sexta-feira, 7 de maio de 2021

Este mundo tenebroso - volume 01 - Capítulo 33


 Edith Duster havia sentido o espírito um tanto agitado antes de se deitar naquela noite. Por isso, ao ser acordada abrup­tamente por dois seres luminosos em seu quarto, não se surpreendeu de todo, embora ficasse pasmada.

— Glória a Deus! — exclamou, os olhos muito abertos, a face em­bevecida.

Os dois homens altos tinham rosto bondoso e compassivo, mas sua expressão era séria. Um era alto e loiro; o outro, jovem e de cabelos escuros. Ambos chegavam à altura do teto, e o fulgor de suas túnicas brancas enchia o quarto. Cada um deles trazia bainha e cinto resplendentes, e o cabo das suas espadas eram do mais puro ouro, cravejados de jóias cintilantes.

— Edith Duster — disse o loiro alto, com voz profunda e ressonante — vamos entrar em batalha pela cidade de Ashton. A vitória repousa nas orações dos santos de Deus. Pelo temor que tem ao Senhor, ore, e convoque os outros à oração. Ore pedindo que o inimigo seja ven­cido e os justos libertados.

Então disse o de cabelos escuros.

— O seu pastor, Hank Busche, foi preso. Ele será libertado me­diante suas orações. Chame Mary, a esposa dele. Sirva-lhe de con­forto.

De súbito, eles já não estavam ali, e o quarto ficou escuro nova­mente. De alguma forma, Edith sabia que já os tinha visto antes, talvez em sonhos, talvez como pessoas comuns, normais, em dife­rentes lugares. E ela sabia da importância do pedido que fizeram.

Erguendo-se, ela agarrou o travesseiro e colocou-o no chão, ajoelhando-se a seguir sobre ele, ao lado da cama. Ela queria rir, queria chorar, queria cantar; sentia de repente uma responsabilidade e um poder nas profundezas do seu ser, e entrelaçando as mãos trêmulas sobre a cama, ela curvou a cabeça e começou a orar. As palavras fluíam do mais profundo de sua alma, clamando em favor do povo

de Deus e da justiça de Deus, uma súplica por poder e vitória em nome de Jesus, pela repressão das forças do mal que tentavam tomar a própria vida, o próprio coração daquela comunidade. Nomes e rostos cascatearam diante dos olhos da sua mente e ela intercedeu por todos, suplicando diante do trono de Deus a sua segurança e salvação. Ela orou. Orou. E orou.

Do alto, a cidade de Ashton estava espalhada como um inocente vilarejo de brinquedo numa colcha de retalhos, uma comunidade pequenina e despretensiosa ainda adormecida, mas banhada agora pelo crescente transbordar de rosa e cinza que precedia a aurora, vindo das montanhas do leste. Até então nada se movia na cidade. Nenhuma luz estava sendo acesa; o caminhão de leite ainda estava estacionado.

De algum lugar no céu, além das nuvens orladas de cor-de-rosa, principiou um som solitário, impetuoso. Um guerreiro angélico, pai­rando no ar como uma gaivota, descreveu rápida e furtiva espiral para baixo, até que sua forma se perdeu em meio aos desenhos das ruas e prédios embaixo. Depois outro apareceu e também deixou-se cair silenciosamente na cidade, desaparecendo em algum lugar den­tro dela.

E Edith Duster continuou a orar.

Dois apareceram, as asas majestosamente estendidas para trás, as cabeças apontando diretamente para baixo, mergulhando como fal­cões cidade adentro. A seguir veio outro, planando em trajetória mais rasa, que o levaria ao outro lado da cidade. Depois quatro, deixando-se cair em direções diferentes. Depois outros dois, a seguir sete...

 Mary, deitada no sofá, foi despertada de um sono inquieto pelo telefone.

— Alô? — Seus olhos brilharam imediatamente. — Oh, Edith, es­tou tão contente por ter chamado! Estive tentando telefonar-lhe. Nem fui para a cama, devo ter anotado errado o seu número, ou os telefones não estão funcionando... — Então ela começou a chorar, e contou a Edith tudo acerca dos acontecimentos da noite anterior.

