.
—
Alô?
—
Alô, Ted Harmel?
—
Sim, quem fala?
—
Aqui é Marshall Hogan, o novo redator do Clarim.
—
Oh, ah... — Harmel esperou que Marshall continuasse.
—
Bem, olhe, você conhece a Berenice Krueger, certo? Ela está trabalhando para
mim.
—
Então ela ainda está por aí? Descobriu alguma coisa a respeito da irmã?
—
Hum, não sei muito a respeito, ela nunca me contou.
—
E então, como vai o jornal?
Eles conversaram alguns minutos a respeito do Clarim,
do escritório,
da circulação, o que podia ter acontecido com o fio da cafeteira elétrica.
Harmel pareceu particularmente preocupado ao saber que Edie se havia demitido.
—
O casamento dela se desfez — disse-lhe Marshall. — Foi uma surpresa total para
mim. Cheguei tarde demais para saber o que estava acontecendo.
—
Hum... é... — Harmel estava pensando um bocado do outro lado.
Mantenha a conversa fluindo, Hogan.
—
É, bem, tenho uma filha que é caloura na faculdade.
—
Não diga.
—
É, sim, fazendo os pré-requisitos, vencendo as barreiras iniciais. Está
gostando.
—
Bom para ela.
Harmel estava certamente sendo paciente.
—
Sabe, Sandy tem uma professora de psicologia que achei muito interessante.
—
Langstrat.
—
É sim, ela mesma. Um bocado de idéias diferentes.
—
Aposto que sim.
—
Você sabe alguma coisa a respeito dela? Harmel fez uma pausa, suspirou, e então
perguntou:
—
Bem, o que você deseja saber?
—
Qual o propósito dela, afinal de contas? Sandy está trazendo uma porção de
idéias esquisitas para casa...
Harmel teve dificuldade em responder.
—
É... ah... misticismo oriental, arte religiosa antiga. Ela está nessa de, você
sabe, meditação, percepção mais elevada... ah... união com o Universo. Não sei
se qualquer coisa nisso tudo faz sentido para você.
—
Não muito. Mas parece que ela consegue espalhar as suas idéias, não?
—
O que quer dizer com isso?
—
Você sabe, ela se reúne com algumas pessoas regularmente; Alf Brummel e, ah,
quem mais? Pinckston...
—
Dolores Pinckston?
—
Sim, do conselho diretor. Dwight Brandon, Eugene Baylor... Harmel interrompeu
abruptamente.
—
O que você deseja saber?
—
Bem, segundo consta, você esteve envolvido na situação...
—
Não, nada disso.
—
Você não chegou a ter sessões com ela? Houve uma longa pausa.
— Quem
lhe disse isso?
—
Oh, nós... ficamos sabendo.
Outra pausa longa. Harmel suspirou pelo nariz.
—
Escute — perguntou ele — o que mais você quer saber?
—
Não muito mais. É que isso tudo me está cheirando a uma boa história. Você sabe
como é.
Harmel estava-se debatendo, furioso, tateando à procura de palavras.
—
Sim, eu sei como é. Mas você está errado desta vez, totalmente errado!
Outra pausa, outro debate.
—
Oh, que coisa! gostaria que não me tivesse ligado.
—
Ei, olhe, nós dois somos jornalistas...
—
Não! Você é jornalista! Eu estou fora. Tenho certeza de que sabe tudo a meu
respeito.
—
Eu sei o seu nome, seu número, e que você foi dono do Clarim.
—
Está bem, mas deixemos as coisas como estão. Ainda tenho respeito pela vocação.
Não quero vê-lo arruinado.
Marshall não queria perder o peixe.
—
Escute, não vá me deixar no escuro!
—
Não estou tentando deixá-lo no escuro. Há algumas coisas acerca das quais
simplesmente não posso falar.
—
Claro, entendo. Não tem problema.
—
Não, você não entende. Agora, escute o que vou dizer! Não sei o que descobriu,
mas seja lá o que for, enterre. Faça outra coisa. Vá escrever a respeito de
plantar árvores nas escolas, qualquer coisa bem inócua, mas não se meta em
encrencas.
