Era uma noite escura e chuvosa; as
gotas, tamborilando contra o vidro das velhas janelas, dificultavam a chegada
do sono para Hank e Mary. Ela acabou adormecendo; mas Hank, com o espírito já perturbado, teve muito mais dificuldade em se
descontrair. De qualquer forma, o dia fora péssimo; ele havia trabalhado a fim
de cobrir de tinta os dizeres pichados na frente da casa e tentado descobrir
quem neste mundo escreveria uma coisa daquelas. Ainda retinia em seus ouvidos a
conversa que tivera com Alf Brummel, e a mente continuava a repassar vez após
vez os comentários cáusticos feitos durante a reunião do conselho. Agora podia
acrescentar a assembléia extraordinária da noite de sexta-feira às suas
preocupações, e orava ao Senhor em sussurros inaudíveis, desesperados, deitado
ali no escuro.
Engraçado como cada dobrinha do colchão parece muito mais incômoda
quando se está aborrecido. Hank começou a achar que acordaria Mary com todo
aquele remexer e virar. Ficou de costas, de lado, do outro lado, colocou os
braços debaixo do travesseiro, em cima do travesseiro; apanhou um lenço de
papel e assoou o nariz. Olhou o relógio: 12:20hs. Eles tinham-se deitado às
10:00hs.
Mas o sono acaba chegando,
geralmente de maneira tão imperceptível que a pessoa não
percebe que sucumbiu, até acordar. Em dado momento no decorrer daquela noite,
Hank cochilou.
Mas após poucas horas, seus sonhos começaram a azedar. A princípio,
eram as bobagens de sempre, como dirigir um carro através da sala de estar e
depois voar no carro ao se transformar este em avião. Mas aí as imagens
começaram a se acelerar e amotinar em sua cabeça, cada vez mais frenéticas e
caóticas. Ele começou a fugir de perigos. Podia ouvir berros; teve a sensação
de estar caindo e a visão e o gosto de sangue. As imagens passaram de
brilhantes e coloridas a monocromáticas e lúgubres. Ele lutava constantemente,
batalhando para salvar a vida; inúmeros perigos e inimigos o cercavam, cada vez
mais perto. Nada daquilo fazia sentido algum, mas uma coisa era bem definida:
puro terror. Ele queria desesperadamente gritar mas não tinha tempo na luta com
os inimigos, monstros, forças invisíveis.
O coração começou a martelar nos ouvidos. O mundo todo rodopiava
e latejava. O horrível conflito que se agitava em sua cabeça começou a aflorar
à superfície do seu consciente de todos os dias. Ele se mexeu na cama, virou-se
de costas, inspirou profundamente, tentando acordar. Os olhos semi-abriram-se,
sem focalizar coisa alguma. Ele estava naquele estranho estado de estupor, nem
bem adormecido, nem bem consciente.
Será que realmente a tinha visto? Era uma lúgubre projeção em pleno ar, um
quadro luminescente em veludo preto. Logo acima da cama, tão próxima que ele
podia sentir o cheiro do hálito sulfuroso, e a máscara medonha de uma cara
pairava, contorcendo-se em movimentos grotescos ao cuspir palavras malévolas
que ele não compreendia.
Os olhos de Hank abriram-se de
chofre. Ele achou que ainda podia ver a cara, acabando de desaparecer, mas no
mesmo instante sentiu-se como se seu peito tivesse recebido violenta pancada; o
coração disparou e começou a martelar,
como se fosse explodir através das costelas. Podia sentir o pijama e os lençóis
grudados nele, encharcados de suor. Ficou deitado, arquejante, esperando que o
coração se acalmasse, que todo aquele puro terror desaparecesse, mas nada mudou
e ele não conseguia fazer que mudasse.
Você está apenas tendo um pesadelo, ficou a se dizer, mas parecia que não
conseguia acordar. De propósito, abriu bem os olhos e olhou em torno do quarto
escuro, embora parte dele desejasse retornar à infância e simplesmente
esconder-se debaixo das cobertas até os fantasmas e monstros e ladrões irem
embora.
