Na manhã de terça-feira o sol brilhava através das janelas e Mary
estava ocupada em sovar, com fúria, uma massa de pão. Hank encontrou o nome e o
número no arquivo da igreja: o Reverendo James Farrel. Ele não conhecia a
Farrel, e tudo o que sabia era o mexerico malicioso e de mau gosto que corria
acerca do homem que o precedera e que se havia mudado para longe de Ashton
desde que deixara a igreja.
Era um impulso, uma mera tentativa, disso Hank sabia.
Mas sentou-se no sofá, apanhou o telefone e discou o número.
—
Alô? — atendeu a voz cansada de um homem mais velho.
—
Alô — disse Hank, tentando soar agradável a despeito dos nervos retesados. —
James Farrel?
—
Sim. Quem fala?
—
Aqui é Hank Busche, pastor da — ele ouviu Farrel dar um longo, conhecedor suspiro
— Igreja da Comunidade de Ashton. Acho que deve saber quem sou.
—
Sim, Pastor Busche. Então, como vai? Como responder a essa pergunta, pensou
Hank.
—
Ah... bem, em alguns aspectos.
—
E não tão bem em outros — interveio Farrel, completando o pensamento de Hank.
—
Puxa, você realmente tem-se mantido a par das coisas.
—
Bem, não ativamente. Mas recebo notícias através de alguns membros de tempos em
tempos —. Então acrescentou depressa: —
Alegro-me que tenha ligado. O que posso fazer por você?
—
Ah... conversar comigo, acho. Farrel respondeu:
—
Tenho certeza de que há muita coisa que eu poderia lhe dizer. Estou sabendo que
vai haver uma assembléia extraordinária nesta sexta. É verdade?
—
É, sim.
—
Um voto de confiança, pelo que sei.
—
É isso mesmo.
—
Sim, passei pela mesma coisa, como sabe. Brummel, Turner, Mayer e Stanley
dirigiram aquela reunião também.
—
Deve estar brincando.
—
Oh, é estritamente a história que se repete, Hank. Acredite no que digo.
—
Eles tiraram você?
—
Eles decidiram que não gostavam do que eu estava pregando e do rumo que meu
ministério estava tomando, e assim alvoroçaram a congregação contra mim e
depois deram um jeito de fazer uma votação. Não perdi por muito, mas perdi.
—
Os mesmos quatro sujeitos!
—
Os mesmos quatro... mas agora, é certo o que ouvi dizer? Você realmente
eliminou Lou Stanley da comunhão?
—
Bem, sim.
—
Olhe, isso não é pouco. Não posso imaginar Lou permitir que alguém fizesse isso
com ele.
—
Bem, os outros três fizeram dessa uma questão primordial; não me deixaram mais em
paz com relação ao assunto.
—
E para que lado a congregação está pendendo?
—
Não sei. Ela pode estar bem equilibrada.
—
Então como está agüentando tudo isso?
Hank não podia pensar em uma forma melhor de enunciar a questão.
Disse:
—
Acho que estou sob ataque, ataque direto, espiritual —. Silêncio do outro lado
da linha. — Alô?
—
Oh, estou aqui — Disse Farrel devagar, hesitante, como se estivesse pensando
muito enquanto tentava conversar. — Que tipo de ataque espiritual?
Hank gaguejou um pouco. Ele podia imaginar como a
experiência da
noite anterior pareceria a um estranho.
—
Bem... acho que Satanás está realmente envolvido aqui... Farrel estava quase
exigindo:
—
Hank, que tipo de ataque espiritual?
Hank começou cuidadosamente a sua narrativa, tentando com todas as
forças parecer um indivíduo racional e responsável enquanto relatava os pontos principais: a obsessão que Brummel parecia ter em livrar-se dele, a divisão
na igreja, o mexerico, a zanga do conselho, as palavras pichadas na frente da
sua casa, e depois a luta livre espiritual por que tinha passado na noite
anterior. Farrel interrompia apenas para pedir esclarecimentos.
