quarta-feira, 5 de maio de 2021

Este mundo tenebroso - volume 01 - Capítulo 06

Era uma noite escura e chuvosa; as gotas, tamborilando contra o vidro das velhas janelas, dificultavam a chegada do sono para Hank e Mary. Ela acabou adormecendo; mas Hank, com o espírito já perturbado, teve muito mais dificuldade em se descontrair. De qualquer forma, o dia fora péssimo; ele havia trabalhado a fim de cobrir de tinta os dizeres pichados na frente da casa e tentado descobrir quem neste mundo escreveria uma coisa daquelas. Ainda retinia em seus ouvidos a conversa que tivera com Alf Brummel, e a mente continuava a repassar vez após vez os co­mentários cáusticos feitos durante a reunião do conselho. Agora po­dia acrescentar a assembléia extraordinária da noite de sexta-feira às suas preocupações, e orava ao Senhor em sussurros inaudíveis, de­sesperados, deitado ali no escuro.

Engraçado como cada dobrinha do colchão parece muito mais in­cômoda quando se está aborrecido. Hank começou a achar que acor­daria Mary com todo aquele remexer e virar. Ficou de costas, de lado, do outro lado, colocou os braços debaixo do travesseiro, em cima do travesseiro; apanhou um lenço de papel e assoou o nariz. Olhou o relógio: 12:20hs. Eles tinham-se deitado às 10:00hs.

Mas o sono acaba chegando, geralmente de maneira tão impercep­tível que a pessoa não percebe que sucumbiu, até acordar. Em dado momento no decorrer daquela noite, Hank cochilou.

Mas após poucas horas, seus sonhos começaram a azedar. A prin­cípio, eram as bobagens de sempre, como dirigir um carro através da sala de estar e depois voar no carro ao se transformar este em avião. Mas aí as imagens começaram a se acelerar e amotinar em sua cabeça, cada vez mais frenéticas e caóticas. Ele começou a fugir de perigos. Podia ouvir berros; teve a sensação de estar caindo e a visão e o gosto de sangue. As imagens passaram de brilhantes e coloridas a monocromáticas e lúgubres. Ele lutava constantemente, batalhando para salvar a vida; inúmeros perigos e inimigos o cercavam, cada vez mais perto. Nada daquilo fazia sentido algum, mas uma coisa era bem definida: puro terror. Ele queria desesperadamente gritar mas não tinha tempo na luta com os inimigos, monstros, forças in­visíveis.

O coração começou a martelar nos ouvidos. O mundo todo rodo­piava e latejava. O horrível conflito que se agitava em sua cabeça começou a aflorar à superfície do seu consciente de todos os dias. Ele se mexeu na cama, virou-se de costas, inspirou profundamente, tentando acordar. Os olhos semi-abriram-se, sem focalizar coisa al­guma. Ele estava naquele estranho estado de estupor, nem bem ador­mecido, nem bem consciente.

Será que realmente a tinha visto? Era uma lúgubre projeção em pleno ar, um quadro luminescente em veludo preto. Logo acima da cama, tão próxima que ele podia sentir o cheiro do hálito sulfuroso, e a máscara medonha de uma cara pairava, contorcendo-se em mo­vimentos grotescos ao cuspir palavras malévolas que ele não com­preendia.

Os olhos de Hank abriram-se de chofre. Ele achou que ainda podia ver a cara, acabando de desaparecer, mas no mesmo instante sentiu-se como se seu peito tivesse recebido violenta pancada; o coração disparou e começou a martelar, como se fosse explodir através das costelas. Podia sentir o pijama e os lençóis grudados nele, enchar­cados de suor. Ficou deitado, arquejante, esperando que o coração se acalmasse, que todo aquele puro terror desaparecesse, mas nada mudou e ele não conseguia fazer que mudasse.

Você está apenas tendo um pesadelo, ficou a se dizer, mas parecia que não conseguia acordar. De propósito, abriu bem os olhos e olhou em torno do quarto escuro, embora parte dele desejasse retornar à infância e simplesmente esconder-se debaixo das cobertas até os fantasmas e monstros e ladrões irem embora.