Nada viu de extraordinário. O duende lá no canto nada mais era do que a sua
camisa dependurada numa cadeira, e o estranho halo de luz na parede era apenas a luz do poste refletida pelo
vidro do seu relógio de pulso.
Mas ele tinha ficado seriamente
assustado, e ainda estava amedrontado. Podia sentir-se tremer enquanto tentava
desesperadamente separar a alucinação da realidade. Ele olhou, escutou. Até o silêncio parecia sinistro. Não
encontrou conforto nele, apenas o terror de que algo malévolo se estivesse
escondendo nele, um intruso ou um demônio, esperando, aguardando o momento
certo.
O que foi aquilo? Um rangido na
casa? Passos? Não, ele disse consigo mesmo,
apenas o vento soprando contra as janelas. A chuva havia parado.
Outro barulho, desta vez um
farfalhar na sala de estar. Ele nunca havia ouvido aquele som de noite. Tenho
de acordar, tenho de acordar. Vamos, coração, acalme-se para eu poder escutar.
Ele se forçou a sentar-se na cama, embora isso o fizesse
sentir-se ainda mais vulnerável, e ali ele permaneceu diversos minutos, tentando
acalmar o metralhar do coração com uma mão sobre o peito. As batidas finalmente
se acalmaram um pouco, mas o coração continuou disparado. Hank sentiu o suor
se esfriando contra a pele. Levantar-se ou voltar a dormir? Dormir estava
definitivamente fora de cogitação. Ele resolveu levantar-se, dar uma olhada
pela casa, andar até se acalmar.
Um alarido, desta vez na cozinha.
Foi nessa hora que Hank pôs-se a orar.
Marshall tinha tido o mesmo tipo de sonho e o mesmo temor havia feito seu coração bater com força. Vozes. Tinha a certeza de ouvir algo como vozes em algum lugar. Sandy? Talvez um rádio.
Mas quem sabe? pensou ele consigo
mesmo. De qualquer forma, esta cidade está ficando louca, e agora os doidos estão na minha casa. Ele escorregou da
cama, calçou os chinelos, e foi ao guarda-roupa em busca de um taco de
beisebol. Exatamente como antes, pensou. Agora os miolos de alguém vão virar
mingau.
Ele espiou pela porta do quarto os
dois lados do corredor. Não havia luz em parte alguma,
nenhum facho de lanterna. Mas suas entranhas estavam a sapatear debaixo das
costelas, e devia haver um motivo. Ele levou a mão ao interruptor, tentando
acender a luz do corredor. Droga! A lâmpada estava queimada. Desde quando, ele
não sabia, mas ficou em pé ali no escuro, e sentiu sua coragem evaporar-se um
pouco mais. Agarrou o taco com mais força e saiu para o corredor, mantendo-se
próximo à parede, olhando para diante, para trás, escutando. Achou ter
detectado um manso farfalhar em algum canto, algo que se movia.
Ao passar pelo arco que dava para
a sala de estar, seus olhos captaram alguma coisa, e ele se imprensou contra a
parede, tentando esconder-se. A porta da frente estava aberta. Agora seu coração realmente começou a martelar, golpeando-lhe
rudemente os ouvidos. De certa forma estranha e selvagem ele se sentiu melhor;
pelo menos havia indicação de um inimigo real. Era essa droga de medo sem
motivo que o assombrava. Já passara por esse mesmo tipo de coisa uma vez hoje.
Com esse pensamento veio uma idéia estranha: Aquela professora deve estar aqui dentro
de casa.
Ele foi até o fim do corredor para examinar o quarto de Sandy e
certificar-se de que ela estava bem. Queria pôr-se entre Kate e Sandy e o que
quer que estivesse no resto da casa. A porta do quarto da filha estava aberta,
e isso não era comum; ele tomou mais cuidado ainda. Pé ante pé, colado à
parede, dirigiu-se à porta e então, o taco pronto nas mãos, espiou no quarto.
Algo estava em pé. Pelo menos Sandy estava — a cama estava vazia e ela
não se encontrava por ali. Ele acendeu a luz do quarto. A cama mostrava que
alguém havia-se deitado ali, mas agora as cobertas tinham sido atiradas para
trás apressadamente e o quarto estava em desordem.
