quarta-feira, 5 de maio de 2021

Este mundo tenebroso - volume 01 - Capítulo 07

Na manhã de terça-feira o sol brilhava através das janelas e Mary estava ocupada em sovar, com fúria, uma massa de pão. Hank encontrou o nome e o número no arquivo da igreja: o Reverendo James Farrel. Ele não conhecia a Farrel, e tudo o que sabia era o mexerico malicioso e de mau gosto que corria acerca do homem que o precedera e que se havia mudado para longe de Ashton desde que deixara a igreja.

Era um impulso, uma mera tentativa, disso Hank sabia. Mas sentou-se no sofá, apanhou o telefone e discou o número.

— Alô? — atendeu a voz cansada de um homem mais velho.

— Alô — disse Hank, tentando soar agradável a despeito dos ner­vos retesados. — James Farrel?

— Sim. Quem fala?

— Aqui é Hank Busche, pastor da — ele ouviu Farrel dar um longo, conhecedor suspiro — Igreja da Comunidade de Ashton. Acho que deve saber quem sou.

— Sim, Pastor Busche. Então, como vai? Como responder a essa pergunta, pensou Hank.

— Ah... bem, em alguns aspectos.

— E não tão bem em outros — interveio Farrel, completando o pensamento de Hank.

— Puxa, você realmente tem-se mantido a par das coisas.

— Bem, não ativamente. Mas recebo notícias através de alguns membros de tempos em tempos —. Então acrescentou depressa: —

Alegro-me que tenha ligado. O que posso fazer por você?

— Ah... conversar comigo, acho. Farrel respondeu:

— Tenho certeza de que há muita coisa que eu poderia lhe dizer. Estou sabendo que vai haver uma assembléia extraordinária nesta sexta. É verdade?

— É, sim.

— Um voto de confiança, pelo que sei.

— É isso mesmo.

— Sim, passei pela mesma coisa, como sabe. Brummel, Turner, Mayer e Stanley dirigiram aquela reunião também.

— Deve estar brincando.

— Oh, é estritamente a história que se repete, Hank. Acredite no que digo.

— Eles tiraram você?

— Eles decidiram que não gostavam do que eu estava pregando e do rumo que meu ministério estava tomando, e assim alvoroçaram a congregação contra mim e depois deram um jeito de fazer uma votação. Não perdi por muito, mas perdi.

— Os mesmos quatro sujeitos!

— Os mesmos quatro... mas agora, é certo o que ouvi dizer? Você realmente eliminou Lou Stanley da comunhão?

— Bem, sim.

— Olhe, isso não é pouco. Não posso imaginar Lou permitir que alguém fizesse isso com ele.

— Bem, os outros três fizeram dessa uma questão primordial; não me deixaram mais em paz com relação ao assunto.

— E para que lado a congregação está pendendo?

— Não sei. Ela pode estar bem equilibrada.

— Então como está agüentando tudo isso?

Hank não podia pensar em uma forma melhor de enunciar a ques­tão. Disse:

— Acho que estou sob ataque, ataque direto, espiritual —. Silêncio do outro lado da linha. — Alô?

— Oh, estou aqui — Disse Farrel devagar, hesitante, como se es­tivesse pensando muito enquanto tentava conversar. — Que tipo de ataque espiritual?

Hank gaguejou um pouco. Ele podia imaginar como a experiência da noite anterior pareceria a um estranho.

— Bem... acho que Satanás está realmente envolvido aqui... Farrel estava quase exigindo:

— Hank, que tipo de ataque espiritual?

Hank começou cuidadosamente a sua narrativa, tentando com to­das as forças parecer um indivíduo racional e responsável enquanto relatava os pontos principais: a obsessão que Brummel parecia ter em livrar-se dele, a divisão na igreja, o mexerico, a zanga do conselho, as palavras pichadas na frente da sua casa, e depois a luta livre espiritual por que tinha passado na noite anterior. Farrel interrompia apenas para pedir esclarecimentos.

