Marshall estava começando a preocupar-se com os amortecedores. Essa velha
estrada de madeireiros tinha mais buracos do que asfalto; aparentemente já não
era muito usada pelas serrarias, mas havia sido deixada aos caçadores e excursionistas
que conheciam a área o suficiente para não se perder. Marshall não a conhecia.
Ele olhou novamente às instruções rabiscadas e depois ao odômetro. Puxa, os
quilômetros passam devagar em estradas como esta!
Sacolejando, Marshall contornou uma curva pedregosa e
finalmente viu um veículo adiante, estacionado ao lado da estrada. Sim, um velho Corcel. Era
Harmel. Marshall encostou atrás do Corcel e saiu. Ted Harmel desceu do carro,
vestido em trajes apropriados ao ar livre: camisa de lã, calças de brim
desbotadas, botas, boné de lã. Seu aspecto correspondia ao tom de voz: exausto
e apavorado.
—
Hogan? — perguntou.
—
Sim — disse Marshall, estendendo a mão. Harmel apertou-a e então voltou-se
bruscamente.
—
Venha comigo.
Marshall seguiu-o por um trilho que subia por entre árvores altas, toras,
pedras e vegetação rasteira. Marshall estava de terno e os sapatos
definitivamente eram do tipo errado para aquele terreno, mas não seria ele quem
reclamaria; recapturara a caça que havia fugido.
Finalmente Harmel pareceu dar-se por satisfeito com o
isolamento que haviam alcançado. Encaminhou-se a uma enorme tora ressecada e descorada pelas estações, e sentou-se sobre ela. Marshall sentou-se ao seu lado.
—
Quero agradecer o ter-me chamado — disse Marshall abrindo o diálogo.
—
Nunca tivemos este encontro — disse Harmel abruptamente. — Está de acordo?
—
Conte comigo.
—
Agora, o que sabe a meu respeito?
—
Não muito. Você foi o redator do Clarim, Eugene Baylor e os outros
diretores da faculdade estiveram envolvidos no seu caso, você e Eldon Strachan
são amigos... — Marshall repassou rapidamente tudo o que conseguira descobrir,
em grande parte o que ele e Berenice tinham coligido de antigos artigos do Clarim.
Harmel assentiu com a cabeça.
—
Sim, tudo isso é verdade. Eldon e eu ainda somos amigos. Passamos basicamente
pela mesma coisa, por isso temos uma espécie de companheirismo. Quanto ao
molestamento de Maria Jarred, a menina de Adam Jarred, foi um embuste estranho.
Não sei quem a preparou, ou como, mas alguém fez aquela menina dizer todas as
palavras certas à polícia. Acho muito significativo o fato de a questão toda
ter sido engavetada na surdina. O que disseram que eu fiz é crime; não se
dispõe de uma coisa desse tipo debaixo de um quieto assim.
—
Por que aconteceu, Ted? O que você fez para trazer uma coisa dessas sobre si?
—
Envolvi-me demais. Você tem razão quanto a Juleen e os outros. É uma sociedade
secreta, um clube, toda uma rede de pessoas. Ninguém guarda segredo de nenhum
dos outros. Os olhos do grupo estão por toda a parte; vigiam o que a pessoa
faz, o que diz, o que pensa, como se sente. Estão trabalhando em prol do que
chamam de Mente Universal, o conceito de que mais cedo ou mais tarde todos os
habitantes do mundo darão um gigantesco salto evolucionário e se unirão em um
cérebro global, uma percepção transcendental —. Harmel se deteve e olhou para
Marshall.— Estou soltando tudo conforme vai-me ocorrendo. Está fazendo sentido?
Marshall teve de comparar o que Harmel estava
"soltando" com aquilo que ele já sabia.
—
Cada pessoa afiliada à rede exclusiva aceita essas idéias?
—
Sim. A coisa toda é estruturada ao redor de idéias de ocultismo, misticismo
oriental, percepção cósmica. É por isso que meditam e fazem leituras psíquicas
e tentam unificar as mentes...
—
É isso o que fazem nas sessões de terapia com a Langstrat?
—
Sim, exatamente. Cada pessoa que se associa à rede passa por certo processo de
iniciação. Reúne-se com Juleen e aprende a alcançar estados alterados de
percepção, poderes psíquicos, experiências fora do corpo. As sessões podem
constituir de apenas uma pessoa, ou diversas, mas Juleen está no centro de
tudo, como guru, e todos nós éramos seus discípulos. Todos nos tornamos como
um, um organismo crescente, interdependente, tentando tornar-nos um com a
Mente Universal.
—
Você disse algo acerca de... unificar as mentes?