— Olhe, descanse e fique tranqüila até eu chegar aí — disse Edith. — Estive de joelhos a noite toda e Deus está-se movendo, e como está! Tiraremos Hank da cadeia e muito mais do que isso!

Edith agarrou a malha e os tênis e dirigiu-se à casa de Mary. Jamais se sentira tão jovem.

John Coleman acordou cedo aquele dia, tão perturbado por um sonho que não conseguiu pegar outra vez no sono. Patrícia sabia como ele se sentia: a mesma coisa lhe acontecera.

— Vi anjos! — disse John.

— Eu também — disse Patrícia.

— E... e vi demônios. Monstros, Patty! Coisas horrorosas! Os anjos e os demônios estavam lutando. Era...

— Terrível.

— Apavorante. Realmente apavorante.

Eles ligaram para Hank. Mary atendeu. Ficaram sabendo o que acontecera na noite anterior, e dirigiram-se prontamente para lá.

Andy e June Forsythe não puderam dormir a noite toda. Aquela manhã Andy estava zangado e June simplesmente tentou manter-se afastada dele. Por fim, enquanto Andy tentava comer alguma coisa no desjejum, conseguiu falar sobre o que o perturbava.

— Deve ser o Senhor. Não sei o que mais poderia ser.

— Mas por que você está tão perturbado? — perguntou June tão ternamente quanto possível.

— Porque nunca me senti assim antes — disse Andy, e então sua voz começou a tremer. — Eu... eu apenas sinto que preciso orar, como... como se algo tivesse de ser resolvido e não posso descansar enquanto isso não acontecer.

— Sabe — disse June — sei como você se sente. Não sei se consigo explicar, mas sinto que não estive a sós a noite toda. Alguém esteve aqui conosco, enchendo-nos dessas sensações.

Os olhos de Andy se arregalaram.

— Sim! É isso mesmo! É essa a sensação! — Ele agarrou a mão dela com muita alegria e alívio. — June, querida, pensei que estava ficando doido!

Nesse exato momento o telefone tocou. Era Cecil Cooper. Tinha tido um sonho muito inquietante, da mesma forma que diversas outras pessoas. Algo estava para acontecer. Eles não esperaram reu­nir-se para orar. Puseram-se a orar naquele momento onde estavam.

Do norte, do sul, do leste e do oeste, de todas as direções, e em silêncio, guerreiros celestiais continuaram a cair na cidade qual flo­cos de neve, começaram a andar na cidade como gente, esgueirar-se pela cidade como guerrilheiros, deslizar através de campos e pomares cidade adentro como peritos pilotos da selva. Depois se esconderam e esperaram.

 Hank despertou em torno das 7:00hs. O pesadelo não chegara ao fim. Ainda se encontrava na cela. Seu novo companheiro de prisão continuou a roncar por mais uma hora até que o guarda trouxe o café matutino. O grandalhão nada disse, mas apanhou o pratinho que foi passado pela grade. Não parecia muito excitado com a torrada quei­mada e os ovos frios. Talvez fosse a hora de quebrar o gelo.

— Bom dia — disse Hank.

— Bom dia — replicou o grandalhão com escasso entusiasmo.

— Meu nome é Hank Busche.

O homenzarrão passou o prato por baixo da porta para o guarda. Não havia tocado na comida. Ficou ali, olhando através das grades como um animal enjaulado. Não respondeu à apresentação de Hank, nem lhe disse seu nome. Estava obviamente sofrendo; seus olhos pareciam tão anelantes e tão vazios.

Tudo o que Hank podia fazer era orar por ele.

 Passo, passo, tropeção, depois outro passo. A manhã toda, através de milharais, pastos, densos matagais, Berenice caminhou com di­ficuldade, dirigindo-se lentamente ao norte num percurso sinuoso mais ou menos paralelo à Rodovia 27, localizada em algum lugar à esquerda da moça. O som dos veículos que passavam rugindo pela estrada ajudavam-na a manter o rumo.