Nada viu de extraordinário. O duende lá no canto nada mais era do que a sua camisa dependurada numa cadeira, e o estranho halo de luz na parede era apenas a luz do poste refletida pelo vidro do seu relógio de pulso.

Mas ele tinha ficado seriamente assustado, e ainda estava ame­drontado. Podia sentir-se tremer enquanto tentava desesperadamente separar a alucinação da realidade. Ele olhou, escutou. Até o silêncio parecia sinistro. Não encontrou conforto nele, apenas o terror de que algo malévolo se estivesse escondendo nele, um intruso ou um de­mônio, esperando, aguardando o momento certo.

O que foi aquilo? Um rangido na casa? Passos? Não, ele disse consigo mesmo, apenas o vento soprando contra as janelas. A chuva havia parado.

Outro barulho, desta vez um farfalhar na sala de estar. Ele nunca havia ouvido aquele som de noite. Tenho de acordar, tenho de acor­dar. Vamos, coração, acalme-se para eu poder escutar.

Ele se forçou a sentar-se na cama, embora isso o fizesse sentir-se ainda mais vulnerável, e ali ele permaneceu diversos minutos, ten­tando acalmar o metralhar do coração com uma mão sobre o peito. As batidas finalmente se acalmaram um pouco, mas o coração con­tinuou disparado. Hank sentiu o suor se esfriando contra a pele. Levantar-se ou voltar a dormir? Dormir estava definitivamente fora de cogitação. Ele resolveu levantar-se, dar uma olhada pela casa, andar até se acalmar.

Um alarido, desta vez na cozinha. Foi nessa hora que Hank pôs-se a orar.

 Marshall tinha tido o mesmo tipo de sonho e o mesmo temor havia feito seu coração bater com força. Vozes. Tinha a certeza de ouvir algo como vozes em algum lugar. Sandy? Talvez um rádio.

Mas quem sabe? pensou ele consigo mesmo. De qualquer forma, esta cidade está ficando louca, e agora os doidos estão na minha casa. Ele escorregou da cama, calçou os chinelos, e foi ao guarda-roupa em busca de um taco de beisebol. Exatamente como antes, pensou. Agora os miolos de alguém vão virar mingau.

Ele espiou pela porta do quarto os dois lados do corredor. Não havia luz em parte alguma, nenhum facho de lanterna. Mas suas entranhas estavam a sapatear debaixo das costelas, e devia haver um motivo. Ele levou a mão ao interruptor, tentando acender a luz do corredor. Droga! A lâmpada estava queimada. Desde quando, ele não sabia, mas ficou em pé ali no escuro, e sentiu sua coragem evaporar-se um pouco mais. Agarrou o taco com mais força e saiu para o corredor, mantendo-se próximo à parede, olhando para diante, para trás, escutando. Achou ter detectado um manso farfalhar em algum canto, algo que se movia.

Ao passar pelo arco que dava para a sala de estar, seus olhos captaram alguma coisa, e ele se imprensou contra a parede, tentando esconder-se. A porta da frente estava aberta. Agora seu coração real­mente começou a martelar, golpeando-lhe rudemente os ouvidos. De certa forma estranha e selvagem ele se sentiu melhor; pelo menos havia indicação de um inimigo real. Era essa droga de medo sem motivo que o assombrava. Já passara por esse mesmo tipo de coisa uma vez hoje.

Com esse pensamento veio uma idéia estranha: Aquela professora deve estar aqui dentro de casa.

Ele foi até o fim do corredor para examinar o quarto de Sandy e certificar-se de que ela estava bem. Queria pôr-se entre Kate e Sandy e o que quer que estivesse no resto da casa. A porta do quarto da filha estava aberta, e isso não era comum; ele tomou mais cuidado ainda. Pé ante pé, colado à parede, dirigiu-se à porta e então, o taco pronto nas mãos, espiou no quarto.

