sexta-feira, 7 de maio de 2021

Este mundo tenebroso - volume 01 - Capítulo 34


 Berenice matou hora e meia na lanchonete de Rose Allen, pedindo um prato fundo de sopa. Betsy tinha razão, era boa. E tomou-a bem devagar. Ficou o tempo todo de olho em Rose. Puxa, se a mulher fizesse algum movimento na direção do telefone, Berenice cairia fora! Mas Rose não parecia pensar que uma mulher toda machucada em sua lanchonete fosse algo assim tão incomum, e nada aconteceu.

Quando as 7:30hs foram-se aproximando, Berenice percebeu que teria de tentar chegar ao encontro marcado de uma forma ou de outra. Pagou a Rose pela sopa com os trocados que tinha no bolso e saiu.

Parecia que a viatura policial que havia parado no Sempre-Verde já se fora, mas a luz estava ficando escassa e era longe demais para Berenice saber ao certo. Ela teria de averiguar a cada passo.

Caminhando cuidadosamente, ela ia olhando em todas as direções à procura de policiais, agentes de tocaia, veículos suspeitos, qualquer coisa. O estacionamento do Sempre-Verde estava superlotado, o que provavelmente era típico de uma noite de sábado. Ela não tirou os óculos escuros, mas a não ser por isso tinha a exata aparência da Berenice Krueger que a polícia procurava. O que mais podia fazer?

Ao aproximar-se do bar, ela olhou aqui e ali à procura de rotas de escape. Descobriu uma trilha que levava ao matagal nos fundos, mas não tinha a menor idéia de seu comprimento e de onde terminava. De modo geral, não parecia haver muitos lugares aos quais correr ou onde se esconder.

Os fundos do Sempre-Verde constituíam a parte do prédio à qual ninguém dava a mínima importância; os três carros velhos, as ge­ladeiras esquecidas, os barris de cerveja amassados e as pilhas de mesas de superfícies arrebentadas que se enferrujavam ali e as ca­deiras totalmente destruídas afastavam-se apenas o suficiente para permitir um estreito caminho que chegava à porta de trás.

Essa porta também riscava um arco no linóleo. A música da vitrola automática rebentou sobre Berenice como uma onda, da mesma forma que a fumaça de cigarros e o enjoativo cheiro adocicado de cerveja. Ela fechou a porta atrás de si e achou-se numa caverna escura cheia de silhuetas. Cautelosamente, ela olhou sobre, sob e à volta dos seus óculos escuros, tentando ver onde se encontrava e onde todas as outras pessoas se encontravam sem tirar os óculos.

Tinha de haver algum lugar para se sentar ali. A maioria das mesas isoladas estavam cheias de madeireiros e suas namoradas. Havia uma cadeira no canto. Ela tomou-a e acomodou-se para examinar o apo­sento.

Desse lugar ela conseguia vislumbrar a porta da entrada e podia ver quem entrava, mas não conseguia distinguir-lhes as feições. Dan, atrás do bar, ela reconheceu; ele servia cervejas ao mesmo tempo que tentava manter as coisas sob certo controle. Os ouvidos da moça atestaram que o jogo de mareia ia a todo vapor, e dois jogos de vídeo contra uma parede distante apitavam e gorgolejavam, sendo alimen­tados por fichas.

Eram 7:50hs. Ora, apenas ficar sentada ali não ia dar resultado; ela se sentia óbvia demais, e simplesmente não conseguia enxergar. Ela se levantou da cadeira e tentou misturar-se à multidão, perma­necendo perto das paredes.

Ela olhou novamente para Dan. Ele se encontrava um pouco mais próximo e podia ter estado a olhá-la de volta, mas isso ela não sabia. Ele não dava a perceber que a havia reconhecido, ou que ligava, se tivesse. Berenice tentou encontrar um lugar discreto do qual pudesse examinar as pessoas das mesas da frente. Ela se juntou a um pequeno grupo em torno de um dos jogos de vídeo. As pessoas na parte da frente ainda eram silhuetas, mas nenhuma delas poderia ter sido Susan.

Lá estava Dan outra vez, inclinando-se por cima de uma mesa e abaixando ao meio o estore da janela da frente. Algumas pessoas que estavam perto não gostaram, mas ele lhes deu uma explicação qual­quer e o deixou assim.

