A poucos quilômetros da cidade, na Rodovia 27, uma grande limusine
preta deslizava rapidamente pela paisagem campestre. No luxuoso banco traseiro,
um rechonchudo homem de meia-idade falava de negócios com a secretária, uma
mulher alta e esguia de longos cabelos negros e tez pálida. Falando nítida e sucintamente
enquanto ela tomava notas em fluida estenografia, ele planejava uma transação
comercial de grande porte. Então algo aconteceu ao homem.
— Isso me faz lembrar — disse ele,
e a secretária ergueu os olhos do bloco de anotações. — A professora alega
ter-me mandado um pacote há algum tempo, mas não me recordo de tê-lo recebido.
— Que tipo de pacote?
— Um livrinho. Um item pessoal.
Tente lembrar-se de procurá-lo quando estiver de volta à fazenda?
A secretária abriu a pasta e deu a impressão de ter anotado
alguma coisa. Na realidade, não escreveu nada.
Era a segunda visita que Marshall fazia à Praça do Tribunal no mesmo dia. A primeira vez havia sido para tirar Berenice da cadeia, e agora fazia uma visita a exatamente ao mesmo homem que Berenice queria enforcar: Alf Brummel, o Delegado. Depois que o Clarim finalmente foi para a tipografia, Marshall estava prestes a chamar Brummel, mas Sara, a secretária de Brummel, chamara Marshall primeiro e marcara um encontro entre os dois para as duas horas da tarde naquele mesmo dia. Havia sido uma boa jogada, pensou Marshall. Brummel estava pedindo tréguas antes que os tanques começassem a rolar.
Estacionou no lugar que lhe era
reservado na frente do novo edifício do tribunal e fez uma pausa ao lado do carro a fim de olhar para cima
e para baixo na rua, avaliando o que restara da agonia da noite de domingo, a
última do Festival. A rua principal procurava ser a mesma de sempre, mas aos
olhos perspicazes de Marshall a cidade toda parecia estar mancando, meio
cansada, dolorida, morosa. Os mesmos grupinhos de pedestres geralmente meio
apressados paravam, olhavam, meneavam a cabeça e lamentavam. Por gerações,
Ashton se havia orgulhado do calor e dignidade do seu povo e se havia esforçado
em ser um bom lugar onde seus filhos crescessem. Mas agora havia tumultos
íntimos, ansiedades, receios, como se algum tipo de câncer a estivesse
corroendo e destruindo-a invisivelmente. Por fora havia as vitrinas, agora
substituídas por feios tapumes. Os medidores de estacionamento estavam
quebrados, o lixo e cacos de vidro se espalhavam por toda a rua. Mas mesmo
enquanto os lojistas e os comerciantes
varriam o entulho, parecia haver uma silenciosa certeza de que os problemas
internos permaneceriam, as dificuldades continuariam. Os crimes estavam
aumentando, especialmente entre os jovens; a confiança comum e simples no próximo estava diminuindo; nunca
a cidade estivera tão cheia de boatos, escândalos e fofocas maliciosas. À
sombra do medo e da suspeita, a vida estava aos poucos perdendo a sua alegria e
simplicidade, e ninguém parecia saber por que nem como.
Marshall dirigiu-se à Praça do Tribunal. A praça consistia de dois prédios,
agradavelmente guarnecidos de chorões e arbustos, de frente para um
estacionamento comum aos dois. Em um lado estava o elegante prédio do Tribunal,
dois andares de tijolo à vista, que também abrigava o Departamento de Polícia
e um porão um tanto decadente com seu bloco de celas. Um dos três carros
policiais estava estacionado do lado de fora. No outro lado encontrava-se o
prédio da Prefeitura, de dois andares e frente de vidro, que abrigava o gabinete
do Prefeito, a câmara dos vereadores, e outras autoridades. Marshall dirigiu-se
ao Tribunal.
Passando por uma entrada simples e
modesta marcada “Polícia”, ele encontrou vazia a
pequena área de recepção. Ele podia ouvir vozes vindas do corredor detrás de
algumas das portas fechadas, mas Sara, a secretária, parecia ter deixado
temporariamente a sala.