Algo estava em pé. Pelo menos Sandy estava — a cama estava vazia e ela não se encontrava por ali. Ele acendeu a luz do quarto. A cama mostrava que alguém havia-se deitado ali, mas agora as cobertas tinham sido atiradas para trás apressadamente e o quarto estava em desordem.

Enquanto Marshall se movia cautelosamente pelo corredor escuro, ocorreu-lhe o pensamento de que Sandy poderia estar simplesmente tomando alguma coisa, usando o banheiro, lendo. Mas essa lógica simples arrefeceu contra a sensação horrível de que algo pavoroso estava errado. Ele respirou fundo diversas vezes, tentando com todas as forças manter-se firme conquanto sentisse o tempo todo um terror insidioso, sobrenatural, como se estivesse a poucos centímetros dos dentes trituradores de algum monstro que não conseguia ver.

O banheiro estava frio e escuro. Ele acendeu a luz, apavorado com a idéia de que poderia encontrar alguma coisa. Não viu nada fora do comum. Deixou a luz acesa e se dirigiu à sala de estar.

Como se fosse um tipo de fugitivo sorrateiro, espiou através do arco da passagem. Lá estava aquele farfalhar novamente. Ele acendeu as luzes. Ah. O frio ar noturno entrava pela porta da frente, e balan­çava as cortinas. Não, não havia sinal de Sandy, não na sala de estar, nem em parte alguma dentro ou perto da cozinha. Talvez ela estivesse logo do lado de fora.

Mas sentiu inegável apreensão ao pensar em atravessar a sala de estar e ir até a porta da frente, passando por todas aquelas peças do mobiliário que podiam esconder um assaltante. Agarrou com força o taco, mantendo-o erguido e pronto. De costas coladas à parede, ele se moveu ao longo do aposento, dando volta ao sofá, depois de ter espiado atrás dessa peça, manobrando apressado ao redor do apa­relho de som, e finalmente chegou à porta.

Saiu à varanda, no frescor da noite, e por algum motivo, de repente sentiu-se mais seguro. A cidade ainda estava quieta a essa hora da noite. Todas as outras pessoas certamente dormiam nesse momento, e não estavam a andar sorrateiras dentro de casa com tacos de bei­sebol na mão. Ele esperou um momento a fim de se recuperar, e voltou para dentro.

Trancar a porta atrás de si foi o mesmo que fechar-se em um armário escuro com algumas centenas de víboras. O medo retornou e ele agarrou com mais força o taco. De costas para a porta, ele correu os olhos pela sala novamente. Por que estava tão escura? As luzes es­tavam acesas, mas cada lâmpada parecia tão apagada, como se en­volta por uma névoa marrom. Hogan, pensou, ou você perdeu mesmo um parafuso, ou está em grande, grande apuro. Ele permaneceu con­gelado ali perto da porta, olhando e escutando. Tinha de haver al­guém ou alguma coisa dentro da casa. Ele não podia ouvir nem ver quem quer que fosse, mas seguramente sentia a sua presença.

Do lado de fora da casa, abaixados entre as plantas e os arbustos, Tal e seu pelotão observavam enquanto os demônios — pelo menos quarenta, segundo a conta de Tal — faziam estragos na mente e no espírito de Marshall. Eles se precipitavam como negras e mortíferas andorinhas, entrando na casa e saindo dela, percorrendo os aposen­tos, rodopiando à volta dele, berrando insultos e blasfêmias, brin­cando com o seu temor, e aumentando-o cada vez mais. Tal procurou ver se enxergava o temido Rafar, mas o Baal não se encontrava entre esse grupo selvagem. Não podia haver dúvida, entretanto, que Rafar os enviara.

Tal e os outros sofriam, sentindo a dor de Marshall. Um demônio, um feio diabrete com o corpo coberto de espinhos eriçados, pontudos, saltou aos ombros de Marshall e pôs-se a bater-lhe na cabeça, berrando: “Vai morrer, Hogan! Vai morrer! Sua filha está morta e você vai morrer!”

Guilo mal podia controlar-se. Sua enorme espada deslizou com um som metálico da bainha, mas o forte braço de Tal o deteve.

