Pouco além do outro lado do campus, mas a distância suficiente para
estarem seguros, dois homens gigantescos desceram à terra como refulgentes
cometas branco-azulados, mantidos no ar pelo ímpeto de asas que rodopiavam
formando uma sombra indistinta e queimando como relâmpago. Um deles, um homem
enorme, corpulento, de barba preta, estava muito bravo e indignado, berrava, e
gesticulava furioso com uma espada longa e cintilante. O outro era um pouco
menor e olhava ao redor com muita cautela, tentando acalmar o seu parceiro.
Em espiral graciosa e fulgurante, eles deslizaram para
trás de um dos
dormitórios da faculdade e foram pousar nas copas pendentes de uns chorões. No
momento em que seus pés tocaram as árvores, a luz de suas roupas e corpos
começou a desaparecer e as asas tremeluzentes se aquietaram de mansinho. A não
ser por sua estatura descomunal, eles pareciam homens comuns, um esbelto e
loiro, o outro entremeado como um tanque, ambos trajando o que parecia uniforme
de faxina do exército, um conjunto cáqui. Os cintos dourados haviam-se tornado
semelhantes a couro escuro, as bainhas eram de cobre fosco, e os brilhantes
suportes de bronze dos pés tinham-se transformado em sandálias simples de
couro. O grandalhão estava pronto para uma discussão.
—
Triskal! — rosnou ele, mas ante os gestos desesperados do amigo, abaixou um
pouco a voz. — O que você está fazendo aqui?
Triskal manteve a mão erguida para que o amigo ficasse quieto.
—
Psiu, Guilo! O Espírito me trouxe aqui, assim como a você. Cheguei ontem.
—
Você sabe o que era aquilo? Um demônio de complacência e desespero, disso não
tenho dúvida! Se seu braço não me tivesse detido, eu o teria derrubado, e de
uma única vez!
—
Oh, sim, Guilo, de uma única vez — concordou o amigo — mas foi bom eu tê-lo
visto e detido a tempo. Você acabou de chegar e não compreende...
—
O que é que não compreendo?
Triskal tentou dizer de maneira convincente.
—
Nós... não devemos lutar, Guilo. Pelo menos por enquanto. Não devemos resistir.
Guilo tinha certeza de que seu amigo estava enganado.
Segurou com firmeza o ombro de Triskal e o olhou bem nos olhos.
—
Por que eu iria a algum lugar se não para lutar? — declarou ele. — Aqui fui
chamado. Aqui lutarei.
—
Sim — disse Triskal, assentindo furiosamente com a cabeça. — Só que ainda não
chegou a hora, apenas isso.
—
Então você deve ter recebido ordens! Você tem ordens? Triskal fez uma
pausa de efeito e então disse:
—
Ordens de Tal.
A expressão zangada de Guilo desfez-se imediatamente em uma mistura de
choque e perplexidade.
Invisíveis a esses mortais, Guilo e Triskal caminharam apressadamente
colina acima, furtivos e apagados, mas mesmo assim movendo-se como o vento. Ao chegarem
à frente da igreja, Hank Busche deu a volta no canto atrás do cortador de grama
ensurdecedor e Guilo teve de se deter para examiná-lo.
—
É ele? — perguntou a Triskal. — O chamado começou com ele?
—
Sim — respondeu Triskal — meses atrás. Ele está orando agora mesmo, e muitas
vezes anda pelas ruas de Ashton intercedendo pela cidade.
—
Mas... este lugar é tão pequeno. Por que fui chamado? Não, não, por que Tal foi
chamado?
Triskal apenas puxou-lhe o braço.
—
Depressa, vamos entrar.
Eles passaram rapidamente pelas paredes da igreja,
adentrando o pequeno e humilde templo. Lá encontraram um contingente de guerreiros já
reunidos, alguns assentados nos bancos, outros em pé pela plataforma, outros
ainda fazendo o papel de sentinelas, espiando cautelosamente pelos vitrais
coloridos das janelas. Estavam todos trajando roupas quase idênticas às de
Triskal e Guilo, as mesmas camisas e calças, mas Guilo ficou imediatamente
impressionado com a estatura imponente de todos eles; eram esses os poderosos
guerreiros, os potentes guerreiros, e em número maior do que ele jamais vira
reunido em um só lugar.
Impressionou-o também o ânimo da reunião. Esse momento poderia ter sido uma jubilosa reunião de velhos amigos, exceto pelo fato de estarem todos
estranhamente sombrios. Ao correr os olhos em volta do aposento, ele reconheceu
muitos ao lado dos quais havia lutado em tempos remotos:
Natã, o árabe alto e feroz, de muita luta e pouca fala. Foi ele
que havia agarrado demônios pelos tornozelos e os tinha usado como clavas contra
os próprios companheiros deles.