Não — atrás do balcão recoberto de fórmica da recepcionista um enorme
arquivo balançava lentamente para a frente e para trás, e grunhidos e gemidos
vinham lá de baixo. Marshall inclinou-se sobre o balcão e deparou com uma cena
cômica. Sara, de joelhos, não obstante a saia que usava, tramava furiosa luta
com uma gaveta do arquivo que se enroscara na sua mesa. Aparentemente, a
contagem era Gavetas do Arquivo 3 X Canelas de Sara O, e Sara era má perdedora,
assim como o era a sua meia-calça.
Em má hora ela soltou uma imprecação, e então percebeu que ele estava em pé
ali, mas já era tarde demais para recobrar a costumeira pose.
— Oh, alô, Marshall...
— Da próxima vez use botas de
combate. Elas são mais apropriadas para colocar as coisas no lugar a pontapés.
Pelos menos eles se conheciam, e
Sara estava grata por isso. Marshall já havia aparecido neste lugar vezes suficientes para ficar conhecendo bem
a maioria do pessoal que trabalhava aqui.
— Estes — disse ela no eloqüente
tom de guia turística — são os infames arquivos do Sr. Alf Brummel, Delegado de
Polícia. Ele acabou de conseguir uns belos arquivos novos, e eu herdei estes
aqui! Por que preciso deles em meu escritório é algo que não consigo entender, mas tenho ordens expressas do chefe, e aqui eles têm de ficar!
— São feios demais para o
escritório dele.
— Mas a cor cáqui... é ele, sabe?
Ora, talvez uma pintura e uns decalques os deixem um pouco mais alegres. Se vão
se mudar para cá, o mínimo que podem fazer é sorrir.
Naquele instante, o telefone
interno tocou. Ela apertou o botão e atendeu.
— Sim, senhor?
A voz ríspida de Brummel gritou da caixinha:
— Ei, o meu alarme de segurança
está piscando...
— Desculpe, fui eu que o acionei.
Estava tentando fechar uma das gavetas do seu arquivo.
— Está bem, certo. Olhe, veja se
dá um novo arranjo às coisas, sim?
— Marshall Hogan está aqui e
deseja vê-lo.
— Oh, muito bem. Mande-o entrar.
Ela olhou para Marshall e apenas
meneou a cabeça pateticamente.
— Você não está precisando de uma
secretária? — murmurou. Marshall sorriu. Ela explicou:
— Ele botou esse arquivo junto do
botão de alarme silencioso. Toda vez que abro uma gaveta, cercam o prédio
inteiro.
Com um aceno de despedida,
Marshall dirigiu-se à porta do primeiro escritório e
entrou no gabinete de Brummel. Alf Brummel se pôs em pé e estendeu a mão, o
rosto explodindo em um largo sorriso que punha à mostra os dentes brancos como
marfim.
— Ei, aí está o homem!
— Olá, Alf.
Apertaram-se as mãos enquanto Brummel fazia Marshall entrar e fechava a
porta. O Delegado era um homem dos seus trinta e poucos anos, solteiro, ex-tira
de cidade grande levando um tipo de vida extravagante que desmentia o seu
salário de policial. Ele sempre dava a impressão de ser um cara amigo, mas
Marshall nunca havia conseguido confiar realmente nele. Pensando bem, nem mesmo
gostava muito do homem. Muito dente à mostra por qualquer coisa.
— Bem — sorriu Brummel — sente-se,
sente-se.
E mesmo antes de se afundarem nas
poltronas, ele estava falando novamente.
— Parece que cometemos um engano
cômico este fim-de-semana. Marshall lembrou-se da cena de sua repórter na cela
das prostitutas.
— Berenice não riu a noite toda, e
acabei ficando vinte e cinco dólares mais pobre.
— Bem — disse Brummel, abrindo a
gaveta superior da escrivaninha — é por isso que estamos fazendo esta reunião, para
esclarecer o embrulhada toda. Tome. Ele apanhou um cheque e o estendeu a
Marshall.
— É a restituição do dinheiro que
você pagou pela fiança, e quero que saiba que Berenice vai receber uma
retratação oficial assinada por mim e por este gabinete. Mas, Marshall, por
favor, diga-me o que aconteceu. Se ao menos eu estivesse por lá, teria podido
evitar a coisa.
— Berenice diz que você estava lá.
— Eu? Onde? Sei que entrei na
delegacia e saí dela a noite toda, mas...