— Por favor, capitão! — implorou Guilo. — Nunca fiquei apenas observando uma coisa dessas!

— Contenha-se, caro guerreiro — advertiu Tal.

— Será um único golpe!

Guilo podia ver que também Tal estava sofrendo bastante com a própria ordem.

— Paciência. Paciência. Ele precisa passar por isso.

 Hank havia acendido as luzes da casa, mas achou que seus olhos deviam estar-lhe pregando uma peça pois os cômodos pareciam muito escuros, as sombras ainda profundas. Às vezes ele não conseguia distinguir o que se movia: se era ele mesmo ou se eram as sombras no aposento; um movimento estranho, ondulante, de luz e sombras, fazia as profundezas da casa alternarem-se de um lado a outro como o movimento lento e constante da respiração.

Hank, parado no umbral da porta entre a cozinha e a sala de estar, observava e escutava. Achou que podia sentir um vento movendo-se através da casa, mas não um vento frio vindo de fora. Era como se fosse um bafo quente, doentio, carregado de odores repulsivos, próximo e opressivo.

Ele havia descoberto que o barulho na cozinha decorrera de uma espátula que deslizara do escorredor, e caíra ao chão. Isso deveria ter acalmado imediatamente os seus nervos, mas ele ainda se sentia aterrorizado.

Sabia que mais cedo ou mais tarde teria de aventurar-se até a sala de estar a fim de dar uma olhada. Deu o primeiro passo do vão da porta para dentro do cômodo.

Foi como cair em um poço sem fundo de escuridão e terror. Os pêlos da nuca se eriçaram como que por eletricidade estática. Seus lábios principiaram a despejar uma prece frenética.

Ele foi ao chão. Antes que soubesse o que estava ocorrendo, seu corpo inclinou-se pesadamente para a frente e bateu com força no assoalho. Ele se tornou um animal preso numa armadilha, debatendo-se instintivamente, tentando escapar ao peso invisível e esmagador que o prendia. Seus braços e pernas batiam contra a mobília e der­rubavam coisas, mas em seu terror e choque ele não sentia dor al­guma. Ele se debatia, revirava, arquejava tentando respirar, e estirava os membros contra o que quer que fosse, sentindo resistência ao movimento dos braços como se estivessem cortando a água. A sala parecia cheia de fumaça.

Negror semelhante à cegueira, perda de audição, perda de contato com o mundo real, o tempo parado. Ele sentia-se morrer. Uma ima­gem, uma alucinação, uma visão ou algo realmente visto transpareceu por um instante: dois medonhos olhos amarelados cheios de ódio. Sua garganta começou a comprimir-se, fechando.

— Jesus! — ele ouviu sua mente bradar — ajuda-me!

Seu próximo pensamento, um breve, instantâneo relâmpago, deve ter vindo do Senhor: “Repreenda-o. Você tem a autoridade.”

Hank proferiu as palavras, embora não pudesse ouvir o som delas: “Eu o repreendo em nome de Jesus!”

O peso esmagador levantou-se tão rapidamente que Hank sentiu que deixaria o chão como um foguete. Encheu os pulmões de ar e notou que estava agora debatendo-se contra nada. Mas o terror ainda se encontrava ali, uma presença negra, sinistra.

Ele se ergueu um pouco, respirou de novo, e disse claramente e bem alto: “No nome de Jesus eu lhe ordeno que saia desta casa!”

Mary acordou sobressaltada, assustada, e então ficou aterrorizada pelo ruído de uma multidão berrando em angústia e dor. Os gritos, ensurdecedores a princípio, foram diminuindo, como que afastando-se a uma distância invisível.

— Hank! — berrou ela.

 Marshall urrou como um selvagem e ergueu o taco bem alto para abater seu atacante. O atacante também gritou, de puro terror.

Era Kate. Sem saber, eles haviam batido de costas um para o outro no escuro corredor.

— Marshall! — exclamou ela, e sua voz tremia. Estava quase a chorar e zangada ao mesmo tempo. — Mas o que você está fazendo aqui?