Ela resolveu voltar à sua cadeira e esperar. Refez o caminho de volta ao jogo de mareia, e depois dirigiu-se lentamente para trás das pessoas que se encontravam nos fundos do aposento.

Foi então que o pensamento a atingiu. Já havia visto aquele truque de abaixar o estore em algum filme. Um sinal? Ela voltou a cabeça na direção da frente, e naquele exato momento a porta da frente se abriu. Dois homens uniformizados entraram. Polícia! Um apontou diretamente para ela. Ela se dirigiu tão depressa quanto possível à porta dos fundos. Nada havia além de trevas à sua frente. Como é que ela conseguiria mesmo que fosse apenas achar a porta?

Ela ouviu um grito acima do ruído da multidão.

— Ei! Detenham essa mulher! Polícia! Você aí! Pare! O pessoal à volta dela começou a murmurar:

— Quem? Que mulher? Essa mulher? — Outra voz saindo da es­curidão disse:

— Ei, dona, acho que ele está falando com você!

Ela não olhou para trás, mas podia ouvir o arrastar de cadeiras e pés. Eles estavam vindo atrás dela.

Então ela viu o aviso de saída em luz verde que ficava acima da porta dos fundos. Esqueça-se dessa de ficar fria! E disparou na di­reção da luz.

Pessoas gritavam por toda a parte, vindo em sua ajuda, querendo ver o que estava acontecendo. Atrapalharam os policiais, que co­meçaram a berrar:

— Para o lado, por favor! Saiam do caminho! Detenham aquela mulher!

Ela não conseguia enxergar o trinco ou maçaneta ou seja lá o que fosse que a porta tivesse. Na esperança de que tivesse uma barra de abertura automática, ela jogou o corpo contra a porta. Essa não tinha aquele tipo de abertura automática, mas ela ouviu algo quebrar-se e a porta se abriu de qualquer forma.

Estava mais claro lá fora do que dentro. Ela conseguiu vislumbrar a trilha que cortava toda a tranqueira e disparou por ela, dando tudo o que tinha, ao mesmo tempo que ouvia a porta dos fundos abrir-se novamente com um baque. A seguir veio o som de passos. Conse­guiria escapar às vistas deles antes que atravessassem toda a tran­queira?

Ela arrancou os óculos escuros bem a tempo de descobrir a trilha que cortava o mato, do outro lado da cerca.

É incrível o que a pessoa consegue fazer quando suficientemente apavorada. Plantando as mãos em cima da cerca, Berenice jogou o corpo e, descrevendo um arco, despencou sobre a moita do outro lado. Sem se deter para congratular-se, ela se deslocou como pôde pela trilha que levava ao mato, como um coelho assustado, abaixando-se a fim de evitar os galhos rasteiros que conseguia ver e levando lambadas no rosto dos que não via.

A trilha era macia e clara, e mantinha seus passos quietos e aba­fados. Estava mais escuro no mato, e vez por outra ela precisava parar abruptamente a fim de ver onde a trilha continuava. Nessas horas, ela tentava ouvir também os seus perseguidores; ouvia uma espécie de gritaria muito distanciada atrás de si, mas parecia que ninguém havia pensado naquela trilha.

Havia uma luz adiante. Ela chegou a uma estrada secundária de pedregulhos, mas hesitou entre as árvores o tempo suficiente para olhar de uma lado para o outro da estrada, à procura de carros, tiras, qualquer pessoa. A estrada estava silenciosa e deserta. Ela saiu de­pressa, tentando resolver que rumo tomar.

De repente, em uma intersecção logo adiante na estrada, um carro apareceu, entrou na estrada e veio em sua direção. Eles a haviam visto! Nada mais podia fazer a não ser continuar correndo!

Seus pulmões arfavam, o coração doía e parecia que ia esborrachar-se de tanto bater, as pernas pesavam como se fossem de chumbo. Não podia deixar de emitir gritos de angústia e medo a cada exalação ao atravessar na disparada um campo, dirigindo-se a um aglomerado de construções à distância. Ela olhou para trás. Um vulto a seguia, correndo velozmente em encarniçada perseguição. Não! Não! Por favor, não me persiga, deixe-me escapar! Não posso continuar assim!