— Não, ela viu você no Festival.
Brummel forçou um sorriso mais amplo.
— Bem, não sei quem ela viu na
realidade, mas eu não fui ao Festival ontem à noite. Estive ocupado por aqui.
Marshall estava agora embalado
demais para voltar atrás.
— Ela viu você bem na hora em que
estava sendo presa. Brummel pareceu não ouvir essa última declaração.
— Mas continue, conte-me o que
aconteceu. Preciso chegar à raiz dessa confusão.
Marshall sustou bruscamente o
ataque. Não sabia por quê. Talvez fosse por
cortesia. Talvez por intimidação. Qualquer que fosse o motivo, ele começou a
desfiar a história direitinho, quase como um noticiário, exatamente da maneira
que Berenice lhe havia contado, mas cautelosamente deixou de fora os detalhes
incriminadores acrescentados por ela. Enquanto falava, seus olhos estudavam
Brummel, o escritório, e todo e qualquer detalhe específico da decoração, a
organização das peças do mobiliário, a agenda. Era quase um reflexo. Com o
passar dos anos, ele tinha adquirido a habilidade de observar e acumular
informação sem dar a impressão de estar agindo assim. Talvez fosse por não
confiar no homem, mas mesmo que confiasse, uma vez repórter, sempre repórter.
Dava para ver que o escritório de Brummel pertencia a pessoa exigente, desde a
escrivaninha muito polida, muito em ordem até os lápis, perfeitamente
apontados.
Ao longo da parede, onde os feios
arquivos costumavam estar, via-se um lindo conjunto de estantes e armários de carvalho, com portas de vidro e ferragens de
bronze.
— Puxa, você está melhorando de
vida, hein, Alf? — gracejou Marshall, olhando na direção das estantes.
— Gosta delas?
— Muito. O que são?
— Um belo substituto daqueles
velhos arquivos. Servem para mostrar o que a gente consegue, se economizar os
tostões. Eu detestava ter aqueles arquivos aqui dentro.
Acho que um escritório deve ter um pouco de classe,
certo?
— Sim, é isso mesmo, claro. Nossa,
você tem a sua própria copiadora. ..
— Sim, e estantes, mais lugar para
guardar as coisas.
— E outro telefone?
— Telefone?
— O que é aquele fio saindo da
parede?
— Oh, aquilo é para a cafeteira
elétrica. Mas de que mesmo estávamos falando?
— Sim, sim, o que aconteceu a
Berenice... — e Marshall continuou a narrativa. Ele tinha bastante prática em
ler de cabeça para baixo, e enquanto continuava a falar, correu os olhos pela
agenda na escrivaninha de Brummel. As tardes das terças-feiras se destacavam
por estarem sempre em branco, embora não fosse esse o dia de folga do Delegado.
Uma terça-feira, contudo, tinha uma hora marcada: o Rev. Oliver Young, às 2 da
tarde.
— Oh — disse com naturalidade —
vai fazer uma visita ao meu pastor amanhã?
Percebeu imediatamente que havia
ultrapassado os limites; Brummel demonstrou surpresa e irritação ao mesmo tempo. O Delegado mostrou os dentes num
sorriso forçado, e disse:
— Oh, sim, Oliver Young é o seu
pastor, não é?
— Vocês se conhecem?
— Não muito bem. Já nos encontramos
algumas vezes, profissionalmente, acho eu...
— Mas você não freqüenta a outra
igreja, aquela pequenina?
— Sim, a da Comunidade de Ashton.
Mas, continue, vamos ouvir o resto do que aconteceu.
Marshall estava impressionado com
a facilidade com que esse sujeito se perturbava, mas tentou não contestá-lo mais. Pelo menos, não por enquanto. Em
vez disso, ele continuou a narrativa do ponto onde havia interrompido e
arrematou-a com capricho, incluindo a ira da moça. Percebeu que Brummel havia
descoberto alguns importantes papéis que precisava examinar, papéis que
cobriram o calendário sobre a escrivaninha.
Marshall perguntou:
— Diga, quem foi esse tira cheio
de si que não deixou Berenice se identificar?
