O hotel em Orting era
simpático, exótico, caseiro, exatamente como o resto dessa cidade situada ao
longo do rio Judd, na fronteira da floresta nacional. Era uma hospedaria para
esportistas, construído e decorado em agradável tema de caça e pesca, de
passeio nos bosques. Susan não queria encrencas ou atenção, portanto pagou para
ter mais dois ocupantes no quarto aquela noite. Eles se dirigiram ao aposento e
abaixaram os estores. Todos deram uma passada pelo banheiro, mas Berenice ficou
lá um pouco mais, cuidadosamente enrolando de novo as faixas em torno das
costelas e a seguir lavando o rosto. Mirou-se ao espelho e tocou os machucados
muito de leve, assobiando com o que viu. Só poderia melhorar dali em diante.
Entrementes, Susan havia
jogado a grande mala sobre a cama e a havia aberto. Quando Berenice finalmente
saiu, Susan tirou um livrinho da mala e entregou-lhe.
— Foi aqui que tudo começou —
disse ela. — É o diário de sua irmã.
Berenice não sabia o que
dizer. Um brilhante não teria constituído tesouro maior. Pôde apenas baixar os
olhos ao pequeno diário azul, o último elo restante a ligá-la à irmã morta, e a
luta para acreditar que ele realmente ali se encontrava.
— Onde... como conseguiu
isto?
— Juleen Langstrat
assegurou-se de que ninguém o visse. Fez com que fosse roubado do quarto de Pat
e deu-o a Kaseph, de quem eu roubei. Tornei-me a garota de Kaseph, como sabe;
sua Serva, como ele dizia. Tinha acesso regular a ele o tempo todo, e ele
confiava em mim. Encontrei o diário por acaso certo dia quando arrumava o seu
escritório, e reconheci-o imediatamente pois costumava ver Pat escrever nele
quase todas as noites no nosso quarto do dormitório. Tirei-o às escondidas,
li-o, e ele me despertou. Eu achava que Alexander Kaseph era... bem, o Messias,
a resposta para toda a humanidade, um verdadeiro profeta da paz e da
fraternidade universais...
— Oh, ele me encheu a cabeça
com todo esse tipo de conversa, mas em algum lugar dentro de mim sempre tive minhas
dúvidas. Esse livrinho aí disse-me que desse ouvido às dúvidas e não a ele.
Berenice folheou as páginas
do diário. Datava de alguns anos atrás, e parecia muito detalhado. Susan
continuou:
— Você pode não querer ler
neste exato momento. Quando li esse diário... bem, fiquei nauseada durante
dias.
Berenice queria o fim da
história.
— Susan, você sabe como minha
irmã realmente morreu? Susan disse enraivecida:
— Sua irmã Pat foi metódica e
selvagemente destruída pela Sociedade da Percepção Universal, ou eu deveria
dizer pelas forças por trás da sociedade. Ela cometeu o mesmo erro fatal que vi
tantos outros cometerem: descobriu muita coisa a respeito da Sociedade, demonstrou
ser inimiga de Alexander Kaseph. Escute, o que Kaseph quer, ele consegue, e não
se importa com quem tenha de ser destruído, assassinado ou mutilado para
garantir isso —. Ela meneou a cabeça. — Eu tinha de estar cega para não ver o
que estava acontecendo com Pat. Era exatamente o que deveria esperar!
— E que me diz de um homem
chamado Thomas? Susan respondeu diretamente:
— Sim, foi Thomas. Ele foi o
responsável pela morte de Pat —.
Em seguida, ela acrescentou
um tanto enigmaticamente:
— Mas ele não era homem.
Berenice estava aos poucos
começando a entender esse novo jogo com suas regras muito esquisitas.
— E agora vai me dizer que
também não era mulher.
— Pat tinha um curso de
psicologia, e um dos requerimentos era o de que ela participasse de um grupo de
"cobaias" para experiências psicológicas... está no diário, lerá
tudo. Um amigo persuadiu-a a participar de uma experiência que envolvia
técnicas de descontração, e foi durante essa experiência que ela teve o que
chamou de experiência psíquica, certo tipo de percepção de um mundo superior,
como ela disse.
— Serei breve; pode ler tudo
isso por si mesma depois. Ela se apaixonou profundamente pela experiência e não
via ligação alguma entre essa exploração "científica" e as práticas
"místicas" de que eu estava participando. Ela voltou freqüentemente,
continuou a tomar parte nas experiências, e por fim entrou em contato com
aquilo que chamou de "ser humano altamente evoluído e desencarnado"
de outra dimensão, um ser muito sábio e inteligente chamado Thomas.
Berenice achou difícil
aceitar o que estava ouvindo, mas segurava a documentação do relato de Susan, o
diário da irmã.
— Então, quem era realmente
esse Thomas? Apenas invenção dela?