Armote, o enorme africano cujo brado de guerra e feroz
semblante geralmente bastavam para pôr o inimigo a correr antes mesmo de ele atacá-los.
Guilo e Armote certa feita haviam batalhado contra os demônios senhores de
cidadezinhas no Brasil e pessoalmente guardado uma família de missionários em
suas muitas e longas andanças pelas matas.
Chimon, o manso europeu de cabelos dourados, que trazia
nos antebraços
as marcas dos últimos golpes de um demônio evanescente antes que Chimon o
banisse para sempre no abismo. Guilo jamais havia travado conhecimento com ele,
mas ouvira contar as suas proezas e sua disposição em se deixar golpear com a
única finalidade de proteger outros e depois recobrar-se para derrotar sozinho
incontáveis inimigos.
Então veio o cumprimento do amigo mais antigo e mais querido.
—
Bem-vindo, Guilo, a Força de Muitos!
Sim, era deveras Tal, o Capitão do Exército. Era tão
estranho ver esse poderoso guerreiro em pé nesse lugarzinho humilde e pacato.
Guilo o havia visto perto da própria sala do trono do Céu, conferenciando com
nada mais, nada menos do que Miguel. Mas ali estava o mesmo vulto
impressionante de cabelos dourados e tez rosada, intensos olhos dourados como
fogo e um indiscutível ar de autoridade.
Guilo aproximou-se de seu capitão e os dois apertaram-se
as mãos.
—
E estamos juntos novamente — disse Guilo enquanto milhares de lembranças lhe
inundavam a mente. Guilo jamais vira guerreiro algum que lutasse como Tal
lutava; não havia demônio que conseguisse vencê-lo em manobras e velocidade,
espada alguma que pudesse desviar o golpe da espada de Tal. Lado a lado, Guilo
e seu capitão haviam derrotado os poderes demoníacos desde que esses rebeldes
existiam, e haviam sido companheiros a serviço do Senhor antes que tivesse
existido alguma rebelião.
—
Saudações, meu caro capitão! Tal disse à guisa de explicação:
—
E sério o negócio que nos reúne novamente.
Guilo perscrutou o rosto de Tal. Sim, havia bastante
confiança ali,
e nem um traço de timidez. Mas trazia definitivamente uma estranha severidade
nos olhos e na boca, e Guilo correu os olhos em volta do aposento outra vez. Agora ele podia senti-lo, aquele prelúdio tipicamente
silencioso e agourento à comunicação de penosas notícias. Sim, todos eles
sabiam algo que ele ignorava mas aguardavam que a pessoa designada, muito
provavelmente Tal, falasse. Guilo não podia agüentar o silêncio, e muito menos
o suspense.
—
Vinte e três — contou ele — dos melhores, mais galantes, mais invencíveis... reunidos
agora como que sob ataque, a esconder-se de um inimigo temível em tão frágil
fortaleza? — Com um gesto dramático, ele puxou da enorme espada e segurou a
lâmina na mão livre.
—
Capitão Tal, quem é esse inimigo? Tal respondeu lenta e claramente:
—
Rafar, o Príncipe da Babilônia.
Todos os olhos estavam presos ao rosto de Guilo, cuja
reação foi
semelhante à de cada um dos outros guerreiros ao ouvir a notícia: choque,
descrença, uma pausa desajeitada para ver se alguém ria e afirmava que era
apenas um engano. Não houve tal comutação da verdade. Todo o mundo no aposento
continuou a olhar para Guilo com a mesma expressão mortalmente séria, tornando
impiedosa-mente inescapável a gravidade da situação.
Guilo baixou os olhos à espada. Estava ela agora tremendo em suas mãos? Ele
fez questão de segurá-la com firmeza, mas não pôde deixar de fitar a lâmina,
ainda arranhada e descolorida pela última vez que Guilo e Tal haviam
confrontado esse príncipe de Baal dos tempos antigos. Guilo e Tal haviam
batalhado contra ele durante vinte e três dias antes de finalmente derrotá-lo
na véspera da queda de Babilônia. Guilo ainda se recordava da escuridão, da
gritaria e do horror, da feroz e terrível luta corpo a corpo enquanto a dor
crestava cada centímetro do seu ser. O mal daquele pretenso deus pagão parecia
envolvê-lo e a tudo o que o cercava como densa fumaça, e a metade do tempo os
dois guerreiros tinham de manobrar e golpear às cegas, cada um sequer sabendo
se o outro ainda estava na luta. Até hoje, nenhum deles sabia qual dos dois
finalmente dera o golpe que precipitou Rafar para dentro do abismo. A única
coisa de que se lembravam era do berro tonitruante que ele dera ao cair
através de uma brecha dentada no espaço, e depois de se verem de novo quando a
grande escuridão à sua volta clareou como o dissipar de densa neblina.
