—
Sim — disse Carmem — aqui está a minha anotação do contador da fita. Achei que
ela não se havia adiantado muito para um período tão grande de vigilância. As
gravações continuam depois desta parada. Eles voltaram a fita.
Brummel saiu do escritório e postou-se acima de Marshall.
—
E então, o que foi que você e Berenice escutaram?
—
Grande orquestra de jazz, acho — respondeu Marshall. Essa resposta levou o
calcanhar de Brummel a cair sobre o pescoço de Marshall.
—
Ai!
Brummel tinha mais uma pergunta:
—
E então, quem lhe deu as chaves deste lugar? Foi Sara?
—
Se não me fizer perguntas, não terei de mentir. Brummel resmungou:
—
Terei de mandar um aviso pelo rádio para que a apreendam também!
—
Não se incomode — disse Langstrat do gabinete. — Ela se foi e ela não é nada.
Não traga encrenca de volta depois que se tiver livrado dela. Apenas
concentre-se em Krueger.
Brummel disse ao tira que estava guardando Marshall:
—
Ed, saia e veja se pode ajudar o John. Krueger é a única que precisamos
realmente pegar.
Mas nesse instante John entrou pela porta do fundo do
corredor, e não
trazia Berenice consigo.
—
E então? — exigiu Brummel.
John apenas deu de ombros timidamente.
—
Ela correu como um coelho assustado, e está escuro lá fora!
—
Ora, formidável! — gemeu Brummel. Marshall achou que realmente era formidável.
A voz de Langstrat veio do escritório.
—
Alf, venha ouvir isto..
Brummel dirigiu-se ao escritório, e Marshall podia
ouvir de novo a conversa entre Weed e Susan. Langstrat disse:
—
Então eles ouviram essa conversa. Nós a apanhamos do telefone de Susan hoje —.
O diálogo entre Susan e Weed terminou. — A menos que eu esteja enganada, é
possível que Krueger se esteja dirigindo ao Bar Sempre-Verde em Baker a fim de
encontrar-se com Susan... — Ela caiu na risada.
—
Vou mandar patrulharem o bar, então — disse Brummel.
—
Mande uma patrulha ao apartamento dela também. Ela vai querer pegar o carro.
—
Boa idéia.
Brummel e Langstrat saíram do escritório e postaram-se em cima de Marshall
como abutres sobre uma carniça.
—
Marshall — vangloriou-se Brummel — temo que tenha uma grande queda à sua
frente. Tenho o bastante contra você para mandá-lo para as grades para sempre.
Você devia ter saído desta coisa enquanto tinha a possibilidade.
Marshall ergueu o olhar àquele tolo rosto sorridente e disse:
—
Para usar um chavão, não vai conseguir safar-se dessa, Brummel. Você não é dono
de todo o sistema judiciário. Mais cedo ou mais tarde este negócio vai escapar
ao seu controle; ficará maior do que você.
Brummel apenas sorriu um sorriso que Marshall adoraria
apagar com um chute e disse:
—
Marshall, só precisamos de uma decisão do tribunal inferior, e tenho a certeza
de que conseguiremos isso. Não adianta negar. Você nada mais é do que um
mentiroso e larápio de terceira categoria, para não falar em molestador de
crianças e possível homicida. Temos testemunhas, Marshall: bons e honestos
cidadãos desta comunidade. Faremos com que tenha o mais justo dos julgamentos,
a fim de não ter base para um apelo. Poderia ser muito difícil para você. Pode
ser que o juiz lhe dê uma colher de chá, mas... não sei, não.
—
Você está falando de Baker, o finório?
—
Ouvi dizer que ele pode ser uma pessoa muito compassiva... nas circunstâncias
certas.
—
Então deixe-me adivinhar. Vai prender Berenice sob acusação de prostituição?
Talvez consiga encontrar aquelas prostitutas novamente, aquele tira falso,
tramar a coisa toda.
Brummel deu uma risada zombeteira.
—
Tudo depende da prova que tivermos, acho. Podemos prendê-la por arrombamento,
como você sabe, e foram vocês dois que arrumaram essa sozinhos.
—
E então, o que diz a lei a respeito de grampeamentos ilegais? Langstrat
respondeu a essa pergunta.
—
Nada sabemos sobre grampeamento. Não fazemos esse tipo de coisa —. Ela fez uma
pausa de efeito, então acrescentou:
—
E não achariam nada mesmo que acreditassem em você —. Nesse momento ocorreu-lhe algo. — Oh, posso perceber o que está pensando. Náo conte com
Susan Jacobson. Recebemos a triste notícia hoje de que ela morreu num terrível
acidente de carro. As únicas pessoas que a Srta. Krueger pode esperar encontrar
no Bar Sempre-Verde serão da polícia.
Aos poucos, conseguiu levantar-se, depois ficou parada,
levemente agachada, debaixo do emaranhado de trepadeiras que pendiam dos galhos
rasteiros de um medronheiro, esperando que suficiente sangue circulasse através do cérebro para
conseguir manter-se em pé.
