quarta-feira, 5 de maio de 2021

Este mundo tenebroso - volume 01 - Capítulo 04


 Se alguém pudesse tê-lo visto, a impressão inicial não teria sido tanto a sua aparência de réptil verrugoso mas a maneira pela qual seu vulto parecia absorver a luz e não refleti-la, como se ele fosse mais uma sombra do que um objeto, um estranho buraco animado no espaço. Mas esse pequeno espírito era invisível aos olhos humanos, invisível e imaterial, vagueando sobre a cidade, virando deste lado e daquele, guiado pela vontade e não pelo vento, as asas rodopiantes propelindo-lhe o corpo, vibrando num borrão acinzentado.

Ele parecia um pequeno e nervoso gárgula, o couro de um negror viscoso e profundo, o corpo magro e aracnídeo: meio humano ide, meio animal, totalmente demônio. Dois enormes olhos amarelos como os de um gato saltavam-lhe da cara, disparando de um lado para o outro, espreitando, procurando. O fôlego saía-lhe em arquejos curtos e sulfurosos, visível como brilhante vapor amarelo.

Ele vigiava e acompanhava cuidadosamente a sua incumbência, o motorista de um carro marrom nas ruas de Ashton, lá embaixo.

Marshall deixou o escritório do Clarim um pouco mais cedo na­quele dia. Depois da confusão da manhã, foi uma surpresa encontrar o Clarim de terça-feira já na tipografia e o pessoal ajeitando as coisas para a sexta-feira. Um jornal de interior era exatamente o ritmo certo... talvez ele pudesse voltar a conhecer a sua filha.

Sandy. Sim, senhor, uma linda moça de cabelos cor de fogo, filha única do casal. Era um mundo de potencial, mas havia passado a maior parte da infância com uma mãe excessivamente presente e um pai excessivamente ausente. Marshall era um sucesso em Nova York, isso ele era, em quase tudo exceto em ser o pai de que Sandy pre­cisava. Ela sempre fizera com que ele soubesse disso, mas como dizia Kate, os dois eram muito parecidos; os clamores por amor e atenção que ela emitia sempre saíam como pequenas punhaladas, e Marshall lhe dava atenção, isso dava, como cães dão a gatos.

Não vamos brigar mais, repetia ele consigo mesmo, não vamos mais implicar e arranhar e magoar. Deixe-a falar, deixe-a pôr para fora o que sente, e não seja duro com ela. Ame-a pelo que ela é, deixe que ela seja ela mesma, não tente encurralar a menina.

Era uma loucura o modo pelo qual o seu amor pela filha estava sempre a manifestar-se em forma de despeito, através de irritação e sarcasmo. Ele sabia que estava apenas tentando alcançá-la, tentando trazê-la de volta. Mas nunca funcionava. Ah, vamos, Hogan, tente, tente de novo, e não ponha tudo a perder esta vez.

Ao virar a esquerda, ele pôde ver a faculdade à frente. O campus da faculdade Whitmore não era diferente da maioria dos campus norte americanos — lindo, com prédios imponentes e antigos que levavam as pessoas a se sentir cultas só de olhá-los; amplas áreas bem gramadas, recortadas por calçadas de tijolo e pedras cuidado­samente padronizadas, margeadas por rochas, plantas e estátuas. Era tudo quanto uma boa faculdade devia ser, inclusive as vagas limi­tadas a quinze minutos de estacionamento. Marshall estacionou o carro e partiu à procura do Stewart Hall, que abrigava o Departamento de Psicologia e a última aula de Sandy naquele dia.

Whitmore era uma faculdade particular, fundada na década dos vintes por um proprietário de terras como memorial a si mesmo. Olhando antigas fotos do lugar, descobria-se que alguns dos prédios de aula, de tijolo vermelho à vista e colunas brancas, eram tão antigos quanto a própria faculdade; monumentos do passado e supostos guar­diões do futuro.

Era verão e o campus estava relativamente quieto.

Marshall pediu informações a um aluno que lançava discos de plástico ao ar e virou à esquerda numa rua ladeada de elmos. No fim da rua, ele encontrou o prédio que procurava, uma imponente es­trutura com torres e arcadas, copiada de alguma catedral européia. Abriu as grandes portas duplas e se encontrou num saguão espaçoso e ressonante. O fechar da grande porta criou tão fragorosa reverbe­ração contra o teto abobadado e as paredes lisas que Marshall pensou ter perturbado todas as aulas naquele andar.