— Um cara de fora, nem mesmo era
do nosso pelotão local. Se Berenice nos puder dar o nome ou o número da
insígnia, farei com que ele seja repreendido pelo seu comportamento. Veja,
tivemos de trazer alguns auxiliares de Windsor a fim de reforçar as coisas durante o Festival. Quanto ao pessoal daqui, nossos homens
sabem muito bem quem é Berenice Krueger. Brummel
proferiu a última sentença com um toque de ferocidade.
— Então, por que não é ela quem
está sentada aqui ouvindo todas essas desculpas em vez de mim?
Brummel inclinou-se para a frente
com um ar bem sério.
— Achei que seria melhor falar com
você, Marshall, em vez de fazê-la desfilar por este escritório, já um tanto
estigmatizada. Suponho que você saiba por quantas aquela garota tem passado.
Está bem, pensou Marshall, perguntarei.
— Estou há pouco tempo na cidade,
Alf.
— Ela não lhe contou?
— E você adoraria fazê-lo?
Saiu sem querer, e doeu. Brummel
afundou-se de volta na cadeira e estudou o rosto de Marshall.
Nesse exato momento, Marshall
estava pensando que não se arrependia do que tinha
dito.
— Estou aborrecido, caso você não
tenha percebido. Brummel iniciou um novo parágrafo.
— Marshall... eu quis vê-lo hoje
pessoalmente porque queria... consertar esse negócio.
— Então, vamos ouvir o que você
tem a dizer sobre Berenice. Brummel, é melhor você escolher com cuidado as
palavras, pensou
Marshall.
— Bem... — gaguejou Brummel,
subitamente colocado em cheque. — Achei que você poderia querer saber o que
aconteceu caso você viesse a achar a informação útil ao lidar com ela. Sabe,
foi diversos meses antes de você assumir o jornal que ela veio a Ashton. Apenas
poucas semanas antes da sua chegada, a irmã dela, que fazia faculdade,
suicidou-se. Berenice veio a Ashton cheia de fúria vingativa, tentando
solucionar o mistério em torno da morte da irmã, mas... todos nós sabíamos que
era apenas uma dessas coisas que acontecem, para as quais nunca haverá
explicação.
Marshall nada disse por espaço significativo de tempo.
— Eu não sabia disso.
A voz de Brummel era baixa e
pesarosa, ao dizer:
— Ela tinha certeza de que havia
algum tipo de sujeira envolvida. Foi uma investigação bem agressiva a que ela
conduziu.
— Bem, ela tem mesmo o faro de
repórter.
— Ter, isso ela tem. Mas veja,
Marshall... a prisão, foi um engano, um engano humilhante, para falar a
verdade. Realmente não achei que ela desejasse ver o interior deste prédio tão
cedo. Compreende agora?
Mas Marshall não estava certo de compreender. Nem mesmo estava certo de ter ouvido tudo o que fora dito. De repente, ele se
sentiu muito fraco, e não conseguia descobrir aonde sua
raiva fora parar tão depressa. E que dizer das suas suspeitas? Ele sabia que
não acreditava em tudo que aquele sujeito estava dizendo... ou acreditava?
Sabia que Brummel havia mentido a respeito de não estar no Festival... mas
havia mesmo?
Ou será que não ouvi direito o que ele disse? Ou... onde é
mesmo que estávamos? Vamos lá, Hogan, você não dormiu direito a noite passada?
— Marshall?
Marshall olhou bem nos olhos
cinzentos e atentos de Brummel, e sentiu-se meio amortecido, como se estivesse
sonhando.
— Marshall — disse Brummel —
espero que compreenda. Agora você compreende, não é?
Marshall precisou obrigar-se a
pensar, e percebeu que era mais fácil se não olhasse diretamente nos olhos de Brummel por um momento.
— Uhm... — Era um começo idiota,
mas era o máximo que conseguiu pôr para fora. — É, sim, Alf, acho que percebo
o que quer dizer. Suponho que agiu corretamente.
— Mas realmente quero acertar todo
esse negócio, especialmente entre nós dois.
— Ora, não se preocupe. Não é
assim tão importante.
Mesmo enquanto estava dizendo
isso, Marshall se perguntava se realmente havia dito essas palavras. Os grandes
dentes de Brummel tornaram a surgir.
— Fico muito contente em ouvir
isso, Marshall.