—
Sei que tudo isso soa como loucura... — concluiu Hank. Tudo o que Farrel pôde
fazer foi soltar um profundo suspiro e murmurar:
—
Que coisa horrível!
—
Bem, como você diz, é a história que se repete. Sem dúvida, você encontrou
coisas desse tipo, certo? Ou sou eu quem realmente tem um problema aqui?
Farrel debateu-se à procura de palavras.
—
Fico contente por ter chamado. Sempre tive dúvidas se devia ou não ligar para você.
Não sei se vai gostar de ouvir isto, mas... — Farrel pausou a fim de ganhar
nova força, então disse:
—
Hank, você tem certeza de que seu lugar é aí? Hank sentiu suas defesas se
erguerem.
—
Sim, creio firmemente de coração que Deus me chamou para aqui.
—
Você sabe que foi por acidente que foi escolhido como pastor?
—
Bem, há gente dizendo isso, mas...
—
É verdade, Hank. Você realmente deveria levar isso em consideração. Sabe, a
igreja me tirou do cargo; eles tinham outro ministro escolhido e pronto para
assumir, um sujeito com filosofia religiosa ampla e liberal o bastante para
satisfazer-lhes. Hank, realmente não sei como você acabou sendo eleito, mas foi
definitivamente algum tipo de acaso organizacional. A única coisa que eles não
queriam aí era outro ministro fundamentalista, não depois de todo o trabalho
que tiveram para se livrar do anterior.
—
Mas eles me elegeram.
—
Foi um acidente. Brummel e os outros definitivamente não contavam com a
sua vitória.
—
Bem, agora sei disso.
—
Está bem, ótimo, você enxerga a situação. Então, deixe-me passar a um conselho
direto. Agora, depois de sexta-feira tudo isto pode muito bem ser irrelevante,
de qualquer forma, mas se eu fosse você, trataria de fazer as malas e começaria
a procurar uma posição em outro lugar, não importa o resultado da votação.
Hank murchou um pouco. A conversa estava azedando; ele
simplesmente não conseguia aceitar o conselho. Tudo o que podia fazer era suspirar ao
telefone. Farrel insistiu.
—
Hank, eu já estive nessa posição, já passei por tudo isso, e sei pelo que ainda
terá de passar. Acredite-me, não vale a pena. Deixe que fiquem com a igreja, deixe que fiquem com a cidade toda; apenas não se sacrifique.
—
Mas não posso ir embora...
—
Sim, certo, você recebeu um chamado de Deus. Hank, eu também. Eu estava pronto
para entrar na briga, a assumir um posição por Deus nessa cidade. Você sabe,
custou-me meu lar, minha reputação, minha saúde, e quase me custou meu
casamento. Deixei Ashton literalmente pensando em mudar de nome. Você não tem a
mínima idéia de quem está realmente enfrentando. Há forças operando nessa
cidade...
—
Que tipo de forças?
—
Bem, políticas, sociais... espirituais também, claro.
—
Ah, é, você não chegou a responder à minha pergunta: o que me diz do que
aconteceu aqui ontem à noite? O que acha disso?
Farrel hesitou, então disse:
—
Hank... não sei por quê, mas acho muito difícil falar sobre esse tipo de
coisas. Tudo o que posso dizer é: saia desse lugar enquanto pode. Largue tudo.
A igreja não o quer, a cidade não o quer.
—
Não posso ir embora. Já lhe disse.
Farrel fez uma longa pausa. Hank quase temeu que
tivesse desligado. Mas então ele disse:
—
Está bem, Hank. Vou lhe dizer, e você escute. Aquilo por que passou ontem à
noite... bem, acho que posso ter tido experiências parecidas, mas posso lhe
assegurar, o que quer que tenha sido, foi apenas o começo.
—
Pastor Farrel...
—
Não sou pastor. Pode me chamar de Jim.
—
Essa é a essência do evangelho, lutar contra Satanás, fazer a luz do evangelho
brilhar na escuridão...
—
Hank, todos os belos chavões que desencavar não vão ajudá-lo nessas horas.