Mas agora não sabia aonde ir. O lugar se compunha de três andares e cerca de trinta salas de aula, e ele não tinha a mínima idéia de qual delas era a de Sandy. Ele começou a caminhar pelo corredor, tentando abafar o ruído dos saltos dos sapatos. Nesse lugar, não se podia manter em segredo nem mesmo um arroto.

Sandy era uma caloura. A mudança da família para Ashton tinha sido um tanto tarde, e, a fim de alcançar os outros, ela se havia matriculado em cursos oferecidos durante o verão. Mas, apesar de tudo, havia sido a hora certa de transição para ela. Por enquanto ela não havia decidido em que se formar; ainda estava tentando descobrir o que queria e fazia as matérias preliminares. Em que lugar um curso de “Psicologia do Eu” se encaixava em tudo isso era algo que Mars­hall não conseguia entender, mas ele e Kate não desejavam apressar a filha.

De alguma parte, vindo do fundo do cavernoso saguão ecoavam as palavras indistintas mas bem ordenadas de uma palestra, uma voz de mulher. Ele resolveu verificar. Passou pela portas de diversas salas de aula, os pequenos números pretos em ordem decrescente, depois um bebedouro, os banheiros, e uma maciça escadaria de pedra e ferro. Finalmente, ao aproximar-se da Sala 101, ele começou a distinguir as palavras da palestra.

“... assim, se nos contentarmos com uma simples fórmula ontológica, Tenso, logo existo', isso deveria pôr fim à questão. Mas ser não pressupõe significar.

Sim, cá estava mais daquela história de faculdade, aquele ajun­tamento esquisito de palavrório complicado que impressiona as pes­soas com suas conquistas acadêmicas mas não consegue arranjar-lhe um emprego que lhe pague coisa que preste. Marshall riu consigo mesmo, uma risadinha convencida. Psicologia. Se todos aqueles psi­cólogos conseguissem pelo menos chegar a um acordo para variar, seria bom. Primeiro Sandy deu como causa de sua atitude mal-hu­morada a violenta experiência do nascimento, e depois, o que tinha sido mesmo? Problemas em aprender a usar o peniquinho. A sua nova mania era auto-conhecimento, auto-estima, identidade; ela já sabia viver toda envolvida em si mesma — agora lhe ensinavam a mesma coisa na faculdade.

Ele espiou pela porta e viu um anfiteatro, com filas de assentos montados sobre níveis cada vez mais altos até chegarem ao fundo da sala, e a pequena plataforma na frente onde a professora discur­sava contra um enorme quadro-negro.

“... e o significar não vem necessariamente do pensar, pois já se disse que o Ego nada tem a ver com a Mente, e que a Mente, na realidade, nega o Ego e inibe o Auto-conhecimento...”

Caramba! Ele não sabia por que, mas havia esperado encontrar uma mulher mais velha, magra, o cabelo preso num birote, usando óculos de aro de tartaruga presos a uma corrente de continhas à volta do pescoço. Mas a que ali estava era uma chocante surpresa, tirada de alguma propaganda de batom ou de roupas: longos cabelos loiros, corpo esbelto, olhos profundos, escuros, que tremiam um pouco mas certamente não necessitavam de óculos, aro de tartaruga ou não.

Então Marshall vislumbrou o chamejar de cabelos cor de fogo, e viu Sandy sentada perto da frente, ouvindo atenta, e febrilmente rabiscando anotações. Bingo! Essa tinha sido fácil. Ele resolveu entrar de mansinho e ficar ouvindo até o fim da palestra. Talvez assim descobrisse o que Sandy estava aprendendo e então teriam sobre o que conversar. Ele passou silenciosamente pela porta, e tomou um dos lugares vazios no fundo.