Enquanto Marshall se movia
cautelosamente pelo corredor escuro, ocorreu-lhe o pensamento de que Sandy
poderia estar simplesmente tomando alguma coisa, usando o banheiro, lendo. Mas
essa lógica simples arrefeceu contra a
sensação horrível de que algo pavoroso estava errado. Ele respirou fundo
diversas vezes, tentando com todas as forças manter-se firme conquanto sentisse
o tempo todo um terror insidioso, sobrenatural, como se estivesse a poucos
centímetros dos dentes trituradores de algum monstro que não conseguia ver.
O banheiro estava frio e escuro.
Ele acendeu a luz, apavorado com a idéia de que poderia encontrar alguma coisa. Não viu nada fora do comum.
Deixou a luz acesa e se dirigiu à sala de estar.
Como se fosse um tipo de fugitivo
sorrateiro, espiou através do arco da passagem. Lá estava
aquele farfalhar novamente. Ele acendeu as luzes. Ah. O frio ar noturno entrava
pela porta da frente, e balançava as cortinas. Não, não havia sinal de Sandy,
não na sala de estar, nem em parte alguma dentro ou perto da cozinha. Talvez
ela estivesse logo do lado de fora.
Mas sentiu inegável apreensão ao pensar em atravessar a sala de estar
e ir até a porta da frente, passando por todas aquelas peças do mobiliário que
podiam esconder um assaltante. Agarrou com força o taco, mantendo-o erguido e
pronto. De costas coladas à parede, ele se moveu ao longo do aposento, dando
volta ao sofá, depois de ter espiado atrás dessa peça, manobrando apressado ao
redor do aparelho de som, e finalmente chegou à porta.
Saiu à varanda, no frescor da noite, e por algum motivo, de
repente sentiu-se mais seguro. A cidade ainda estava quieta a essa hora da
noite. Todas as outras pessoas certamente dormiam nesse momento, e não estavam
a andar sorrateiras dentro de casa com tacos de beisebol na mão. Ele esperou
um momento a fim de se recuperar, e voltou para dentro.
Trancar a porta atrás de si foi o mesmo que fechar-se em um armário escuro
com algumas centenas de víboras. O medo retornou e ele agarrou com mais força o
taco. De costas para a porta, ele correu os olhos pela sala novamente. Por que
estava tão escura? As luzes estavam acesas, mas cada lâmpada parecia tão
apagada, como se envolta por uma névoa marrom. Hogan, pensou, ou você perdeu
mesmo um parafuso, ou está em grande, grande apuro. Ele permaneceu congelado
ali perto da porta, olhando e escutando. Tinha de haver alguém ou alguma coisa
dentro da casa. Ele não podia ouvir nem ver quem quer que fosse, mas
seguramente sentia a sua presença.
Do lado de fora da casa, abaixados
entre as plantas e os arbustos, Tal e seu pelotão observavam enquanto os demônios — pelo menos quarenta, segundo a conta
de Tal — faziam estragos na mente e no espírito de Marshall. Eles se
precipitavam como negras e mortíferas andorinhas, entrando na casa e saindo
dela, percorrendo os aposentos, rodopiando à volta dele, berrando insultos e
blasfêmias, brincando com o seu temor, e aumentando-o cada vez mais. Tal
procurou ver se enxergava o temido Rafar, mas o Baal não se encontrava entre esse
grupo selvagem. Não podia haver dúvida, entretanto, que Rafar os enviara.
Tal e os outros sofriam, sentindo
a dor de Marshall. Um demônio, um feio diabrete com o corpo
coberto de espinhos eriçados, pontudos, saltou aos ombros de Marshall e pôs-se
a bater-lhe na cabeça, berrando: “Vai morrer, Hogan! Vai morrer! Sua filha está
morta e você vai morrer!”
Guilo mal podia controlar-se. Sua
enorme espada deslizou com um som metálico da bainha, mas o forte braço de Tal o deteve.
