Marshall entrou depressa no porão da Delegacia de Ashton e imediatamente desejou poder
desligar o nariz e os ouvidos. Além da porta cheia de grades que levava à ala
das celas, os ruídos e odores que emanavam das celas não diferiam muito dos do
parque de diversões na noite anterior. Ao vir para cá, ele havia notado como as
ruas estavam quietas esta manhã. Não era de admirar — todo o barulho tinha
vindo parar dentro dessa meia-dúzia de celas de pintura descascando, embutidas
em concreto frio e ressonante. Aqui estavam todos os drogados, vândalos,
desordeiros, bêbados e vagabundos que a polícia tinha podido arrebanhar da face
da cidade, recolhidos no que mais parecia um zoológico superlotado. Alguns
estavam transformando aquilo numa festa, jogando pôquer por cigarros, usando
cartas todas marcadas de dedos e tentando sobrepujar os outros nas narrativas
de aventuras ilícitas. Perto do fim das celas, um bando de jovens machos
dirigia comentários obscenos a uma gaiolada de prostitutas que não tinham um
lugar melhor para serem trancafiadas. Outros simplesmente se amontoavam pelos
cantos em estado de embriaguez ou afundados em depressão, ou as duas coisas.
Os remanescentes olhavam-nos fixamente por detrás das grades, fazendo
comentários maliciosos, pedindo ninharias. Ele ficou contente por ter deixado
Kate na entrada.
Jimmy Dunlop, o novo assistente do
Delegado, estava estacionado fielmente à mesa da guarda, preenchendo formulários e bebendo café forte.
— Ei, Sr. Hogan — disse ele — o
senhor veio logo.
— Eu não podia esperar... e não vou esperar! — disse,
brusca mente. Não se estava sentindo bem. Este havia sido o seu
primeiro Festival, e só isso já era um mal em si, mas ele jamais esperou,
jamais sonhou com um tal prolongamento da agonia. Qual uma torre, ele se elevou
à frente da mesa, sua robusta figura inclinando-se para a frente a fim de
acentuar a sua impaciência.
— E então? — insistiu.
— Hummm?
— Estou aqui para tirar a minha
repórter da cadeia.
— Claro, sei disso. Trouxe a
permissão?
— Olhe aqui. Acabei de pagar
aqueles engraçadinhos lá em cima. Eles disseram que ligariam aqui para baixo.
— Bem. .. não fiquei sabendo de
nada, e preciso da autorização.
— Jimmy.. .
— O que é?
— Seu telefone está fora do
gancho.
— Oh. ..
Marshal colocou o telefone à frente do guarda com tanta força que fez o telefone
tilintar de dor.
— Ligue para eles.
Marshall endireitou-se, viu Jimmy
discar o número errado, discar novamente,
tentar completar a ligação. Ele combina bem com o resto da cidade, pensou
Marshall, passando nervosamente os dedos pelos cabelos vermelhos que começavam
a ficar grisalhos. Ora, claro que era uma cidade simpática. Engraçadinha,
talvez um tanto estúpida, meio como um garotão desajeitado que está sempre se
metendo em encrencas. As coisas não eram tão melhores assim na cidade grande,
tentou lembrar a si mesmo.
— Ah, Sr. Hogan — disse Jimmy, com
a mão sobre o bocal — com quem foi que o senhor falou?
— Kinney.
— Sargento Kinney, por favor.
Marshall estava impaciente.
— Passe-me a chave da porta. Quero
que ela saiba que estou aqui. Jimmy deu-lhe a chave. Já havia discutido com
Marshall Hogan antes.
Uma onda de fingidas boas-vindas
jorrou das celas, acompanhada de tocos de cigarros e o som de marchas
assobiadas enquanto ele passava. Ele não perdeu tempo em achar a cela que procurava.
— Muito bem, Krueger, sei que você
está aí dentro!
— Venha pegar-me, Hogan — veio a
resposta, dada por uma voz feminina desesperada e algo ultrajada lá dos fundos.