—
Sei que o senhor fala a verdade — disse Guilo afinal — mas... viria alguém como
Rafar a este lugar? Ele é o príncipe das nações, não de simples vilarejos. O
que é este lugar? Que interesse poderia ele ter aqui?
Tal meneou a cabeça.
—
Não sabemos. Mas é Rafar, sem dúvida, e a movimentação no reino do inimigo indica que algo está em andamento. O Espírito nos quer aqui. Precisamos
confrontar o que quer que seja.
—
E não devemos lutar, não devemos resistir! — exclamou Guilo.
—
Ficarei muito fascinado em ouvir sua próxima ordem, Tal. Não podemos lutar?
—
Por enquanto, não. Somos poucos, e a cobertura de oração ainda é pequena. Não
deverá haver nenhuma escaramuça, nenhuma confrontação. Não deveremos nos mostrar
como agressores de forma alguma. Enquanto nos mantivermos afastados deles,
perto deste lugar, e não os ameaçarmos, nossa presença aqui parecerá o cuidado
normal que exercemos sobre um grupinho de santos em dificuldades — e então ele
acrescentou em tom bem direto: — E será melhor se a notícia de minha presença
aqui não se espalhar.
Nesse momento, Guilo sentiu-se algo deslocado ainda
segurando a espada, e embainhou-a com ar de desagrado.
—
E — encorajou ele — o senhor tem um plano, não tem? Não fomos chamados aqui
para ver a cidade cair?
O cortador de grama roncou ao passar pelas janelas, e
Tal dirigiu a atenção dos presentes ao operador da máquina.
—
Foi Chimon quem teve a incumbência de trazê-lo aqui — disse ele — de cegar os
olhos de seus inimigos e fazê-lo passar à frente do pastor que o inimigo ia
escolher para este rebanho. Chimon foi bem-sucedido, Hank foi escolhido, o que
surpreendeu a muita gente, e agora está aqui em Ashton, orando a cada hora de
cada dia. Fomos chamados em favor dele, dos santos de Deus e do Cordeiro.
—
Em favor dos santos de Deus e do Cordeiro! — ecoaram todos eles.
Tal olhou para um guerreiro alto, de cabelos escuros,
aquele que o havia conduzido pela cidade na noite do Festival, sorriu e disse:
—
E você o fez ganhar por apenas um voto? O alto guerreiro deu de ombros.
—
O Senhor o desejava aqui. Chimon e eu tínhamos de garantir a sua vitória sobre
o outro homem que não tem temor de Deus.
Tal apresentou Guilo a esse guerreiro.
—
Guilo, este é Krioni, o vigia responsável pelo nosso guerreiro da oração aqui e
da cidade de Ashton. Nosso chamado começou com Hank, mas a presença de Hank
teve início com Krioni.
Guilo e Krioni acenaram silenciosamente com a cabeça, saudando-se mutuamente.
Tal observou Hank terminar de cortar a grama, orando
alto ao mesmo tempo.
—
De modo que agora, enquanto seus inimigos na congregação se reagrupam e tentam
encontrar outra forma de expulsá-lo, ele continua orando por Ashton. É um dos
últimos.
—
Se não for o último! — lamentou Krioni.
—
Não — advertiu Tal — ele não é o único. Existe ainda um Remanescente de santos
em algum lugar nesta cidade. Sempre existe um Remanescente.
—
Sempre existe um Remanescente — ecoaram todos.
—
Nosso conflito começa neste lugar. Faremos dele o nosso quartel por enquanto,
cercá-lo-emos e operaremos daqui.
Ele falou com um alto oriental que estava no fundo do
aposento.
—
Signa, tome conta deste prédio, e escolha agora dois que fiquem ao seu lado.
Este será o nosso ponto de descanso. Torne-o seguro. Nenhum demônio deve
aproximar-se dele.
Signa prontamente encontrou dois voluntários para trabalharem
consigo. Eles sumiram rumo aos seus postos.
—
Agora, Triskal, ouvirei as notícias de Marshall Hogan.
—
Segui-o até o meu encontro com Guilo. Embora Krioni tivesse relatado uma
situação algo monótona até a época do Festival, desde então Hogan tem sido
perseguido por um demônio de complacência e desespero.
Tal recebeu a notícia com grande interesse. — Hum. Pode ser que ele
esteja começando a despertar. Eles o estão cobrindo, tentando mantê-lo sob
controle. Krioni acrescentou:
—
Nunca pensei que veria o que está acontecendo. O Senhor o queria na direção do Clarim,
e demos um jeito nisso também, mas jamais vimos um indivíduo tão cansado.
—
Cansado, sim, mas isso apenas o tornará mais útil nas mãos do Senhor. E percebo
que ele está realmente despertando, exatamente como o Senhor antevia.