Ela estava começando a tropeçar nos próprios pés, os pensamentos tornando-se apáticos. Fileira após fileira de pés de milho passavam marchando por ela, as grandes folhas verdes roçando contra ela em ritmo constante, quase irritante. A terra lavrada era macia e poeirenta debaixo de seus pés. Entrava nos seus sapatos. Minava a energia de suas passadas.

Após cruzar o mar de milho, ela chegou a um arvoredo comprido e estreito, um quebra-vento plantado entre os campos. Ela entrou no bosque e logo encontrou um pedaço de chão macio, coberto de grama. Verificou a hora: 8:25 da manhã. Precisava descansar. De alguma forma chegaria a Baker... era a única esperança... esperava que Marshall estivesse bem... esperava não morrer... estava adorme­cida.

 Quando trouxeram o almoço, Hank e seu companheiro de cela estavam um tanto mais dispostos a comer. Os sanduíches não eram ruins e a sopa de carne e legumes estava bem boa.

Antes que o guarda se fosse, Hank pediu:

— Escute, tem certeza de que não poderia me arrumar uma Bíblia?

— Já lhe disse — respondeu o guarda rudemente — estou espe­rando autorização, e enquanto não a receber, nada feito.

De súbito, o grande e calado companheiro de cela explodiu:

— Jimmy, você tem uma pilha de Bíblias dos Gideões na gaveta da sua mesa e sabe disso! Vamos, dê uma Bíblia ao homem.

O guarda apenas zombou dele.

— Ei, você está do outro lado das grades agora, Hogan. Eu darei as ordens por aqui!

O guarda saiu, e o homenzarrão tentou transferir sua atenção ao almoço. Não obstante, ergueu os olhos para Hank, e brincou:

— Jimmy Dunlop. Acha que é um homem de verdade.

— Bem, de qualquer forma, obrigado por tentar.

O grandalhão puxou um suspiro profundo e disse a seguir:

— Desculpe ter sido mal-educado a manhã toda. Precisava de tempo para recuperar-me de ontem, e precisava de tempo para ave­riguar quem você era, e acho que precisava de tempo para me acos­tumar à idéia de estar na cadeia.

— Posso realmente me identificar com isso. Nunca estive na cadeia antes — tentou Hank outra vez. Estendeu a mão e disse:

— Hank Busche.

Dessa vez o homem a tomou e apertou-a com firmeza.

— Marshall Hogan.

Foi então que ambos tiveram um estalo. Antes mesmo que tivessem soltado as mãos, entreolharam-se, apontaram um ao outro e ambos começaram a perguntar:

— Escute, você não é... ?

Em seguida, fitaram-se por um momento e não disseram nada. Os anjos vigiavam, naturalmente, e avisaram Tal.

— Bom, bom — disse Tal. — Agora deixaremos os dois conver­sarem.

 — Você é o pastor da igrejinha branca — disse Marshall.

— E você é o redator do jornal, o Clarim — exclamou Hank.

— E então, que cargas d'água está fazendo aqui?

— Não sei se você conseguiria acreditar.

— Rapaz, você ficaria pasmado, eu estou pasmado, com o que eu conseguiria acreditar! — Marshall abaixou a voz e inclinou-se bem perto ao dizer:

— Disseram-me que você estava aqui por estupro.

— Isso mesmo.

— Isso é o tipo de coisa que faria, não?

Hank não sabia muito bem o que depreender daquela declaração.

— Bem, não fiz nada disso, entende?

— Alf Brummel não freqüenta a sua igreja?

— Sim.

— Já se opôs a ele?

— Ah... bem, sim.

— Eu também. E é por isso que estou aqui, e é por isso que você está aqui! Conte-me o que aconteceu.

— Quando?

— Quero dizer, o que realmente aconteceu? Você chegou a co­nhecer essa moça que dizem ter estuprado?

— Bem...

— Onde conseguiu essas marcas de mordidas no braço? Hank estava ficando em dúvida.