Os prédios estavam cada vez mais próximos. Parecia uma velha fazenda. Ela já não pensava, apenas corria. Não conseguia enxergar; seus olhos estavam agora duplamente anuviados por lágrimas. Ela respirava com dificuldade, a boca seca, a dor das costelas disparando acima e abaixo em todo o lado. A grama lhe vergastava as pernas, quase fazendo-a tropeçar a cada passo. Ela podia ouvir as passadas de quem a perseguia zunindo pela grama não muito longe. Oh, Deus, ajuda-me!

Adiante encontrava-se um prédio grande e escuro, um estábulo. Ela se dirigiria para lá e tentaria esconder-se. Se a encontrassem, paciência. Não agüentava continuar correndo.

Tropeçando, arrastando-se, ela puxou um pé após o outro à volta de uma ponta do prédio e encontrou uma grande porta de correr meio aberta. Praticamente caiu porta adentro.

No interior, achou-se na mais negra escuridão. Nessa hora, de nada lhe serviam os olhos. Ela se adiantou aos tropeções, os braços esten­didos à frente. Seus pés se arrastavam no meio da palha. Os braços davam encontrões contra as vigas. Uma baia. Ela continuou. Outra baia. Podia ouvir as passadas virando o canto e entrando pela porta. Ela se jogou para dentro de uma baia e tentou abafar seu arquejar. Estava a ponto de desmaiar.

As passadas tornaram-se mais lentas. O perseguidor estava encon­trando a mesma escuridão e tateando em busca da passagem. Mas estava cada vez mais perto.

Berenice afundou-se mais ainda na baia, perguntando-se se haveria alguma forma de se esconder. Sua mão encontrou uma espécie de alça. Ela apalpou um cabo. Um forcado. Ela o tomou nas mãos. Teria coragem de usar aquela coisa a sangue frio?

Os passos adiantavam-se metodicamente; o perseguidor estava exa­minando cada baia, atravessando o estábulo. Berenice via um raiozinho de luz rebuscando aqui e ali.

Ela ergueu bem alto o forcado enquanto a costela quebrada a cas­tigava em protesto. Vai-se arrepender bastante por ter-me seguido, pensou ela. Estava jogando pelas leis da selva a esta altura.

Os passos estavam muito próximos agora. O raiozinho de luz estava logo ao lado da abertura. Ela estava pronta. A luz brilhou em seus olhos. Uma exclamação abafada. Vamos, Berenice! Jogue o forcado! Seus braços não se moveram.

— Berenice Krueger? — perguntou um voz abafada, de mulher. Berenice não se moveu. Segurando alto o forcado, ainda arquejante, o pequenino facho de luz iluminando seus olhos transtornados, ene­grecidos, e seu rosto apavorado.

Fosse quem fosse, a pessoa afastou-se abruptamente ao dar com ela e sussurrou:

— Berenice, não! Não atire isso!

Essas palavras fizeram com que Berenice sentisse recrudescer o desejo de atirar aquela coisa. Estava choramingando e arquejando, tentando forçar os braços a agirem. Eles não o fizeram.

— Berenice — veio a voz — é Susan Jacobson! Estou sozinha! Ainda assim Berenice não abaixou o forcado. Por um momento ela ultrapassara os limites da racionalidade, e palavras nada signi­ficavam.

— Está-me ouvindo? — veio a voz. — Por favor, abaixe o forcado. Não a machucarei. Não sou da polícia, prometo.

— Quem é você? — perguntou Berenice por fim, a voz arquejante e trêmula.

— Susan Jacobson, Berenice —. Ela repetiu lentamente. — Susan Jacobson, a antiga companheira de quarto da sua irmã Pat. Tínhamos um encontro marcado.

Foi como se Berenice subitamente se recobrasse de uma alucinação ou de um pesadelo. O nome enfim penetrou-lhe a mente e a des­pertou.

— Você... — arquejou ela. — Tem de ser uma piada!

— Não é. Sou eu.

Susan dirigiu o facho da pequena lanterna ao próprio rosto. Os cabelos negros e a tez pálida eram inconfundíveis, embora as roupas pretas tivessem sido substituídas por calças de brim e uma jaqueta azul.