—
Embora ele possa despertar apenas para ser destruído — disse Triskal. — Eles o
devem estar vigiando. Receiam o que ele possa vir a fazer na posição influente
que ocupa.
—
É verdade — respondeu Tal. — Portanto, enquanto eles exasperam o nosso urso,
temos de nos certificar de que eles o despertem, e nada mais do que isso. Vai
ser uma questão muito crítica.
Agora Tal estava pronto a mover-se. Dirigiu-se ao grupo
todo.
—
Estou esperando que Rafar tome o poder aqui até o cair da noite; não duvido de
que todos sentiremos quando isso acontecer. Estejam certos de uma coisa: ele
buscará de imediato a maior ameaça contra si mesmo e tentará removê-la.
—
Ah, Henry Busche — disse Guilo.
—
Krioni e Triskal, podem ter certeza de que algum tipo de pelotão será enviado
com o propósito de testar o espírito de Hank. Escolham quatro guerreiros e
cuidem dele.
Tal tocou o ombro de Krioni e acrescentou:
—
Krioni, até agora você se saiu muito bem ao proteger Hank de quaisquer
investidas diretas. Meus parabéns.
—
Obrigado, Capitão.
—
Estou-lhe pedindo agora que faça algo difícil. Esta noite, você precisa ficar
por perto e vigiar. Não permita que toquem a vida de Hank, mas, fora disso, não
impeça nada. Será um teste pelo qual ele precisa passar.
Houve um leve movimento de surpresa e admiração, mas cada guerreiro
estava disposto a confiar no julgamento de Tal. Tal continuou:
—
Quanto a Marshall Hogan... ele é o único de quem ainda não estou certo. Rafar
dará incrível liberdade aos seus lacaios no que lhe diz respeito, e ele pode
ceder e retroceder, ou, como todos esperamos, despertar e reagir. Rafar estará
especialmente interessado nele, e eu também, esta noite. Guilo, escolha dois
guerreiros para você e dois para mim. Tomaremos conta de Marshall esta noite e
veremos como ele reage. O resto de vocês sairá à procura do Remanescente.
Tal desembainhou a espada e a ergueu. Os outros fizeram
o mesmo e uma floresta de lâminas refulgentes apareceu, erguida por braços fortes.
—
Rafar — disse Tal em voz baixa, pensativa — encontramo-nos novamente —. Então,
na voz do Capitão do Exército, disse:
—
Pelos santos de Deus e pelo Cordeiro!
—
Pelos santos de Deus e pelo Cordeiro! — ecoaram eles.
Ele flutuou pelo longo sulco de um corredor em direção a uma grande porta no
fundo que dizia “Sala de Conferências” e, atravessando-a, entrou numa caldeira
de maldade viva. O aposento estava escuro, mas a escuridão parecia mais uma
presença do que uma condição física; era uma força, uma atmosfera que deslizava
e se arrastava pelo ambiente. Daquele negror, espiavam muitos pares de olhos
amarelados sem brilho, pertencentes a uma horrível galeria de faces grotescas.
Um brilho rubro, cuja fonte não se podia perceber, delineava as várias formas dos colegas de Complacência. Vapor amarelo serpeava em
rendados tufos pelo aposento e enchia o ar com seu fedor enquanto as muitas
aparições conduziam suas conversas em voz baixa e gorgolejante no escuro.
Complacência podia perceber o desdém comum que sentiam por ele, mas
o sentimento era suficientemente recíproco. Aqueles egoístas belicosos
pisariam em qualquer um para se exaltarem, e acontece que Complacência era o
menor e, portanto, o mais fácil de perseguir.
Ele se aproximou de dois vultos volumosos que estavam
no meio de um debate. Os braços deles, maciços e cobertos de espinhos, e as palavras
venenosas que proferiam, diziam a Complacência que eram demônios especializados
em ódio, que semeavam, agravavam e espalhavam o ódio, usando os braços
esmagadores e os espinhos peçonhentos a fim de com eles espremer as pessoas
até eliminar-lhes o amor ou envenená-lo.
Perguntou-lhes Complacência:
—
Onde está o príncipe Lucius?
—
Encontre-o você mesmo, lagartixa! — rosnou um deles.
Um demônio de lascívia, criatura coleante de olhos inquietos e
esquivos, e couro escorregadio, ouviu o que diziam e, aproximando-se, agarrou
Complacência nas suas garras longas e afiadas.
—
E onde você dormiu hoje? — perguntou com desdém.
—
Eu não durmo! — retorquiu Complacência. — Faço as pessoas dormirem.
—
Despertar o desejo e roubar a inocência é muito melhor.
—
Mas alguém precisa desviar os olhos dos outros.