Foi então que aconteceu. Algum tipo de radar na cabeça da pro­fessora deve ter dado o sinal. Seus olhos convergiram sobre Marshall, sentado ali, e simplesmente não o largaram mais. Ele não tinha o mínimo desejo de chamar atenção para si — já estava recebendo demasiada atenção da classe — por isso não disse nada. Mas a pro­fessora parecia examiná-lo, perscrutando-lhe o rosto como se o co­nhecesse, como se estivesse tentando lembrar-se de alguém a quem conhecera antes. A expressão que repentinamente lhe assomou ao rosto provocou um calafrio em Marshall: ela dirigiu-lhe um olhar cortante, como se partisse dos olhos de um puma acossado. Ele co­meçou a sentir um correspondente instinto de defesa dar-lhe nó no estômago.

— O senhor deseja alguma coisa? — exigiu a professora, e tudo o que Marshall podia ver eram os dois olhos penetrantes.

— Estou apenas esperando a minha filha — respondeu ele em tom amável.

— Não quer fazer o favor de esperar lá fora? — disse ela, e não era uma pergunta.

E ele se encontrou no corredor. Encostou na parede, os olhos fixos no linóleo, os pensamentos em torvelinho, os sentidos embaralhados, o coração batendo com força. Não conseguia atinar com o motivo de estar ali, mas estava no corredor, fora da sala. Sem mais essa nem aquela. Como? O que havia acontecido? Vamos, Hogan, pare de tre­mer e pense!

Ele tentou repassar mentalmente o que havia acontecido, mas as coisas voltavam devagar, teimosamente, como o relembrar de um pesadelo. Os olhos daquela mulher! O modo como eles o olharam lhe disseram que, de alguma forma, ela sabia quem ele era, embora jamais se tivessem encontrado — e jamais ele vira ou sentira tanto ódio. Mas não era apenas o olhar; era também o medo; medo que foi crescendo, drenando-lhe o rosto e acelerando o coração, que o in­vadiu sem motivo, sem uma causa aparente. Ele tinha ficado quase morto de medo... a troco de nada! Não fazia o mínimo sentido. A vida inteira, ele jamais se havia recusado a enfrentar qualquer coisa nem tinha fugido de nada. Mas agora, pela primeira vez...

Pela primeira vez? A lembrança do olhar cinzento e fixo de Alf Brummel relampejou-lhe na mente, e a fraqueza retornou. Ele piscou tentando expulsar a imagem e respirou fundo. Onde estava a sua antiga coragem? Será que a havia deixado no escritório de Brummel?

Mas ele não tinha conclusões, teorias, explicações, apenas escárnio para consigo. Murmurou: “Pois é, cedi novamente, como uma árvore podre” e, como uma árvore podre, encostou-se à parede e esperou.

Em poucos minutos a porta que dava para o anfiteatro abriu-se e os alunos começaram a espalhar-se em todas as direções, como abe­lhas saindo da colméia. Eles o ignoraram de modo tão completo que Marshall se sentiu invisível, mas isso era ótimo para ele no momento.

Então Sandy apareceu. Ele se endireitou, encaminhou-se na di­reção dela, começou a dizer alô... e ela passou direto por ele! Não parou, não sorriu, nem lhe devolveu o cumprimento, nada! Ele ficou parado como bobo uns instantes, vendo-a caminhar pelo corredor em direção à saída.

Então ele a seguiu. Não estava mancando, mas, por algum motivo, tinha a impressão de estar. Não estava realmente arrastando os pés, mas eles pareciam de chumbo. Viu a filha sair pela porta sem olhar para trás. A batida que a enorme porta deu ao fechar ecoou por todo o saguão com uma finalidade grave, condenadora, como o estrondo de um enorme portão que o separasse para sempre daquela a quem ele amava. Ele se deteve no amplo saguão, entorpecido, impotente, meio cambaleante, sua corpulenta figura parecendo muito pequena.

Invisível a Marshall, pequenos jatos de fôlego sulfuroso avançavam pelo chão como água lenta, acompanhados de inaudível esfregar e arranhar o piso.

Como uma negra e viscosa sanguessuga, o pequeno demônio se apegou a Marshall, as garras de seus dedos entrelaçando as pernas dele como os tendões de uma parasita, segurando-o, envenenando-lhe o espírito. Os olhos amarelados saltavam da face retorcida, vigiando-o, penetrando-o.