— Mas, olhe, você poderia pelo
menos ligar para ela. Ela foi atingida de uma forma bem pessoal, não acha?
— É o que farei, Marshall.
Depois disso, Brummel inclinou-se
para a frente com um sorriso estranho no rosto, as mãos fortemente entrelaçadas sobre a escrivaninha e os
olhos cinzentos prendendo Marshall naquele mesmo olhar entorpecente,
penetrante, estranhamente calmante.
— Marshall, falemos agora de você
e do resto desta cidade. Sabe, estamos realmente contentes em tê-lo aqui para
assumir o Clarim. Sabíamos que seu estilo refrescante de jornalismo
seria bom para a comunidade. Vou ser franco em dizer que o último redator
foi... um tanto prejudicial ao ânimo da cidade, principalmente no fim.
Marshall sentiu-se levado na onda
dessa conversa, mas podia perceber que aí vinha algo. Brummel continuou:
— Precisamos do seu tipo de
classe, Marshall. Você dispõe de grande poder que pode exercer através da
imprensa, e todos sabemos disso, mas é necessário o homem certo para manter
esse poder direcionado no rumo certo, para o
bem comum. Todos nós nos cargos públicos estamos
aqui para servir aos melhores interesses da comunidade, da raça humana se
pensarmos bem no assunto. Mas você também, Marshall. Você está aqui para o bem
do povo, da mesma forma que o restante de nós.
Brummel passou os dedos pelo
cabelos, um gesto nervoso, e então perguntou:
— Bem, entende o que estou
dizendo?
— Não.
— Bem... — Brummel tentou
encontrar um novo ponto de partida. — Acho que é como você disse, faz pouco
tempo que chegou aqui. Será que é melhor eu ir diretamente ao assunto?
Marshall deu de ombros como a
dizer “por que não?” e deixou Brummel continuar.
— Esta é uma cidade pequena, antes
de tudo, o que significa que um problemazinho qualquer, mesmo entre um punhado
de pessoas, vai atingir e preocupar quase todas as outras pessoas. E a gente
não pode-se esconder por trás do anonimato simplesmente por que ele não existe.
Ora, o antigo redator não entendia isso e realmente causou alguns problemas que
prejudicaram toda a população. Ele era um demagogo patológico. Destruiu a fé
que as pessoas tinham no governo local, nos funcionários públicos, umas nas
outras, e, por fim, nele próprio. Foi algo que doeu. Foi uma ferida no nosso
lado, e está demorando para todos nós nos recuperarmos. Completando, deixe-me
dizer-lhe que, para sua informação, aquele homem finalmente teve de sair da
cidade coberto de vergonha. Ele molestou uma menina de doze anos. Tentei evitar
a repercussão do caso tanto quanto possível. Mas nesta cidade foi realmente
desajeitado, difícil. Fiz o que achei que causaria a menor aflição e dor à
família e às pessoas em geral. Não levei a queixa judicial contra esse homem
adiante, contanto que ele deixasse Ashton e nunca mais pusesse os pés aqui.
Ele concordou com essa condição. Mas jamais me esquecerei do choque que causou,
e duvido que a cidade tenha esquecido.
— E isso nos traz de volta a você,
e nós, os servidores do público, e também aos membros desta comunidade. Uma das
maiores razões pelas quais essa confusão com Berenice me deixa chateado é por
realmente desejar um bom relacionamento entre este gabinete e o Clarim, entre
mim e você, pessoalmente. Detestaria ver qualquer coisa estragar as coisas.
Precisamos de união por aqui, camaradagem, um bom espírito de comunidade.
Ele fez uma pausa de efeito.
— Marshall, gostaríamos de saber
que você está do nosso lado e trabalhando em prol desse objetivo.
Então veio a pausa e o olhar longo e cheio de expectativa. Era a vez de Marshall. Ele se remexeu um pouco na cadeira,
organizando os pensamentos, sondando os sentimentos, quase evitando aqueles
fixos olhos cinzentos. Talvez esse sujeito estivesse usando de franqueza, ou
talvez esse pequeno discurso não passasse de
uma astuta manobra diplomática visando a afastá-lo de alguma coisa que Berenice,
inadvertidamente, houvesse descoberto.