—
De que você está falando?
—
E pare de tentar arrancar informação de mim! O que lhe estou dando é tudo o que
vai conseguir, e é melhor aproveitar bem. Estou-lhe dizendo, esqueça-se da
Langstrat, esqueça-se de qualquer coisa que tenha ouvido a respeito dela. Sei
que você é repórter, e por isso sei que vai sair por aí e fazer justamente o
oposto do que lhe estou dizendo, mas deixe-me avisá-lo enquanto é tempo: Não
faça isso.
Hogan não respondeu.
—
Hogan, está-me ouvindo?
—
Como é que posso abandonar isso agora?
—
Você tem esposa, filha? Pense nelas. Pense em si mesmo. Se não, vai perder tudo
como todos os outros perderam.
—
O que quer dizer, todos os outros?
—
Não sei de nada, não conheço a Langstrat, não conheço você, não moro mais aqui.
Ponto final.
—
Ted, você está metido em alguma encrenca?
—
Esqueça-se!
E desligou. Marshall bateu o telefone e, sentado,
deixou que suas idéias disparassem. Esqueça-se, dissera Harmel. Esqueça-se. Nunca!
Hank e Mary estavam sentados à pequena mesa de refeições
perto da grande janela que dava para a frente do prédio. Vovó Duster usava um
bule muito antigo, muito gracioso ao servir o chá em xícaras igualmente
graciosas. Ela estava bem vestida, quase formalmente, como sempre fazia ao
receber visitas.
—
Não — disse quando afinal se sentou, a mesa do chá matutino arrumada
corretamente, os doces folheados no lugar. — Não creio que os propósitos de
Deus serão frustrados por muito tempo. Ele tem a sua própria maneira de ajudar o
seu povo a passar pelas dificuldades. Hank concordou, mas debilmente.
—
Imagino que sim... — Mary segurava-lhe a mão. Vovó permaneceu firme.
—
Eu sei que sim, Henry Busche. O fato de você estar aqui não é um erro;
discordo veementemente dessa idéia. Se não fosse para você estar aqui, o Senhor
não teria feito tudo o que ele tem feito através do seu ministério.
Mary ofereceu uma informação.
—
Ele se sente um pouco deprimido por causa da votação. Vovó sorriu amorosamente
e fitou os olhos de Hank.
—
Acho que o Senhor está forçando um reavivamento naquela igreja, mas é como a
virada da maré: antes que a maré possa voltar, precisa primeiro deter toda
aquela água que se escoa. Dê tempo à igreja para virar. Espere oposição, espere
mesmo a perda de algumas pessoas, mas a direção mudará depois da calmaria.
Apenas dê tempo. De uma coisa eu sei: nada me impediria de ter ido à reunião
ontem à noite. Eu me estava sentindo muito mal, ataque de Satanás, acho, mas
foi o Senhor quem me fez sair. Bem na hora da reunião, senti os seus braços me
erguerem e coloquei o casaco e fui, e cheguei na hora certa. Não sei se teria
ido tão longe assim para comprar alimento. Foi o Senhor, disso eu sei. Só sinto
ter tido apenas um voto.
—
Então, de quem a senhora acha que foi o outro voto? — perguntou Hank.
Mary acrescentou depressa:
—
Não poderia ter sido de Lou Stanley. Vovó sorriu.
—
Ora, não diga isso. A gente nunca sabe o que o Senhor pode estar fazendo. Mas
vocês estão curiosos, não estão?
—
Estou muito curioso — disse Hank, e agora também sorria.
—
Bem, talvez você venha a saber, e também talvez nunca saiba. Mas está tudo nas
mãos do Senhor, e você também está. Deixe-me esquentar o seu chá.
—
A igreja não tem possibilidade de sobreviver se metade da congregação deixar
de apoiar, e não consigo imaginar as pessoas dando apoio a um pastor que não
desejam.