— Sei que tudo isso soa como loucura... — concluiu Hank. Tudo o que Farrel pôde fazer foi soltar um profundo suspiro e murmurar:

— Que coisa horrível!

— Bem, como você diz, é a história que se repete. Sem dúvida, você encontrou coisas desse tipo, certo? Ou sou eu quem realmente tem um problema aqui?

Farrel debateu-se à procura de palavras.

— Fico contente por ter chamado. Sempre tive dúvidas se devia ou não ligar para você. Não sei se vai gostar de ouvir isto, mas... — Farrel pausou a fim de ganhar nova força, então disse:

— Hank, você tem certeza de que seu lugar é aí? Hank sentiu suas defesas se erguerem.

— Sim, creio firmemente de coração que Deus me chamou para aqui.

— Você sabe que foi por acidente que foi escolhido como pastor?

— Bem, há gente dizendo isso, mas...

— É verdade, Hank. Você realmente deveria levar isso em consi­deração. Sabe, a igreja me tirou do cargo; eles tinham outro ministro escolhido e pronto para assumir, um sujeito com filosofia religiosa ampla e liberal o bastante para satisfazer-lhes. Hank, realmente não sei como você acabou sendo eleito, mas foi definitivamente algum tipo de acaso organizacional. A única coisa que eles não queriam aí era outro ministro fundamentalista, não depois de todo o trabalho que tiveram para se livrar do anterior.

— Mas eles me elegeram.

— Foi um acidente. Brummel e os outros definitivamente não con­tavam com a sua vitória.

— Bem, agora sei disso.

— Está bem, ótimo, você enxerga a situação. Então, deixe-me pas­sar a um conselho direto. Agora, depois de sexta-feira tudo isto pode muito bem ser irrelevante, de qualquer forma, mas se eu fosse você, trataria de fazer as malas e começaria a procurar uma posição em outro lugar, não importa o resultado da votação.

Hank murchou um pouco. A conversa estava azedando; ele sim­plesmente não conseguia aceitar o conselho. Tudo o que podia fazer era suspirar ao telefone. Farrel insistiu.

— Hank, eu já estive nessa posição, já passei por tudo isso, e sei pelo que ainda terá de passar. Acredite-me, não vale a pena. Deixe que fiquem com a igreja, deixe que fiquem com a cidade toda; apenas não se sacrifique.

— Mas não posso ir embora...

— Sim, certo, você recebeu um chamado de Deus. Hank, eu tam­bém. Eu estava pronto para entrar na briga, a assumir um posição por Deus nessa cidade. Você sabe, custou-me meu lar, minha re­putação, minha saúde, e quase me custou meu casamento. Deixei Ashton literalmente pensando em mudar de nome. Você não tem a mínima idéia de quem está realmente enfrentando. Há forças ope­rando nessa cidade...

— Que tipo de forças?

— Bem, políticas, sociais... espirituais também, claro.

— Ah, é, você não chegou a responder à minha pergunta: o que me diz do que aconteceu aqui ontem à noite? O que acha disso?

Farrel hesitou, então disse:

— Hank... não sei por quê, mas acho muito difícil falar sobre esse tipo de coisas. Tudo o que posso dizer é: saia desse lugar enquanto pode. Largue tudo. A igreja não o quer, a cidade não o quer.

— Não posso ir embora. Já lhe disse.

Farrel fez uma longa pausa. Hank quase temeu que tivesse desli­gado. Mas então ele disse:

— Está bem, Hank. Vou lhe dizer, e você escute. Aquilo por que passou ontem à noite... bem, acho que posso ter tido experiências parecidas, mas posso lhe assegurar, o que quer que tenha sido, foi apenas o começo.

— Pastor Farrel...

— Não sou pastor. Pode me chamar de Jim.

— Essa é a essência do evangelho, lutar contra Satanás, fazer a luz do evangelho brilhar na escuridão...