— Há coisas que simplesmente
terá de aceitar por enquanto replicou Susan com um suspiro. — Falamos de Deus,
brincamos com a idéia de anjos; tentemos agora anjos malignos, entidades
espirituais malignas. Para os cientistas ateus, eles poderiam aparecer como
seres extraterrenos, geralmente em suas próprias naves espaciais; aos
evolucionistas, podem alegar serem seres altamente evoluídos; aos solitários,
podem aparecer como parentes há muito mortos, falando de além túmulo;
psicólogos jungianos consideram-nos "imagens arquétipas"
desenterradas do consciente coletivo da raça humana.
— O quê?
— Ei, escute, qualquer
descrição ou definição serve, qualquer que seja o formato, qualquer que seja a
aparência necessária para conquistar a confiança da pessoa e apelar à sua
vaidade, essa é a aparência que eles tomam. E dizem à iludida pessoa que busca
a verdade o que ela quiser ouvir até terem completo domínio sobre ela.
— Como um conto do vigário,
em outras palavras.
— É tudo um conto do vigário:
meditação oriental, bruxaria, feitiçaria, Ciência da Mente, cura psíquica,
educação integralizada... oh, a lista não tem fim, é tudo a mesma coisa, nada
mais que uma tapeação para tomar a mente e o espírito das pessoas, e até seus
corpos.
Berenice repassou lembrança
após lembrança de sua investigação, e as alegações de Susan encaixavam-se
direitinho.
Susan continuou:
— Berenice, estamos lidando
com uma conspiração de entidades espirituais. Eu sei. Kaseph está envolvido com
muitas dessas entidades e recebe ordens delas. Elas fazem o trabalho sujo
dele. Se alguém se mete no caminho dele, ele dispõe de inúmeros recursos no
mundo espiritual para desvencilhar-se do problema da maneira que seja mais
conveniente.
Ted Harmel, pensou Berenice.
Os Carluccis. Quantos outros?
— Você não é a primeira
pessoa que me diz isso.
— Espero ser a última que
terá de fazê-lo. Kevin fez-se ouvir.
— Sim, lembro-me de como Pat
falava em Thomas. Ele nunca dava a impressão de ser humano. Ela agia mais como
se ele fosse um deus. Tinha de consultá-lo antes mesmo de resolver o que comer
no café da manhã. Eu... eu achei que ela tinha arranjado um namorado, sabe,
algum tipo machão chauvinista.
Susan entrou suavemente no
arremate da história.
— Pat havia entregue a
vontade a Thomas. Não demorou muito; geralmente não demora, uma vez que a
pessoa realmente se submeta à influência de um espírito. Sem dúvida ele passou
a controlá-la, depois a aterrorizá-la, depois convenceu-a de que... bem, os
hindus chamam isso de carma; é a ilusão de que sua próxima vida será melhor que
esta porque você fez um número suficiente de pontos. No caso de Pat, uma morte
auto-infligida nada mais seria do que a forma de escapar ao mal deste mundo
inferior e juntar-se a Thomas num estado superior de existência.
Susan folheou delicadamente
as páginas do diário que ainda se encontrava nas mãos de Berenice, e encontrou
o última anotação.
— Aí está. A última coisa no
diário de Pat é uma carta de amor a Thomas. Ela planejava juntar-se a ele em
breve, e chega a mencionar como fará isso.
A idéia de ler essa carta
repelia Berenice, mas ela pôs-se a repassar as últimas páginas do diário da
irmã. Pat escrevera no estilo de alguém que estivesse sob uma ilusão muito
estranha que soava grandiosa, mas ficava patente que ela também estava
desorientada por um medo irracional da própria vida. Terrível sofrimento e
angústia espiritual haviam tomado conta de sua alma, transformando-a da
despreocupada Patrícia Krueger com quem Berenice havia sido criada em uma
psicótica aterrorizada, sem rumo, totalmente desligada da realidade.
Berenice tentou continuar a
leitura, mas começou a sentir antigas mágoas reabrindo-se; emoções que haviam
esperado por esse exato momento de revelação final explodiram de seus
esconderijos como um rio através da comporta aberta. As palavras rabiscadas e
errantes nas páginas borraram atrás de súbita cascata de lágrimas, e todo o seu
corpo foi sacudido por soluços. Tudo o que ela queria fazer era excluir o
mundo, não dar atenção a essa mulher galante e a esse pobre madeireiro
desgrenhado, deitar-se na cama, e chorar. E foi o que fez.
Ele havia levado chumbo nas
entranhas. Essa era a impressão que tinha. Nalgum canto, ele havia perdido a
proteção do seu escudo, a força, a fachada forte e durona. Sempre havia sido
Marshall Hogan, o caçador, o perseguidor, o que conseguia tudo o que queria com
a atitude de saia-da-minha-frente, um inimigo que não podia ser subestimado,
um cara que se virava sozinho.