Berenice abaixou o forcado. Depois largou-o e emitiu um gemido abafado, tapando a boca com a mão. Percebeu de repente que estava sofrendo dor excruciante. Caiu de joelhos sobre a palha, os braços em torno das costelas.

— Você está bem? — perguntou Susan.

— Apague essa luz antes que eles a vejam — foi tudo o que Berenice disse.

A luz apagou-se. Berenice podia sentir a mão de Susan tocando-a.

— Você está machucada! — disse Susan.

— Eu... tento manter tudo em perspectiva — arquejou Berenice. — Ainda estou viva, encontrei viva a verdadeira Susan Jacobson, não precisei matar ninguém, a polícia não me encontrou... e estou com uma costela quebrada! Oooooo...

Susan colocou os braços em torno de Berenice com o propósito de confortá-la.

— De leve, de leve! — acautelou Berenice. — Afinal de contas, de onde é que você surgiu? Como me encontrou?

— Eu estava vigiando o bar do outro lado da rua, esperando para ver se você ou Kevin apareceriam. Vi a polícia entrar e você sair correndo pelos fundos, e percebi imediatamente que era você. A turminha da faculdade costumava vir sempre aqui, por isso eu co­nhecia a trilha que você tomou, e sabia que ia dar naquela estrada lá. Dei a volta com o carro, pensando em cortar-lhe o caminho e fazê-la entrar no carro comigo, mas você estava muito adiante e saiu correndo.

Berenice deixou a cabeça pender um pouco. Sentiu o afluxo das emoções novamente.

— Eu costumava pensar que jamais havia visto um milagre, mas já não tenho tanta certeza.

 Hank terminou a sua história e, incitado por Marshall, havia dado cabo da maior parte do jantar. Marshall começou a fazer perguntas, às quais Hank respondia com o conhecimento que tinha das Escrituras.

— Então — disse Marshall, cismando — quando os Evangelhos falam a respeito de Jesus e seus discípulos expulsarem espíritos imundos, era o que estavam realmente fazendo?

— Era o que estavam realmente fazendo — respondeu Hank. Marshall reclinou-se contra as grades e continuou a pensar.

— Isso verdadeiramente explicaria uma porção de coisas. Mas e Sandy? Você acha que ela... que ela está...?

— Não sei ao certo, mas poderia estar.

— A pessoa com quem falei ontem... não era ela. Ela estava sim­plesmente doida; você não teria acreditado.

— Ele percebeu o que dissera. — Ah, pensando melhor, acho que provavelmente acreditaria.

Hank estava excitado.

— Mas você não percebe o que aconteceu? É um milagre de Deus, Marshall. Todo esse tempo, você estava examinando essa chantagem e tramóia, e sem entender como essas coisas podiam estar aconte­cendo com tamanha facilidade e força, especialmente na vida par­ticular de tantas pessoas. Ora, agora você já tem o seu "como". E agora que me contou o que descobriu e tudo por que passou, eu tenho o meu "por quê". Todo este tempo tenho encontrado poderes de­moníacos nesta cidade, mas nunca realmente descobri o que estavam tramando. Agora sei. A nossa reunião tem de ser coisa do Senhor.

Marshall deu a Hank um sorriso torto.

— E então, aonde isso nos leva, Pregador? Eles nos trancafiaram, não nos permitiram comunicar de forma alguma com nossas famílias, amigos, advogados, ou ninguém. Tenho a impressão de que nossos direitos constitucionais não vão valer muita coisa na atual conjun­tura.

Agora foi a vez de Hank reclinar-se contra a velha parede de con­creto e pensar.

— Essa parte é só Deus quem sabe. Mas tenho uma impressão muito forte de que ele nos meteu nesta, e que ele tem também um plano para tirar-nos daqui.

— Se vamos falar de impressões fortes — volveu Marshall — tenho a impressão muito forte de que eles apenas nos querem fora do caminho enquanto terminam de uma vez por todas o que começaram. Será interessante ver o que sobrará da cidade, do nosso trabalho, das nossas casas, das nossas famílias, e de tudo o mais que prezamos quando sairmos daqui. Se sairmos daqui.

— Bem, tenha fé. Deus é quem está controlando esta situação.

— Sim, apenas espero que ele não tenha pisado na bola.