— Kate... — Marshall suspirou, sentindo-se murchar como uma câmara de pneu furada. — O que está tentando fazer, está querendo morrer?

— O que há de errado? — Ela estava olhando para o taco de beisebol e sabia que algo estava acontecendo. Agarrou-se a ele, receosa. — Há alguém aqui dentro?

— Não... — murmurou ele em uma combinação de alívio e de­sagrado. — Ninguém. Eu olhei.

— O que aconteceu? Quem era?

— Ninguém, já disse.

— Mas achei que você estava conversando com alguém.

Ele a olhou com a máxima impaciência e disse em volume cada vez mais alto:

— Estou com cara de quem esteve batendo um papinho amistoso com alguém?

Kate abanou a cabeça.

— Devo ter sonhado. Mas foram as vozes que me acordaram.

— Que vozes?

— Marshall, parecia uma festa de reveillon lá dentro. Diga, quem era?

— Ninguém. Não havia ninguém lá. Eu olhei. Kate estava muito confusa.

— Sei que estava acordada.

— Você ouviu fantasmas.

Ele sentiu a mão dela apertar o braço a ponto de paralisar a cir­culação.

— Não diga isso!

— Sandy se foi.

— O que quer dizer, se foi? Foi aonde?

— Ela se foi. O quarto dela está vazio, ela não está dentro de casa. Ela sumiu! Foi-se!

Kate correu pelo corredor e olhou no quarto de Sandy. Marshall seguiu-a e observou da porta enquanto Kate examinava o quarto, olhando no guarda-roupas e algumas gavetas.

Relatou ela com alarme:

— Algumas das roupas se foram. Os livros escolares sumiram —. Ela o fitou desamparadamente: — Marshall, ela saiu de casa!

Ele a olhou por longo momento, e depois em volta do quarto, e então encostou a cabeça contra o batente da porta com um baque surdo.

— Droga — disse.

— Eu sabia que ela agia de modo estranho esta noite. Devia ter tentado descobrir o que estava errado.

— Não nos saímos muito bem hoje...

— Bem, isso era óbvio. Você veio para casa sem ela.

— E por falar nisso, como foi que ela chegou aqui?

— Sua amiga Terry a trouxe.

— Talvez ela tenha ido passar a noite com Terry.

— Será melhor ligarmos para saber?

— Não sei...

— Não sabe!

Marshall cerrou os olhos e tentou pensar.

— Não. É tarde. Ou ela está lá, ou não está. Se não estiver, vamos tirar gente da cama a troco de nada, e se estiver, bem, está segura.

Kate parecia meio apavorada.

— Vou telefonar.

Marshall ergueu a mão e recostou a cabeça no batente da porta novamente e disse:

— Ei, não fique toda assustada, está bem? Dê-me um minuto.

— Só quero saber se ela está lá...

— Está bem, está bem...

Mas Kate podia ver que havia algo muito errado com Marshall. Ele estava pálido, fraco, abalado.

— O que há, Marshall?

— Dê-me um minuto...

Ela colocou o braço em torno dele, preocupada:

— O que é?

Ele teve de lutar para conseguir dizer:

— Estou com medo —. Tremendo um pouco, os olhos fechados, a cabeça no batente da porta, ele disse de novo: — Estou realmente com medo, e não sei por quê.

Isso assustou Kate.

— Marshall...

— Não se preocupe, está bem? Fique calma.

— Há algo que eu possa fazer?

— Apenas fique firme, só isso. Kate pensou um instante.

— Bem, por que não veste o seu roupão? Aquecerei um pouco de leite, está bem?

— Sim, ótimo.

