—
Departamento de Polícia — disse a voz de Sara.
—
Oi, Sara, aqui é Marshall Hogan. Posso dar uma palavrinha com o Alf?
—
Ele não está no escritório no momento... — Sara soltou prolongado suspiro e
acrescentou em tom de voz muito estranho, muito baixo:
—
Marshall... Alf Brummel não quer falar com você. Marshall teve de pensar por um
instante antes de dizer:
—
Sara, você está envolvida com a coisa? O tom de Sara foi de ofensa.
—
Talvez esteja, não sei, mas Alf me disse que eu não devo completar nenhuma
ligação sua e que eu devo contar a ele quais são as suas intenções.
—
Ah...
—
Olhe, não sei onde termina a amizade e onde começa a ética profissional, mas eu
bem que gostaria de saber o que está acontecendo aqui.
—
O que está acontecendo aí?
—
O que você me dá em troca? Marshall sabia que se estava arriscando.
—
Acho que posso encontrar algo de valor igual. Sara teve um instante de
hesitação.
—
Pelo que tudo indica, você se tornou o pior inimigo dele. De vez em quando ouço
o seu nome através da porta do escritório, e nunca proferido de maneira
agradável.
—
Com quem ele está falando quando profere o meu nome?
—
Ah-ah. É a sua vez.
—
Está bem. Olhe, nós falamos sobre ele também. Falamos bastante sobre ele, e se
tudo o que descobrimos for verdade, sim, eu poderia mesmo ser o seu pior
inimigo. Agora, com quem ele fala?
—
Alguns eu já vi antes, alguns nunca vi. Ele fez diversas ligações para Juleen
Langstrat.
—
Quem mais?
—
O juiz Baker foi um deles, e diversos membros da câmara dos vereadores...
—
Malone?
—
Sim.
—
Everett?
—
Sim.
—
Preston?
—
Não.
—
Goldtree?
—
Sim, e mais outras pessoas importantes, e depois Spence Nelson do Departamento
de Polícia de Windsor, o mesmo departamento que forneceu homens para ajudar no
Festival. Quero dizer que ele tem falado com uma porção de gente, muito mais do
que o normal. Alguma coisa está acontecendo. O que é?
Marshall precisava ter cuidado.
—
Pode estar relacionado com o Clarim e comigo, e pode não estar.
—
Não sei se aceitarei isso.
—
Não sei se posso confiar em você. De que lado você está?
—
Depende de quem for o bandido. Sei que a reputação de Alf é duvidosa. E a sua?
Marshall sorriu diante da coragem dela.
—
Você terá de julgar por si mesma. Tento realmente publicar um jornal honesto, e
temos feito uma investigação muito extensa não apenas do seu chefe mas também
de praticamente todos os mandachuvas da cidade...
—
Ele sabe disso. Todos eles sabem.
—
Bem, já falei com quase todos eles. Alf é o próximo na minha lista.
—
Acho que ele sabe disso também. Ele me disse hoje pela manhã que não
queria falar com você. Mas está falando pelos cotovelos com todos os outros, e
acabou de sair com uma pilha de papéis debaixo do braço, rumo a outra reunião
sigilosa com alguém.
—
Alguma idéia a respeito do que eles vão fazer comigo?
—
Oh, pode estar certo de que farão alguma coisa, e tenho a impressão de que
estão carregando a arma com carga de chumbo pesado. Considere-se avisado.
—
E eu a aconselharia a ser um anjo doce e ignorante que não sabe nada e não diz
nada. As coisas podem ficar pretas.
—
Se ficarem, posso procurar as respostas com você, ou pelo menos conseguir uma
passagem para outra cidade?
—
Acertaremos alguma coisa.
—
Eu lhe darei qualquer coisa que descobrir se você me mantiver a salvo.
Marshall percebeu pela voz dela que a moça estava apavorada.
—
Ei, calma, lembre-se de que não lhe pedi que se envolvesse.
—
Eu não pedi para me envolver. Aconteceu. Conheço Alf Brummel. Acho melhor ter
você como meu amigo.
—
Manterei você informada. Agora desligue e aja com naturalidade.
Foi o que ela fez.
—
Hogan já tem o bastante para preencher a primeira página! — disse Brummel com
ar infeliz. — Você me censurou por demorar em dar um jeito em Busche, mas pelo
que estou vendo, você deixou Hogan com o caminho livre desde o princípio.
—
Acalme-se, Alf — disse Langstrat de modo tranqüilizador. — Acalme-se.
—
Ele virá atrás de mim para me entrevistar a qualquer hora, da mesma forma que
procurou todos os outros. O que sugere que eu lhe diga?
Langstrat mostrou-se um pouco chocada com a burrice
dele.
—
Não diga nada, é claro!
Brummel andou pelo aposento, exasperado.