— Bem, estenda o braço, acene para
mim, faça alguma coisa! Uma mão apareceu entre os corpos e grades e acenou-lhe
com desespero. Ele foi até lá, deu-lhe uma pancadinha na palma, e achou-se face a face com Berenice Krueger, detenta, sua melhor
colunista e repórter. Ela era uma jovem e
atraente mulher de seus vinte e cinco ou vinte e seis anos, com cabelos
castanhos em desordem e óculos grandes, de aro de metal, agora manchados. Ela
tinha obviamente passado uma noite difícil e no momento estava na companhia de
pelo menos uma dúzia de mulheres, algumas mais velhas, algumas chocantemente
jovens, a maioria prostitutas apanhadas pelo camburão da polícia. Marshall não
sabia se ria ou cuspia.
— Não vou poupar palavras... você
está com uma cara horrorosa — disse ele.
— Está apenas de acordo com a
minha profissão. Sou uma prostituta agora.
— É sim, é sim, uma de nós —
entoou uma moça rechonchuda. Marshall fez uma careta e abanou a cabeça.
— Que tipo de perguntas você andou
fazendo por lá?
— No momento, nenhuma piada tem
graça. Nenhuma história do que aconteceu na noite passada é engraçada. Não
estou rindo, estou fervendo. Aquele serviço era um insulto em primeiro lugar.
— Olhe, alguém tinha de escrever
sobre a folia.
— Mas nós acertamos em cheio no
nosso prognóstico; certamente não havia nada de novo debaixo do sol, nem da
lua, por assim dizer.
— Você foi presa — ofereceu ele.
— Por querer agarrar o leitor com
uma isca escandalosa. O que mais havia para se escrever?
— Vamos, leia para mim o que
escreveu. Uma espanhola no fundo da cela ofereceu:
— Ela tentou fazer negócio usando
o truque errado — e todas as celas arrebentaram em gargalhadas e vaias.
— Exijo ser posta em liberdade! —
disse Berenice, furiosa. — E você pisou em cola? Faça algo.
— Jimmy está telefonando a Kinney.
Paguei sua fiança. Vamos tirá-la daqui.
Berenice esperou um pouco até conseguir esfriar e então relatou:
— Respondendo às suas perguntas,
eu estava fazendo entrevistas locais, tentando obter algumas boas fotos, boas
declarações, boa qualquer coisa. Assumo que Nancy e Rosie aqui — ela
olhou em direção a duas jovens que poderiam ter sido gêmeas, e elas sorriram
para Marshall — ficaram querendo saber o que eu estava fazendo, circunavegando
constantemente pela área do carnaval com cara de perdida. Elas puxaram uma
conversa que realmente não levou a nada do ponto de vista de notícias, mas que
nos meteu as três em apuros quando Nancy quis passar a cantada num tira
disfarçado e acabamos indo parar em cana todas juntas.
— Acho que ela se sairia bem na
profissão — brincou Nancy, enquanto Rosie
fingia que lhe dava um tabefe. Marshall perguntou:
— E você não lhe mostrou sua
identidade, sua carteira de jornalista?
— Ele nem me deu chance! Eu lhe
disse quem era.
— Bem, ele a ouviu? — perguntou
Marshall às moças: — Ele ouviu o que ela disse?
Elas simplesmente deram de ombros,
mas Berenice engrenou a voz a toda e gritou:
— Este tom é alto o bastante para
você? Foi o que usei ontem à noite enquanto ele me botava as algemas!
— Bem-vinda a Ashton.
— Vou tomar a insígnia dele!
— Apenas fará seu peito ficar
verde.
Hogan ergueu a mão a fim de impedir outra explosão.
— Ei, olhe, não vale a
chateação...
— Existem outras escolas de
pensamento!
— Berenice...
— Tenho umas coisas que adoraria
ver impressas, com quatro colunas de largura, tudo acerca do Supertira e
daquele cretino paradão que é o chefe! E por falar nisso, onde está ele?
— Quem, você está falando do
Brummel?
— Ele tem um jeitinho muito
conveniente de desaparecer, sabia? Ele sabe quem sou. Onde está ele?
— Não sei. Não consegui entrar em
contato com ele hoje de manhã.
— E ele me deu as costas ontem à
noite!
— Do que você está falando?
Subitamente, ela fechou a boca,
mas Marshall leu seu rosto tão claramente
quanto se ali estivesse escrito: Não se esqueça de me perguntar mais tarde.
Naquele exato momento, a grande
porta se abriu e Jimmy Dunlop entrou.