 As duas mulheres permaneciam sentadas na palha, no escuro, enquanto Berenice tentava explicar tudo a Susan: o rosto machucado, a costela quebrada, o que acontecera a ela e a Marshall, e a morte de Kevin Weed.

Susan digeriu tudo aquilo por um momento, e depois disse:

— É o modo de Kaseph agir. É o modo como a Sociedade opera. Eu deveria ter percebido que não podia meter Kevin nesta coisa.

— Não... não se culpe. Estamos todos juntos nisso, quer queira­mos, quer não.

Susan forçou-se a ser indiferente e calculista.

— Você tem razão... pelo menos por enquanto. Algum dia em breve me sentarei e realmente pensarei a esse respeito, e chorarei por aquele homem —. Ela se ergueu. — Mas neste exato momento há muito o que fazer e muito pouco tempo para fazê-lo. Você con­segue andar?

— Não, mas isso não me deteve até agora.

— Meu carro é de aluguel, e tenho um número muito grande de papéis importantes nele para deixá-lo lá fora. Venha.

Com passos cuidadosos e quietos, escolhendo bem onde punham os pés, Susan e Berenice chegaram à grande porta do estábulo. O silêncio reinava lá fora.

— Quer arriscar uma corrida? — perguntou Susan.

— Claro — disse Berenice — vamos.

Elas correram de volta através do vasto campo rumo à estrada onde Susan havia deixado o carro, usando para guiar-se uma árvore que se projetava contra o céu estrelado. Ao atravessarem outra vez o campo, Berenice notou como a corrida parecia muito mais curta agora que não corria para salvar a vida.

Susan guiou-a ao lugar em que o carro se encontrava estacionado. Ela o havia dirigido para fora da estrada um pouco e aninhado de­baixo de algumas árvores. Pondo-se a remexer os bolsos, ela pro­curava as chaves.

— Susan! — disse uma voz do meio das árvores. As duas se imobilizaram.

— Susan Jacobson? — veio a voz outra vez. Susan murmurou, excitada.

— Não posso acreditar!

Berenice respondeu:

— Eu também não!

— Kevin?

Alguns arbustos começaram a se mexer e a farfalhar, e então um homem saiu do mato. Não havia engano possível quanto ao porte desengonçado e o andar arrastado.

— Kevin Weed? — precisou perguntar Berenice mais uma vez.

— Berenice Krueger! — disse Kevin. — Você conseguiu! Ah, mas que ótimo!

Após um breve momento de pasmo e surpresa, os abraços vieram automaticamente.

— Vamos cair fora daqui — disse Susan.

Eles se amontoaram no carro e colocaram alguns quilômetros entre si e Baker.

— Tenho um quarto num hotel em Orting, ao norte de Windsor — disse Susan. — Podemos ir para lá.

Berenice e Kevin não tinham objeções. Berenice disse muito alegre:

— Kevin, acabou de me fazer passar por mentirosa! Eu tinha cer­teza de que estava morto.

— Estou vivo por enquanto — disse Kevin, não parecendo muito certo quanto a coisa alguma.

— Mas a sua caminhonete caiu no rio!

— É, eu sei. Um idiota a roubou e teve um terrível acidente. Alguém estava tentando me matar.

Ele percebeu que não estava falando coisa com coisa, por isso começou outra vez.

— Olhe, eu estava a caminho da ponte a fim de nos encontrarmos, como você havia dito. Parei no Sempre-Verde para tomar uns tragos, e aposto que algum cara me passou uma pingada... sabe, colocou alguma coisa na minha cerveja. Quero dizer, fiquei alto mesmo.

— Estava indo pela estrada a fim de encontrar você, e comecei a realmente a entrar em órbita, por isso entrei numa lanchonete de caminhoneiros para vomitar ou tomar um gole d'água ou usar o banheiro ou alguma coisa. Peguei no sono no banheiro masculino, e devo ter dormido a noite toda. Acordei hoje cedo e saí no estacio­namento e minha caminhonete não estava mais lá. Não sabia o que havia acontecido com ela até que li a respeito no jornal. Ainda devem estar dragando o rio à procura do meu cadáver.