Mas Marshall não conseguia pensar com coerência, nem mesmo sentir com
coerência. Sua repórter tinha sido presa falsamente e jogada numa porcaria de
cadeia para passar a noite, e ele já nem parecia se importar; esse Delegado de
sorriso dentuço a estava fazendo passar por mentirosa, e Marshall estava
consentindo. Vamos, Hogan, lembra-se do motivo que o trouxe aqui?
Mas ele se sentia tão cansado! Ficava a relembrar o motivo de ter-se
mudado para Ashton. Deveria ter sido uma mudança no estilo de vida dele e da
família, um tempo para deixar de brigar e arranhar as intrigas da cidade grande
e simplesmente procurar as histórias mais simples, coisas como campanha de
ajuntar jornal da turma da escola e gatos que subiam nas árvores e não
conseguiam descer. Talvez fosse apenas a força do hábito depois de todos os
anos passados no Times que o levasse a pensar que tinha de submeter Brummel a
um interrogatório. A troco de quê? Mais briga? Puxa vida, que tal um pouco de
tranqüilidade e silêncio para variar?
De súbito, e contrário aos seus melhores instintos, ele soube que não havia
nada com que se preocupar; o filme de Berenice estaria em ordem, e as fotos
provariam que Brummel estava certo e ela errada. E Marshall realmente desejava
que fosse assim.
Mas Brummel ainda estava esperando
uma resposta, ainda o estava mirando com aquele olhar entorpecedor.
— Eu... — começou Marshall, e
nessa hora sentiu-se tolo e desajeitado. — Olhe, estou realmente cansado de
brigar, Alf. Talvez eu tenha sido criado assim, talvez tenha sido isso o que me
fez sair bem no meu trabalho com o Times, mas resolvi mudar-me para cá, e isso
tem de significar alguma coisa. Estou cansado, Alf, e não estou ficando mais
jovem. Preciso de cura. Preciso aprender como realmente é ser humano e viver em
uma cidade com outros seres humanos.
— Sim — disse Brummel — é isso aí.
É exatamente isso.
— Então... não se preocupe. Como
todos, vim aqui procurar paz e tranqüilidade. Não quero brigas, não quero
encrencas. Nada tem a temer de minha parte.
Brummel ficou radiante e esticou a
mão para selarem o acordo. Ao
apertar a mão dele, Marshall sentiu-se quase como se tivesse vendido parte da
alma. Será que Marshall Hogan realmente havia dito tudo aquilo? Eu devo estar
cansado, pensou.
Sem o perceber, ele se encontrava
em pé do lado de fora da porta de Brummel. Aparentemente, seu encontro havia terminado.
Depois que Marshall saiu e a porta
foi bem fechada, Alf Brummel afundou-se em sua cadeira com um suspiro de alívio, e deixou-se apenas ficar sentado por algum tempo,
fitando o espaço, recuperando-se, criando coragem para enfrentar a próxima
penosa tarefa. Marshall Hogan era apenas o aquecimento, no que lhe dizia
respeito. O verdadeiro teste estava por começar. Estendeu a mão ao telefone,
puxou-o um pouco mais para perto, ficou a fitá-lo por uns instantes, e então
discou um número.
Hank dava os últimos retoques na pintura que fazia na frente da casa
quando o telefone tocou e Mary chamou, dizendo que era Alf Brummel.
Puxa, pensou Hank. E aqui estou
eu, com um pincel encharcado na mão. Gostaria que ele estivesse aqui.
Ele confessou seu pecado ao Senhor
enquanto se dirigia ao telefone.
— Olá — disse.
Em seu escritório, embora estivesse a sós, Brummel deu as costas à
porta para tornar mais particular a conversa, e abaixou a voz ao falar.
— Oi, Hank. Aqui é o Alf. Achei
que devia ligar para você esta manhã e ver como está... depois de ontem à
noite.
— Oh... — disse Hank, sentindo-se
como um ratinho na boca do gato. — Acho que estou bem. Melhor, talvez.
— Então você pensou no assunto?
— Sim, claro. Pensei muito. Orei a
respeito, verifiquei novamente a Palavra com relação a certas questões...
— Hummm. Parece que você não mudou
de idéia.
— Bem, se a Palavra de Deus
mudasse, então eu mudaria, mas acho que o Senhor não retira aquilo que disse, e
você sabe em que posição isso me coloca.