—
Percepção Extra-Sensorial, telepatia, seja lá o que for. Os pensamentos da
pessoa não lhe pertencem, nem tampouco a vida. A pessoa não passa de um
segmento do todo. Juleen é muito hábil em coisas desse tipo. Ela... ela
conhecia cada pensamento meu. Ela me possuía... — Harmel teve dificuldade em
falar sobre essa parte. Tornou-se tenso, a voz falhou e o volume diminuiu. —
Talvez ainda me possua. Às vezes, ouço-a a me chamar... movendo-se pelo meu
cérebro.
—
Ela possui todos os outros também? Harmel assentiu com a cabeça.
—
Sim, todos possuem todos, e não se deterão enquanto não possuírem toda a
cidade. Eu podia ver que era nisso que daria. Qualquer pessoa que os atrapalha
desaparece subitamente. É por isso que ainda estou sem saber o que aconteceu a
Edie. Desde que esse negócio todo começou a ocorrer, fico desconfiado quando
alguém desaparece de repente...
—
Que perigo Edie podia representar para eles?
—
Talvez ela seja apenas mais um passo para a sua eliminação. Não me
surpreenderia. Eles eliminaram Eldon, me eliminaram, eliminaram Jefferson...
—
Quem é Jefferson?
—
O juiz distrital. Não sei como o conseguiram, mas, de repente, ele resolveu que
não queria ser reeleito. Vendeu a casa, deixou a cidade, e ninguém ouviu falar
nele desde então.
—
E agora Baker ocupa o lugar dele...
—
Ele faz parte da rede. É possuído.
—
E então, você sabia disso na ocasião em que seu pequeno crime foi resolvido na
surdina?
Harmel assentiu com a cabeça.
—
Ele me disse que podia criar um caso muito feio para mim, entregar-me nas mãos
do promotor municipal e aí estaria fora de sua jurisdição. Ele sabia muito bem
que era uma fraude! Era cheque-mate e aceitei o que ele ofereceu. Saí da
cidade.
Marshall tirou um bloco de anotações e a caneta.
—
Quem mais você conhece que pertence ao bando? Harmel desviou o olhar.
—
Se eu lhe contar demais, saberão que fui eu a fonte. Você terá de descobrir por si mesmo. Tudo o que posso fazer é orientá-lo na direção
certa. Verifique o gabinete do prefeito e a câmara dos vereadores; veja quem é
novo ali e quem foi substituído. Tem havido muitas substituições ultimamente —.
Marshall anotou. — Você tem o Brummel?
—
Sim, Brummel, Young, Baker.
—
Verifique o comissário municipal de terras, e o presidente do Banco
Independente, e... — Harmel sondava a memória. — O tesoureiro municipal.
—
Ele está na minha lista.
—
O conselho diretor da faculdade?
—
Sim. Escute, não foi o arrufo com eles que o levou a ser expulso da cidade?
—
Apenas em parte. Eu já não estava sob o controle deles. Atrapalhava. A rede
deu um jeito em mim antes que eu lhes causasse dano. Mas não há como prová-lo.
De qualquer forma, não importa. A coisa toda é grande demais; é como um enorme
organismo, um câncer que vai-se espalhando. Você não pode ir atrás de apenas
uma das partes como os diretores e pensar que mata a coisa toda. Está em toda a
parte, em todos os níveis. Você é religioso?
—
Num sentido meio limitado, acho.
—
Bem, vai precisar de alguma coisa para a luta. É espiritual, Hogan. Não
dá ouvidos à razão, nem à lei, ou a nenhum conjunto de leis morais além do seu
próprio. Eles não acreditam em nenhum Deus, eles são Deus —. Harmel fez
uma pausa a fim de se acalmar e então principiou em tom diferente. — Comecei a
envolver-me com Juleen quando quis escrever uma história acerca da assim
chamada pesquisa que ela estava fazendo. Fiquei intrigado com tudo aquilo, a
parapsicologia, os estranhos fenômenos que ela estava documentando. Comecei
também a fazer sessões de aconselhamento com ela. Deixei-a ler e
fotografar minha aura e meu campo de energia. Deixei que ela me sondasse a
mente e fundisse os nossos pensamentos. Na realidade, entrei para aquilo à
procura de uma novidade, mas fui fisgado. Não consegui me afastar. Depois de
certo tempo comecei a participar de algumas das mesmas coisas com as quais ela
estava profundamente envolvida: eu saía do corpo, ia para o espaço, conversava
com meus instrutores — Harmel se deteve. — Oh, cara, está certo: você nunca vai
acreditar em nada do que eu disse!
Marshall foi firme, e talvez realmente acreditasse.
—
Diga-me, de qualquer modo.
Harmel cerrou os dentes e voltou os olhos para o céu. Tateou, gaguejou,
empalideceu.