— Falaremos a respeito depois —
disse Marshall. — Tudo certo, Jimmy?
Jimmy estava intimidado demais
pelos berros, exigências, vaias e apupos vindos das
gaiolas para responder de pronto. Mas uma coisa era certa: ele tinha a chave da
cela na mão, e isso era suficiente.
— Afastem-se da porta, por favor —
ordenou ele.
— Ei, quando é que a sua voz vai
mudar? — foi característica das respostas que obteve. Mas elas se afastaram da
porta. Jimmy a abriu, Berenice saiu rapidamente, e ele bateu a porta e a
trancou atrás dela.
— Muito bem — disse ele — você
está livre para sair sob fiança. Será notificada sobre a data em que terá de
comparecer perante o juiz.
— Quero apenas que me devolva minha
bolsa, minha carteira de jornalista, meu bloco de anotações e minha máquina
fotográfica! — sibilou a moça, dirigindo-se à porta.
Kate Hogan, uma ruiva séria e esbelta, havia tentado aproveitar bem o tempo enquanto esperava lá em cima, no vestíbulo do tribunal. Havia muito o que observar aqui depois do Festival, embora certamente nada que fosse agradável: alguns miseráveis sendo escoltados ou arrastados para dentro, lutando contra as algemas o tempo todo e despejando obscenidades; muitos outros estavam sendo soltos nessa hora após uma noite passada atrás das grades. Parecia quase a mudança de turnos em alguma fábrica bizarra, o primeiro turno saindo, algo desapontado, seus minguados pertences ainda em saquinhos de papel, e o segundo turno entrando, todo manietado e indignado. A maioria dos policiais era estranha vinda de outras partes, trabalhando horas extras para reforçar a minúscula equipe de Ashton, e não estavam sendo pagos para ser bondosos ou educados.
A mulher de bochechas caídas sentada à escrivaninha principal tinha dois
cigarros esfumaçando no cinzeiro, mas pouco tempo para tirar uma tragada entre
o processar de papéis de cada caso que entrava ou saía. Pelo que Kate podia
ver, a operação toda parecia muito apressada e desleixada. Havia alguns
advogados baratos passando os cartões, mas uma noite na cadeia parecia ser o
castigo máximo que qualquer uma daquelas pessoas teria de enfrentar, e a única
coisa que desejavam agora era sair da cidade em paz.
Kate meneou inconscientemente a
cabeça. Pensar na pobre Berenice
sendo arrebanhada por esse lugar adentro como se fosse ralé. A moça devia estar
furiosa.
Ela sentiu um braço forte mas meigo enlaçá-la, e deixou-se afundar em
seu abraço.
— Humm — disse — isso é o que
chamo de mudança agradável.
— Depois do que tive de ver lá
embaixo, preciso de um bálsamo — disse-lhe Marshall.
Ela colocou o braço em volta dele e o puxou para perto de si.
— É isto o que acontece todos os
anos? — perguntou ela.
— Não, ouvi dizer que piora cada
vez mais —. Kate meneou a cabeça outra vez, e Marshall acrescentou: — Mas o Clarim
terá algo a dizer sobre isso. Ashton bem que poderia usar uma mudança de
direção; a esta altura, eles já deviam estar enxergando isso.
— Como está Berenice?
— Ela será um colosso de redatora
por uns tempos. Está bem. Sobreviverá.
— Você vai conversar com alguém a
respeito de tudo isso?
— Alf Brummel não está por aí. Ele
é sabido. Mas eu o pegarei mais tarde
hoje e verei o que posso fazer. E não me importaria de receber meus vinte dólares de volta.
— Bem, ele deve estar ocupado. Eu
detestaria ser o delegado num dia como hoje.
— Oh, ele detestará o cargo muito
mais se isso estiver em meu poder.
A volta de Berenice de uma noite
de encarceramento foi marcada por um semblante carregado e passos secos,
batendo com força no linóleo. Ela também
carregava um saco de papel, furiosamente rebuscando dentro dele para
assegurar-se de que continha todas as suas coisas.
Kate estendeu os braços a fim de dar um abraço reconfortante em Berenice.
— Berenice, como está?
— Brummel é um nome que logo será
lama, o nome do prefeito será estéreo, e não poderei imprimir o que o nome
daquele tira será. Estou indignada, posso estar constipada e preciso
desesperadamente de um banho.