Lascívia pensou um pouco e deu um sorrisinho de aprovação. Largou
bruscamente Complacência enquanto os que observavam caíram na risada.
Complacência passou por Engano, mas nem se incomodou em
perguntar-lhe coisa alguma. Engano era o demônio mais orgulhoso, mais altivo de
todos, muito arrogante por seu conhecimento supostamente superior de como
controlar as mentes dos homens. Sua aparência nem mesmo era tão pavorosa quanto
a dos outros; ele parecia quase humano. Sua arma, gabava-se ele, era sempre um
argumento constrangedor, persuasivo, sutilmente entremeado de mentiras.
Muitos outros encontravam-se lá: Homicídio, as garras
ainda pingando sangue; Anarquia, as articulações afiadas em protuberâncias
pontiagudas e o couro grosso e ressecado; Ciúme, o mais desconfiado e difícil
demônio com quem trabalhar.
Mas, finalmente, Complacência encontrou Lucius,
Príncipe de Ashton, o demônio que ocupava a posição mais alta entre todos.
Lucius estava em conferência com um grupinho fechado de outros detentores de poder, repassando as próximas estratégias para controlarem a cidade.
Era, sem dúvida alguma, o demônio-chefe. Enorme, antes de mais
nada, mantinha sempre uma postura imponente, com as asas enroladas frouxamente
ao seu redor a fim de ampliar-lhe o contorno, os braços flexionados, os punhos
fechados e prontos a golpearem. Muitos demônios cobiçavam a sua posição, e ele
sabia disso; havia lutado e banido muitos deles para chegar onde estava, e
tinha toda a intenção de permanecer aí. Ele não confiava em ninguém, suspeitava
de todo o mundo, e sua cara negra, retorcida, e os olhos de águia estavam
sempre a espalhar a mensagem de que mesmo seus associados eram inimigos.
Complacência estava desesperado e furioso o suficiente para violar
as noções de Lucius quanto ao respeito e decoro. Abriu caminho à força por
entre o grupo e chegou bem diante de Lucius, que fitou nele os olhos, surpreso
com a rude interrupção.
—
Meu Príncipe — rogou Complacência — preciso dirigir-lhe uma palavrinha.
Os olhos de Lucius se entrefecharam. Quem era essa
lagartixazinha para interrompê-lo no meio de uma conferência, para violar o decoro na
frente dos outros?
—
Por que não está com Hogan? — rosnou ele.
—
Preciso falar com o senhor!
—
Atreve-se a falar comigo sem que eu tenha antes lhe dirigido a palavra?
—
É de vital importância. O senhor... o senhor está cometendo um erro. Está
perturbando a filha de Hogan, e...
Lucius imediatamente transformou-se num pequeno vulcão, vomitando horríveis
imprecações e ira.
—
Você acusa o seu príncipe de erro? Atreve-se a questionar as minhas ações?
Complacência encolheu-se, na expectativa de uma bofetada dolorosa a
qualquer momento, mas mesmo assim disse:
—
Hogan não nos causará nenhum dano se não mexermos com ele. Mas o senhor acendeu
um fogo dentro dele, e ele me atira longe!
A bofetada veio, uma pancada poderosa das costas da mão de Lucius, e, enquanto
revirava pelo aposento, Complacência debatia se diria ou não mais alguma coisa.
Quando parou e se recobrou, ergueu os olhos e viu que todos os olhares estavam
sobre ele, e podia sentir o seu zombeteiro desdém.
Lucius dirigiu-se lentamente em sua direção, e postou-se em toda a
sua alta estatura acima dele, como uma árvore gigante.
—
Hogan o atira longe? Não é você quem o solta?
—
Não me bata! Apenas ouça o meu pedido!
Os punhos de Lucius fecharam-se dolorosamente em torno
de chumaços da
carne de Complacência e ergueram-no até que os olhos dos dois ficaram no mesmo
plano.
—
Ele pode colocar-se em nosso caminho, e não quero saber disso! Você conhece o
seu dever. Cumpra-o!
—
Era o que estava fazendo, e muito bem! — gritou Complacência.
—
Ele não era nada que precisássemos temer, uma lesma, um monte de barro. Eu
poderia tê-lo segurado ali para sempre.
—
Então, faça isso!
—
Príncipe Lucius, por favor, ouça-me! Não lhe dê nenhum inimigo. Deixe-o sem
necessidade de brigar.
Lucius deixou-o cair ao chão, uma pilha de
humilhação. O príncipe dirigiu-se aos outros presentes no aposento.
—
Demos um inimigo a Hogan? Todos eles sabiam como responder.
—
Não, senhor!
—
Engano — chamou Lucius, e Engano adiantou-se, inclinando-se formalmente diante
de Lucius.