— Por favor, capitão! — implorou
Guilo. — Nunca fiquei apenas observando uma coisa dessas!
— Contenha-se, caro guerreiro —
advertiu Tal.
— Será um único golpe!
Guilo podia ver que também Tal estava sofrendo bastante com a própria ordem.
— Paciência. Paciência. Ele
precisa passar por isso.
Hank havia acendido as luzes da casa, mas achou que seus olhos deviam estar-lhe pregando uma peça pois os cômodos pareciam muito escuros, as sombras ainda profundas. Às vezes ele não conseguia distinguir o que se movia: se era ele mesmo ou se eram as sombras no aposento; um movimento estranho, ondulante, de luz e sombras, fazia as profundezas da casa alternarem-se de um lado a outro como o movimento lento e constante da respiração.
Hank, parado no umbral da porta
entre a cozinha e a sala de estar, observava e escutava. Achou que podia sentir
um vento movendo-se através da casa, mas não um vento frio
vindo de fora. Era como se fosse um bafo quente, doentio, carregado de odores
repulsivos, próximo e opressivo.
Ele havia descoberto que o barulho
na cozinha decorrera de uma espátula que
deslizara do escorredor, e caíra ao chão. Isso deveria ter acalmado
imediatamente os seus nervos, mas ele ainda se sentia aterrorizado.
Sabia que mais cedo ou mais tarde
teria de aventurar-se até a sala de estar a fim de dar uma
olhada. Deu o primeiro passo do vão da porta para dentro do cômodo.
Foi como cair em um poço sem fundo de escuridão e terror. Os pêlos da nuca se
eriçaram como que por eletricidade estática. Seus lábios principiaram a
despejar uma prece frenética.
Ele foi ao chão. Antes que soubesse o que estava ocorrendo, seu
corpo inclinou-se pesadamente para a frente e bateu com força no assoalho. Ele
se tornou um animal preso numa armadilha, debatendo-se instintivamente,
tentando escapar ao peso invisível e esmagador que o prendia. Seus braços e
pernas batiam contra a mobília e derrubavam coisas, mas em seu terror e choque
ele não sentia dor alguma. Ele se debatia, revirava, arquejava tentando
respirar, e estirava os membros contra o que quer que fosse, sentindo resistência
ao movimento dos braços como se estivessem cortando a água. A sala parecia
cheia de fumaça.
Negror semelhante à cegueira, perda de audição, perda de contato com o
mundo real, o tempo parado. Ele sentia-se morrer. Uma imagem, uma alucinação,
uma visão ou algo realmente visto transpareceu por um instante: dois medonhos
olhos amarelados cheios de ódio. Sua garganta começou a comprimir-se, fechando.
— Jesus! — ele ouviu sua mente
bradar — ajuda-me!
Seu próximo pensamento, um breve, instantâneo relâmpago, deve
ter vindo do Senhor: “Repreenda-o. Você tem a autoridade.”
Hank proferiu as palavras, embora
não pudesse ouvir o som delas: “Eu
o repreendo em nome de Jesus!”
O peso esmagador levantou-se tão rapidamente que Hank sentiu que deixaria o chão como
um foguete. Encheu os pulmões de ar e notou que estava agora debatendo-se
contra nada. Mas o terror ainda se encontrava ali, uma presença negra,
sinistra.
Ele se ergueu um pouco, respirou
de novo, e disse claramente e bem alto: “No nome de Jesus eu lhe ordeno que
saia desta casa!”
Mary acordou sobressaltada,
assustada, e então ficou aterrorizada pelo ruído
de uma multidão berrando em angústia e dor. Os gritos, ensurdecedores a
princípio, foram diminuindo, como que afastando-se a uma distância invisível.
— Hank! — berrou ela.
Marshall urrou como um selvagem e ergueu o taco bem alto para abater seu atacante. O atacante também gritou, de puro terror.
Era Kate. Sem saber, eles haviam
batido de costas um para o outro no escuro corredor.
— Marshall! — exclamou ela, e sua voz tremia. Estava quase a chorar e zangada ao mesmo tempo. — Mas o que você está fazendo aqui?