— Olhe — disse Marshall — desconte
a raiva na máquina de escrever, dê uns tapas nas moscas. Preciso dessa
história do Festival para a edição de terça-feira.
Berenice imediatamente rebuscou os
bolsos e puxou para fora um punhado de papel higiênico amassado, colocando-o com força na mão de Marshall.
— Sua fiel repórter, sempre a
postos — disse ela. — O que mais havia para fazer lá além de olhar a parede
descascar e esperar em fila a minha vez de usar o vaso sanitário? Desconfio que
vai achar toda a reportagem bem descritiva, e dei um jeito de inserir algumas
entrevistas in loco com umas prostitutas presas para dar mais sabor.
Quem sabe? Talvez uma reportagem dessas faça esta cidade perguntar-se onde
chegou.
— Alguma foto? — perguntou
Marshall. A moça entregou-lhe um rolo de filme.
— Você deve encontrar algo aí que
possa usar. Ainda estou com filme na máquina mas esse é de interesse pessoal
para mim.
Marshall sorriu. Estava bem
impressionado.
— Tire folga hoje, por minha
conta. As coisas parecerão melhores amanhã.
— Talvez até lá eu já tenha recobrado
minha objetividade profissional.
— Vai cheirar melhor.
— Marshall! — disse Kate.
— Tudo bem — disse Berenice. — Ele
me joga esse tipo de coisa o tempo todo.
A essa altura, ela havia apanhado
a bolsa, a carteira de jornalista e a máquina e jogou vingativamente o saco da papel amassado numa lata de lixo,
perguntando:
— E como está a situação de
transporte?
— Kate trouxe o seu carro —
explicou Marshall. — Se você lhe desse uma carona até a casa, seria melhor para
mim. Tenho de ver se consigo resolver as coisas lá no jornal e depois vou
tentar encontrar Brummel.
Os pensamentos de Berenice
engataram prontamente nessa marcha.
— Brummel, certo! Tenho de falar
com você.
Ela começou a arrastar Marshall para o lado antes que este
pudesse dizer sim ou não, e ele conseguiu apenas dar uma olhada em Kate pedindo
desculpas antes que Berenice e ele dobrassem um canto e ficassem fora de vista,
perto dos banheiros.
Berenice abaixou a voz.
— Se você vai falar com o Delegado
Brummel hoje, quero que fique sabendo o que eu sei.
— Além do óbvio?
— Que ele é um ordinário, um
covarde e um cretino? Sim, além disso tudo. São pedaços, observações
desconexas, mas talvez venham a ter sentido algum dia. Você disse que eu sou
boa para enxergar detalhes. Acho que vi o seu pastor e ele juntos na folia
ontem à noite.
— O pastor Young?
— A Igreja Cristã Unida de Ashton,
certo? Presidente do corpo local de pastores, endossa tolerância religiosa e
condena a crueldade para com animais.
— Sim, isso mesmo.
— Mas Brummel nem vai à sua
igreja, vai?
— Não, ele vai àquela igreja
pequenina.
— Eles estavam lá atrás da barraca
dos dardos, em quase total escuridão, com três outras pessoas, uma loira, um
velhote baixote e atarracado, e uma víbora que mais parecia um fantasma, de
cabelos pretos e óculos escuros. Óculos escuros de noite!
Marshall ainda não estava impressionado.
Ela continuou como se estivesse
tentando vender-lhe algo.
— Acho que cometi um pecado
capital contra eles: tirei uma foto, e, pelo que pude perceber, não gostaram
nada. Brummel ficou bem nervoso e, ao falar comigo, gaguejava. Young pediu-me
em tom firme que saísse, dizendo: “Esta é uma reunião particular.” O gorducho
deu-me as costas e a mulher fantasmagórica ficou simplesmente a olhar para mim
com a boca aberta.
— Você já pensou em como encarará
tudo isso depois de um bom banho e uma noite decente de sono?
— Espere eu terminar e então
saberemos, está bem? Ora, foi logo depois daquele pequeno incidente que Nancy e
Rosie se agarraram a mim. O que quero dizer é que não fui eu que as procurei,
elas me procuraram, e logo a seguir fui presa e minha máquina confiscada.