—
Complacência acusa seu príncipe de perturbar a filha de Hogan. Você deve saber
a esse respeito.
—
O senhor não ordenou ataque algum a Sandy Hogan, Príncipe — respondeu Engano.
Complacência apontou o dedo em forma de garra e berrou:
—
Você a tem seguido! Você e seus lacaios! Vocês têm falado à sua mente,
confundindo-a!
Engano apenas ergueu os sobrolhos em leve indignação e respondeu
calmamente:
—
Por convite dela própria. Só lhe dissemos o que ela prefere saber. Mal se pode
chamar a isso de ataque.
Lucius pareceu assumir algo da irritante arrogância de Engano ao dizer:
—
Sandy Hogan é um caso, mas certamente o pai é outro bem diferente. Ela não
constitui a mínima ameaça para nós. Ele, sim. Devemos mandar outro para
mantê-lo sob controle?
Complacência não tinha resposta, mas acrescentou outra nota de
preocupação:
—
Vi... vi mensageiros do Deus vivo hoje!
Essa observação somente provocou o riso do grupo. Lucius caçoou:
—
Você está ficando tão medroso assim, Complacência? Vemos mensageiros do Deus
vivo todos os dias.
—
Mas esses estavam perto! Prestes a atacar! Conheciam as minhas ações, disso
estou certo.
— Você me parece estar bem. Mas
se eu fosse um deles certamente o escolheria como presa fácil. Mais risadas do grupo
estimularam Lucius a continuar.
—
Um alvo fácil e frouxo pelo simples esporte... um demônio manco com o qual um
anjo fraco pode provar sua força!
Complacência encolheu-se de vergonha. Lucius deu uns passos pelo
aposento, e dirigiu-se ao grupo.
—
Tememos o exército dos céus? — perguntou.
—
Como o senhor não teme, nós também não tememos! — responderam todos com grande
cortesia.
No topo da igrejinha branca, Signa e seus dois
companheiros continuaram a montar guarda enquanto a escuridão descia sobre Ashton,
mais profunda e mais fria a cada momento. Por toda a vizinhança próxima, cães
puseram-se a ladrar e a uivar. Aqui e ali uma discussão explodia entre os
humanos.
—
Ele chegou — disse Signa.
Lucius, ao passar por Complacência, deu-lhe um ponta-pé
no lado, e continuou sua gabolice.
—
Complacência, pode ter certeza de que temos as coisas sob controle aqui.
Nenhum dos nossos trabalhadores jamais teve de andar às escondidas com medo de
ataque. Andamos livremente pela cidade, fazendo o nosso serviço sem nenhum
empecilho, e nos sairemos bem em todo o lugar até que esta cidade seja
totalmente nossa. Seu frouxo desajeitado! Temer é fracassar!
Foi nesse momento que aconteceu, e tão repentinamente que nenhum
deles pôde reagir de outra forma a não ser com cortantes guinchos de terror. A
palavra “fracassar” mal havia deixado os lábios de Lucius quando uma nuvem
violenta, fervilhante, desabou e trovejou para dentro do
aposento como um vagalhão, uma avalancha súbita de força que esmagava como ferro. Os
demônios foram lançados do outro lado do aposento como se fossem detritos em
uma violenta maré, revirando, berrando, enrolando fortemente as asas em redor
do corpo por puro terror — todos, exceto Lucius.
À
medida que os demônios se recuperavam da onda de choque inicial dessa nova
presença, ergueram os olhos e viram o corpo de Lucius, contorcido como um
brinquedo quebrado, nas garras de uma enorme mão preta. Ele se debatia,
sufocava, afogava, pedia misericórdia, mas a mão apenas aumentava a esmagadora
pressão, infligindo castigo sem dó, descendo da escuridão como um ciclone de
uma nuvem tempestuosa. Então, a figura toda de uma espírito surgiu, erguendo
Lucius pela garganta e sacudindo-o como uma boneca de pano. A coisa era maior
do que qualquer outra que eles já tinham visto, um demônio gigantesco com cara
de leão, olhos de fogo, corpo incrivelmente musculoso, e asas como que de couro
a encher o aposento.
A voz gorgolejante subia do fundo do torso do demônio e explodia em nuvens
de ardente vapor vermelho.
—
Você que nada teme... está com medo agora?
O espírito irado arremessou Lucius através do aposento para junto
dos outros, e então postou-se como uma montanha no centro da sala, manejando
uma espada mortal, em forma de S, do tamanho de uma porta. Suas garras à mostra
faiscavam como as correntes douradas que lhe pendiam do pescoço e de um lado a
outro do peito. Obviamente, esse príncipe dos príncipes havia recebido muitas
homenagens por vitórias passadas. Seus cabelos cor de carvão caíam-lhe como
juba sobre os ombros, e em cada pulso ele usava uma pulseira de ouro crivada de
brilhantes; os dedos exibiam diversos anéis, e um cinto e uma bainha
vermelho-rubi adornavam-lhe a cintura. As extensas asas negras estavam agora
drapeadas às suas costas, como o manto de um monarca.