— Kate... — Marshall suspirou,
sentindo-se murchar como uma câmara de pneu furada. — O que está tentando
fazer, está querendo morrer?
— O que há de errado? — Ela estava
olhando para o taco de beisebol e sabia que algo estava acontecendo. Agarrou-se
a ele, receosa. — Há alguém aqui dentro?
— Não... — murmurou ele em uma
combinação de alívio e desagrado. — Ninguém. Eu olhei.
— O que aconteceu? Quem era?
— Ninguém, já disse.
— Mas achei que você estava
conversando com alguém.
Ele a olhou com a máxima impaciência e disse em volume cada vez mais alto:
— Estou com cara de quem esteve
batendo um papinho amistoso com alguém?
Kate abanou a cabeça.
— Devo ter sonhado. Mas foram as
vozes que me acordaram.
— Que vozes?
— Marshall, parecia uma festa de
reveillon lá dentro. Diga, quem era?
— Ninguém. Não havia ninguém lá.
Eu olhei. Kate estava muito confusa.
— Sei que estava acordada.
— Você ouviu fantasmas.
Ele sentiu a mão dela apertar o braço a ponto de paralisar a circulação.
— Não diga isso!
— Sandy se foi.
— O que quer dizer, se foi? Foi
aonde?
— Ela se foi. O quarto dela está
vazio, ela não está dentro de casa. Ela sumiu! Foi-se!
Kate correu pelo corredor e olhou
no quarto de Sandy. Marshall seguiu-a e observou da porta enquanto Kate
examinava o quarto, olhando no guarda-roupas e algumas gavetas.
Relatou ela com alarme:
— Algumas das roupas se foram. Os
livros escolares sumiram —. Ela o fitou desamparadamente: — Marshall, ela saiu
de casa!
Ele a olhou por longo momento, e
depois em volta do quarto, e então encostou a cabeça contra o batente da porta com um baque surdo.
— Droga — disse.
— Eu sabia que ela agia de modo
estranho esta noite. Devia ter tentado descobrir o que estava errado.
— Não nos saímos muito bem hoje...
— Bem, isso era óbvio. Você veio
para casa sem ela.
— E por falar nisso, como foi que
ela chegou aqui?
— Sua amiga Terry a trouxe.
— Talvez ela tenha ido passar a
noite com Terry.
— Será melhor ligarmos para saber?
— Não sei...
— Não sabe!
Marshall cerrou os olhos e tentou
pensar.
— Não. É tarde. Ou ela está lá, ou
não está. Se não estiver, vamos tirar gente da cama a troco de nada, e se
estiver, bem, está segura.
Kate parecia meio apavorada.
— Vou telefonar.
Marshall ergueu a mão e recostou a cabeça no batente da porta novamente e
disse:
— Ei, não fique toda assustada,
está bem? Dê-me um minuto.
— Só quero saber se ela está lá...
— Está bem, está bem...
Mas Kate podia ver que havia algo
muito errado com Marshall. Ele estava pálido, fraco, abalado.
— O que há, Marshall?
— Dê-me um minuto...
Ela colocou o braço em torno dele, preocupada:
— O que é?
Ele teve de lutar para conseguir
dizer:
— Estou com medo —. Tremendo um pouco,
os olhos fechados, a cabeça no batente da porta, ele disse de novo: — Estou
realmente com medo, e não sei por quê.
Isso assustou Kate.
— Marshall...
— Não se preocupe, está bem? Fique
calma.
— Há algo que eu possa fazer?
— Apenas fique firme, só isso.
Kate pensou um instante.
— Bem, por que não veste o seu
roupão? Aquecerei um pouco de leite, está bem?
— Sim, ótimo.