Marshall sentia uma dor profunda e crescente, e o pequeno espírito o sabia. Estava ficando difícil de segurar este homem. Enquanto Mars­hall permanecia no grande saguão vazio, a mágoa, o amor, o deses­pero começaram a crescer dentro de si; ele podia sentir que uma quase extinta centelha de luta ainda ardia. Pôs-se a caminhar rumo à porta.

Mexa-se, Hogan, mexa-se! É a sua filha!

A cada passo decidido, o demônio era arrastado pelo chão atrás dele, as mãos ainda a agarrá-lo, raiva e fúria cada vez mais profundas subindo-lhe aos olhos e vapores sulfurosos explodindo de suas na­rinas. As asas se abriram à procura de uma âncora, qualquer jeito de deter Marshall, mas não encontraram nada.

Sandy, pensou Marshall, dê uma chance ao seu velho.

Ao chegar ao fim do corredor, ele estava quase correndo. Suas mãos atingiram a barra antichoque da porta e esta se abriu violen­tamente, batendo com força no retentor preso aos degraus externos. Disparando escada abaixo, ele chegou à calçada ensombreada pelos elmos. Correu os olhos pela rua, pelo gramado na frente do Stewart Hall, do outro lado, mas a filha havia desaparecido.

O demônio agarrou-o com mais força e pôs-se a escalá-lo, coleando corpo acima. Marshall ali, sozinho, sentiu as primeiras pontadas de desespero.

— Estou aqui, Papai.

Imediatamente o demônio perdeu o controle e caiu, bufando de indignação. Marshall girou nos calcanhares e viu Sandy, de pé bem ao lado da porta pela qual ele havia acabado de sair qual furacão, aparentemente tentando esconder-se das colegas entre os pés de ca­mélia, e pelo que tudo indicava, pronta a lhe passar uma carraspana. Ora, qualquer coisa era preferível a perdê-la, pensou Marshall.

— Bem — disse ele antes de pensar — desculpe-me, mas tenho a distinta impressão de que você fingiu não me conhecer lá dentro.

Sandy tentou manter-se ereta, enfrentá-lo em sua mágoa e raiva, mas mesmo assim não conseguia olhar diretamente nos olhos do pai.

— Foi... foi apenas doloroso demais.

— O que foi?

— Você sabe... a coisa toda lá dentro.

— Bem, gosto de fazer bastante estardalhaço, sabe? Algo de que as pessoas se lembrarão...

— Papai!

— Então quem foi que roubou todos os avisos de “Entrada Proibida aos Pais”? Como é que eu ia saber que ela não me queria lá dentro? E o que, afinal, é tão precioso e secreto assim que ela não quer que ninguém de fora escute?

Naquele momento a raiva de Sandy falou mais alto que a mágoa e ela conseguiu olhá-lo direto nos olhos.

— Nada! Absolutamente nada. Era só uma palestra.

— Então qual é o problema da professora? Sandy tateou à procura de uma explicação.

— Não sei. Acho que ela deve saber quem você é.

— De jeito nenhum. Jamais a vi.

Então uma pergunta surgiu automaticamente na cabeça de Mars­hall:

— Você quer dizer que ela deve saber quem sou? Sandy pareceu encurralada.

— Quero dizer... oh, que coisa. Talvez ela saiba que você é o redator do jornal. Talvez não queira repórteres bisbilhotando por aqui.

— Bem, espero poder dizer-lhe que não estava bisbilhotando. Es­tava apenas procurando você.

Sandy queria encerrar a discussão.

— Está bem, Papai, está bem. Ela apenas o entendeu mal, certo? Não sei qual era o problema dela. Acho que tem o direito de escolher sua audiência.

— E eu não tenho o direito de saber o que a minha filha está aprendendo?

Sandy deteve o que já estava para dizer e deduziu algumas coisas primeiro.

— Você estava bisbilhotando!

Mesmo enquanto acontecia, Marshall percebeu sem o menor res­quício de dúvida que eles haviam embarcado de novo na antiga rotina, como cães e gatos, como galos de briga. Era uma loucura. Parte dele não desejava que tal acontecesse, mas o resto dele estava frustrado e indignado demais para parar.

Quanto ao demônio, estava encolhido ali por perto, desviando-se de Marshall como se o homem estivesse em brasa. O demônio ob­servava, esperava, irritava-se.