Ela percebeu que não estava conseguindo fazer que ele compreendesse. Ele
olhava impaciente ao redor, o corpo já inclinado de volta na direção do
vestíbulo.
— Está bem, está bem, só mais uma
coisa — disse ela, tentando segurá-lo ali. — Brummel estava lá, Marshall. Ele
viu tudo.
— Tudo o quê?
— Eu ser presa! Eu estava tentando
explicar quem era ao tira, estava tentando mostrar-lhe minha carteira de
jornalista, mas ele apenas me tomou a bolsa e a máquina e me algemou. Olhei
para o lado da barraca de dardos de novo e vi Brummel observando tudo. Ele
sumiu imediatamente, mas juro que o vi olhando tudo o que estava acontecendo!
Marshall, repassei tudo o que aconteceu ontem à noite, e examinei tudo, e
examinei novamente e acho... bem, não sei o que pensar, mas tem de significar
alguma coisa.
— Para completar o cenário —
aventurou Marshall — o filme da sua máquina sumiu.
Berenice examinou a máquina.
— Oh, ainda está aqui, mas isso
não quer dizer nada.
Hogan deu um suspiro enquanto
considerava o que ela havia dito.
— Está bem, tire o restante das
fotos, e veja se arranja algo que possamos usar, certo? Depois revele o filme e
então veremos. Podemos ir?
— Será que eu já cometi erros
impulsivos, imprudentes, por excesso de confiança como este antes?
— Claro que sim.
— Ora, faça-me o favor! Não dá
para confiar um pouquinho, pelo menos desta vez?
— Tentarei fechar os olhos.
— Sua esposa está esperando.
— Eu sei, eu sei.
Marshall não sabia bem o que dizer a Kate quando se reuniram a
ela.
— Desculpe o que aconteceu... —
murmurou ele.
— Então — disse Kate, tentando
apanhar o assunto no ponto em que haviam interrompido — estávamos falando de
condução. Berenice, tive de trazer seu carro aqui para você tê-lo a fim de ir
para casa. Se você me deixar em casa...
— Sim, certo, certo — disse
Berenice.
— E, Marshall, tenho uma porção de
coisas que fazer hoje à tarde. Você pode apanhar a Sandy depois da aula de
psicologia dela?
Marshall não disse nada, mas seu rosto mostrava um sonoro não.
Kate pegou um molho de chaves na bolsa e o entregou a Berenice.
— Seu carro está logo ali na
esquina, próximo do nosso, no espaço reservado à imprensa. Por que você não vai
buscá-lo?
Berenice entendeu a deixa e saiu.
Kate segurou Marshall com um braço amoroso e examinou seu rosto por um momento.
— Ei, vamos. Tente. Pelo menos uma
vez.
— Mas brigas de galo são ilegais
neste estado.
— Se quiser saber o que penso, ela
puxou o pai.
— Não sei por onde começar — disse
ele.
— Estar lá para apanhá-la
significará algo. Aproveite a chance. Enquanto se encaminhavam na direção da
porta, Marshall, correndo os olhos ao redor, deixou seus instintos examinarem
a situação.
— Você entende esta cidade, Kate?
— disse, afinal. — É como um tipo de doença. Todo o mundo por aqui está com a
mesma moléstia esquisita.
Uma manhã ensolarada sempre ajuda a fazer com que os problemas da noite anterior pareçam menos graves. Era nisso que Hank Busche estava pensando ao abrir a porta de tela da frente da casa e pisar no pequeno degrau de concreto. Ele morava numa casa de um quarto, de baixo aluguel, não longe da igreja, uma caixinha branca plantada numa esquina, paredes chanfradas por fora, com pequeno quintal limitado por uma cerca viva, e um teto sujo. Não era muita coisa, e às vezes parecia menos ainda, mas era o máximo que o seu salário de pastor lhe permitia. Ora, ele não estava reclamando. Ele e Mary se encontravam confortáveis e abrigados, e a manhã estava linda.
Esse era o dia em que podiam
dormir até mais tarde, e dois litros de
leite esperavam na base dos degraus. Ele os apanhou, antecipando o prazer de
uma tigela de cereal encharcado em leite, pequena distração de suas provações
e tribulações.