Um estafermo, isso é o que
era, e nada mais que um tolo. Esse Hank Busche tinha razão. Olhe para você,
Hogan. Não se preocupe com Deus pisar na bola; você já pisou há muito tempo.
Deu com os burros na água, cara. Achou que tinha tudo sob controle, e agora
onde está a sua família, e onde está você?
Talvez tenha caído na
esparrela desses demônios de quem Hank esteve falando, mas pode ser também que
tenha caído na sua própria esparrela. Convenhamos, Marshall, que sabe por que
lesou a sua família. Pura negligência, a mesma velha história. E gostou de trabalhar
com a sua repórter bonita, não gostou? Provocando-a, ati-rando-lhe bolinhas de
papel, ora essa! Quantos anos tem, dezesseis?
Marshall deixou que a mente e
o coração lhe dissessem a verdade, e sentiu que muito do que falaram já era do
seu conhecimento em algum lugar mas ele nunca havia escutado. Por quanto tempo,
começou a perguntar-se, tinha mentido para si mesmo?
— Kate — sussurrou ali no
escuro, os olhos brilhantes de lágrimas. — Kate, o que foi que fiz?
Uma grande mão atravessou a
cela e tocou o ombro de Hank. Hank mexeu-se, abriu os olhos e disse baixinho:
— Sim, o que é?
Marshall chorava e disse em
voz muito baixa:
— Hank, não presto. Preciso
de Deus. Preciso de Jesus. Quantas vezes na vida havia Hank dito as palavras
"Vamos orar."
Depois que diversos minutos
se haviam passado, Berenice começou a sentir o dilúvio amainar. Ela se sentou,
ainda fungando, mas tentado retornar ao negócio diante deles.
— Foi o que me despertou —
reiterou Susan. — Achei que esses seres eram benevolentes; achei que Kaseph
tinha todas as respostas. Mas vi a todos como realmente eram ao ler o que
fizeram com a minha melhor amiga, Sua irmã.
Kevin perguntou:
— Então foi por isso que você
me procurou no parque de diversões e pediu o meu número?
— Kaseph tinha uma reunião
especial na cidade com Langstrat e outros conspiradores vitais, Oliver Young e
Alf Brummel. Eu fui a Ashton com Kaseph, acompanhando-o como sempre, mas quando
tive a oportunidade, escapuli. Tinha de aproveitar a chance de talvez
encontrá-lo em algum lugar. Talvez tenha sido Deus outra vez; foi nada menos
que milagroso o fato de ter encontrado você no parque. Eu precisava de um amigo
no lado de fora em quem eu pudesse confiar, alguém obscuro.
Kevin sorriu.
— É, essa descrição me
assenta muito bem. Susan continuou:
— Kaseph nunca gostou de
sentir que não tinha controle absoluto sobre mim. Quando desapareci de vista no
parque, ele provavelmente disse aos outros que fora ele quem me enviara lá e
que eles se encontrariam comigo. Quando ele me encontrou e me arrastou atrás
daquela barraca idiota, falou aos outros como se eu tivesse ido à frente e
escolhido aquele lugar.
Berenice disse:
— E foi nessa hora que
apareci e tirei a foto de vocês!
— E Alf Brummel passou umas
notas àquelas duas prostitutas e algumas instruções a alguns de seus amigos de
Windsor, e você sabe o resto.
Susan dirigiu-se à mala.
— Mas vamos agora à notícia
realmente importante. Kaseph fará a sua jogada amanhã. Há uma reunião especial
marcada com os membros do conselho diretor da Faculdade Whitmore para as
14:00hs. A Omni S.A., como uma frente da Sociedade da Percepção Universal, tem
planos de comprar a Faculdade Whitmore, e Kaseph vai fechar o negócio.
Os olhos de Berenice se
escancararam de horror.
— Então tínhamos razão! Ele
quer-se apoderar da faculdade!
— É boa estratégia. A cidade
inteira de Ashton está praticamente construída em torno da faculdade. Uma vez
que a Sociedade e Kaseph se estabeleçam em Whitmore, exercerão influência
avassaladora so-
bre o resto da cidade. O
pessoal da Sociedade afluirá ali como um enxame e Ashton se tornará outra
"Cidade Sagrada da Mente Universal". Já aconteceu um número
suficiente de vezes antes, em outras cidades, em outros países. Berenice deu um
soco na cama em frustração.
— Susan, temos os registros
das transações financeiras de Eugene Baylor, prova que poderia mostrar como a
faculdade foi arruinada. Mas não conseguimos entender nada daquilo!
Susan tirou uma latinha da
mala.