Ela deu um passou, depois outro. Tornou-se mais
confiante e começou a adiantar-se, tateando a fim de encontrar o rumo no meio das árvores
e da vegetação rasteira, tentando afastar os galhos que a arranhavam.
De volta à rua, estava tudo quieto e escuro. Os cães já não latiam.
Ela começou a seguir o percurso ao seu apartamento, a quase dois quilômetros do
outro lado da cidade, indo em rápidas arrancadas de árvore à sebe à árvore.
Apenas uma vez um veículo passou, mas não era uma radiopatrulha; Berenice
escondeu-se atrás de um grande bordo até que ele desaparecesse.
Ela não conseguia distinguir a dor e mal-estar físicos da exaustão
e desespero emocional. Algumas vezes ela se confundiu e perdeu o rumo e não
conseguiu enxergar nada do que diziam as placas de sinalização, e foi nessas
horas que quase chorou, deixando-se cair de encontro a uma cerca ou parede.
Mas lembrou-se de Marshall atirando-se na boca dos leões por causa dela, e não
podia desapontá-lo. Tinha de conseguir escapar. Tinha de sair da cidade,
livrar-se, encontrar Susan, pedir ajuda, fazer alguma coisa.
Por quase uma hora, quarteirão a quarteirão, passo a
passo, ela prosseguiu em seus esforços e finalmente aproximou-se do prédio do
seu apartamento. Cautelosa, ela deu grande volta em torno dele, desejando
examiná-lo por todos os lados. Finalmente, por trás da perua de um vizinho, ela
achou que conseguiu distinguir o revelador conjunto de luzes em cima de um
carro estacionado no fim do quarteirão. Dessa posição, os
ocupantes do veículo teriam visão perfeita de qualquer pessoa que tentasse
entrar em algum apartamento. Portanto, entrar estava fora de cogitação.
Era muito mais fácil esgueirar-se pelos fundos do prédio; ali havia
pequenas vagas de estacionamento ao longo de uma viela escura e estreita, a
iluminação era escassa, as vagas não podiam ser vistas do nível do chão que
ficava acima delas. Em termos de segurança, era um lugar terrível para se
estacionar, mas perfeito para Berenice essa noite.
Ela atravessou velozmente a rua a um quarteirão de distância e longe das
vistas da radiopatrulha, depois voltou e esgueirou-se pela viela, mantendo-se
colada ao úmido muro de concreto que acompanhava a inclinação da viela para
baixo do nível do chão. Ela alcançou seu pequeno carro, removeu o estojo
magnético de chaves debaixo do pára-choques, e usou as chaves de emergência
para abrir a porta.
Oh, tão perto e contudo tão longe! Não havia como ela pudesse dar
partida no carro e escapar sem ser ouvida nessa noite tão silenciosa. Mas
havia algumas coisas que podia aproveitar bem. Entrando com dificuldade no
carro tão depressa quanto pôde, ela fechou a porta atrás de si o suficiente
para apagar a luz do teto. A seguir, abriu o cinzeiro do painel e esvaziou-o de
todas as moedas que continha, colocando-as no bolso. Dava uns dois dólares, mas
teria de ser suficiente. No porta-luvas encontrou seus óculos escuros feitos
com grau; agora podia enxergar melhor e usá-los a fim de esconder o ferimento
dos olhos.
Nada mais havia a fazer além de deixar a cidade,
talvez tirar uma soneca em algum lugar, de alguma maneira, e depois, de uma
forma ou de outra, chegar a Baker e ao Bar Sempre-Verde até às 8:00 da noite.
Era tudo, e era bastante. Ela se esforçou por pensar em alguém que conhecesse
de quem eles não soubessem, qualquer amigo que pudesse ainda ajudar e proteger
uma foragida da lei, sem fazer perguntas.
A lista mental de nomes era demasiado curta e duvidosa.
Ela começou a
andar na direção da Rodovia 27 enquanto rebuscava o cérebro à cata de
quaisquer outras idéias.
Não tinha sido a mais agradável das noites: eles o haviam
despido, revistado, tirado suas impressões digitais, sua foto, e depois o
haviam enfiado nessa cela, sem cobertor para aquecê-lo. Ele havia pedido uma
Bíblia, mas não lhe permitiram recebê-la. O bêbado na cela ao lado havia
vomitado durante a noite, o passador de cheques sem fundos na cela seguinte à do bêbado tinha a boca muito suja, e o assaltante na cela
seguinte demonstrou ser um marxista vociferante e dogmático.
Ora, pensou ele, Jesus morreu por eles e eles precisam
do seu amor. Tentou ser bondoso e falar-lhes acerca do amor de Deus, mas alguém lhes havia dito que ele
era acusado de estupro, o que de certa forma tornou menos eficaz o seu
testemunho.
Por isso, ele se deitou, identificando-se com Paulo e
Silas e Pedro e Tiago e todos os outros cristãos que, embora inocentes, haviam passado tempo numa
prisão miserável. Perguntou-se quanto tempo o seu ministério sobreviveria agora
que sua reputação havia sido arruinada. Conseguiria manter-se no já abalado
pastorado? Brummel e seus companheiros com certeza aproveitariam ao máximo o
acontecido. Pelo que ele sabia, a coisa havia sido arranjada por eles. Ah,
bem, estava tudo nas mãos do Senhor; Deus sabia o que era melhor.