—
Não preciso, Juleen! A esta altura nada do que eu diga ou deixe de dizer não
fará nenhuma diferença mesmo. Ele já tem tudo o de que precisa: sabe da venda
das propriedades, tem boas pistas em todas as vendas judiciais das casas com
impostos atrasados, sabe tudo a respeito da companhia e da Sociedade, e tem
boas informações acerca do desvio de fundos da faculdade... tem até prova mais
do que suficiente para acusar-me de prisão indevida!
Langstrat sorriu satisfeita.
—
Sua espiã saiu-se muito bem.
—
Ela me trouxe uma porção deste material hoje. Ele está organizando tudo num
arquivo no momento. Está prestes a dar o seu golpe, eu diria.
Langstrat reuniu todo o material em ordem, colocou-o de
volta na pasta, e reclinou-se na cadeira.
—
Adorei.
Brummel fitou-a embasbacado e sacudiu a cabeça.
—
Você pode sair perdendo neste jogo algum dia, você sabe. Todos nós
podemos sair perdendo!
—
Adoro um desafio — exultou ela. — Adoro enfrentar um adversário forte. Quanto
mais forte o adversário, mais estimulante a vitória! Mais do que tudo, adoro
ganhar —. Ela sorriu, realmente satisfeita. — Alf, já tive minhas dúvidas a seu
respeito, mas acho que você se saiu muito bem. Acho que deve estar presente
para ver o Sr. Hogan cair na armadilha.
—
Só acreditarei quando o vir com meus próprios olhos.
—
Oh, você verá. Verá.
Durante o dia, Marshall e Berenice organizavam seu
material e permaneciam no escritório. Marshall levou Kate para jantar fora uma noite.
Berenice ficou em casa e tentou ler um romance.
Alf Brummel trabalhava em horário regular, mas não tinha
muito o que dizer a Sara ou a qualquer outra pessoa acerca de nada. Os Colemans
visitaram parentes de outra cidade. Os Forsythes aproveitaram a oportunidade
para fazer um balanço na serraria. O restante do Remanescente continuou na vida
de sempre.
Era estranha a calma que pairava sobre tudo. O céu estava enevoado, o sol
era um borrão luminoso redondo, o ar estava quente e pegajoso. Tudo quieto.
Mas ninguém conseguia se «descontrair.
Bem acima da cidade, no topo da protuberância acinzentada de uma velha
árvore morta havia muito tempo, qual enorme urubu negro, sentava-se Rafar,
Príncipe da Babilônia. Outros demônios o cercavam, esperando sua próxima
ordem, mas Rafar se calava. Hora após hora, a cara franzida, sentado, ele
olhava a cidade em baixo com lentos movimentos dos olhos amarelos.
Em outra colina, no outro lado da cidade e na direção exatamente oposta à da
grande árvore morta onde se encontrava Rafar, Tal e seus guerreiros se
ocultavam no bosque. Eles também corriam o olhar pela cidade, e sentiam a calmaria, o silêncio, a sinistra apatia do ar.
Guilo estava ao lado do seu capitão, e conhecia essa
sensação. Havia sempre sido a mesma através dos séculos.
—
Pode acontecer a qualquer minuto agora. Estamos prontos? — perguntou ele a Tal.
—
Não — disse Tal terminantemente, correndo o olhar intenso pela cidade. — Nem
todo o Remanescente está reunido. Os que se reuniram não estão orando, não o
suficiente. Não temos o número nem a força.
—
E a nuvem negra de espíritos acima do Valente se multiplica por cem a cada dia.
Tal ergueu os olhos ao céu de Ashton.
—
Eles encherão o céu de horizonte a horizonte.
Do seu esconderijo, eles podiam enxergar o outro lado
do vale, a uma distância de diversos quilômetros, e viam seu hediondo adversário sentado na
grande árvore morta.
—
Sua força não diminuiu — disse Guilo.
—
Ele está mais do que pronto para a batalha — disse Tal — e pode escolher o
tempo e o lugar que quiser, e seus melhores guerreiros. Poderia atacar em cem
frentes ao mesmo tempo.
Guilo apenas meneou a cabeça.
—
O senhor sabe que não podemos defender tantas frentes assim. Nesse exato
momento, um mensageiro veio voando apressado em sua direção.
—
Capitão — disse ele, pousando perto de Tal — trago notícias do covil do
Valente. Algo se está movendo lá. Os demônios estão ficando impacientes.
—
Está começando — disse Tal, e essa palavra foi passada a todos os guerreiros. —
Guilo!
Guilo apresentou-se.
—
Capitão!
Tal levou Guilo a um lado.
—
Tenho um plano. Quero que você leve um pequeno contingente e monte guarda ao
vale...
Guilo não costumava discutir com o capitão, mas:
—
Um pequeno contingente? Para vigiar o Valente?