Era a primeira vez que Hank Busche repreendia e confrontava qualquer demônio. O certo é que haviam chegado com arrogante impudência a princípio, caindo sobre a casa no meio da noite a fim de atacar e devastar, berrando e lançando-se através dos aposentos e pulando sobre Hank, tentando aterrorizá-lo. Mas enquanto Krioni, Triskal e os outros olhavam do seu esconderijo, confusos e espalhados demônios aos bandos saíram de chofre da casa, trovejando e adejando qual morcegos, berrando, indignados, tapando os ouvidos. Devia haver perto de cem, todos os demônios desordeiros e encren-queiros de sempre que Krioni tinha visto operando por toda a cidade. Sem dúvida, o grande Baal os enviara, e agora que eles haviam sido expulsos era impossível saber qual seria a reação de Rafar ou seu próximo plano. Mas Hank tinha-se saído muito bem.
O perigo passou num instante,
cessou o apuro, e os guerreiros saíram do esconderijo, respirando melhor. Krioni e Triskal estavam bem
impressionados.
Comentou Krioni:
— Tal tinha razão. Ele não é tão
insignificante assim.
— Tem firmeza de caráter, esse
Henry Busche — concordou Triskal.
Mas enquanto Hank e Mary
sentavam-se tremendo à mesa da cozinha, ela preparando
uma compressa gelada e ele ostentando um vergão na testa e um sem número de
machucados e arranhões nos braços e nas canelas, nenhum dos dois se sentia
inteiramente firme, poderoso ou vitorioso. Hank dava graças por ter escapado
com vida, e Mary ainda se encontrava em leve estado de choque e descrença.
Era uma situação incômoda, mas nenhum deles queria relatar sua
experiência primeiro por temer que a coisa toda nada mais fosse que um excesso
de picles e salame antes de deitar. Mas o vergão de Hank continuou a inchar, e
ele só podia contar o que sabia. Mary acreditou em cada palavra, assustada como
estava pelos berros que a haviam despertado. Enquanto compartilhavam sua não
tão agradável experiência, puderam aceitar que toda aquela loucura havia sido
apavorantemente real, e não alguma espécie de pesadelo.
— Demônios — concluiu Hank.
Mary só conseguiu assentir com a cabeça.
— Mas, por quê? — desejou saber
Hank. — Qual o propósito disso?
Mary não estava preparada para oferecer nenhuma resposta.
Ficou esperando que Hank o fizesse. Ele resmungou:
— Como se fosse a Lição Número Um
em Combate na Linha de Frente. Eu não estava nem um pouquinho pronto para ela.
Acho que não passei.
Mary entregou-lhe a compressa de gelo
e ele a colocou contra o vergão, fazendo
uma careta ao sentir a pressão.
— O que o faz pensar que não
passou? — perguntou ela.
— Não sei. Acho que simplesmente
caí na armadilha. Deixei-os surrar-me —. Então ele orou: “Senhor Deus, ajuda-me
a estar preparado da próxima vez. Dá-me a visão, a sensibilidade para saber o
que eles estão aprontando.”
Mary apertou-lhe a mão, disse amém, e então comentou:
— Sabe, posso estar enganada, mas
o Senhor já não fez isso? Isto é, como é que você vai saber como lutar contra
os ataques diretos de Satanás a menos que simplesmente... o faça?
Era o que Hank precisava ouvir.
— Puxa — disse ele pensativo. —
Sou um veterano.
— E não fique pensando também que
não passou no teste. Eles se foram, não foram? E você ainda está aqui, e
precisava ter ouvido aqueles berros.
— Tem certeza de que não era eu?
— Absoluta.
Então veio um longo, inquieto silêncio.
— E agora? — perguntou Mary
finalmente.
— Ah... vamos orar — disse Hank.
Para ele, essa era uma opção a que era fácil recorrer.
E orar eles fizeram, dando-se as mãos em volta da pequena mesa da cozinha, conferenciando
com o Senhor. Agradeceram-lhe a experiência daquela noite, o tê-los protegido
do perigo, o ter-lhes permitido vislumbrar bem de perto o inimigo. Mais de uma
hora se passou, e durante aquele tempo o campo de cuidado foi-se ampliando;
seus problemas particulares começaram a ocupar lugar muito pequeno em uma
perspectiva muito mais ampla enquanto Hank e Mary oravam pela igreja, pelas
pessoas que nela se congregavam, pela cidade, por seus dirigentes, pelo
estado, pelo país, pelo mundo. Através de tudo aquilo veio a linda
tranqüilidade de que haviam de fato estado ligados ao trono de Deus e conduzido
sério negócio com o Senhor. Cresceu a determinação de Hank de ficar na briga e
atrapalhar Satanás ao máximo. Estava certo de que isso era o que Deus desejava.