— É óbvio que fomos todos marcados por Kaseph e sua Rede — disse Susan — mas... acho que alguém está cuidando de nós. Kevin, algo muito parecido aconteceu comigo: fugi do sítio de Kaseph a pé, e a única razão pela qual escapei foi que o pessoal da segurança saiu atrás de outra pessoa que estava tentando escapar em um dos ca minhões de mudança. Ora, quem em perfeito juízo tentaria uma coisa dessas naquele exato momento? Berenice acrescentou:

— E ainda não consegui descobrir quem neste vasto mundo era Betsy.

Havia dias que Susan vinha formulando uma teoria.

— Acho que é melhor começarmos a pensar em Deus.

— Deus?

— E anjos — acrescentou Susan. Ela relatou rapidamente os de­talhes do seu escape, e concluiu:

— Escutem, alguém entrou naquele quarto. Tenho certeza. Kevin arriscou:

— Ei, talvez tenha sido um anjo quem roubou minha caminhonete. Então Berenice lembrou-se:

— Sabem, havia algo a respeito de Betsy que simplesmente me fez chorar. Jamais encontrei algo parecido antes.

Susan tocou-lhe a mão.

— Bem, parece que todos nós estamos encontrando algo, por isso, não importa o que façamos, é melhor prestarmos atenção.

O carro continuou a percorrer velozmente as estradas secundárias, chegando ao pequeno balneário de Orting por um caminho um tanto indireto.

 Como dois companheiros de armas, Marshall e Hank estavam co­meçando a achar que se conheciam desde criança.

— Gosto do seu tipo de fé — disse Marshall. — Não admira que eles tenham feito tanta força para tirá-lo da igreja —. Ele deu uma risadinha. — Puxa, você deve sentir-se como se estivesse totalmente isolado! Você é a única coisa que separa o diabo do resto da cidade.

Hank deu um sorriso fraco.

— Não sou grande coisa, acredite. Mas não sou o único. Há santos por aí, Marshall, gente orando por nós. Mais cedo ou mais tarde, algo cederá. Deus não permitirá que Satanás se aposse desta cidade com tanta facilidade.

Marshall apontou o dedo para Hank, chegando até a sacudi-lo um pouco.

— Está vendo só? Gosto desse tipo de fé. Bem direta, arriscando tudo —. Ele meneou a cabeça. — Puxa vida! Quanto tempo faz que alguém a apresentou dessa maneira!

Hank temperou as palavras com sal, mas sabia que havia chegado a hora de falar.

— Marshall, já que estamos falando tão diretamente aqui, arris­cando tudo, que me diz de falarmos sobre você? Sabe, pode haver outras razões pelas quais Deus nos colocou juntos nesta cela.

Marshall não se mostrou nada defensivo, mas sorridente e disposto a ouvir.

— O que vamos fazer, falar do destino da minha alma eterna? Hank devolveu-lhe o sorriso.

— É exatamente disso que vamos falar.

Falaram a respeito do pecado, a tendência exasperante e destrutiva que o homem tem de afastar-se de Deus e escolher o seu caminho, sempre em prejuízo próprio. Isso os levou outra vez de volta à família de Marshall, e como tantas das atitudes e ações eram resultado direto da vontade própria básica e humana e da rebeldia contra Deus.

Marshall meneou a cabeça ao ver as coisas por esse prisma.

— Olhe, nossa família nunca conheceu a Deus. Era apenas uma representação. Não admira Sandy não aceitar nada daquilo!

Então Hank falou de Jesus, e mostrou a Marshall que esse Homem cujo nome era jogado para cá e para lá com tanta displicência, e mesmo pisoteado no mundo, era muito mais do que um símbolo religioso, uma personalidade remota e intocável num vitral colorido. Era o real, vivo e pessoal Filho de Deus, e se dispunha a ser o Senhor e Salvador pessoal de qualquer pessoa que lhe pedisse.

— Jamais pensei que estaria deitado aqui ouvindo isto — disse Marshall subitamente. — Você realmente está-me acertando onde dói, sabia?

— Bem — disse Hank — por que você acha que aconteceu assim? De onde vem a dor?

Marshall respirou fundo e tomou algum tempo para pensar.

— Acho que de saber que você está certo, o que significa que estive errado por longo, longo tempo.

— Jesus o ama mesmo assim. Ele sabe que é esse o seu problema, e foi por isso que morreu.

— Sim... certo!