Durante uma eternidade ele ficou ali, fitando-os com
olhos sinistros, ardentes; estudando-os, e tudo o que podiam fazer era permanecer
imóveis em seu
terror, como um quadro macabro de apavorados duendes.
Afinal, a grande voz ecoou das paredes:
—
Lucius, sinto que não era esperado. Você me anunciará. Levante-se!
A espada cruzou o aposento e a ponta rasgou o couro de
Lucius no pescoço, fazendo-o erguer-se de um salto.
Lucius sabia que estava sendo rebaixado aos olhos de
seus subalternos, mas fez o que pôde a fim de evitar a amargura e a raiva crescentes. Seu medo transparecia o suficiente para encobrir adequadamente
os outros sentimentos.
—
Companheiros de trabalho... — disse ele, a voz trêmula a despeito de todos os
seus esforços. — Baal Rafar, o Príncipe da Babilônia!
Automaticamente, todos se puseram de pé, em parte por causa de
receoso respeito, porém mais por temerem a ponta da espada de Rafar, ainda
vagueando devagar de um lado ao outro, pronta a mover-se contra qualquer que
lerdeasse.
Rafar examinou-os rapidamente. Então infligiu outra afronta à
pessoa de Lucius.
—
Lucius, ponha-se ao lado dos outros. Cheguei, e somente um príncipe é
necessário.
Atrito. Todos o sentiram imediatamente. Lucius
recusou-se a mover. Seu corpo estava rígido, os punhos fechados tanto quanto sempre estavam
e, embora tremesse visivelmente, devolveu de propósito o olhar fixo de Rafar e
permaneceu firme.
—
O senhor... não pediu que cedesse o meu lugar! — desafiou ele.
Os outros não estavam a fim de intervir ou mesmo chegar perto.
Afastaram-se, lembrados de que a espada de Rafar podia provavelmente varrer
num raio bem amplo.
A espada realmente moveu-se, mas com tanta rapidez que
a primeira coisa que se percebeu foi um grito de dor dado por Lucius enquanto
rodopiava formando um nó retorcido no chão. A espada e a bainha de Lucius estavam no
chão, habilmente cortadas por um rápido golpe de Rafar. Outra vez a espada se
moveu, e desta vez a parte chata da lâmina prendeu Lucius ao chão pelo cabelo.
Rafar inclinou-se sobre ele, o hálito vermelho-sangue
jorrando-lhe da boca e das narinas, ao falar.
—
Vejo que você deseja contestar a minha posição. Lucius não disse nada.
—
RESPONDA!
—
Não! — gritou Lucius. — Eu cedo.
—
Em pé! Levante-se!
Lucius esforçou-se para erguer-se, e o braço forte de Rafar
segurou-o junto aos outros. A essa altura, Lucius estava em estado lamentável,
totalmente humilhado. Rafar estendeu a espada para baixo, e com a ponta farpada
apanhou a espada e a bainha de Lucius. A espada girou como um enorme guincho e
depositou as armas de Lucius nas mãos do demônio deposto.
—
Ouçam bem, todos vocês — disse Rafar, dirigindo-se a eles. — Lucius, que não
teme os exércitos celestiais, mostrou ter medo. Ele é um mentiroso e um verme,
e não deve merecer a sua atenção. Digo-lhes que temam os exércitos celestiais.
Eles são o seu inimigo, e o intento deles é derrotá-los. Enquanto
forem ignorados, ganharão terreno, e assim os vencerão.
Rafar andou com passos pesados, laboriosos, passando e
repassando pelos demônios enfileirados, inspecionando-os mais de perto. Quando chegou diante
de Complacência, aproximou-se mais e Complacência caiu de costas. Rafar
apanhou-o pelo cangote com um dedo e colocou-o em pé.
—
Diga-me, lagartixinha, o que viu hoje?
Complacência sofreu um súbito lapso de memória. Rafar encorajou-o:
—
Mensageiros do Deus vivo, você disse? Complacência assentiu com a cabeça.
—
Onde?
—
Logo do lado de fora deste prédio.
—
O que estavam fazendo?
—
Eu... eu...
—
Eles o atacaram?
—
Não.
—
Houve um brilho de luz?
Essa pergunta pareceu evocar uma lembrança em Complacência.
Assentiu com a cabeça.
—
Quando um mensageiro de Deus ataca, sempre há luz —. Enraivecido, Rafar
dirigiu-se a todos eles: — E vocês nem perceberam! Riram! Caçoaram! Quase
sofreram um ataque do inimigo e o ignoraram!