O leite morno e a companhia de
Kate agiram como calmante nos nervos de Marshall. A cada gole e a cada minuto
adicional de normalidade, ele adquiria mais e mais segurança de que o mundo continuaria a existir, ele viveria,
o sol se levantaria pela manhã. Admirava-se de como as coisas, tão pouco tempo
atrás, pareceram desoladas.
— Sente-se melhor? — perguntou
Kate, passando manteiga numa fatia de pão que acabara de torrar.
— Sim — respondeu ele, notando que
seu coração retraía-se de novo ao peito e voltava ao ritmo normal, rotineiro. —
Credo, não sei que bicho me mordeu.
Kate pôs as duas fatias torradas num prato e as colocou sobre
a mesa. Marshall mordeu ruidosamente a torrada e perguntou:
— Então ela não está na casa de
Terry? Kate sacudiu a cabeça.
— Você quer falar acerca de Sandy?
Marshall estava pronto.
— É bem provável que precisemos
falar a respeito de uma porção de coisas.
— Não sei como começar...
— Você acha que a culpa é minha?
— Oh, Marshall...
— Vamos, seja honesta. Estive
levando uma surra no traseiro o dia todo. Escutarei.
Os olhos dela encontraram os dele
e não se desviaram, denotando
sinceridade e firme amor.
— Categoricamente, não — disse
ela.
— Estraguei tudo hoje.
— Acho que todos estragamos, e
isso inclui Sandy. Ela também fez algumas escolhas, lembra-se?
— E, mas talvez fosse por não lhe
termos dado nada melhor.
— O que você acha de conversar com
o Pastor Young?
— É esse o problema.
— Hum?
Hogan sacudiu a cabeça desanimado.
— Talvez... talvez Young seja um
pouco acomodado demais, sabe? Ele está metido nesse negócio da família humana,
de descobrir-se a si mesmo, de salvar as baleias...
Kate ficou meio surpresa.
— Achei que você gostava do Pastor
Young.
— Bem... acho que gosto. Mas, às
vezes, não, quase sempre, nem mesmo sinto que estou indo à igreja. Poderia
muito bem estar sentado numa reunião de clube ou em alguma das aulas esquisitas
da Sandy.
Ele examinou os olhos da esposa.
Ainda estavam firmes. Ela estava ouvindo.
— Kate, você nunca tem a sensação
de que Deus tem de ser, sabe, um pouco... maior? Mais durão? O Deus que nos
passam naquela igreja, sinto que ele nem mesmo é uma pessoa real, e se for, é
mais tonto do que nós. Não posso esperar que Sandy aceite aquela baboseira.
Nem em mesmo aceito.
— Nunca pensei que era isso o que
você sentia, Marshall.
— Bem, talvez nem eu mesmo
soubesse. É apenas que essa coisa hoje à noite... Tenho de realmente pensar
sobre ela; tem acontecido tanta coisa ultimamente.
— De que está falando? O que tem
acontecido?
Não lhe posso dizer, pensou Marshall. Como poderia explicar a estranha e
hipnótica persuasão a que estava certo de ter sido submetido por Brummel, a
sensação arrepiante que lhe dera a professora de Sandy, o puro terror que
sentira essa noite? Nada disso fazia sentido, e agora, para completar, Sandy se
fora. Em todas essas situações, ele estivera horrorizado com sua própria
incapacidade de enfrentar e lutar. Tinha-se sentido controlado. Mas não podia
contar a Kate nada disso.
— Olhe... é uma longa história —
disse por fim. — Tudo o que sei é que todo este negócio, o nosso modo de vida,
nossa programação, nossa família, nossa religião, o que quer que seja, simplesmente
não está funcionando. Algo tem de mudar.
— Mas não acha que deve falar com
o Pastor Young?
— Ele é um convencido...