— Hank, você sabe que a assembléia
extraordinária será realizada sexta-feira.
— Sei.
— Hank, realmente gostaria de
ajudá-lo. Não quero vê-lo destruir-se. Acho que você tem sido bom para a
igreja, mas... o que posso dizer? A divisão, a murmuração... estão a ponto de
acabar com a igreja.
— Quem está murmurando?
— Ora, vamos...
— E por falar nisso, quem convocou
a assembléia em primeiro lugar? Você. Sam. Gordon. Não tenho dúvida de que Lou
ainda esteja por trás disso tudo, bem como de quem quer que tenha pichado
a frente da minha casa.
— Estamos todos preocupados,
apenas isso. Você, bem, você está lutando contra o que é melhor para a igreja.
— Que engraçado! Achei que estava
lutando contra você. Mas ouviu o que eu disse? Alguém pichou a frente
da minha casa.
— O quê? Pintou o quê?
Hank despejou tudo em cima dele.
Brummel deixou escapar um gemido.
— Ah, Hank, isso é doentio!
— E Mary está-se sentindo mal, e
eu também. Ponha-se em nosso lugar.
— Hank, se eu estivesse em seu
lugar, reconsideraria. Não vê o que está acontecendo? Os rumores estão-se
espalhando e a cidade toda está-se colocando contra você. Isso também significa
que, não demora muito, e a cidade toda se porá contra a nossa igreja, e temos
de sobreviver nesta cidade, Hank! Estamos aqui para ajudar as pessoas,
estender as mãos para elas, não para colocar um percalço entre nós e a
comunidade.
— Eu prego o evangelho de Jesus
Gristo, e há um bom número de pessoas que apreciam esse fato. Onde, exatamente,
está esse percalço de que você está falando?
Brummel estava ficando impaciente.
— Hank, aprenda a lição com o
último pastor. Ele cometeu o mesmo erro. Veja o que lhe aconteceu.
— Foi o que fiz, aprendi com ele.
Aprendi que tudo o que preciso fazer é desistir, guardar tudo, esconder a
verdade em alguma gaveta para que ela não ofenda a ninguém. Então estarei bem,
todo mundo gostará de mim, e seremos uma família feliz novamente. Aparentemente,
Jesus estava enganado. Ele podia ter conservado uma porção de amigos se se
tivesse omitido e feito o jogo político.
— Mas você quer ser crucificado!
— Eu quero salvar almas, quero
convencer pecadores, quero ajudar aos crentes recém-convertidos a crescer na
fé. Se eu não fizer isso, terei muito mais a recear do que você e o resto do
conselho.
— Eu não chamo isso de amor, Hank.
— Eu amo a todos vocês, Alf. É por
isso que lhes dou o remédio de que precisam, e especialmente no que diz
respeito ao Lou.
Brummel sacou uma arma poderosa.
— Hank, você já parou para pensar
que ele pode processá-lo? Houve uma pausa no outro lado.
Finalmente, Hank respondeu:
— Não.
— Ele pode processá-lo por
prejuízos, calúnia, difamação de caráter, angústia mental, e quem sabe
lá o que mais?
Hank respirou fundo e apelou ao
Senhor, pedindo paciência e sabedoria.
— Você está vendo qual é o
problema? — disse finalmente. — É grande demais o número de pessoas que já não
sabem, ou não querem saber, qual é a verdade. Não acreditamos em algo, de modo
que caímos por qualquer coisa, e agora sujeitos como o Lou se metem numa
confusão onde podem magoar a família, iniciar as próprias fofocas, arruinar as
suas reputações, tornarem-se miseráveis em seu pecado... e depois procurar
alguém em quem jogar a culpa! Quem está fazendo o que a quem?
Brummel apenas suspirou.
— Falaremos a respeito de tudo
isso sexta à noite. Você estará lá?
— Sim, estarei. Estarei
aconselhando alguém e depois irei à reunião. Já aconselhou alguém em sua vida?
— Não.
— Adquirimos um genuíno respeito
pela verdade quando temos de ajudar a limpar vidas construídas sobre a mentira.
Pense nisso.
— Hank, tenho de pensar nos
desejos dos outros.
Brummel desligou ruidosamente e enxugou o suor das palmas das mãos.