—
Oh, mas tenho sonhado com anjos ultimamente —. Vovó sempre falava com
naturalidade sobre essas coisas. — Não é sempre que sonho com anjos, mas já os
vi antes, e sempre quando um grande progresso estava prestes a ocorrer em prol
do reino de Deus. Sinto uma sensação no espírito de que algo está realmente
despertando aqui. Você não tem sentido o mesmo?
Hank e Mary se entreolharam para ver qual deles devia
falar primeiro. Então Hank contou à anciã tudo a respeito da batalha da outra noite, e o peso
que vinha sentindo com relação à cidade ultimamente. Mary intercalava coisas de
que se lembrava sempre que lhe ocorriam. Vovó ouvia com grande fascinação,
reagindo em momentos-chave com "Nossa", "Bem, Deus seja
louvado" e "Puxa... !"
—
Sim — disse ela afinal — sim, isso tudo faz muito sentido para mim. Vocês
sabem, tive uma experiência certa noite não faz muito tempo, em pé bem ao lado
daquela janela —. Ela apontou para a janela da frente que dava para o jardim. —
Eu estava pondo as coisas em ordem na casa, aprontando-me para dormir e, ao
passar por aquela janela, olhei os tetos e as luzes dos postes e de repente
fiquei tonta. Precisei sentar-me para não cair. E eu não sofro de tonturas. A
única vez que isso me aconteceu foi na China. Meu marido e eu estávamos
visitando a casa de uma senhora médium espírita, e eu sabia que ela nos odiava
e acho que estava tentando botar uma maldição em nós. Do lado de fora da porta
tive a mesma sensação de tontura, coisa de que jamais me esquecerei. O que
senti outra noite foi igual àquela vez na China.
—
O que a senhora fez? — perguntou Mary.
—
Oh, orei. Disse apenas: "Demônio, retire-se em nome de Jesus!", e ele
se foi.
Hank perguntou:
—
Então, a senhora acha que foi um demônio?
—
Oh, sim. Deus está-se movimentando e Satanás não gosta disso. Realmente
acredito que espíritos malignos estejam por aí.
—
Mas a senhora não acha que há mais do que o normal? Quero dizer, fui cristão a
vida toda e jamais me defrontei com algo que se assemelhasse ao que sinto
agora.
O rosto da velha senhora ficou pensativo.
—
"Mas esta casta não se expele senão por meio de oração e jejum." Precisamos
orar, e precisamos fazer as outras pessoas orarem. É isso que os anjos me
dizem.
Mary estava intrigada.
—
Os anjos dos seus sonhos? — Vovó assentiu com a cabeça. — Que aparência têm?
—
Oh, de gente, mas diferentes de todo o mundo. São grandes, muito bonitos,
roupas coloridas, grandes espadas ao lado, asas enormes, muito brilhantes. Um
deles, que apareceu ontem à noite, fez-me lembrar meu filho; era alto, loiro,
parecia escandinavo —. Ela olhou para Hank. — Ele me disse que orasse por você,
e você também apareceu no sonho. Eu podia vê-lo atrás do púlpito, pregando, e
ele estava atrás de você com as asas abertas, cobrindo-o como um palio, e olhou
para mim e disse: "Ore por este homem."
—
Eu não sabia que a senhora estava orando por mim — disse Hank.
—
Bem, está na hora de outras pessoas começarem a orar também. Acho que a maré
está virando, Hank, e agora você precisa de fiéis verdadeiros, visionários
verdadeiros que se ponham ao seu lado e orem por esta cidade. Precisamos orar
para que o Senhor os arrebanhe.
Foi muito natural então darem-se as mãos em louvor ao Senhor e ações de
graça pelo primeiro estímulo real que aparecera em muito tempo. Hank fez uma
oração de agradecimento e mal pôde terminá-la pois suas emoções se avolumavam
dentro dele. Mary deu graças não só pela força recebida mas também por Hank
ter-se animado mais.
A seguir, Edith Duster, que já havia participado de
guerras espirituais, que já havia ganho batalhas em solos estrangeiros,
agarrou com força as mãos daquele jovem casal de ministros e orou.