— Hank, todos os belos chavões que desencavar não vão ajudá-lo nessas horas. Agora, não sei se você está equipado ou pronto, mas para ser perfeitamente honesto, se conseguir sair vivo dessa, ficarei surpreso. Estou falando sério!

Hank não tinha resposta.

— Jim... ligarei para contar o que aconteceu. Talvez eu vença, e talvez não saia vivo. Mas Deus não me disse que eu sairia vivo; apenas me disse que ficasse e lutasse. Uma coisa você deixou clara para mim: Satanás quer mesmo esta cidade. Não posso permitir que a tome.

Hank colocou o telefone no gancho e sentiu vontade de chorar.

“Senhor Deus”, orou, “Senhor Deus, o que devo fazer?”

O Senhor não deu resposta imediata, e Hank permaneceu sentado no sofá diversos minutos, tentando recuperar a força e a confiança.

Mary ainda estava ocupada na cozinha. Que bom! Ele não poderia conversar com ela nesse momento; muitos eram os pensamentos e as sensações que precisavam ser ordenados.

Então, um versículo lhe veio à mente: “Levanta, anda pela terra no seu comprimento e na sua largura; pois eu ta darei.”

Bem, era muito melhor do que ficar sentado em casa irrequieto e zangado sem realmente fazer nada. Assim, em frente seguiram os seus tênis e porta afora ele se foi.

Krioni e Triskal estavam do lado de fora, esperando seu protegido. Invisíveis, juntaram-se a Hank, um de cada lado, e desceram com ele a rua Morgan Hill em direção ao centro da cidade. Hank já não era mesmo muito alto, mas entre esses dois gigantes, parecia menor ainda. Contudo, parecia muito, muito bem guardado.

Triskal, mantendo-se de olhos abertos, disse:

— Mas, afinal, o que ele vai fazer?

A essa altura, Krioni já conhecia Hank muito bem.

— Acho que nem ele mesmo sabe. O Espírito o está levando. Ele está colocando em ação um peso que traz dentro de si.

— Oh, haverá ação, não tenha dúvida!

— É só não constituir uma ameaça. Até agora, tem sido a melhor maneira de sobreviver nesta cidade.

— Então diga isso ao pastorzinho aqui.

Ao se aproximar do principal distrito comercial, Hank deteve-se numa esquina para olhar rua acima e rua abaixo, observando carros antigos, carros novos, furgões e possantes caminhonetes, gente fa­zendo compras, andando, praticando cooper, bicicletas, fluindo em quatro ou mais direções, considerando as ordens do semáforo como meras sugestões.

E então, onde estava o mal? Como podia ter sido tão vivo na noite anterior e uma lembrança remota, incerta hoje? Não havia nenhum demônio ou diabo espreitando das janelas dos escritórios ou saindo dos bueiros; o povo era a mesma gente simples e comum que ele sempre tinha visto, ainda ignorando-o e passando por ele.

Sim, esta era a cidade pela qual ele orava dia e noite com profundos gemidos saídos do coração por causa de um peso que não conseguia explicar, e agora estava esgotando a sua paciência, desassossegando-o.

“Bem, você está em apuros ou não está, ou nem mesmo se im­porta?”, perguntou ele em voz alta.

Ninguém escutou. Nenhuma voz profunda, sinistra respondeu com uma ameaça.

Mas o Espírito do Senhor em seu íntimo não o deixava em paz. Ore, Hank. Ore por essas pessoas. Não as deixe escapar de seu coração. A dor está aí, o medo está aí, o perigo está aí.

Então, quando vencemos? respondeu Hank ao Senhor. O Senhor sabe há quanto tempo me tenho preocupado e orado por este lugar? Só uma vez gostaria de ver meu pedregulho fazer onda; gostaria de ver esse cachorro morto estremecer quando o cutuco.

Era incrível que os demônios pudessem esconder-se tão bem, até mesmo por trás das dúvidas que ele às vezes sentia quanto à própria existência deles.