Ele já tinha passado por dificuldades antes. Seu pai havia
sido pastor enquanto Hank era menino, e os dois haviam atravessado juntos muita
glória e muitos apertos, do tipo ligado a plantar igrejas, pastorear, ser
pregador itinerante. Hank soubera desde criança que essa era a vida que queria,
a forma pela qual desejava servir ao Senhor. Para ele, a igreja sempre fora um
lugar muito emocionante onde se trabalhar. Fora emocionante ajudar o pai nos
primeiros anos, emocionante passar pela faculdade bíblica e depois pelo
seminário, e então dois anos como pastor estagiário. Era emocionante também
agora, mas lembrava a esfuziante sensação que os texanos devem ter sentido no
Álamo. Hank tinha apenas vinte e seis anos, e geralmente era cheio de ardente
entusiasmo; mas este pastorado, o primeiro, parecia um lugar difícil de pegar
fogo. Alguém havia apagado o último resquício de chama, e ele não sabia o que pensar
a respeito. Por algum motivo, havia sido eleito pastor, o que significava que
alguém nessa igreja desejava o seu tipo de ministério, mas então havia os
outros, aqueles que... tornavam a coisa emocionante. Tornavam-na emocionante
todas as vezes que ele pregava acerca do arrependimento; tornavam-na
emocionante todas as vezes que ele confrontava o pecado na comunidade;
tornavam-na emocionante todas as vezes que ele falava da cruz de Cristo e da
mensagem da salvação. Nesse ponto, era mais a fé e a segurança que Hank tinha
no fato de estar onde Deus queria que estivesse do que outro fator qualquer que
o mantinha firme nos seus propósitos, inabalavelmente em pé, apesar de atacado.
Ora, bem, pensou Hank consigo mesmo, pelo menos desfrute a manhã. O Senhor a
colocou aqui para você. Tivesse ele entrado de costas na casa sem se voltar,
ter-se-ia poupado um insulto, e mantido seu espírito leve. Mas ele se voltou
para entrar, e imediatamente viu as imensas letras, negras, escorridas, pichadas na frente da casa: “VOCÊ É UM HOMEM MORTO, ...................” A última palavra era obscena. Os
seus olhos viram aquilo, e então correram lentamente de um lado a outro da casa,
absorvendo tudo o que viam. Era uma dessas coisas que demora para registrar.
Tudo o que ele pôde fazer foi ficar parado um instante, primeiro tentado
imaginar quem teria feito aquilo, depois querendo saber por que, e então
querendo saber se daria para limpar. Ele olhou mais de perto, tocou as letras
com o dedo. Tinha de ter sido feito durante a noite; já estava bem seco.
— Benzinho — veio de dentro a voz
de Mary — você está com a porta aberta.
— Hummmmm... — foi tudo o que ele
disse, não tendo palavra melhor. Realmente não queria que ela soubesse.
Entrou em casa, fechou com firmeza
a porta e reuniu-se a Mary, linda jovem de cabelos longos, para o desjejum: uma
tigela de cereal e torradas quentes com manteiga.
Aqui, apesar de um céu nublado, Hank tinha um cantinho ensolarado que era
a mimosa e brincalhona esposa, com sua risadinha melodiosa. Ela era uma boneca
e possuía fibra também. Hank muitas vezes sentia remorsos pelo fato de ela ter
de enfrentar as lutas que estavam enfrentando. Afinal, ela podia ter-se casado
com um contador ou com um vendedor de seguros, estável e maçante, mas ela lhe
fornecia tremendo apoio, sempre presente, sempre acreditando que Deus daria um
jeito e sempre acreditando em Hank também.
— O que há de errado? — perguntou
ela de imediato.
Bolas! Faço o que posso para esconder, tento agir normalmente,
mas mesmo assim ela percebe, pensou Hank.
— Hummmmm... — começou ele a
dizer.
— Ainda chateado com a reunião do
conselho? Áí está a sua saída, Busche.
— Claro, um pouco.
— Nem ouvi você chegar ontem à
noite. A reunião durou até muito tarde?
— Não. Alf Brummel teve de sair para uma reunião importante da qual ele não quis falar,
e os outros, você sabe como é, apenas disseram o que queriam e se foram,
deixando-me ali para me recuperar por conta própria. Fiquei por lá e orei
durante algum tempo. Acho que funcionou. Senti-me bem depois.