Agora, não sei se você está equipado ou pronto, mas para ser perfeitamente
honesto, se conseguir sair vivo dessa, ficarei surpreso. Estou falando sério!
Hank não tinha resposta.
—
Jim... ligarei para contar o que aconteceu. Talvez eu vença, e talvez não saia
vivo. Mas Deus não me disse que eu sairia vivo; apenas me disse que ficasse e
lutasse. Uma coisa você deixou clara para mim: Satanás quer mesmo esta cidade.
Não posso permitir que a tome.
Hank colocou o telefone no gancho e sentiu vontade de
chorar.
“Senhor Deus”, orou, “Senhor Deus, o que devo fazer?”
O Senhor não deu resposta imediata, e Hank permaneceu sentado no sofá
diversos minutos, tentando recuperar a força e a confiança.
Mary ainda estava ocupada na cozinha. Que bom! Ele não poderia conversar com ela nesse momento; muitos eram os pensamentos e as sensações que precisavam ser
ordenados.
Então, um versículo lhe veio à mente: “Levanta, anda pela terra
no seu comprimento e na sua largura; pois eu ta darei.”
Bem, era muito melhor do que ficar sentado em casa
irrequieto e zangado sem realmente fazer nada. Assim, em frente seguiram os
seus tênis e
porta afora ele se foi.
Krioni e Triskal estavam do lado de fora, esperando seu
protegido. Invisíveis, juntaram-se a Hank, um de cada lado, e desceram com ele a rua
Morgan Hill em direção ao centro da cidade. Hank já não era mesmo muito alto,
mas entre esses dois gigantes, parecia menor ainda. Contudo, parecia muito,
muito bem guardado.
Triskal, mantendo-se de olhos abertos, disse:
—
Mas, afinal, o que ele vai fazer?
A essa altura, Krioni já conhecia Hank muito bem.
—
Acho que nem ele mesmo sabe. O Espírito o está levando. Ele está colocando em
ação um peso que traz dentro de si.
—
Oh, haverá ação, não tenha dúvida!
—
É só não constituir uma ameaça. Até agora, tem sido a melhor maneira de
sobreviver nesta cidade.
—
Então diga isso ao pastorzinho aqui.
Ao se aproximar do principal distrito comercial, Hank
deteve-se numa esquina para olhar rua acima e rua abaixo, observando carros
antigos, carros novos, furgões e possantes caminhonetes, gente fazendo compras,
andando, praticando cooper, bicicletas, fluindo em quatro ou mais direções,
considerando as ordens do semáforo como meras sugestões.
E então, onde estava o mal? Como podia ter sido tão vivo na noite
anterior e uma lembrança remota, incerta hoje? Não havia nenhum demônio ou
diabo espreitando das janelas dos escritórios ou saindo dos bueiros; o povo era
a mesma gente simples e comum que ele sempre tinha visto, ainda ignorando-o e
passando por ele.
Sim, esta era a cidade pela qual ele orava dia e noite
com profundos gemidos saídos do coração por causa de um peso que não conseguia
explicar, e agora estava esgotando a sua paciência, desassossegando-o.
“Bem, você está em apuros ou não está, ou nem mesmo se importa?”,
perguntou ele em voz alta.
Ninguém escutou. Nenhuma voz profunda, sinistra respondeu com uma
ameaça.
Mas o Espírito do Senhor em seu íntimo não o deixava em paz. Ore,
Hank. Ore por essas pessoas. Não as deixe escapar de seu coração. A
dor está aí, o medo está aí, o perigo está aí.
Então, quando vencemos? respondeu Hank ao Senhor. O Senhor sabe há
quanto tempo me tenho preocupado e orado por este lugar? Só uma vez gostaria de
ver meu pedregulho fazer onda; gostaria de ver esse cachorro morto estremecer
quando o cutuco.
Era incrível que os demônios pudessem esconder-se tão bem, até mesmo
por trás das dúvidas que ele às vezes sentia quanto à própria existência deles.