— Que bisbilhotando, que nada! — trovejou Marshall. — Estou aqui por ser seu amoroso papai e querer apanhá-la depois das aulas. Stewart Hall, era tudo o que eu sabia. Encontrei-a por acaso, e... — Tentou frear-se. Perdeu um pouco do ardor, cobriu os olhos com a mão, e suspirou.

— E aproveitou para me vigiar! — sugeriu Sandy com rancor.

— Há alguma lei contra isso?

— Está bem, vou-lhe explicar como são as coisas. Sou um ser humano, Papai, e toda entidade humana, não importa quem seja, está sujeita, em última instância, a um desígnio universal e não à vontade de um indivíduo específico. Quanto à professora Langstrat, se não desejar você na palestra, é prerrogativa dela exigir que saia!

— Mas quem é que paga o salário dela? Sandy ignorou a pergunta.

— Quanto a mim, e o que estou aprendendo, e em que me estou tornando, e aonde estou indo, e o que desejo, digo que você não tem o direito de infringir o meu universo a menos que eu pessoalmente lhe ceda esse direito!

A vista de Marshall estava sendo turbada por imagens de Sandy na posição de levar umas boas palmadas. Enraivecido, ele precisava descontar em alguém, mas nesse momento tentava desviar de Sandy as suas investidas. Ele apontou o prédio de onde haviam saído e exigiu:

— Foi... foi ela quem lhe ensinou isso?

— Você não precisa saber.

— Tenho o direito de saber!

— Você abriu mão desse direito, Papai, há muito tempo.

Esse soco jogou-o à lona, e ele não tinha conseguido ainda recu­perar-se totalmente quando ela se foi em direção à rua, escapando dele, escapando à miserável, teimosa refrega em que estavam en­volvidos. Ele lhe gritou algo, alguma pergunta meio idiota sobre como chegaria a casa, mas ela nem mesmo diminuiu os passos.

O demônio agarrou a oportunidade e Marshall, que sentiu a raiva e auto-justificação darem lugar a um profundo desespero. Ele falhara. Justamente a coisa que ele nunca mais queria fazer, havia feito. Por que cargas d'água era esse o seu feitio? Por que não podia simples­mente aproximar-se dela, amá-la, reconquistá-la? Ela já estava de­saparecendo de vista, tornando-se cada vez menor ao atravessar apressada o campus, e parecia tão distante, além do alcance de um braço amoroso. Através da vida e das lutas ele havia sempre tentado ser forte, ser durão, mas no momento estava tão ferido que não con­seguia evitar que essa força se esboroasse ao seu redor em ínfimos pedaços. Enquanto ele olhava, Sandy desapareceu numa esquina distante sem sequer olhar para trás, e algo partiu-se dentro dele. Sua alma parecia estar a ponto de se derreter, e naquele momento não havia ninguém no mundo a quem ele odiasse mais do que a si mesmo.

As forças de suas pernas pareceram ceder ao do peso da sua dor, e ele afundou até os degraus na frente do velho prédio, desanimado.

As garras do demônio circundaram-lhe o coração e ele murmurou em voz trêmula:

— De que adianta?

“Iahaaaaá!” veio um clamor trovejante de uns arbustos próximos. Uma luz branco-azulada cintilou. O demônio largou a presa e sumiu como uma mosca apavorada, aterrizando a uma boa distância em postura trêmula e defensiva, os enormes olhos amarelados pratica­mente a saltar da cabeça e uma cimitarra farpada, cor de carvão pronta na mão que tremia. Mas então houve um inexplicável tumulto atrás daqueles mesmos arbustos, algum tipo de luta, e a fonte da luz de­sapareceu no canto do Stewart Hall.

O demônio não se mexeu, mas esperou, escutando, observando. Não se ouvia som algum a não ser o da leve brisa. Com toda a cautela, ele retornou sorrateiramente ao lugar onde Marshall ainda estava sentado, passou por ele, e espiou por entre os arbustos e no canto do prédio.

Nada.

Como se detido durante todo esse tempo, um longo, lento bafo de vapor amarelo saiu em leves fiapos encaracolados das narinas do demônio. Sim, ele sabia o que tinha visto; disso não tinha dúvida. Mas por que é que eles haviam fugido?