— Escute, é melhor eu não dizer nada.

— O nome dela era Carmem?

O rosto de Hank disse um sim que foi quase audível.

— Apenas um palpite. Ela é realmente uma garota traiçoeira. Tra­balhava para mim e ontem à noite ela me disse que tinha sido es­tuprada e eu percebi na hora que era mentira.

Hank estava completamente estupefato.

— Isto é demais! Como é que você sabe de tudo isso? Marshall correu os olhos pela cela e deu de ombros. — Ora, o que mais temos para fazer? Hank, nem imagina a história que tenho para lhe contar! Vai demorar alguns horas. Está disposto?

— Se estiver disposto a ouvir a minha, estou disposto a ouvir a sua.

 — Alô? Senhora?

Berenice despertou de chofre. Alguém se inclinava sobre ela. Era uma mocinha aproximadamente de idade colegial, talvez mais velha, com grandes olhos castanhos e cabelos negros e encaracolados, ves­tindo macacão de peitilho, uma perfeita filha de fazendeiro.

— Oh! Ah... oi. — Foi tudo o que Berenice conseguiu pensar em dizer.

— A senhora está bem? — perguntou a mocinha com sotaque des­cansado e suave.

— Ah, sim. Estava apenas dormindo. Espero que não haja pro­blema. Saí para dar uma volta, sabe, e... — Ela se lembrou do rosto machucado. Ora, ótimo! Agora essa garota vai pensar que fui assal­tada ou coisa parecida.

— Está procurando seus óculos escuros? — perguntou a mocinha, abaixando-se e apanhando-os. Ela os entregou a Berenice.

— Eu.. . ah... acho que está pensando no que aconteceu ao meu rosto.

A mocinha apenas sorriu um sorriso afável e disse:

— Ora, você devia ver o meu rosto quando acordo de manhã.

— Pelo que vejo, esta é sua propriedade? Não tive a intenção de...

— Não, estou apenas de passagem, como você. Vi-a deitada aqui e achei melhor dar uma espiada. Posso dar-lhe uma carona a algum lugar?

Berenice estava prestes a dizer um não automático, mas então olhou o relógio. Oh, não! Quase 4:00hs da tarde.

— Bem, você por acaso não estaria indo rumo ao norte, estaria?

— Estou indo na direção de Baker.

— Oh, perfeito! Poderia pegar uma carona com você?

— Logo depois do almoço.

— O quê?

A mocinha saiu do arvoredo rumo à próxima lavoura de milho, e foi então que Berenice notou uma brilhante motocicleta azul, esta­cionada ao sol. A moça enfiou a mão numa bolsa lateral e tirou um saquinho de papel pardo. Voltando, ela colocou o saquinho à frente de Berenice, juntamente com uma caixinha de leite frio.

— Você almoça às 4:00 da tarde? — perguntou Berenice com uma risadinha mais à vontade.

— Não — respondeu a jovem com outra risadinha — mas você vem de longe, e tem uma boa distância pela frente, e precisa comer alguma coisa.

Berenice olhou dentro daqueles olhos castanhos, transparentes e risonhos, e depois ao saquinho de lanche à sua frente, e pôde sentir o rosto avermelhando e os olhos enchendo-se de lágrimas.

— Vamos, coma — disse a jovem.

Berenice abriu o saquinho de papel e encontrou um sanduíche de rosbife que era verdadeiramente uma obra de arte. A carne ainda estava quente, a alface tenra e verde. Debaixo dele estava uma cai­xinha de iogurte de amoras, seu sabor favorito, ainda frio ao toque.

Ela tentou controlar as emoções, mas começou a ser sacudida pelo choro, e as lágrimas escorreram-lhe pelas faces. Oh, estou fazendo papel de boba, pensou. Mas tudo isso era tão diferente!

— Desculpe — disse ela. — É... é só que estou tão comovida com a sua bondade.

A mocinha tocou-lhe a mão.

— Bem, alegro-me por ter podido estar aqui.

— Qual é o seu nome?

— Pode chamar-me Betsy.