—
Não sei. Acho que não posso contar. Eles descobrirão.
—
Quem descobrirá?
—
A rede.
—
Estamos no meio do mato, Ted!
—
Não importa...
—
Você usou a palavra instrutores. Quem são eles?
Harmel apenas ficou sentado, tremendo, o terror
esculpido em seu rosto.
—
Hogan — disse afinal — ninguém pode traí-los. Não lhe posso dizer! Eles
saberão!
—
Mas quem são? Pode pelo menos dizer-me isso?
—
Nem sei se são reais — murmurou Harmel. — Eles apenas estão. .. ali, isso é
tudo. Professores íntimos, guias espirituais, mestres elevados... são chamados
de todo o tipo de coisa. Mas qualquer pessoa que siga os ensinamentos de Juleen
por muito tempo invariavelmente acaba se envolvendo com eles. Eles aparecem
sem a gente saber de onde vêm, falam com a gente, às vezes aparecem quando se
está meditando. Há vezes em que a própria pessoa os visualiza, mas depois eles
assumem vida e personalidade próprias... já não é apenas a sua imaginação.
—
Mas o que são eles?
—
Seres... entidades. Às vezes são como pessoas de verdade, às vezes ouve-se
apenas uma voz, às vezes apenas sente-se a presença delas, como espíritos,
suponho. Juleen trabalha para eles, ou talvez eles trabalhem para ela, não sei
como a coisa funciona. Mas não se pode esconder deles, não se pode fugir, não
se pode fazer nada em segredo. São parte da rede e a rede sabe tudo, controla
tudo. Juleen me controlava. Chegou a interpor-se entre mim e Gail. Perdi minha
esposa por causa desse negócio. Comecei a fazer tudo o que Juleen mandava...
ela me chamava no meio da noite e me dizia que fosse à sua casa, e eu ia. Ela
me dizia que não publicasse certa história, eu não publicava. Ela me dizia que
tipo de notícias publicar e eu publicava, exatamente como ela mandava.
—
Ela me possuía, Hogan. Podia ter-me dito que pegasse um revólver e me matasse,
e talvez eu o tivesse feito. Você precisa conhecê-la para entender o que estou
dizendo.
Marshall lembrou-se de estar em pé no corredor do lado de
fora da classe de Juleen Langstrat sem saber como fora parar lá.
—
Acho que entendo.
—
Mas Eldon descobriu o que estava acontecendo com as finanças da faculdade, e
nós dois averiguamos a coisa, e ele estava certo. A faculdade estava a caminho
do desastre, e estou certo de que ainda está. Eldon tentou detê-la, endireitar
toda a bagunça. Tentei ajudá-lo. Juleen veio atrás de mim imediatamente e fez
todo o tipo de ameaça. Acabei indo em duas direções, fiel a duas causas
diferentes. Era como ser rasgado ao meio por dentro. Talvez tenha sido o que me fez despertar; resolvi que já não seria controlado, nem pela rede, nem por ninguém.
Eu era jornalista; tinha de publicar as coisas da forma como as via.
—
E eles deram um jeito em você.
—
Veio totalmente de surpresa. Bem, talvez não totalmente. Quando a polícia foi
ao jornal e me prendeu, eu quase sabia do que se tratava. Era algo que eu podia
ter predito pela forma como Juleen e os outros me ameaçaram. Eles já haviam
feito esse tipo de coisa antes.
—
Por exemplo?
—
Não posso deixar de pensar que os escritórios imobiliários, os registros de
impostos, qualquer informação que possa obter acerca das propriedades na cidade
poderiam mostrar algo. Não pude investigar esse lado quando era redator, mas
todas as recentes transações imobiliárias não me pareciam muito corretas.
Ela abriu a janela do carro e perguntou:
—
Escute, vocês não ficam abertos até às 5:00hs? Tyler sorriu e deu de ombros.
—
Não nas quintas.
Berenice leu o horário na porta da frente.
—
Mas o horário diz segunda a sexta, das 10:00 às 5:00hs. Tyler mostrou-se um
tanto irritado.
—
Não nas quintas, já disse!
Berenice notou o filho de Tyler, Calvin, saindo em seu
Fusca de trás
do prédio. Ela saltou do carro e acenou-lhe que parasse. De má vontade, ele
parou e abriu a janela.
—
O que é? — perguntou.
—
Vocês geralmente não ficam abertos até às 5:00hs nas quintas? Calvin deu de
ombros e fez uma careta.
—
E eu sei lá? O velho diz vão para casa, e todos nós vamos para casa.
Ele se foi. O "velho" Tyler estava entrando
em seu carro. Berenice correu até ele e abanou a mão chamando-lhe a atenção.