Os dois continuaram a conferenciar, Tal explicando suas
instruções,
Guilo meneando a cabeça com ar de dúvida. Depois de bom tempo, Guilo voltou
para o grupo, escolheu seus guerreiros e disse:
—
Vamos!
Com grande movimentação das asas, as duas dúzias de guerreiros serpearam e
ziguezaguearam pela floresta até ter-se distanciado o suficiente para voar a
céu aberto.
Tal convocou um forte guerreiro.
—
Tome o lugar de Signa na guarda da igreja e diga-lhe que venha aqui.
A seguir, ele chamou outro mensageiro.
—
Diga a Krioni e Triskal que despertem a Hank e o façam orar, e também todo o
Remanescente.
Em um instante Signa chegou.
—
Venha comigo — disse Tal. — Vamos conversar.
A tarde tinha transcorrido calma para Hank e Mary. Mary
havia passado a maior parte na pequena horta atrás da casa, enquanto Hank consertava um canto da cerca
do quintal. Enquanto Mary procurava ervas daninhas entre os seus legumes, notou
que as marteladas de Hank foram ficando cada vez mais esporádicas até cessarem
totalmente. Ela olhou para o lado dele e o viu sentado, o martelo ainda na
mão, orando.
Ele parecia muito perturbado, de modo que ela
perguntou:
—
Você está bem?
Hank abriu os olhos, e sem olhar para cima sacudiu a
cabeça.
—
Não me estou sentindo nada bem. Ela foi até onde ele estava.
—
O que é?
Hank sabia de onde vinha a sensação.
—
O Senhor, eu acho. Sinto que algo está muito errado. Algo terrível está
prestes a acontecer. Vou ligar para os Forsythes.
Nesse exato momento o telefone tocou. Hank entrou na
casa para atender. Era Andy Forsythe.
—
Desculpe incomodar, Pastor, mas queria saber se você está sentindo uma
irresistível necessidade de orar agora. Eu sei que estou.
—
Venha aqui — disse Hank. A cerca teria de esperar.
Noite adentro, o exército celestial esperou, enquanto Hank, os Forsythes,
e diversos outros oravam. Rafar continuava sentado na árvore morta, os olhos
principiando a fulgurar na escuridão cada vez mais espessa. Os dedos em garras
continuavam a tamborilar nos joelhos; a fronte permanecia enrugada em intensa
carranca. Atrás dele, um exército de demônios começou a reunir-se, aquecido em
antecipação e muito atento, esperando a ordem.
O sol se pôs no oeste por trás das colinas; o céu estava banhado
em rubras chamas.
Rafar, sentado, esperava. O exército demoníaco esperava.
Aos olhos da mente em transe de Langstrat, a mensageira
apareceu como uma jovem, toda vestida de branco, com esvoaçantes cabelos loiros que
quase chegavam ao chão e se mantinham em constante movimento, soprados pela
brisa.
—
Onde está o meu senhor? — perguntou Langstrat à mensageira.
—
Ele aguarda acima da cidade, vigiando-a — veio a resposta da moça. — Seus
exércitos esperam prontos a sua palavra.
—
Está tudo pronto. Ele pode aguardar o meu sinal.
—
Sim, senhora.
A mensageira partiu qual linda gazela, saltitando
graciosamente.
A mensageira partiu, um imundo pesadelo negro de
criatura, levado por asas membranosas; partiu a fim de levar o aviso a Rafar
que ainda aguardava.
A escuridão aumentou sobre Ashton; a vela no quarto de Langstrat
derreteu até tornar-se redonda chama evanescente em uma poça de cera, a tinta
negra da noite dominando sua luz fraca, alaranjada. Langstrat despertou, abriu
os olhos embaçados, e ergueu-se da cama. Com um sopro muito leve ela apagou a
vela e, ainda meio estonteada, dirigiu-se à sala de estar onde outra vela
queimava na mesinha de centro, a cera escorrendo e endurecendo em dedos
macabros por cima da foto de Ted Harmel sobre a qual a vela fora colocada.
Langstrat caiu de joelhos ao lado da mesinha, a cabeça erguida, os olhos
semicerrados, os movimentos lentos e lânguidos. Como que flutuando no espaço,
seus braços se ergueram por sobre a vela, abrindo um dossel invisível sobre a
chama, e depois, muito baixinho, o nome de um deus antigo começou a se formar
em seus lábios vez após vez. O nome, um som gutural, áspero, jorrava como se
ela estivesse cuspindo centenas de pedregulhos invisíveis, e a cada menção do
nome, o seu transe se aprofundava. O nome brotava, mais alto e mais depressa, e
os olhos de Langstrat se arregalaram e permaneceram sem piscar, olhando
fixamente. Seu corpo pôs-se a estremecer e a tremer; a voz tornou-se um
lúgubre gemido.