Ele se animou um pouquinho.
— Para falar a verdade, realmente
senti que o Senhor me confortava ontem à noite.
— Acho que eles escolheram uma
hora bem esquisita para convocar uma reunião do conselho, logo durante o
Festival — disse ela.
— E na noite de domingo! — disse
ele através dos flocos de milho. — Eu mal tinha acabado de dar início ao culto
e lá estavam eles convocando uma reunião.
— A respeito da mesma coisa?
— É, acho que estão apenas usando
Lou como desculpa para causarem encrenca.
— Bem, o que você lhes disse?
— A mesma coisa, vez após vez.
Apenas fizemos o que a Bíblia manda: eu procurei o Lou, depois eu e o John
procuramos o Lou, e depois apresentamos o problema ao restante da igreja, e
então nós, bem, nós o eliminamos da comunhão.
— Bem, parecia mesmo ser o que a
congregação decidiu. Mas por que o conselho não consegue acatar a decisão?
— Eles não sabem ler. Os Dez
Mandamentos não fazem referência ao adultério?
— Eu sei, eu sei.
Hank pôs a colher na mesa a fim de poder gesticular melhor.
— E eles estavam bravos comigo
ontem à noite! Começaram a jogar todo aquele negócio de não julgar para não ser
julgado para cima de mim...
— Quem?
— Ora, a mesma panelinha do
Brummel: Alf, Sam Turner, Gordon
Mayer... você sabe, a Velha Guarda.
— Bem, não deixe que eles o
intimidem!
— Pelo menos não me farão mudar de
idéia. Mas não sei que tipo de segurança no emprego essa atitude me garante.
Agora Mary estava ficando
indignada.
— Bem, não dá para entender o que
há de errado com Alf Brummel. Será que ele tem algo contra a Bíblia ou a
verdade ou o quê? Se não fosse essa questão, certamente seria alguma outra coisa!
— Jesus o ama, Mary — acautelou
Hank. — Acontece que ele se acha sob pesada condenação, é culpado, é pecador, e
sabe disso, e gente como nós sempre há de incomodar gente como ele. O pastor
anterior pregou a Palavra e Alf não gostou. Agora eu estou pregando a Palavra e
ele continua a não gostar. Ele tem muita influência na igreja, por isso acho
que pensa que pode ditar o que sai do púlpito.
— Mas não pode, ora essa!
— Não no meu caso, pelo menos.
— Então por que ele não procura
outra igreja? Hank estendeu o dedo, de modo dramático.
— Essa, cara esposa, é uma boa
pergunta! Parece haver um método na loucura dele, como se fosse sua missão na
vida destruir pastores.
— É apenas o quadro que eles
pintam de você. Você não é assim!
— Hummmm... sim, pintar. Você está
pronta?
— Pronta para quê?
Hank inspirou fundo, expeliu o ar,
e então olhou para ela.
— Tivemos uns visitantes durante a
noite. Eles... eles picharam a frente da casa.
— O quê? Nossa casa?
— Bem... a casa do nosso senhorio.
Ela se ergueu.
— Onde? — perguntou, dirigindo-se
à porta da frente, os chinelos felpudos raspando na calçada.
— Oh, não!
Hank juntou-se a ela e, juntos,
absorveram o quadro. Ainda estava lá, mais real do que nunca.
— Ora, isso me deixa fula da vida!
— declarou ela, mas agora estava chorando. — O que fizemos para merecer isso?
— Acho que estávamos falando sobre
esse assunto agora mesmo — sugeriu Hank.
Mary não entendeu o que ele disse, mas tinha uma teoria
própria, a mais óbvia de todas.
— Talvez o Festival... ele sempre
traz à tona o que há de pior nas pessoas.
Hank tinha sua própria teoria, mas nada disse. Tinha de ser alguém da igreja, pensou. Ele havia sido chamado de uma porção de coisas: hipócrita, molóide, encrenqueiro ultramoralista. Havia até sido acusado de ser homossexual e de bater na esposa. Algum membro da igreja, enraivecido, podia ter pichado a parede, talvez um amigo de Lou Stanley, o adúltero, talvez o próprio Lou. Ele provavelmente jamais viria a saber, mas tudo bem. Deus sabia.