—
Senhor Deus — disse ela, e o calor do Espírito Santo fluiu através deles — ergo
neste momento um cerco em torno deste jovem casal, e ato os espíritos em nome
de Jesus. Satanás, quaisquer que sejam os seus planos para esta cidade, eu te
repreendo em nome de Jesus, e eu te ato, e te expulso!
Os olhos de Rafar voltaram-se rápidos na direção do ruído
que interrompera o que ele estava dizendo e viu duas espadas caídas das mãos
dos donos. Os dois demônios, guerreiros temíveis, estavam pasmados. Ambos se
abaixaram depressa para apanhar as armas, curvando-se, desculpando-se, pedindo
perdão.
Plaft! O pé de Rafar caiu sobre uma espada, e a sua própria
enorme espada prendeu a outra ao chão. Os dois guerreiros, aturdidos e
aterrorizados, afastaram-se.
—
Por favor, perdoe-me, meu príncipe! — disse um deles.
—
Sim, por favor, perdão! — disse o outro. — Isso jamais aconteceu antes...
—
Silêncio, vocês dois! — trovejou Rafar.
Os dois guerreiros se prepararam para algum terrível castigo; seus atemorizados
olhos amarelados espiavam por detrás de asas negras abertas no intuito de
protegê-los, como se houvesse alguma forma de proteção contra a ira de Baal
Rafar.
Mas Rafar não os atacou. Ainda não. Parecia mais interessado nas
espadas caídas; quedou-se a fitá-las, a testa enrugada e os grandes olhos
amarelados quase fechados. Deu lenta volta em torno das espadas, estranhamente
incomodado de uma forma que os guerreiros jamais tinham visto antes.
—
Annhhh... — Um grunhido baixo, gorgolejante, subiu-lhe da garganta enquanto as
narinas expeliam vapor amarelo.
Devagar, ele colocou um joelho em terra e pegou uma
espada. Em seu punho enorme, a arma parecia um brinquedo. Ele olhou para a
espada, olhou para o demônio que a tinha deixado cair, depois para o espaço, o rosto
retorcido registrando um ódio ardente que veio subindo lentamente do seu
íntimo.
—
Tal — murmurou.
Então, como um vulcão em erupção lenta, ele se colocou de pé, a
ira crescendo até que, de súbito, com um rugido que sacudiu o aposento e
aterrorizou todos os presentes, ele explodiu e atirou a espada através da
parede do porão, a qual passou pela terra que circundava o prédio onde se
encontravam, atravessou o ar, atravessou diversos outros prédios do campus da
faculdade, e foi chegar ao céu onde virou de ponta-cabeça num longo arco de
diversos quilômetros.
Depois da primeira explosão, ele agarrou o dono da espada e, ordenando: Vá
buscá-la! arremessou-o como se fosse uma lança pela mesma trajetória.
Agarrou a outra espada e a arremessou contra o outro demônio que se desviou a tempo
de salvar a pele. Depois, esse demônio também voou pelos ares atrás da própria
espada.
Para alguns dos presentes, a palavra "Tal"
nada significava, mas podiam perceber pelas caras e pelo murchar das posturas
dos outros que tinha de significar algo terrível.
Rafar começou a agitar-se violentamente pelo aposento, rosnando
frases ininteligíveis e agitando a espada contra inimigos invisíveis. Os outros
lhe deram tempo de desabafar antes de se atreverem a perguntar qualquer coisa.
Lucius finalmente se adiantou e curvou-se, por mais que detestasse fazê-lo.
—
Estamos a seu serviço, Baal Rafar. Pode dizer-nos quem é esse Tal?
Rafar voltou-se enfurecido, as asas abrindo-se como o
estrépito de
um trovão, e os olhos em brasa.
—
Quem é esse Tal? — berrou ele, e cada demônio presente caiu com o rosto em
terra. — Quem é esse Tal, esse guerreiro, esse Capitão dos Exércitos
Celestiais, esse desprezível, intrigante rival dos rivais? Quem é esse Tal?