“Sei que vocês estão por aí”, disse ele baixinho, correndo cuida­dosamente os olhos pelas faces inexpressivas dos prédios, o concreto, o tijolo, o vidro, o lixo. Os espíritos estavam zombando dele. Podiam desabar sobre ele num momento, aterrorizá-lo, sufocá-lo, e depois sumir, recolhendo-se aos esconderijos detrás da fachada da cidade, caçoando, brincando de esconde-esconde, vendo-o tatear às cegas como um tolo.

Irritado, ele se sentou num banco da calçada.

“Estou aqui, Satanás”, disse ele. “Não posso vê-lo, e talvez você consiga mover-se mais depressa do que eu, mas ainda assim estou aqui, e pela graça de Deus e pelo poder do Espírito Santo tenho a intenção de ser um espinho em seu lado até que um de nós peça água!” Hank olhou do outro lado da rua para a magnífica estrutura da Igreja Cristã Unida de Ashton. Ele havia conhecido alguns cristãos espetaculares que pertenciam àquela denominação, mas esse bando de Ashton em particular era diferente, liberal, quase bizarro. Ele encontrara o Pastor Oliver Young algumas vezes e nunca conseguira aproximar-se muito dele. Young parecia meio frio e distante, e Hank nunca conseguira descobrir por quê.

Enquanto Hank esteve ali sentado, olhando um carro marrom en­trar no estacionamento da igreja, Triskal e Krioni ficaram em pé, ao lado do banco, também olhando o carro parar. Somente eles dois conseguiam ver os passageiros especiais do carro. Em cima do veículo estavam dois grandes guerreiros, o árabe e o africano, Natã e Armote. Não havia espadas à vista. Eles estavam assumindo uma postura passiva, não combatente, de acordo com as ordens de Tal, exatamente como todos os outros.

 

Marshall tinha visto o filme de Berenice. Vira os pequeninos ar­ranhões resultantes de algum tipo de manuseio impróprio: vira as toscas impressões digitais a intervalos regulares que poderiam muito bem ter sido deixadas por uma mão ao tirar o filme da máquina, expondo-o à luz.

Marshall conseguira marcar uma entrevista com Young para à 1:00 da tarde. Ele entrou com o carro no vasto estacionamento asfaltado às 12:45, ainda acabando de engolir um hambúrguer de queijo e um café grande.

A Igreja Cristã Unida de Ashton era um dos grandes e imponentes edifícios da cidade, construída, em estilo tradicional, com grandes pedras, vitrais, linhas altaneiras, torre majestosa. A porta da frente não fugia ao padrão: grande, sólida, até algo assustadora, especial­mente quando alguém tentava abri-la sozinho. A igreja estava loca­lizada próximo ao centro da cidade, e o carrilhão da torre tocava a cada hora e dava um breve concerto de hinos ao meio-dia. Era um estabelecimento respeitado. Young era um ministro respeitado. As pessoas que freqüentavam a igreja eram membros respeitados da comunidade. Marshall muitas vezes pensara que respeito e posição deviam ser pré-requisitos para ser aceito como membro.

Ele engajou a grande porta da frente em breve embate de braço de ferro e finalmente conseguiu entrar. Não, esta congregação jamais havia economizado, disso estava certo. O piso da entrada, das es­cadas, do templo estava coberto com espesso carpete vermelho, o madeirame era todo de carvalho e nogueira, escurecido e envernizado. Além disso, havia todo aquele latão: maçanetas, cabides para casacos, corrimão das escadas, arremates das janelas, tudo em latão. As janelas, naturalmente, eram vitrais; todos os tetos eram elevados, com grandes candelabros pendentes, e delicado arabesco.

Marshall entrou no templo através de outra pesada porta e cami­nhou pelo longo corredor central até a frente. Esse aposento era um misto de teatro lírico e caverna: a plataforma era grande, o púlpito era grande, a galeria do coro era grande. Naturalmente, o coro também era grande.

