quinta-feira, 6 de maio de 2021

Este mundo tenebroso - volume 01 -Capítulo 20

Marshall estava começando a preocupar-se com os amor­tecedores. Essa velha estrada de madeireiros tinha mais buracos do que asfalto; aparentemente já não era muito usada pelas serrarias, mas havia sido deixada aos caçadores e ex­cursionistas que conheciam a área o suficiente para não se perder. Marshall não a conhecia. Ele olhou novamente às instruções rabis­cadas e depois ao odômetro. Puxa, os quilômetros passam devagar em estradas como esta!

Sacolejando, Marshall contornou uma curva pedregosa e final­mente viu um veículo adiante, estacionado ao lado da estrada. Sim, um velho Corcel. Era Harmel. Marshall encostou atrás do Corcel e saiu. Ted Harmel desceu do carro, vestido em trajes apropriados ao ar livre: camisa de lã, calças de brim desbotadas, botas, boné de lã. Seu aspecto correspondia ao tom de voz: exausto e apavorado.

— Hogan? — perguntou.

— Sim — disse Marshall, estendendo a mão. Harmel apertou-a e então voltou-se bruscamente.

— Venha comigo.

Marshall seguiu-o por um trilho que subia por entre árvores altas, toras, pedras e vegetação rasteira. Marshall estava de terno e os sa­patos definitivamente eram do tipo errado para aquele terreno, mas não seria ele quem reclamaria; recapturara a caça que havia fugido.

Finalmente Harmel pareceu dar-se por satisfeito com o isolamento que haviam alcançado. Encaminhou-se a uma enorme tora ressecada e descorada pelas estações, e sentou-se sobre ela. Marshall sentou-se ao seu lado.

— Quero agradecer o ter-me chamado — disse Marshall abrindo o diálogo.

— Nunca tivemos este encontro — disse Harmel abruptamente. — Está de acordo?

— Conte comigo.

— Agora, o que sabe a meu respeito?

— Não muito. Você foi o redator do Clarim, Eugene Baylor e os outros diretores da faculdade estiveram envolvidos no seu caso, você e Eldon Strachan são amigos... — Marshall repassou rapidamente tudo o que conseguira descobrir, em grande parte o que ele e Berenice tinham coligido de antigos artigos do Clarim.

Harmel assentiu com a cabeça.

— Sim, tudo isso é verdade. Eldon e eu ainda somos amigos. Pas­samos basicamente pela mesma coisa, por isso temos uma espécie de companheirismo. Quanto ao molestamento de Maria Jarred, a menina de Adam Jarred, foi um embuste estranho. Não sei quem a preparou, ou como, mas alguém fez aquela menina dizer todas as palavras certas à polícia. Acho muito significativo o fato de a questão toda ter sido engavetada na surdina. O que disseram que eu fiz é crime; não se dispõe de uma coisa desse tipo debaixo de um quieto assim.

— Por que aconteceu, Ted? O que você fez para trazer uma coisa dessas sobre si?

— Envolvi-me demais. Você tem razão quanto a Juleen e os outros. É uma sociedade secreta, um clube, toda uma rede de pessoas. Nin­guém guarda segredo de nenhum dos outros. Os olhos do grupo estão por toda a parte; vigiam o que a pessoa faz, o que diz, o que pensa, como se sente. Estão trabalhando em prol do que chamam de Mente Universal, o conceito de que mais cedo ou mais tarde todos os ha­bitantes do mundo darão um gigantesco salto evolucionário e se unirão em um cérebro global, uma percepção transcendental —. Har­mel se deteve e olhou para Marshall.— Estou soltando tudo conforme vai-me ocorrendo. Está fazendo sentido?

Marshall teve de comparar o que Harmel estava "soltando" com aquilo que ele já sabia.

— Cada pessoa afiliada à rede exclusiva aceita essas idéias?

— Sim. A coisa toda é estruturada ao redor de idéias de ocultismo, misticismo oriental, percepção cósmica. É por isso que meditam e fazem leituras psíquicas e tentam unificar as mentes...

— É isso o que fazem nas sessões de terapia com a Langstrat?

— Sim, exatamente. Cada pessoa que se associa à rede passa por certo processo de iniciação. Reúne-se com Juleen e aprende a alcançar estados alterados de percepção, poderes psíquicos, experiências fora do corpo. As sessões podem constituir de apenas uma pessoa, ou diversas, mas Juleen está no centro de tudo, como guru, e todos nós éramos seus discípulos. Todos nos tornamos como um, um or­ganismo crescente, interdependente, tentando tornar-nos um com a Mente Universal.

— Você disse algo acerca de... unificar as mentes?