A essa altura ele estava realmente zangado. Abriu a
janela e disse asperamente:
—
Dona, já fechamos e tenho de ir para casa!
—
Eu queria apenas examinar o seu arquivo de microfilmes. Preciso de informação
sobre uma propriedade.
Ele abanou a cabeça.
Não posso ajudá-la, de qualquer forma. Nosso arquivo de microfilmes
está quebrado.
—
O quê...?
Mas Tyler fechou a janela e se foi, cantando os pneus
de leve. Berenice gritou enraivecida após ele:
—
Rosemary o avisou?
Ela se dirigiu às pressas ao carro. Havia ainda a Primeira Imobiliária
da Cidade. Ela sabia que seu proprietário dava uma mão ao time juvenil de
beisebol nas tardes de quinta-feira. Talvez a outra garota que trabalhava lá
não soubesse quem ela era.
—
Eles acabarão com você, Hogan. Têm influência e as conexões a fim de fazê-lo.
Olhe para mim: perdi tudo o que possuía, perdi minha esposa e minha família...
eles me depenaram. Farão o mesmo com você.
Marshall queria respostas, não vaticínios de mau
agouro.
—
O que sabe acerca de um sujeito chamado Kaseph? Harmel fez uma careta de
renovado desprazer.
—
Vá atrás dele. Ele pode ser a fonte de toda a encrenca. Juleen adorava esse
cara. Todo o mundo fazia o que Juleen mandava, mas ela fazia o que ele mandava.
—
Você sabe se ele estava procurando alguma propriedade em Ashton?
—
Ele estava babando pela faculdade, disso eu sei. Marshall surpreendeu-se.
—
A faculdade? Continue.
—
Não cheguei a ter a chance de investigar isso, mas pode ser que haja algo aí.
Ouvi conversa na Rede de que a faculdade seria totalmente tomada por alguns
maiorais da Rede, e Eugene Baylor passava muito tempo conversando sobre
dinheiro com Kaseph ou seus representantes.
—
Kaseph estava tentando comprar a faculdade?
— Ainda
não comprou. Mas acabou comprando tudo o mais na cidade.
—
O quê, por exemplo?
—
Uma porção das casas, disso sei, mas não consegui descobrir muita coisa. Como
já disse, examine os registros de impostos ou as agências imobiliárias a fim de
saber se ele está comprando outras coisas. Sei que tinha o dinheiro para
fazê-lo —. Harmel puxou um envelope de papel amarelo rasgado de debaixo da
jaqueta. — E tire-me isto das mãos, está bem?
Marshall apanhou o envelope.
—
O que é?
—
Uma maldição, isso é o que é. Algo acontece a quem o possuir.
O contador amigo de Eldon, Ernie Johnson, me deu, e
acho que Eldon lhe tenha dito o que aconteceu ao homem?
—
Ele me contou.
—
Contém o que Johnson encontrou no departamento de contabilidade da faculdade.
Marshall não conseguia acreditar na sua sorte.
—
Você deve estar brincando. Eldon sabe a respeito disto?
—
Não, eu mesmo acabei de encontrar esses papéis, mas não se ponha a dançar
ainda. É melhor arranjar um contador amigo seu a fim de tentar decifrá-los. Não
fazem muito sentido para mim... Acho que falta a outra metade dele.
—
É um começo. Obrigado.
—
Se você quiser brincar com teorias, experimente esta: Kaseph vem a Ashton e
quer comprar tudo em que consegue pôr as mãos. A faculdade não está nem
pensando em venda. Logo a seguir, graças a Baylor, a faculdade se mete em
apuros financeiros tão profundos que vender pode ser a única forma de sair da
encrenca. De repente, a oferta de Kaseph não está tão fora de cogitação e a
essa altura o conselho diretor está lotado de gente que concorda com a venda.
Marshall abriu o envelope e folheou as páginas e páginas de fotocópias
de colunas e números.
—
E você não conseguiu encontrar nenhuma pista nisto tudo?
—
Não é de mais pista que você precisa, não tanto quanto de prova. O que precisa
realmente achar é quem está no outro lado de todas essas transações.
—
Os amigos de Kaseph, talvez?
—
Com todos os amigos e associados que ele tem naquela faculdade, eu não ficaria
surpreso se Kaseph estivesse voltando a comprá-la com dinheiro da própria
faculdade!
—
Essa é uma teoria e tanto. Mas o que um homem como esse iria querer com uma
cidadezinha, ou mesmo com toda uma faculdade?
—
Hogan, um sujeito com o poder e a grana que aquele cara parece possuir poderia
tomar toda a cidade de Ashton e fazer o que quisesse com ela. Acho que, em
grande parte, ele já conseguiu isso.
—
Como sabe?
— Apenas averigúe.