 Era a primeira vez que Hank Busche repreendia e confrontava qualquer demônio. O certo é que haviam chegado com arrogante impudência a princípio, caindo sobre a casa no meio da noite a fim de atacar e devastar, berrando e lançando-se através dos aposentos e pulando sobre Hank, tentando aterrorizá-lo. Mas enquanto Krioni, Triskal e os outros olhavam do seu esconderijo, confusos e espalha­dos demônios aos bandos saíram de chofre da casa, trovejando e adejando qual morcegos, berrando, indignados, tapando os ouvidos. Devia haver perto de cem, todos os demônios desordeiros e encren-queiros de sempre que Krioni tinha visto operando por toda a cidade. Sem dúvida, o grande Baal os enviara, e agora que eles haviam sido expulsos era impossível saber qual seria a reação de Rafar ou seu próximo plano. Mas Hank tinha-se saído muito bem.

O perigo passou num instante, cessou o apuro, e os guerreiros saíram do esconderijo, respirando melhor. Krioni e Triskal estavam bem impressionados.

Comentou Krioni:

— Tal tinha razão. Ele não é tão insignificante assim.

— Tem firmeza de caráter, esse Henry Busche — concordou Tris­kal.

Mas enquanto Hank e Mary sentavam-se tremendo à mesa da co­zinha, ela preparando uma compressa gelada e ele ostentando um vergão na testa e um sem número de machucados e arranhões nos braços e nas canelas, nenhum dos dois se sentia inteiramente firme, poderoso ou vitorioso. Hank dava graças por ter escapado com vida, e Mary ainda se encontrava em leve estado de choque e descrença.

Era uma situação incômoda, mas nenhum deles queria relatar sua experiência primeiro por temer que a coisa toda nada mais fosse que um excesso de picles e salame antes de deitar. Mas o vergão de Hank continuou a inchar, e ele só podia contar o que sabia. Mary acreditou em cada palavra, assustada como estava pelos berros que a haviam despertado. Enquanto compartilhavam sua não tão agradável expe­riência, puderam aceitar que toda aquela loucura havia sido apavorantemente real, e não alguma espécie de pesadelo.

— Demônios — concluiu Hank.

Mary só conseguiu assentir com a cabeça.

— Mas, por quê? — desejou saber Hank. — Qual o propósito disso?

Mary não estava preparada para oferecer nenhuma resposta. Ficou esperando que Hank o fizesse. Ele resmungou:

— Como se fosse a Lição Número Um em Combate na Linha de Frente. Eu não estava nem um pouquinho pronto para ela. Acho que não passei.

Mary entregou-lhe a compressa de gelo e ele a colocou contra o vergão, fazendo uma careta ao sentir a pressão.

— O que o faz pensar que não passou? — perguntou ela.

— Não sei. Acho que simplesmente caí na armadilha. Deixei-os surrar-me —. Então ele orou: “Senhor Deus, ajuda-me a estar pre­parado da próxima vez. Dá-me a visão, a sensibilidade para saber o que eles estão aprontando.”

Mary apertou-lhe a mão, disse amém, e então comentou:

— Sabe, posso estar enganada, mas o Senhor já não fez isso? Isto é, como é que você vai saber como lutar contra os ataques diretos de Satanás a menos que simplesmente... o faça?

Era o que Hank precisava ouvir.

— Puxa — disse ele pensativo. — Sou um veterano.

— E não fique pensando também que não passou no teste. Eles se foram, não foram? E você ainda está aqui, e precisava ter ouvido aqueles berros.

— Tem certeza de que não era eu?

— Absoluta.

Então veio um longo, inquieto silêncio.

— E agora? — perguntou Mary finalmente.

— Ah... vamos orar — disse Hank. Para ele, essa era uma opção a que era fácil recorrer.

E orar eles fizeram, dando-se as mãos em volta da pequena mesa da cozinha, conferenciando com o Senhor. Agradeceram-lhe a ex­periência daquela noite, o tê-los protegido do perigo, o ter-lhes per­mitido vislumbrar bem de perto o inimigo. Mais de uma hora se passou, e durante aquele tempo o campo de cuidado foi-se am­pliando; seus problemas particulares começaram a ocupar lugar muito pequeno em uma perspectiva muito mais ampla enquanto Hank e Mary oravam pela igreja, pelas pessoas que nela se congre­gavam, pela cidade, por seus dirigentes, pelo estado, pelo país, pelo mundo. Através de tudo aquilo veio a linda tranqüilidade de que haviam de fato estado ligados ao trono de Deus e conduzido sério negócio com o Senhor. Cresceu a determinação de Hank de ficar na briga e atrapalhar Satanás ao máximo. Estava certo de que isso era o que Deus desejava.