— Percepção Extra-Sensorial, telepatia, seja lá o que for. Os pen­samentos da pessoa não lhe pertencem, nem tampouco a vida. A pessoa não passa de um segmento do todo. Juleen é muito hábil em coisas desse tipo. Ela... ela conhecia cada pensamento meu. Ela me possuía... — Harmel teve dificuldade em falar sobre essa parte. Tornou-se tenso, a voz falhou e o volume diminuiu. — Talvez ainda me possua. Às vezes, ouço-a a me chamar... movendo-se pelo meu cérebro.

— Ela possui todos os outros também? Harmel assentiu com a cabeça.

— Sim, todos possuem todos, e não se deterão enquanto não pos­suírem toda a cidade. Eu podia ver que era nisso que daria. Qualquer pessoa que os atrapalha desaparece subitamente. É por isso que ainda estou sem saber o que aconteceu a Edie. Desde que esse negócio todo começou a ocorrer, fico desconfiado quando alguém desaparece de repente...

— Que perigo Edie podia representar para eles?

— Talvez ela seja apenas mais um passo para a sua eliminação. Não me surpreenderia. Eles eliminaram Eldon, me eliminaram, eli­minaram Jefferson...

— Quem é Jefferson?

— O juiz distrital. Não sei como o conseguiram, mas, de repente, ele resolveu que não queria ser reeleito. Vendeu a casa, deixou a cidade, e ninguém ouviu falar nele desde então.

— E agora Baker ocupa o lugar dele...

— Ele faz parte da rede. É possuído.

— E então, você sabia disso na ocasião em que seu pequeno crime foi resolvido na surdina?

Harmel assentiu com a cabeça.

— Ele me disse que podia criar um caso muito feio para mim, entregar-me nas mãos do promotor municipal e aí estaria fora de sua jurisdição. Ele sabia muito bem que era uma fraude! Era cheque-mate e aceitei o que ele ofereceu. Saí da cidade.

Marshall tirou um bloco de anotações e a caneta.

— Quem mais você conhece que pertence ao bando? Harmel desviou o olhar.

— Se eu lhe contar demais, saberão que fui eu a fonte. Você terá de descobrir por si mesmo. Tudo o que posso fazer é orientá-lo na direção certa. Verifique o gabinete do prefeito e a câmara dos verea­dores; veja quem é novo ali e quem foi substituído. Tem havido muitas substituições ultimamente —. Marshall anotou. — Você tem o Brummel?

— Sim, Brummel, Young, Baker.

— Verifique o comissário municipal de terras, e o presidente do Banco Independente, e... — Harmel sondava a memória. — O te­soureiro municipal.

— Ele está na minha lista.

— O conselho diretor da faculdade?

— Sim. Escute, não foi o arrufo com eles que o levou a ser expulso da cidade?

— Apenas em parte. Eu já não estava sob o controle deles. Atra­palhava. A rede deu um jeito em mim antes que eu lhes causasse dano. Mas não há como prová-lo. De qualquer forma, não importa. A coisa toda é grande demais; é como um enorme organismo, um câncer que vai-se espalhando. Você não pode ir atrás de apenas uma das partes como os diretores e pensar que mata a coisa toda. Está em toda a parte, em todos os níveis. Você é religioso?

— Num sentido meio limitado, acho.

— Bem, vai precisar de alguma coisa para a luta. É espiritual, Hogan. Não dá ouvidos à razão, nem à lei, ou a nenhum conjunto de leis morais além do seu próprio. Eles não acreditam em nenhum Deus, eles são Deus —. Harmel fez uma pausa a fim de se acalmar e então principiou em tom diferente. — Comecei a envolver-me com Juleen quando quis escrever uma história acerca da assim chamada pesquisa que ela estava fazendo. Fiquei intrigado com tudo aquilo, a parapsicologia, os estranhos fenômenos que ela estava documen­tando. Comecei também a fazer sessões de aconselhamento com ela. Deixei-a ler e fotografar minha aura e meu campo de energia. Deixei que ela me sondasse a mente e fundisse os nossos pensamentos. Na realidade, entrei para aquilo à procura de uma novidade, mas fui fisgado. Não consegui me afastar. Depois de certo tempo comecei a participar de algumas das mesmas coisas com as quais ela estava profundamente envolvida: eu saía do corpo, ia para o espaço, con­versava com meus instrutores — Harmel se deteve. — Oh, cara, está certo: você nunca vai acreditar em nada do que eu disse!

Marshall foi firme, e talvez realmente acreditasse.

— Diga-me, de qualquer modo.

Harmel cerrou os dentes e voltou os olhos para o céu. Tateou, gaguejou, empalideceu.

— Não sei. Acho que não posso contar. Eles descobrirão.

— Quem descobrirá?