Ele orou por Mary e por todas as suas novas e heterogêneas ovelhas, e
mentalmente recitou para si mesmo passagens da Escritura que sabia de cor até
pegar no sono.
Bem de madrugada Hank acordou com passos vindos da ala
de celas e com o tilintar das chaves do guarda. Oh, não. O guarda estava abrindo
a porta da sua cela. Agora Hank teria de repartir a cela com... um bêbado, um
assaltante, um verdadeiro estuprador? Ele fingiu que ainda dormia, mas abriu um
olho para dar uma espiada. Minha nossa! Esse bandido era grande e de aspecto
assustador, e pelo curativo e machucado na testa parecia haver acabado de sair
de uma briga. Ele estava resmungando algo a respeito de ter de ser trancado
junto com um estuprador. Hank começou a orar pedindo a proteção do Senhor. Esse
grandalhão tinha de pesar o dobro dele, e parecia violento.
O novo sujeito deixou-se cair sobre o outro leito e
respirou aquele tipo de respiração pesada associada a ursos, dragões e monstros.
Senhor, por favor, livre-me!
—
Lucius — chamou Rafar com o tom que alguém usaria para uma criança — Lucius,
quer vir aqui?
Lucius adiantou-se com toda a dignidade que conseguiu
reunir, tentando fazer as asas ondularem e tremularem como as de Rafar.
—
Sim, Baal Rafar?
Rafar olhou-o triunfante, um sorriso retorcido na cara,
e disse:
—
Quero crer que você aprendeu com esta experiência. Como viu tão
claramente, o que não conseguiu fazer em anos, eu consegui em dias.
— Talvez
—. Isso foi tudo o que Lucius lhe concedeu. Rafar achou graça.
—
E você discorda?
—
Poder-se-ia pensar, Baal, que o seu trabalho foi apenas o clímax dos anos da
minha labuta antes da sua chegada.
—
Anos de labuta quase destruídos pelas suas asneiras, você quer dizer! —
retorquiu Rafar. — O que faz a gente parar e pensar. Tendo conquistado a cidade
para o Valente, atrevo-me a deixá-la agora nas mãos daquele que quase a perdeu
antes?
Lucius não gostou nada do tom da conversa.
—
Rafar, durante anos esta cidade foi meu principado. É meu o direito de ser
príncipe de Ashton!
— Foi
seu. Mas honrarias, Lucius, recompensam ações, e em ações eu o encontro
remisso.
Lucius estava indignado, mas controlou-se na presença desse poder gigantesco.
—
O senhor não viu minhas ações pelo fato de ter preferido não olhar. Esteve de
má vontade para comigo desde o princípio.
Lucius tinha ido longe demais. Imediatamente, foi
arrebatado do chão pelo punho maciço de Rafar em torno de sua garganta, e agora Rafar o
erguia e o olhava diretamente nos olhos.
—
Eu — disse Rafar lenta e ferozmente — e apenas eu, sou o juiz disso!
—
Deixe o Valente ser o juiz! — respondeu Lucius com atrevimento. — Onde está
Tal, esse adversário que era para o senhor derrotar, cujos pedacinhos ia
arrojar pelo céu como seu vitorioso pavilhão?
Rafar permitiu que um leve sorriso lhe cruzasse a cara,
embora seus olhos se mantivessem em chamas.
—
Busche, o homem de oração, foi derrotado e seu nome conspurcado. Hogan, que já
foi perseguidor tenaz, é agora um infeliz imprestável e derrotado. A Serva
traidora está destruída, e o seu amigo foi eliminado. Todos os outros fugiram.
Rafar abanou a mão sobre a cidade.
—
Olhe, Lucius! Você vê os chamejantes exércitos celestiais descendo sobre a
cidade? Você vê as suas espadas brilhantes e polidas? Vê seus muitos guardas
postados por lá?
Ele zombou de Lucius e de Tal ao mesmo tempo.
—
Esse Tal, esse Capitão do Exército, comanda agora um exército abatido e
debilitado, e está com medo de mostrar-se. Desafiei-o vez após vez a me
confrontar, a me deter, e ele não apareceu. Mas não se preocupe. Assim como
disse, farei. Quando estas outras questões urgentes tiverem sido
resolvidas, Tal e eu nos encontraremos, e você verá o que vai acontecer... logo antes de eu derrotar
você!
Rafar segurou Lucius ao alto enquanto chamava outro demônio.
—
Mensageiro, leve recado ao Valente de que está tudo pronto e que ele pode vir à
vontade. Os obstáculos foram removidos, Rafar completou sua tarefa, e a cidade
de Ashton está pronta a cair-lhe nas mãos — Rafar derrubou Lucius ao chão, ao
dizer isso — como uma ameixa madura.
Lucius arremeteu do chão e voou para longe em humilhado tumulto enquanto as tropas demoníacas riam a valer.