“Sei que vocês estão por aí”, disse ele baixinho, correndo cuidadosamente
os olhos pelas faces inexpressivas dos prédios, o concreto, o tijolo, o vidro,
o lixo. Os espíritos estavam zombando dele. Podiam desabar sobre ele num
momento, aterrorizá-lo, sufocá-lo, e depois sumir, recolhendo-se aos
esconderijos detrás da fachada da cidade, caçoando, brincando de
esconde-esconde, vendo-o tatear às cegas como um tolo.
Irritado, ele se sentou num banco da calçada.
“Estou aqui, Satanás”, disse ele. “Não posso vê-lo, e talvez você consiga
mover-se mais depressa do que eu, mas ainda assim estou aqui, e pela graça de
Deus e pelo poder do Espírito Santo tenho a intenção de ser um espinho em seu
lado até que um de nós peça água!” Hank olhou do outro lado da rua para a
magnífica estrutura da Igreja Cristã Unida de Ashton. Ele havia conhecido
alguns cristãos espetaculares que pertenciam àquela denominação, mas esse bando
de Ashton em particular era diferente, liberal, quase bizarro. Ele encontrara o
Pastor Oliver Young algumas vezes e nunca conseguira aproximar-se muito dele.
Young parecia meio frio e distante, e Hank nunca conseguira descobrir por quê.
Enquanto Hank esteve ali sentado, olhando um carro
marrom entrar no estacionamento da igreja, Triskal e Krioni ficaram em pé, ao lado do banco, também
olhando o carro parar. Somente eles dois conseguiam ver os passageiros
especiais do carro. Em cima do veículo estavam dois grandes guerreiros, o árabe
e o africano, Natã e Armote. Não havia espadas à vista. Eles estavam assumindo
uma postura passiva, não combatente, de acordo com as ordens de Tal, exatamente
como todos os outros.
Marshall tinha visto o filme de Berenice. Vira os
pequeninos arranhões resultantes de algum tipo de manuseio impróprio: vira as toscas
impressões digitais a intervalos regulares que poderiam muito bem ter sido
deixadas por uma mão ao tirar o filme da máquina, expondo-o à luz.
Marshall conseguira marcar uma entrevista com Young
para à 1:00 da
tarde. Ele entrou com o carro no vasto estacionamento asfaltado às 12:45, ainda
acabando de engolir um hambúrguer de queijo e um café grande.
A Igreja Cristã Unida de Ashton era um dos grandes e imponentes edifícios
da cidade, construída, em estilo tradicional, com grandes pedras, vitrais,
linhas altaneiras, torre majestosa. A porta da frente não fugia ao padrão:
grande, sólida, até algo assustadora, especialmente quando alguém tentava
abri-la sozinho. A igreja estava localizada próximo ao centro da cidade, e o
carrilhão da torre tocava a cada hora e dava um breve concerto de hinos ao
meio-dia. Era um estabelecimento respeitado. Young era um ministro respeitado.
As pessoas que freqüentavam a igreja eram membros respeitados da comunidade.
Marshall muitas vezes pensara que respeito e posição deviam ser pré-requisitos
para ser aceito como membro.
Ele engajou a grande porta da frente em breve embate de
braço de ferro
e finalmente conseguiu entrar. Não, esta congregação jamais havia economizado,
disso estava certo. O piso da entrada, das escadas, do templo estava coberto
com espesso carpete vermelho, o madeirame era todo de carvalho e nogueira,
escurecido e envernizado. Além disso, havia todo aquele latão: maçanetas,
cabides para casacos, corrimão das escadas, arremates das janelas, tudo em
latão. As janelas, naturalmente, eram vitrais; todos os tetos eram elevados,
com grandes candelabros pendentes, e delicado arabesco.
Marshall entrou no templo através de outra pesada porta e
caminhou pelo longo corredor central até a frente. Esse aposento era um misto
de teatro lírico e caverna: a plataforma era grande, o púlpito era grande, a
galeria do coro era grande. Naturalmente, o coro também era grande.