— A rede.

— Estamos no meio do mato, Ted!

— Não importa...

— Você usou a palavra instrutores. Quem são eles?

Harmel apenas ficou sentado, tremendo, o terror esculpido em seu rosto.

— Hogan — disse afinal — ninguém pode traí-los. Não lhe posso dizer! Eles saberão!

— Mas quem são? Pode pelo menos dizer-me isso?

— Nem sei se são reais — murmurou Harmel. — Eles apenas es­tão. .. ali, isso é tudo. Professores íntimos, guias espirituais, mestres elevados... são chamados de todo o tipo de coisa. Mas qualquer pessoa que siga os ensinamentos de Juleen por muito tempo inva­riavelmente acaba se envolvendo com eles. Eles aparecem sem a gente saber de onde vêm, falam com a gente, às vezes aparecem quando se está meditando. Há vezes em que a própria pessoa os visualiza, mas depois eles assumem vida e personalidade próprias... já não é apenas a sua imaginação.

— Mas o que são eles?

— Seres... entidades. Às vezes são como pessoas de verdade, às vezes ouve-se apenas uma voz, às vezes apenas sente-se a presença delas, como espíritos, suponho. Juleen trabalha para eles, ou talvez eles trabalhem para ela, não sei como a coisa funciona. Mas não se pode esconder deles, não se pode fugir, não se pode fazer nada em segredo. São parte da rede e a rede sabe tudo, controla tudo. Juleen me controlava. Chegou a interpor-se entre mim e Gail. Perdi minha esposa por causa desse negócio. Comecei a fazer tudo o que Juleen mandava... ela me chamava no meio da noite e me dizia que fosse à sua casa, e eu ia. Ela me dizia que não publicasse certa história, eu não publicava. Ela me dizia que tipo de notícias publicar e eu publicava, exatamente como ela mandava.

— Ela me possuía, Hogan. Podia ter-me dito que pegasse um re­vólver e me matasse, e talvez eu o tivesse feito. Você precisa conhecê-la para entender o que estou dizendo.

Marshall lembrou-se de estar em pé no corredor do lado de fora da classe de Juleen Langstrat sem saber como fora parar lá.

— Acho que entendo.

— Mas Eldon descobriu o que estava acontecendo com as finanças da faculdade, e nós dois averiguamos a coisa, e ele estava certo. A faculdade estava a caminho do desastre, e estou certo de que ainda está. Eldon tentou detê-la, endireitar toda a bagunça. Tentei ajudá-lo. Juleen veio atrás de mim imediatamente e fez todo o tipo de ameaça. Acabei indo em duas direções, fiel a duas causas diferentes. Era como ser rasgado ao meio por dentro. Talvez tenha sido o que me fez despertar; resolvi que já não seria controlado, nem pela rede, nem por ninguém. Eu era jornalista; tinha de publicar as coisas da forma como as via.

— E eles deram um jeito em você.

— Veio totalmente de surpresa. Bem, talvez não totalmente. Quando a polícia foi ao jornal e me prendeu, eu quase sabia do que se tratava. Era algo que eu podia ter predito pela forma como Juleen e os outros me ameaçaram. Eles já haviam feito esse tipo de coisa antes.

— Por exemplo?

— Não posso deixar de pensar que os escritórios imobiliários, os registros de impostos, qualquer informação que possa obter acerca das propriedades na cidade poderiam mostrar algo. Não pude in­vestigar esse lado quando era redator, mas todas as recentes tran­sações imobiliárias não me pareciam muito corretas.

 O negócio imobiliário não estava parecendo muito correto a Be­renice também. Assim que ela chegou à frente da Imobiliária Tyler e Filhos, viu o dono, Albert Tyler, fechando o prédio e aprontando-se para sair.

Ela abriu a janela do carro e perguntou:

— Escute, vocês não ficam abertos até às 5:00hs? Tyler sorriu e deu de ombros.

— Não nas quintas.

Berenice leu o horário na porta da frente.

— Mas o horário diz segunda a sexta, das 10:00 às 5:00hs. Tyler mostrou-se um tanto irritado.

— Não nas quintas, já disse!

Berenice notou o filho de Tyler, Calvin, saindo em seu Fusca de trás do prédio. Ela saltou do carro e acenou-lhe que parasse. De má vontade, ele parou e abriu a janela.

— O que é? — perguntou.

— Vocês geralmente não ficam abertos até às 5:00hs nas quintas? Calvin deu de ombros e fez uma careta.

— E eu sei lá? O velho diz vão para casa, e todos nós vamos para casa.

Ele se foi. O "velho" Tyler estava entrando em seu carro. Berenice correu até ele e abanou a mão chamando-lhe a atenção.