O grande gabinete do Pastor Young, logo ao lado do templo, per­mitia acesso bem visível à plataforma e ao púlpito, e a entrada do Pastor Young através da grande porta de carvalho todas as manhãs de domingo era parte tradicional das cerimônias.

Marshall abriu aquela grande porta e entrou no escritório de re­cepção. A bonita secretária cumprimentou-o, mas não sabia quem ele era. Ele lhe disse, ela examinou o livro-horário e confirmou a entrevista. Marshall também examinou o horário, lendo de cabeça para baixo novamente. O horário das 2:00hs estava marcado A. Brum­mel.

— Bem, Marshall — disse Young com um sorriso e um aperto de mão cordiais e sistemáticos — entre, entre.

Marshall seguiu Young para dentro de seu luxuoso gabinete. Young, um homem corpulento de seus sessenta anos, com rosto arredondado, óculos de aro fino, e cabelos finos e bem assentados, parecia satisfeito com a posição que desfrutava tanto na igreja quanto na comunidade. As paredes apaineladas ostentavam muitas conde­corações de organizações comunitárias e beneficentes. Ao lado delas, havia diversas fotos emolduradas de Young posando com o gover­nador, alguns evangelistas populares, alguns autores, e um senador.

Atrás de sua imponente escrivaninha, Young criava um perfeito quadro do profissional bem sucedido. A cadeira de couro, de espaldar alto, tornava-se um trono, e o próprio reflexo do homem no topo da mesa o tornava ainda mais pitoresco e impressionante, como uma montanha refletida em lago alpino.

Com um gesto, ele indicou a Marshall uma cadeira, e Marshall sentou-se, notando que afundava a um nível em que seus olhos fi­cavam bem abaixo dos de Young. Começou a sentir um conhecido quê de intimidação; todo esse gabinete parecia projetado para esse fim.

— Belo gabinete — comentou ele.

— Muito obrigado — disse Young com um sorriso que empurrou as bochechas, empilhando-as contra as orelhas. Reclinou-se em sua cadeira, os dedos entrelaçados e agitados na beirada da escrivaninha.

— Gosto dele, sou grato por ele, e aprecio bastante o calor, a atmosfera deste lugar. Deixa a gente à vontade.

Deixa você à vontade, pensou Marshall.

— Sim... é.

— E então, como está indo o Clarim?

— Oh, recuperando-se. Você recebeu o de hoje?

— Sim, estava muito bom. Muito alinhado, no estilo. Você trouxe consigo um pouco da classe de cidade grande, pelo que vejo.

— Hum.

De repente, Marshall não sentia muita vontade de falar.

— Fico contente por você estar aqui conosco, Marshall. Esperamos ter um relacionamento muito bom.

— Oh, sim, obrigado.

— E então, o que o trouxe aqui?

Marshall remexeu-se um pouco, e então ergueu-se de um salto; aquela cadeira o fazia sentir-se demasiadamente como um micróbio debaixo do microscópio. Da próxima vez, trarei minha própria es­crivaninha enorme, pensou ele. Deu uma volta pelo gabinete, ten­tando parecer despreocupado.

— Temos muito o que cobrir em uma hora — começou.

— Podemos sempre marcar outros horários.

— Sim, claro. Bem, antes de mais nada, Sandy — é minha filha

—  fugiu de casa ontem à noite. Não tivemos notícia alguma, não sabemos onde ela está... — Ele deu a Young uma rápida sinopse do problema e seu histórico, e Young ouviu atentamente, sem interrom­per.

— Então — perguntou Young, afinal — você acha que ela deu as costas aos seus valores tradicionais e isso o perturba?

— Olhe, não sou uma pessoa profundamente religiosa, sabe como é? Mas algumas coisas têm de ser certas, e algumas coisas têm de ser erradas, e minha dificuldade com Sandy é ela ficar apenas... apenas pulando de um lado para outro da cerca.