Complacência, por acaso, estava ao alcance de Rafar. Com a enorme
mão ao redor do pescoço mirrado de Complacência, o príncipe o arrancou como uma
frágil planta daninha e o segurou bem alto.
—
Você — rosnou Rafar entre uma nuvem de enxofre e vapor — fracassou por causa
desse Tal! — Complacência só conseguia tremer, mudo de terror. — Hogan
tornou-se um cão de caça, farejando e
latindo em nosso encalço, e estou até às tampas com você e suas desculpas
lamurientas!
A enorme espada rebrilhou num arco amplo, rubro,
rasgando uma fenda no espaço que se tornou um abismo sem fundo no qual toda a luz
parecia esvair-se como água.
Os olhos de Complacência esbugalharam-se de puro terror, e ele deu seu
último berro na terra.
—
Não, Baal, nããããão!
Com um poderoso impulso do braço, Rafar lançou Complacência
de cabeça no abismo. O pequeno demônio revirou, caiu, e continuou caindo, seus
gritos cada vez mais fracos até sumirem de todo. Rafar alisou a cratera no
espaço com a parte chata da lamina, fechando-a, e o aposento voltou a ser
exatamente como antes.
Nesse instante, os dois guerreiros retornaram com as
espadas. Ele os agarrou pelas asas e com um safanão colocou-os juntos à sua frente.
—
De pé, todos vocês! — berrou ele aos outros. Todos obedeceram prontamente.
Agora ele segurava os dois demônios no ar como uma exibição.
—
Quem é esse Tal? É um estrategista que pode fazer guerreiros derrubarem as
espadas! — Dito isso, ele arremessou os dois contra o grupo, esparramando
diversos deles pelo chão. Eles se levantaram tão depressa quanto puderam. — Quem
é esse Tal? É um guerreiro sutil que conhece suas limitações, que nunca entra
numa batalha que não pode vencer, que conhece bem demais o poder dos santos de
Deus, uma lição que todos vocês fariam bem em aprender!
Rafar segurou a espada num punho que tremia de raiva,
acenando com ela para reforçar suas palavras.
—
Eu tinha certeza de que ele viria. Miguel jamais teria mandado alguém menor do
que Tal para me enfrentar. Agora Hogan despertou, e está claro o motivo pelo
qual ele foi trazido a Ashton para começo de história; Henry Busche ainda
continua e a Igreja da Comunidade de Ashton não caiu, mas está firme como um
baluarte contra nós; agora os guerreiros estão derrubando as espadas como uns
tolos desajeitados!
—
E tudo por causa desse... Tal! É esse o jeito de Tal. Sua força não está na
própria espada, mas nos santos de Deus. Em algum lugar, alguém está orando!
Essas palavras trouxeram um calafrio por todo o grupo.
Rafar continuou a andar, pensando e rosnando.
—
Sim, sim, Busche e Hogan foram escolhidos a dedo; o plano de Tal deve girar em
torno deles. Se eles caírem, o plano de Tal cai. Não temos muito tempo.
Rafar escolheu um demônio de aparência viscosa e perguntou:
—
Você já preparou a armadilha para Busche?
—
Oh, sim, Baal Rafar — disse o demônio, sem poder deixar de rir com prazer da
própria esperteza.
—
Assegure-se de que seja sutil. Lembre-se, nenhum ataque frontal funcionará.
—
Pode deixar comigo.
—
E o que tem sido feito para destruir Marshall Hogan? Contenda adiantou-se.
—
Estamos tentando destruir-lhe a família. Ele depende muito da força que a
esposa lhe dá. Se esse apoio fosse removido...
—
Faça isso, de qualquer jeito que puder.
—
Sim, meu príncipe.
—
E não negligenciemos ainda outros meios. Hogan pode ser letal, e Krueger a
mesma coisa, mas poderiam ser manipulados para comprometerem um ao outro... —
Rafar designou a alguns demônios a tarefa de sondarem essa possibilidade. — E a
filha de Hogan?
Engano adiantou-se.
— Essa já está em nossas mãos.