— Na realidade, vocês só têm
metade do quadro. Baylor não é nenhum bobo; sabia que teria de esconder o que
fazia de forma que seu desfalque em favor da Omni não fosse percebido. Você
precisa é da outra metade das transações: os registros do próprio Kaseph —. Ela
estendeu a latinha para que eles vissem. — Eu não tinha espaço para todo o
material. Não obstante, fotografei-o, e se pudéssemos revelar este filme...
— Temos um quarto escuro no
Clarim. Poderíamos fazer as fotos imediatamente.
— Vamos sair daqui. Eles
andaram depressa.
Medo, raiva e oração
aumentaram. Algo terrível estava acontecendo à cidade, e todos eles sabiam
disso vividamente, mas o que podia ser feito numa cidade cujas autoridades
estavam surdas, em um município cujos gabinetes estavam fechados para o
fim-de-semana?
As linhas telefônicas
continuavam zumbindo, tanto dentro da cidade quanto em chamadas interurbanas a
parentes e amigos, e todos esses caíram de joelhos em intercessão e ligaram
para suas próprias autoridades e legisladores.
Alf Brummel manteve-se
afastado do seu gabinete, evitando assim algum cristão aborrecido que lhe viesse
com sermões acerca dos direitos constitucionais do seu pastor, ou do dever de
um funcionário público de fazer a vontade do povo, ou qualquer outra coisa. Permaneceu
no apartamento de Langstrat andando de um lado a outro, preocupado, suando,
esperando as 14:00 horas do domingo.
Vovó Duster continuava a orar
e a assegurar a todos que Deus tinha tudo sob controle. Lembrou-lhes do que os
anjos lhe haviam dito, e a seguir relembrou-os daquilo com que eles haviam
sonhado, ou ouvido em pensamento enquanto oravam, ou visto numa visão, ou
sentido em seus espíritos. E eles continuavam a orar pela cidade.
E por toda a parte, de todas
as direções, novos visitantes continuavam a chegar a Ashton, transportados em
caminhões de feno ou passando-os na estrada, pedindo carona como fazem
excursionistas no verão, deslizando pelos milharais e a seguir pelas ruas secundárias,
rugindo cidade adentro como motoqueiros doidos, chegando agarradinhos como
colegiais, escondidos em porta-malas e debaixo do bojo de todo o veículo que passava
pela Rodovia 27.
E continuamente os
escaninhos, as frestas, os aposentos que ninguém usava, e incontáveis
esconderijos além desses em toda a cidade ficaram repletos de vultos quietos,
calados, as mãos robustas nas espadas, os olhos dourados penetrantes e alertas,
os ouvidos sintonizados a um som específico de uma trombeta específica.
Acima da cidade, escondido
nas árvores, Tal ainda podia olhar do outro lado do vasto vale e ver Rafar na
grande árvore morta, supervisionando as atividades de seus demônios.
Capitão Tal continuava a
vigiar e esperar.
No escurecido centro da
nuvem, no casarão de pedra, sentava-se o Valente com olhos meio fechados e um
risinho torto que tornava mais profundas as dobras de sua grande cara flácida.
Na companhia de seus generais, ele tirou tempo para vangloriar-se com as
notícias que havia acabado de receber de Ashton.
— O Príncipe Rafar satisfez a
meus desejos, cumpriu sua missão — disse o Valente, pondo à mostra em seguida
as presas de marfim em um sorriso baboso. — Vou gostar daquela cidadezinha. Em
minhas mãos, ela crescerá como uma árvore e encherá os campos.
Ele saboreou seu próximo
pensamento:
— Pode ser que jamais tenha
de deslocar-me daquele lugar. O que acham? Teremos nosso lar enfim?
Os altos e odiosos generais
murmuraram todos afirmativamente. O Valente ergueu-se do seu assento, e os
outros puseram-se de chofre em rígida e aprumada posição de sentido.
— O nosso Sr. Kaseph tem-me
chamado por algum tempo agora. Preparem as tropas. Partiremos imediatamente.
Os generais arrojaram-se
através do teto da casa nuvem adentro, ganindo ordens, reunindo as tropas.
O Valente desfraldou as asas
com pose real, depois qual abutre monstruoso, pesadão, flutuou ao aposento no
porão onde Alexander Kaseph, sentado de pernas cruzadas sobre uma grande
almofada, entoava o nome do Valente vez após vez. O Valente aterrizou à frente
de Kaseph e observou-o por um momento, sorvendo a adoração e servilidade
espirituais de Kaseph. Então, num movimento rápido, adiantou-se e deixou seu
enorme vulto dissolver-se no corpo de Kaseph enquanto o homem se crispava e
contorcia grotescamente. Em um instante, a possessão era completa, e Alexander
Kaseph despertou da meditação.
— Chegou a hora! — disse ele, com a expressão do Valente nos olhos.