Young ergueu-se majestosamente de sua escrivaninha e caminhou até Marshall com ar de um pai compreensivo. Colocando a mão no ombro de Marshall, disse:

— Você acha que ela é feliz, Marshall?

— Nunca a vejo feliz, e é provavelmente porque está perto de mim toda a vez que a vejo.

— E isso pode ser devido ao fato de você ter dificuldade em com­preender o rumo que ela está agora escolhendo para a própria vida. É óbvio que você projeta um desagrado definido em relação às fi­losofias dela...

— Sim, e em relação à professora que despeja todas aquelas filo­sofias em cima dela. Você conhece aquela... qual é mesmo o nome? Professora Langstrat, da faculdade?

Young pensou, depois meneou a cabeça.

— Acho que Sandy já fez dois cursos com ela, e a cada trimestre descubro que minha filha está ainda mais fora da realidade.

O pastor deu uma risadinha.

— Marshall, parece-me que ela está apenas explorando, apenas tentando conhecer o mundo, o universo em que vive. Você não se lembra de quando estava crescendo? Havia tanta coisa que simples­mente não era verdadeira até que você pudesse comprová-la por si mesmo. Provavelmente, é isso o que está acontecendo com Sandy no momento. Ela é uma garota muito inteligente. Tenho certeza de que apenas precisa explorar, encontrar-se.

— Bem, quando ela descobrir onde está, espero que telefone.

— Marshall, estou certo de que ela se sentiria muito mais à vontade para telefonar se pudesse encontrar corações compreensivos em casa. Não temos o direito de determinar o que outra pessoa deve fazer consigo, ou pensar a respeito de seu lugar no cosmo. Cada pessoa precisa encontrar seu próprio caminho, sua própria verdade. Se al­gum dia vamos conviver como uma família civilizada aqui neste planeta, teremos de aprender a respeitar o direito que os outros têm a seus próprios pontos de vista.

Marshall percebeu um vislumbre de déjà vu, como se uma gravação do cérebro de Sandy tivesse sido ligada ao de Young. Não pôde deixar de perguntar:

— Você tem certeza de que não conhece a professora Langstrat?

— Absoluta — respondeu Young com um sorriso.

— E Alf Brummel?

— Quem?

— Alf Brummel, o Delegado de polícia.

Marshall observou-lhe o rosto. Estaria ele se debatendo em res­ponder? Young finalmente disse:

Posso tê-lo visto uma vez ou outra... Estava apenas tentando juntar o nome ao rosto.

— Bem, ele pensa como você. Fala muito a respeito de as pessoas se darem bem e não causarem encrencas. Como foi que ele chegou a ser um tira, palavra que não sei.

— Mas não estávamos falando de Sandy?

— É, está bem. Pode falar. Young continuou.

— Todas as perguntas com as quais você está-se debatendo, as questões do certo e errado, ou o que é a verdade, ou nossos pontos de vista diferentes a respeito desses assuntos... tantas dessas coisas são impenetráveis, a não ser no coração. Todos nós sentimos a ver­dade como um pulsar comum em cada um de nós. Cada ser humano tem uma capacidade natural para o bem, para amar, para esperar e esforçar-se pelos melhores interesses próprios e de seu próximo.

— Acho que você não estava aqui durante o Festival. Young soltou um risinho.

— Admito que nós humanos certamente podemos direcionar mal as nossas melhores inclinações.

— E por falar nisso, diga, você chegou a ir ao Festival?

— Sim, algumas partes. Receio que a maior parte pouco me inte­ressasse.

— Então, você não esteve no parque de diversões?

— Claro que não. É jogar dinheiro fora. Mas, falando de Sandy...

— É, estávamos falando acerca do que é verdadeiro, e as opiniões de todo o mundo... como a questão de Deus, por exemplo. Ela não parece encontrá-lo, eu estou somente tentando defini-lo, não con­seguimos chegar a um acordo quanto à nossa religião, e até agora você não ajudou muito.