O leite morno e a companhia de Kate agiram como calmante nos nervos de Marshall. A cada gole e a cada minuto adicional de nor­malidade, ele adquiria mais e mais segurança de que o mundo con­tinuaria a existir, ele viveria, o sol se levantaria pela manhã. Admirava-se de como as coisas, tão pouco tempo atrás, pareceram desoladas.

— Sente-se melhor? — perguntou Kate, passando manteiga numa fatia de pão que acabara de torrar.

— Sim — respondeu ele, notando que seu coração retraía-se de novo ao peito e voltava ao ritmo normal, rotineiro. — Credo, não sei que bicho me mordeu.

Kate pôs as duas fatias torradas num prato e as colocou sobre a mesa. Marshall mordeu ruidosamente a torrada e perguntou:

— Então ela não está na casa de Terry? Kate sacudiu a cabeça.

— Você quer falar acerca de Sandy? Marshall estava pronto.

— É bem provável que precisemos falar a respeito de uma porção de coisas.

— Não sei como começar...

— Você acha que a culpa é minha?

— Oh, Marshall...

— Vamos, seja honesta. Estive levando uma surra no traseiro o dia todo. Escutarei.

Os olhos dela encontraram os dele e não se desviaram, denotando sinceridade e firme amor.

— Categoricamente, não — disse ela.

— Estraguei tudo hoje.

— Acho que todos estragamos, e isso inclui Sandy. Ela também fez algumas escolhas, lembra-se?

— E, mas talvez fosse por não lhe termos dado nada melhor.

— O que você acha de conversar com o Pastor Young?

— É esse o problema.

— Hum?

Hogan sacudiu a cabeça desanimado.

— Talvez... talvez Young seja um pouco acomodado demais, sabe? Ele está metido nesse negócio da família humana, de descobrir-se a si mesmo, de salvar as baleias...

Kate ficou meio surpresa.

— Achei que você gostava do Pastor Young.

— Bem... acho que gosto. Mas, às vezes, não, quase sempre, nem mesmo sinto que estou indo à igreja. Poderia muito bem estar sentado numa reunião de clube ou em alguma das aulas esquisitas da Sandy.

Ele examinou os olhos da esposa. Ainda estavam firmes. Ela estava ouvindo.

— Kate, você nunca tem a sensação de que Deus tem de ser, sabe, um pouco... maior? Mais durão? O Deus que nos passam naquela igreja, sinto que ele nem mesmo é uma pessoa real, e se for, é mais tonto do que nós. Não posso esperar que Sandy aceite aquela ba­boseira. Nem em mesmo aceito.

— Nunca pensei que era isso o que você sentia, Marshall.

— Bem, talvez nem eu mesmo soubesse. É apenas que essa coisa hoje à noite... Tenho de realmente pensar sobre ela; tem acontecido tanta coisa ultimamente.

— De que está falando? O que tem acontecido?

Não lhe posso dizer, pensou Marshall. Como poderia explicar a estranha e hipnótica persuasão a que estava certo de ter sido sub­metido por Brummel, a sensação arrepiante que lhe dera a professora de Sandy, o puro terror que sentira essa noite? Nada disso fazia sentido, e agora, para completar, Sandy se fora. Em todas essas si­tuações, ele estivera horrorizado com sua própria incapacidade de enfrentar e lutar. Tinha-se sentido controlado. Mas não podia contar a Kate nada disso.

— Olhe... é uma longa história — disse por fim. — Tudo o que sei é que todo este negócio, o nosso modo de vida, nossa progra­mação, nossa família, nossa religião, o que quer que seja, simples­mente não está funcionando. Algo tem de mudar.

— Mas não acha que deve falar com o Pastor Young?

— Ele é um convencido...