O grande gabinete do Pastor Young, logo ao lado do
templo, permitia acesso bem visível à plataforma e ao púlpito, e a entrada do Pastor Young
através da grande porta de carvalho todas as manhãs de domingo era parte
tradicional das cerimônias.
Marshall abriu aquela grande porta e entrou no escritório de recepção. A bonita
secretária cumprimentou-o, mas não sabia quem ele era. Ele lhe disse, ela
examinou o livro-horário e confirmou a entrevista. Marshall também examinou o
horário, lendo de cabeça para baixo novamente. O horário das 2:00hs estava
marcado A. Brummel.
—
Bem, Marshall — disse Young com um sorriso e um aperto de mão cordiais e
sistemáticos — entre, entre.
Marshall seguiu Young para dentro de seu luxuoso
gabinete. Young, um homem corpulento de seus sessenta anos, com rosto
arredondado, óculos
de aro fino, e cabelos finos e bem assentados, parecia satisfeito com a posição
que desfrutava tanto na igreja quanto na comunidade. As paredes apaineladas
ostentavam muitas condecorações de organizações comunitárias e beneficentes.
Ao lado delas, havia diversas fotos emolduradas de Young posando com o governador,
alguns evangelistas populares, alguns autores, e um senador.
Atrás de sua imponente escrivaninha, Young criava um perfeito
quadro do profissional bem sucedido. A cadeira de couro, de espaldar alto,
tornava-se um trono, e o próprio reflexo do homem no topo da mesa o tornava
ainda mais pitoresco e impressionante, como uma montanha refletida em lago
alpino.
Com um gesto, ele indicou a Marshall uma cadeira, e
Marshall sentou-se, notando que afundava a um nível em que seus olhos ficavam bem abaixo dos de
Young. Começou a sentir um conhecido quê de intimidação; todo esse gabinete
parecia projetado para esse fim.
—
Belo gabinete — comentou ele.
—
Muito obrigado — disse Young com um sorriso que empurrou as bochechas,
empilhando-as contra as orelhas. Reclinou-se em sua cadeira, os dedos
entrelaçados e agitados na beirada da escrivaninha.
—
Gosto dele, sou grato por ele, e aprecio bastante o calor, a atmosfera deste
lugar. Deixa a gente à vontade.
Deixa você à vontade, pensou Marshall.
—
Sim... é.
—
E então, como está indo o Clarim?
—
Oh, recuperando-se. Você recebeu o de hoje?
—
Sim, estava muito bom. Muito alinhado, no estilo. Você trouxe consigo um pouco
da classe de cidade grande, pelo que vejo.
—
Hum.
De repente, Marshall não sentia muita vontade de falar.
—
Fico contente por você estar aqui conosco, Marshall. Esperamos ter um
relacionamento muito bom.
—
Oh, sim, obrigado.
—
E então, o que o trouxe aqui?
Marshall remexeu-se um pouco, e então ergueu-se de um salto;
aquela cadeira o fazia sentir-se demasiadamente como um micróbio debaixo do
microscópio. Da próxima vez, trarei minha própria escrivaninha enorme, pensou
ele. Deu uma volta pelo gabinete, tentando parecer despreocupado.
—
Temos muito o que cobrir em uma hora — começou.
—
Podemos sempre marcar outros horários.
—
Sim, claro. Bem, antes de mais nada, Sandy — é minha filha
— fugiu de casa ontem à noite. Não tivemos
notícia alguma, não sabemos onde ela está... — Ele deu a Young uma rápida
sinopse do problema e seu histórico, e Young ouviu atentamente, sem interromper.
—
Então — perguntou Young, afinal — você acha que ela deu as costas aos seus
valores tradicionais e isso o perturba?
—
Olhe, não sou uma pessoa profundamente religiosa, sabe como é? Mas algumas
coisas têm de ser certas, e algumas coisas têm de ser erradas, e minha dificuldade com Sandy é ela ficar apenas... apenas pulando de um lado para
outro da cerca.