— Sou... bem, pode chamar-me Marie.

— Era o segundo nome de Berenice.

— É o que farei. Escute, tenho um pouco de água fria também, se quiser.

Lá veio outra onda de emoção.

— Você é uma pessoa maravilhosa. O que está fazendo neste pla­neta?

— Ajudando você — respondeu Betsy, correndo à motocicleta a fim de apanhar a água.

 Hank achava-se sentado na beirada do leito, enlevado com a his­tória que Marshall contava.

— Você fala sério? — reagiu ele subitamente. — Alf Brummel está envolvido com bruxaria? Um membro do conselho da minha igreja?

— Olhe, dê o nome que quiser, mas estou-lhe dizendo, é espacial! Não sei há quanto tempo ele e Langstrat são amigos do peito, mas o suficiente para que a nojenta percepção cósmica dela tenha passado para ele a ponto de torná-lo perigoso, e não pense que estou brin­cando!

— E então, quem pertence a esse grupo?

— Quem não pertence? Oliver Young, o juiz Baker, a maioria dos tiras da polícia local...— Marshall prosseguiu, dando a Hank apenas um pequeno segmento da lista.

Hank estava abismado. Isso tinha de vir do Senhor. Tantas per­guntas que ele tivera por longo tempo estavam finalmente sendo respondidas.

Marshall continuou a falar por cerca de meia hora mais, e então começou a perder o embalo. Chegou à parte a respeito de Kate e Sandy.

— É essa a parte que mais dói — disse ele, e então passou a olhar através das grades em vez de nos olhos de Hank. — É outra história em si, e você não precisa ouvi-la. Mas bem que a repassei vez após vez hoje de manhã. É culpa minha, Hank. Eu permiti que acontecesse.

Ele puxou um fôlego lá do fundo e enxugou a umidade dos olhos.

— Eu podia ter perdido tudo: o jornal, a casa, a... a batalha. Podia ter aceito isso se apenas elas estivessem comigo. Mas perdi-as tam­bém. .. E foi assim que vim parar aqui — e parou. Abruptamente.

Hank estava chorando. Estava chorando e sorrindo, e elevando as mãos a Deus, meneando a cabeça em assombro. A Marshall parecia que ele estava tendo algum tipo de experiência religiosa.

— Marshall — disse Hank excitado, incapaz de ficar sentado quieto. — Isso vem de Deus! O fato de estarmos aqui não é acidental. Nossos inimigos o fizeram por mal, mas Deus o designou para o bem. Ele nos reuniu apenas com o propósito de nos conhecermos, apenas a fim de juntarmos a coisa toda. Você ainda não ouviu a minha história, mas adivinhe só! É a mesma! Nós dois temos defrontado com o mesmíssimo problema por dois lados diferentes.

— Conte, conte, também quero chorar!

Então Hank começou a narrar como subitamente se achara pastor de uma igreja que não parecia querê-lo.

 A motocicleta de Betsy voou como o vento pela Rodovia 27, e Berenice segurava-se firme, sentada atrás dela no macio assento de couro, vendo a paisagem passar. A viagem foi esfuziante; fê-la sentir-se como uma criança de novo, e o fato de as duas usarem capacetes com protetores escuros fez Berenice sentir-se tanto mais a salvo de ser descoberta.

Mas Baker se aproximava rapidamente, e com ela os riscos e pe­rigos e a importantíssima questão sobre a possibilidade de Susan Jacobson aparecer ou não. Parte de Berenice queria permanecer na motocicleta com aquela garota doce e amável e simplesmente prosseguir a... onde quer que fosse. Qualquer vida tinha de ser melhor do que essa.

Os pontos de referência tornaram-se familiares: o anúncio de Coca-Cola, e o grande lote de lenha à venda. Estavam chegando a Baker. Betsy tirou o pé do acelerador e ouviu-se o queixume da mudança para marcha mais lenta. Afinal, ela saiu no acostamento e seguiu aos solavancos até parar em um estacionamento forrado de pedriscos à frente do velho Hotel Pôr-do-Sol.