Nesse momento Rafar voltou-se para questionar Lucius um
pouco mais.
—
Diga-me, príncipe deposto, como está a cidade de Ashton? Está pronta?
Lucius respondeu com presteza.
—
Sim, Baal Rafar.
—
Oh, quer dizer que você já deu um jeito nesse Busche que vive a orar e nesse
encrenqueiro adormecido do Hogan.
Lucius ficou quieto.
—
Ainda não! Primeiro você lhes permite ocuparem lugares que reservamos para os
nossos próprios protegidos especiais...
—
Foi um erro, Baal Rafar! — balbuciou Lucius. O redator do Clarim foi eliminado
de acordo com as suas ordens, mas... ninguém sabe de onde surgiu esse tal
Hogan. Ele comprou o jornal antes que se pudesse fazer alguma coisa.
—
E Busche? Segundo entendo, ele fugiu aos seus ataques.
—
Esse... esse era outro homem de Deus. O primeiro. Ele realmente fugiu.
—
E?
—
Esse homem mais jovem surgiu em seu lugar. Ninguém sabe de onde.
Um longo, fétido suspiro escapou zumbindo pelas presas de Rafar.
—
O exército celestial — disse. — Enquanto vocês achavam que ele estava parado,
seus membros moveram os escolhidos do Senhor bem debaixo dos seus narizes! Não
é segredo que Henry Busche é um homem de oração. Vocês temem isso?
Lucius assentiu com a cabeça.
—
Sim, claro, mais do que qualquer outra coisa. Nós o temos atacado, tentando
fazê-lo ir embora.
—
E como ele tem reagido?
—
Ele... ele...
—
Fale!
—
Ele ora.
Rafar meneou a cabeça.
—
Sim, sim, ele é um homem de Deus. E que me diz de Hogan? Que fizeram a respeito
dele?
—
Nós... atacamos a filha dele.
Os ouvidos de Complacência se aguçaram.
—
A filha?
Mas Complacência não se pôde conter.
—
Eu lhes disse que não funcionaria! Apenas tornaria Hogan mais agressivo e o
despertaria de sua letargia!
Lucius tentou captar a atenção de Rafar. — Se meu
senhor me permitisse explicar...
—
Explique — instruiu Rafar a Lucius enquanto mantinha um olho cauteloso em
Complacência.
Lucius rapidamente formulou um plano.
—
Às vezes um ataque direto não é o melhor, por isso... descobrimos uma fraqueza
na filha dele e achamos que poderíamos desviar as energias dele em direção à
mocinha, talvez destruí-lo em casa e desintegrar a família. Pareceu funcionar
com o antigo redator. Pelo menos, foi um começo.
—
Não dará certo — bradou Complacência. — Até mexerem com seu senso de bem-estar
e conforto ele era inofensivo. Agora receio não conseguir detê-lo. Ele está...
Um gesto rápido e ameaçador por parte da mão estirada de Rafar
conteve as lamúrias de Complacência.
— Não
quero que Hogan seja detido — disse Rafar. — Quero-o destruído. Sim, peguem a
filha. Peguem qualquer outra coisa que possa ser corrompida. Um risco é melhor
removido, não tolerado.
—
Mas... — gritou Complacência, mas Rafar apanhou-o rapidamente e disse
soltando-lhe baforadas venenosas bem na cara.
—
Desanime-o. Certamente isso você pode fazer.
—
Bem...
Mas Rafar não estava com a mínima disposição de esperar resposta.
Com um vigoroso voltear do pulso, arremessou Complacência fora do aposento, de
volta ao trabalho.
—
Nós o destruiremos, atacando-o por todos os lados até não lhe sobrar nem um
pedaço firme de chão do qual possa lutar. Quanto a esse novo homem de Deus que
surgiu, estou certo de que uma armadilha adequada pode ser armada. Mas com
relação aos nossos inimigos: qual a sua força?
—
Não são nada fortes — respondeu Lucius, tentando recuperar a posição de
competência.
— Mas espertos o bastante para fazê-lo pensar que são fracos. Um erro fatal, Lucius —. Ele se dirigiu a todos: — Vocês não devem mais subestimar o inimigo. Vigiem-no. Contem quantos são. Saibam por onde andam, suas habilidades, seus nomes. Jamais missão alguma foi empreendida que não fosse desafiada pelos exércitos celestiais, e esta missão não é nada pequena. Nosso senhor tem planos muito importantes para esta cidade, mandou-me a pô-los em prática, e isso é suficiente para trazer nada menos que as hordas inimigas sobre as nossas cabeças. Acautelem-se, e não cedam terreno em parte alguma! E quanto a esses dois espinhos em nossa pata, essas duas barreiras implantadas... esta noite veremos de que são feitas.