Young ergueu-se majestosamente de sua escrivaninha e
caminhou até
Marshall com ar de um pai compreensivo. Colocando a mão no ombro de Marshall,
disse:
—
Você acha que ela é feliz, Marshall?
—
Nunca a vejo feliz, e é provavelmente porque está perto de mim toda a vez que a
vejo.
—
E isso pode ser devido ao fato de você ter dificuldade em compreender o rumo
que ela está agora escolhendo para a própria vida. É óbvio que você projeta um
desagrado definido em relação às filosofias dela...
—
Sim, e em relação à professora que despeja todas aquelas filosofias em cima
dela. Você conhece aquela... qual é mesmo o nome? Professora Langstrat, da
faculdade?
Young pensou, depois meneou a cabeça.
—
Acho que Sandy já fez dois cursos com ela, e a cada trimestre descubro que
minha filha está ainda mais fora da realidade.
O pastor deu uma risadinha.
—
Marshall, parece-me que ela está apenas explorando, apenas tentando conhecer o
mundo, o universo em que vive. Você não se lembra de quando estava crescendo?
Havia tanta coisa que simplesmente não era verdadeira até que você pudesse
comprová-la por si mesmo. Provavelmente, é isso o que está acontecendo com
Sandy no momento. Ela é uma garota muito inteligente. Tenho certeza de que
apenas precisa explorar, encontrar-se.
—
Bem, quando ela descobrir onde está, espero que telefone.
—
Marshall, estou certo de que ela se sentiria muito mais à vontade para
telefonar se pudesse encontrar corações compreensivos em casa. Não temos o
direito de determinar o que outra pessoa deve fazer consigo, ou pensar a respeito
de seu lugar no cosmo. Cada pessoa precisa encontrar seu próprio caminho, sua
própria verdade. Se algum dia vamos conviver como uma família civilizada aqui
neste planeta, teremos de aprender a respeitar o direito que os outros têm a
seus próprios pontos de vista.
Marshall percebeu um vislumbre de déjà vu, como se uma gravação do
cérebro de Sandy tivesse sido ligada ao de Young. Não pôde deixar de perguntar:
—
Você tem certeza de que não conhece a professora Langstrat?
—
Absoluta — respondeu Young com um sorriso.
—
E Alf Brummel?
—
Quem?
—
Alf Brummel, o Delegado de polícia.
Marshall observou-lhe o rosto. Estaria ele se debatendo
em responder? Young finalmente disse:
— Posso
tê-lo visto uma vez ou outra... Estava apenas tentando juntar o nome ao rosto.
—
Bem, ele pensa como você. Fala muito a respeito de as pessoas se darem bem e
não causarem encrencas. Como foi que ele chegou a ser um tira, palavra que não
sei.
—
Mas não estávamos falando de Sandy?
—
É, está bem. Pode falar. Young continuou.
—
Todas as perguntas com as quais você está-se debatendo, as questões do certo e
errado, ou o que é a verdade, ou nossos pontos de vista diferentes a respeito
desses assuntos... tantas dessas coisas são impenetráveis, a não ser no
coração. Todos nós sentimos a verdade como um pulsar comum em cada um de nós.
Cada ser humano tem uma capacidade natural para o bem, para amar, para esperar
e esforçar-se pelos melhores interesses próprios e de seu próximo.
—
Acho que você não estava aqui durante o Festival. Young soltou um risinho.
—
Admito que nós humanos certamente podemos direcionar mal as nossas melhores
inclinações.
—
E por falar nisso, diga, você chegou a ir ao Festival?
—
Sim, algumas partes. Receio que a maior parte pouco me interessasse.
—
Então, você não esteve no parque de diversões?
—
Claro que não. É jogar dinheiro fora. Mas, falando de Sandy...
—
É, estávamos falando acerca do que é verdadeiro, e as opiniões de todo o
mundo... como a questão de Deus, por exemplo. Ela não parece encontrá-lo, eu
estou somente tentando defini-lo, não conseguimos chegar a um acordo quanto à
nossa religião, e até agora você não ajudou muito.