Rafar a tudo ouvia do lugar onde estava sentado
esperando. Sua própria respiração começou a se aprofundar e explodir das narinas como
pútrido vapor amarele. Seus olhos se entrefecharam, suas garras se
flexionaram.
Langstrat oscilava e estremecia, chamando o nome,
chamando o nome, os olhos fixos na chama da vela, chamando o nome.
E então ela ficou imóvel.
Rafar olhou para cima, muito quieto, muito atento,
escutando.
O tempo se deteve. Langstrat permaneceu imóvel, os braços estendidos
sobre a vela.
Rafar escutava.
O ar começou a fluir lentamente para dentro da boca e das narinas de
Langstrat, seus pulmões se encheram, e então, com um brado súbito que veio das
profundezas do seu ser, ela baixou as mãos como uma armadilha, batendo com elas
sobre o pavio da vela, apagando a chama.
—
Partam! — gritou Rafar, e centenas de demônios arremeteram ao céu como um bando
trovejante de morcegos, voando ao longo de uma trajetória reta e nivelada rumo
ao norte.
—
Olhe — disse um guerreiro angélico, e Tal e seu exército viram o que parecia um
negro enxame recortado contra o céu noturno, um alongado tufo de fumaça.
—
Dirigem-se ao norte — observou Tal. — Para longe de Ashton. Rafar observou o
esquadrão desaparecer a grande velocidade e permitiu que um riso
zombeteiro lhe descobrisse as presas.
—
Mantê-lo-ei na incerteza, Capitão do Exército! Tal gritou as ordens.
—
Cubram Hogan e Busche! Acordem o Remanescente! Uma centena de anjos desceram
planando à cidade.
Tal ainda conseguia ver Rafar sentado na grande árvore morta.
—
Afinal, quais são os seus planos, Príncipe da Babilônia? — murmurou ele.
Por um instante, não teve a menor idéia quanto a quem estava do outro
lado ou do que a pessoa estava falando. A voz era descontrolada, histérica,
esganiçada.
—
Ei, acalme-se e fale mais devagar senão desligo! — disse Marshall bruscamente,
a voz rouca. De repente, ele reconheceu a voz. — Ted? É Ted?
—
Hogan — veio a voz de Ted Harmel — eles vieram me pegar. Estão por toda a
parte!
Marshall estava acordado agora. Pressionou o aparelho
contra a orelha, tentando entender o que Ted dizia.
—
Não estou ouvindo! O que disse?
—
Eles descobriram que eu falei! Estão por toda a parte!
—
Quem?
Ted começou a chorar e a berrar ininteligivelmente, e aquele som foi
suficiente para fazer com que as entranhas de Marshall se crispassem. Ele tateou por cima do criado-mudo à procura da caneta e bloco.
—
Ted! — gritou no telefone, e Kate, assustada, voltou-se bruscamente para
olhá-lo. — Onde está você? Na sua casa?
Kate podia ouvir os gritos e gemidos saindo do
aparelho, e eles a deixaram nervosa.
—
Marshall, quem é? — exigiu ela.
Marshall não podia responder; estava ocupado demais tentando obter
uma resposta clara de Ted Harmel.
—
Ted, escute, diga-me onde está —. Pausa. Outros gritos. — Como chego aí? Eu
disse, como chego aí? — Marshall pôs-se a rabiscar apressadamente. — Tente sair
se puder...
Kate ouvia, mas não conseguia entender o que a pessoa do outro lado da
linha dizia. Marshall disse:
—
Escute, vou levar pelo menos meia hora para chegar aí, e isso se eu conseguir
encontrar um posto de gasolina aberto. Não, eu irei, apenas agüente firme. Está
bem? Ted? Está bem?
—
Quem é Ted?
—
Está bem — disse Marshall no telefone. — Dê-me um tempinho e chegarei aí.
Acalme-se. Até já.
Ele desligou o telefone e saltou da cama.
—
Mas, afinal, quem era? — Kate precisava saber.
Marshall agarrou as roupas e começou a vestir-se
apressadamente.
—
Ted Harmel, lembra-se, eu lhe falei a respeito dele...
—
Você não está indo lá esta noite, está?
—
O cara está ficando maluco, ou algo assim. Não sei.
—
Volte para a cama!
—
Kate, tenho de ir! Não posso perder esse contato.
— Não! Não acredito! Você não pode estar falando sério! Marshall estava falando sério. Despediu-se de Kate com um beijo antes mesmo que ela chegasse a acreditar que ele estava indo de fato, e então ele já não estava ali. Ela permaneceu sentada na cama por uns momentos, atordoada, depois caiu de costas enraivecida, fitando o teto enquanto ouvia o carro dando ré e arremetendo-se noite a adentro.