Naquele exato momento, à 1:00 da manhã, o telefone tocou.

— Sandy! — exclamou Kate. Marshall arrebatou o telefone do gancho.

— Alô?

— Alô? — disse uma voz feminina. — Você está em pé! Marshall, desapontado, reconheceu a voz. Era Berenice.

— Oh, oi, Bernie — disse ele, olhando para Kate, cujo rosto afun­dou em frustração.

— Não desligue! Desculpe telefonar tão tarde assim, mas saí com alguém e não cheguei a casa até tarde, mas queria revelar aquele filme... você está bravo?

— Ficarei bravo amanhã. No momento estou cansado demais. O que descobriu?

— Veja só. Sei que o filme na máquina tinha doze fotos do parque, incluindo as de Brummel, Young e aqueles três desconhecidos. Hoje fui para casa e acabei o rolo, mais doze chapas: meu gato, a vizinha que tem uma grande pinta, o noticiário da noite, etecétera. As fotos de hoje saíram.

Houve uma pausa, e Marshall sabia que teria de perguntar:

— E as outras?

— A emulsão estava escurecida, totalmente exposta, o filme ar­ranhado e com marcas de dedos. Não há nada errado com a máquina.

Marshall nada disse durante longo instante.

— Marshall... alô?

— Que interessante — disse ele.

— Eles estão aprontando alguma! Estou toda excitada. Estou pen­sando em ver se consigo descobrir onde foram parar essas chapas.

Houve outra longa pausa.

— Alô?

— Que cara tinha a outra mulher, a loira?

— Não muito velha, cabelos loiros, longos... com cara um tanto malvada.

— Gorda? Magra? Mais ou menos?

— Era bem elegante.

A testa de Marshall franziu um pouco, e os olhos vaguearam en­quanto ele seguia o que estava pensando.

— Até amanhã.

— Até logo, e obrigada por atender.

Marshall desligou o telefone. Fitou o olhar na mesa, os dedos a tamborilar.

— De que se tratava? — perguntou Kate.

— Hum — disse ele, ainda pensando. Então, respondeu:

— Ah, negócio do jornal. Nada demais. De que mesmo estávamos falando?

— Bem, se ainda tem importância, estávamos apenas falando sobre se você devia ou não ir conversar com o Pastor Young a respeito do nosso problema...

— Young — disse ele, e a voz soou quase zangada.

— Mas se não quer...

Marshall permaneceu fitando a mesa enquanto o seu leite esfriava. Kate esperou, depois despertou-o, dizendo:

— Talvez prefira falar disto de manhã?

— Falarei com ele — disse Marshall terminantemente. — Eu... Eu quero falar com ele. Pode apostar que quero falar com ele!

— Não prejudicaria.

— Não, nem um pouco.

— Não sei quando ele poderia marcar uma hora para você, mas —

 — Uma da tarde seria bom.

Ele franziu de leve as sobrancelhas.

— Uma da tarde seria perfeito.

— Marshall... — começou Kate, mas se deteve. Algo estava acontecendo ao marido, e ela captou-o na voz, na expressão dele.

Ela jamais percebera a ausência daquele fogo em seus olhos; talvez nunca tivesse notado que se fora até este momento, quando, pela primeira vez desde que haviam deixado Nova York, ela o viu no­vamente. Umas sensações antigas, desagradáveis, surgiram em seu íntimo, sensações que não tinha desejo de enfrentar tarde da noite com a filha misteriosamente desaparecida.

— Marshall — disse ela, afastando a cadeira e apanhando o prato de torradas meio comidas — vamos dormir um pouco.

— Talvez eu não consiga dormir.

— Eu sei — disse ela baixinho.

Todo esse tempo, Tal, Guilo, Natã e Armote haviam permanecido no aposento, observando cuidadosamente, e nesse momento Guilo pôs-se a rir com aquele grasnar rouco que lhe era peculiar.

Tal disse sorrindo:

— Não, Marshall Hogan. Você nunca foi de dormir muito... e agora Rafar ajudou a despertá-lo novamente!