A essa altura ele estava realmente zangado. Abriu a janela e disse asperamente:

— Dona, já fechamos e tenho de ir para casa!

— Eu queria apenas examinar o seu arquivo de microfilmes. Pre­ciso de informação sobre uma propriedade.

Ele abanou a cabeça.

Não posso ajudá-la, de qualquer forma. Nosso arquivo de micro­filmes está quebrado.

— O quê...?

Mas Tyler fechou a janela e se foi, cantando os pneus de leve. Berenice gritou enraivecida após ele:

— Rosemary o avisou?

Ela se dirigiu às pressas ao carro. Havia ainda a Primeira Imobi­liária da Cidade. Ela sabia que seu proprietário dava uma mão ao time juvenil de beisebol nas tardes de quinta-feira. Talvez a outra garota que trabalhava lá não soubesse quem ela era.

 Harmel tinha um aspecto sombrio e abatido quando disse:

— Eles acabarão com você, Hogan. Têm influência e as conexões a fim de fazê-lo. Olhe para mim: perdi tudo o que possuía, perdi minha esposa e minha família... eles me depenaram. Farão o mesmo com você.

Marshall queria respostas, não vaticínios de mau agouro.

— O que sabe acerca de um sujeito chamado Kaseph? Harmel fez uma careta de renovado desprazer.

— Vá atrás dele. Ele pode ser a fonte de toda a encrenca. Juleen adorava esse cara. Todo o mundo fazia o que Juleen mandava, mas ela fazia o que ele mandava.

— Você sabe se ele estava procurando alguma propriedade em Ashton?

— Ele estava babando pela faculdade, disso eu sei. Marshall surpreendeu-se.

— A faculdade? Continue.

— Não cheguei a ter a chance de investigar isso, mas pode ser que haja algo aí. Ouvi conversa na Rede de que a faculdade seria total­mente tomada por alguns maiorais da Rede, e Eugene Baylor passava muito tempo conversando sobre dinheiro com Kaseph ou seus re­presentantes.

— Kaseph estava tentando comprar a faculdade?

Ainda não comprou. Mas acabou comprando tudo o mais na cidade.

— O quê, por exemplo?

— Uma porção das casas, disso sei, mas não consegui descobrir muita coisa. Como já disse, examine os registros de impostos ou as agências imobiliárias a fim de saber se ele está comprando outras coisas. Sei que tinha o dinheiro para fazê-lo —. Harmel puxou um envelope de papel amarelo rasgado de debaixo da jaqueta. — E tire-me isto das mãos, está bem?

Marshall apanhou o envelope.

— O que é?

— Uma maldição, isso é o que é. Algo acontece a quem o possuir.

O contador amigo de Eldon, Ernie Johnson, me deu, e acho que Eldon lhe tenha dito o que aconteceu ao homem?

— Ele me contou.

— Contém o que Johnson encontrou no departamento de conta­bilidade da faculdade.

Marshall não conseguia acreditar na sua sorte.

— Você deve estar brincando. Eldon sabe a respeito disto?

— Não, eu mesmo acabei de encontrar esses papéis, mas não se ponha a dançar ainda. É melhor arranjar um contador amigo seu a fim de tentar decifrá-los. Não fazem muito sentido para mim... Acho que falta a outra metade dele.

— É um começo. Obrigado.

— Se você quiser brincar com teorias, experimente esta: Kaseph vem a Ashton e quer comprar tudo em que consegue pôr as mãos. A faculdade não está nem pensando em venda. Logo a seguir, graças a Baylor, a faculdade se mete em apuros financeiros tão profundos que vender pode ser a única forma de sair da encrenca. De repente, a oferta de Kaseph não está tão fora de cogitação e a essa altura o conselho diretor está lotado de gente que concorda com a venda.

Marshall abriu o envelope e folheou as páginas e páginas de fo­tocópias de colunas e números.

— E você não conseguiu encontrar nenhuma pista nisto tudo?

— Não é de mais pista que você precisa, não tanto quanto de prova. O que precisa realmente achar é quem está no outro lado de todas essas transações.

— Os amigos de Kaseph, talvez?

— Com todos os amigos e associados que ele tem naquela facul­dade, eu não ficaria surpreso se Kaseph estivesse voltando a comprá-la com dinheiro da própria faculdade!

— Essa é uma teoria e tanto. Mas o que um homem como esse iria querer com uma cidadezinha, ou mesmo com toda uma faculdade?

— Hogan, um sujeito com o poder e a grana que aquele cara parece possuir poderia tomar toda a cidade de Ashton e fazer o que quisesse com ela. Acho que, em grande parte, ele já conseguiu isso.

— Como sabe?

— Apenas averigúe.