Naquele exato momento, à 1:00 da manhã, o telefone tocou.
— Sandy! — exclamou Kate. Marshall
arrebatou o telefone do gancho.
— Alô?
— Alô? — disse uma voz feminina. —
Você está em pé! Marshall, desapontado, reconheceu a voz. Era Berenice.
— Oh, oi, Bernie — disse ele,
olhando para Kate, cujo rosto afundou em frustração.
— Não desligue! Desculpe telefonar
tão tarde assim, mas saí com alguém e não cheguei a casa até tarde, mas queria
revelar aquele filme... você está bravo?
— Ficarei bravo amanhã. No momento
estou cansado demais. O que descobriu?
— Veja só. Sei que o filme na
máquina tinha doze fotos do parque, incluindo as de Brummel, Young e aqueles
três desconhecidos. Hoje fui para casa e acabei o rolo, mais doze chapas: meu
gato, a vizinha que tem uma grande pinta, o noticiário da noite, etecétera. As
fotos de hoje saíram.
Houve uma pausa, e Marshall sabia
que teria de perguntar:
— E as outras?
— A emulsão estava escurecida,
totalmente exposta, o filme arranhado e com marcas de dedos. Não há nada
errado com a máquina.
Marshall nada disse durante longo
instante.
— Marshall... alô?
— Que interessante — disse ele.
— Eles estão aprontando alguma!
Estou toda excitada. Estou pensando em ver se consigo descobrir onde foram
parar essas chapas.
Houve outra longa pausa.
— Alô?
— Que cara tinha a outra mulher, a
loira?
— Não muito velha, cabelos loiros,
longos... com cara um tanto malvada.
— Gorda? Magra? Mais ou menos?
— Era bem elegante.
A testa de Marshall franziu um
pouco, e os olhos vaguearam enquanto ele seguia o que estava pensando.
— Até amanhã.
— Até logo, e obrigada por
atender.
Marshall desligou o telefone.
Fitou o olhar na mesa, os dedos a tamborilar.
— De que se tratava? — perguntou
Kate.
— Hum — disse ele, ainda pensando.
Então, respondeu:
— Ah, negócio do jornal. Nada
demais. De que mesmo estávamos falando?
— Bem, se ainda tem importância,
estávamos apenas falando sobre se você devia ou não ir conversar com o Pastor
Young a respeito do nosso problema...
— Young — disse ele, e a voz soou
quase zangada.
— Mas se não quer...
Marshall permaneceu fitando a mesa
enquanto o seu leite esfriava. Kate esperou, depois despertou-o, dizendo:
— Talvez prefira falar disto de
manhã?
— Falarei com ele — disse Marshall
terminantemente. — Eu... Eu quero falar com ele. Pode apostar que quero
falar com ele!
— Não prejudicaria.
— Não, nem um pouco.
— Não sei quando ele poderia
marcar uma hora para você, mas —
— Uma da tarde seria bom.
Ele franziu de leve as
sobrancelhas.
— Uma da tarde seria perfeito.
— Marshall... — começou Kate, mas
se deteve. Algo estava acontecendo ao
marido, e ela captou-o na voz, na expressão dele.
Ela jamais percebera a ausência daquele fogo em seus olhos; talvez nunca tivesse
notado que se fora até este momento, quando, pela primeira vez desde que haviam
deixado Nova York, ela o viu novamente. Umas sensações antigas, desagradáveis,
surgiram em seu íntimo, sensações que não tinha desejo de enfrentar tarde da
noite com a filha misteriosamente desaparecida.
— Marshall — disse ela, afastando
a cadeira e apanhando o prato de torradas meio comidas — vamos dormir um pouco.
— Talvez eu não consiga dormir.
— Eu sei — disse ela baixinho.
Todo esse tempo, Tal, Guilo, Natã e Armote haviam permanecido no aposento, observando
cuidadosamente, e nesse momento Guilo pôs-se a rir com aquele grasnar rouco que
lhe era peculiar.
Tal disse sorrindo:
— Não, Marshall Hogan. Você nunca foi de dormir muito... e agora Rafar ajudou a despertá-lo novamente!