— Aqui está bom para você? — gritou Betsy através do protetor de rosto.

Berenice conseguiu vislumbrar o Sempre-Verde logo adiante na estrada.

— Oh, sim, aqui está ótimo.

Ela desceu da moto e fez força para remover a correia do capacete.

— Deixe-o mais um pouco — disse Betsy.

— Para quê?

Os olhos de Betsy lhe deram um bom motivo que ela devia re­conhecer: uma radiopatrulha da delegacia de Ashton passava ca­sualmente, diminuindo a marcha ao entrar em Baker. Berenice observou o veículo dar seta à esquerda e entrar no estacionamento da frente do Bar Sempre-Verde. Dois policiais saíram do carro e entraram no bar. Ela fitou Betsy. A mocinha sabia?

Não dava essa impressão. Ela apontou um pequeno restaurante ao lado do hotel.

— Aquela é a pequena lanchonete de Rose Allen. Parece um lugar horrível, mas ela faz a melhor sopa caseira do mundo e vende barato. Seria um bom lugar para matar o tempo.

Berenice removeu o capacete e colocou-o sobre a moto.

— Betsy — disse ela — tenho uma grande dívida para com você. Muito, muito obrigada.

— De nada —. Mesmo através do protetor de rosto o sorriso dela brilhava alegremente.

Berenice olhou na direção do pequeno refeitório. Não, não tinha mesmo cara muito boa.

— A melhor sopa caseira do mundo, é?

Ela se voltou na direção de Betsy e ficou rígida. Por um momento, sentiu que cambalearia para diante como se uma parede à sua frente tivesse subitamente desaparecido.

Betsy se fora. A motocicleta se fora.

Era como despertar de um sonho e precisar de tempo para ajustar a mente ao que era real e ao que não era. Mas Berenice sabia que não fora um sonho. O rasto da motocicleta ainda estava perfeitamente visível nos pedriscos, vindo do ponto onde havia saído da estrada até o lugar diretamente à frente de Berenice. Ali terminava.

Berenice afastou-se, atordoada e confusa. Ela olhou os dois lados da estrada, mas mesmo enquanto o fazia sabia que não veria a mo­cinha de motocicleta. De fato, quando mais alguns segundos se pas­saram, Berenice percebeu que teria ficado desapontada se a tivesse enxergado. Teria sido o fim de algo muito belo, algo que jamais havia sentido.

Mas precisava sair da estrada, ficou a dizer-se. Sua presença ali chamava muito a atenção. Ela se forçou a deixar o local e se dirigiu às pressas à pequena lanchonete de Rose Allen.

 O jantar passou pelas grades às 6:00hs. Marshall estava disposto a comer o frango frito e as cenouras cozidas, mas Hank estava tão envolvido com sua história que Marshall teve de sugerir-lhe que comesse.

— Agora que estou chegando à parte interessante! — protestou Hank, e então perguntou:

— Você está conseguindo acompanhar tudo isto?

— Muita coisa é novidade para mim — admitiu Marshall.

— O que foi mesmo que disse que era? Presbiteriano?

— Ei, não culpe os presbiterianos. O problema é comigo, só isso, e sempre pensei que fantasmas saíam apenas no Dia das Bruxas.

— Bem, você sempre quis uma explicação da estranha força de Langstrat, e de como a Rede podia ter essa grande influência sobre as pessoas, e o que pode ter realmente estado a atormentar Ted Harmel, e especialmente quem esses guias espirituais poderiam ser.

— Você... está-me pedindo que acredite em espíritos maus.

— Você acredita em Deus?

— Sim, acredito que existe um Deus.

— Você acredita num diabo?

Marshall teve de pensar um instante. Percebeu que havia passado por uma mudança de opinião ao longo do caminho.

— Eu... bem, sim, acho que acredito.

— Acreditar em anjos e demônios é simplesmente o passo seguinte. É apenas lógico.

Marshall deu de ombros e apanhou uma coxa do frango.

— Continue. Quero ouvir a história toda.