Young sorriu pensativo. Marshall podia perceber uma homília muito elevada a
caminho.
—
O seu Deus — disse Young — está onde o encontrar, e para encontrá-lo, precisa
apenas abrir os olhos e perceber que ele está verdadeiramente dentro de todos
nós. Jamais estivemos sem ele, Marshall; acontece somente que nossa ignorância
nos cegou, e isso nos impediu de receber o amor, a segurança e o significado
que todos desejamos. Jesus revelou o nosso problema na cruz, lembra-se? Ele
disse: “Pai, perdoa-os, pois não sabem... Por isso, o exemplo que ele nos deu é
o de buscarmos conhecimento, onde quer que possamos encontrá-lo. É isso o que
você está fazendo, e estou convencido de que é isso o que Sandy está fazendo. A
fonte do seu problema é uma perspectiva estreita, Marshall.
Precisa ter a mente aberta. Precisa buscar, e Sandy precisa buscar.
—
Então — disse Marshall pensativo — você está dizendo que é tudo uma questão de
como vemos as coisas?
—
Isso seria uma parte, sim.
—
E que se eu perceber algo de certa maneira, não quer dizer que todo mundo vai
enxergá-lo da mesma maneira, certo?
—
Sim, está certo! — Young parecia muito contente com seu aluno.
—
Então... deixe-me ver se entendi bem. Se minha repórter, Berenice Krueger,
teve a percepção de que você, Brummel, e três outras pessoas estavam fazendo
uma pequena reunião atrás da barraca de dardos no parque de diversões... bem,
essa foi apenas a percepção que ela teve da realidade?
Young sorriu com um sorriso estranho, do tipo aonde-está-tentando chegar, e
respondeu:
—
Suponho que sim, Marshall. Acho que esse seria um exemplo. Não cheguei nem
perto do parque, e já lhe disse isso. Tenho horror a essas coisas.
—
Você não estava lá com Alf Brummel?
—
Não, de jeito nenhum. Por isso, como vê, a Srta. Krueger teve uma percepção
muito incorreta de outra pessoa.
—
De vocês dois, suponho. Young sorriu e deu de ombros. Marshall insistiu
um pouco.
—
Qual você acha que é a probabilidade de isso acontecer? Young continuou a
sorrir, mas seu rosto corou um pouco.
—
Marshall, o que deseja que eu faça? Argumentar com você? Certamente você não
veio aqui para esse tipo de coisa.
Marshall lançou a isca para ver o que apanharia.
—
Ela conseguiu até tirar umas fotos de vocês.
Young suspirou e olhou por um momento para o chão. Depois, disse
friamente:
—
Então, por que você não traz essas fotos da próxima vez, e aí poderemos falar
sobre elas?
O risinho no rosto de Young atingiu Marshall como se
fosse cuspo.
—
Está bem — resmungou Marshall, sem abaixar os olhos.
—
Marge marcará outro horário para você.
—
Muito obrigado.
Marshall olhou no relógio de pulso, foi até a porta e a abriu.
—
Entre, Alf.
Alf Brummel estivera sentado na sala de recepção. Ao dar com Marshall,
levantou-se precipitadamente, desajeitado. Tinha o aspecto que alguém poderia
ter uma fração de segundo antes de ser atingido por um trem.
Marshall agarrou Alf pela mão e a sacudiu
excitadamente.
—
Ei, amigão! Olhe, já que, pelo visto, vocês dois não se conhecem muito bem,
deixem-me apresentá-los. Alf Brummel, este é o Reverendo Oliver Young.
Reverendo, Alf Brummel, Delegado de polícia!
Brummel deu a impressão de não apreciar nem um pouco a cordialidade de
Marshall, mas Young sim. Adiantou-se, agarrou a mão de Brummel, apertou-a, e
depois puxou o Delegado rapidamente para dentro do gabinete, dizendo por sobre
o ombro:
— Marge, marque outro horário para o Sr. Hogan. Mas o Sr. Hogan já não se encontrava ali.