Young sorriu pensativo. Marshall podia perceber uma homília muito elevada a caminho.

— O seu Deus — disse Young — está onde o encontrar, e para encontrá-lo, precisa apenas abrir os olhos e perceber que ele está verdadeiramente dentro de todos nós. Jamais estivemos sem ele, Marshall; acontece somente que nossa ignorância nos cegou, e isso nos impediu de receber o amor, a segurança e o significado que todos desejamos. Jesus revelou o nosso problema na cruz, lembra-se? Ele disse: “Pai, perdoa-os, pois não sabem... Por isso, o exemplo que ele nos deu é o de buscarmos conhecimento, onde quer que possamos encontrá-lo. É isso o que você está fazendo, e estou convencido de que é isso o que Sandy está fazendo. A fonte do seu problema é uma perspectiva estreita, Marshall. Precisa ter a mente aberta. Precisa buscar, e Sandy precisa buscar.

— Então — disse Marshall pensativo — você está dizendo que é tudo uma questão de como vemos as coisas?

— Isso seria uma parte, sim.

— E que se eu perceber algo de certa maneira, não quer dizer que todo mundo vai enxergá-lo da mesma maneira, certo?

— Sim, está certo! — Young parecia muito contente com seu aluno.

— Então... deixe-me ver se entendi bem. Se minha repórter, Be­renice Krueger, teve a percepção de que você, Brummel, e três outras pessoas estavam fazendo uma pequena reunião atrás da barraca de dardos no parque de diversões... bem, essa foi apenas a percepção que ela teve da realidade?

Young sorriu com um sorriso estranho, do tipo aonde-está-tentando chegar, e respondeu:

— Suponho que sim, Marshall. Acho que esse seria um exemplo. Não cheguei nem perto do parque, e já lhe disse isso. Tenho horror a essas coisas.

— Você não estava lá com Alf Brummel?

— Não, de jeito nenhum. Por isso, como vê, a Srta. Krueger teve uma percepção muito incorreta de outra pessoa.

— De vocês dois, suponho. Young sorriu e deu de ombros. Marshall insistiu um pouco.

— Qual você acha que é a probabilidade de isso acontecer? Young continuou a sorrir, mas seu rosto corou um pouco.

— Marshall, o que deseja que eu faça? Argumentar com você? Certamente você não veio aqui para esse tipo de coisa.

Marshall lançou a isca para ver o que apanharia.

— Ela conseguiu até tirar umas fotos de vocês.

Young suspirou e olhou por um momento para o chão. Depois, disse friamente:

— Então, por que você não traz essas fotos da próxima vez, e aí poderemos falar sobre elas?

O risinho no rosto de Young atingiu Marshall como se fosse cuspo.

— Está bem — resmungou Marshall, sem abaixar os olhos.

— Marge marcará outro horário para você.

— Muito obrigado.

Marshall olhou no relógio de pulso, foi até a porta e a abriu.

— Entre, Alf.

Alf Brummel estivera sentado na sala de recepção. Ao dar com Marshall, levantou-se precipitadamente, desajeitado. Tinha o as­pecto que alguém poderia ter uma fração de segundo antes de ser atingido por um trem.

Marshall agarrou Alf pela mão e a sacudiu excitadamente.

— Ei, amigão! Olhe, já que, pelo visto, vocês dois não se conhecem muito bem, deixem-me apresentá-los. Alf Brummel, este é o Reve­rendo Oliver Young. Reverendo, Alf Brummel, Delegado de polícia!

Brummel deu a impressão de não apreciar nem um pouco a cor­dialidade de Marshall, mas Young sim. Adiantou-se, agarrou a mão de Brummel, apertou-a, e depois puxou o Delegado rapidamente para dentro do gabinete, dizendo por sobre o ombro:

— Marge, marque outro horário para o Sr. Hogan. Mas o Sr. Hogan já não se encontrava ali.