quinta-feira, 6 de maio de 2021

Este mun do tenebroso - volume 01 - Capítulo 24


 Marshall dirigiu quase cinqüenta quilômetros ao norte, atra­vessando a cidadezinha de Windsor e indo um pouco adiante. Surpreendeu-se ao ver como Ted Harmel ainda morava perto de Ashton, especialmente depois de se terem encon­trado nas montanhas a mais de cento e cinqüenta quilômetros na

Rodovia 27. Esse cara tem de estar louco, pensou Marshall, e talvez eu, ao concordar com esta bagunça, esteja tão louco quanto ele. O cara é paranóico, um verdadeiro lunático.

Mas ele bem que soara convincente no telefone. Além disso, era uma oportunidade de reabrir as comunicações, após aquela única entrevista.

Marshall teve de voltar algumas vezes e se reorientar por aquele labirinto de estradas sinuosas, sem sinalização, em seus esforços de entender as instruções de Harmel. Quando ele afinal localizou a casa de laterais de madeira no fim de uma longa estrada de pedregulhos, uma faixa de luz rosada crescia no horizonte. Ele havia levado hora e meia para chegar. Sim, lá estava o velho carro de Harmel, parado na entrada. Marshall encostou atrás dele e desceu.

A porta da frente estava aberta, a janela quebrada. Marshall agachou-se um instante atrás do seu carro a fim de estudar a situação. Não estava gostando nada da sensação que o invadia; suas entranhas já haviam passado por esse tipo de dança antes, na noite em que Sandy fugira e, como daquela vez, não parecia haver razão óbvia, visível. Ele detestava admitir, mas estava com medo de dar mais um passo.

— Ted? — chamou ele, não muito alto. Não houve resposta.

A coisa não estava nada boa. Marshall forçou-se a dar volta no carro, caminhar pela calçada e entrar na varanda muito devagar, com muito cuidado. Mantinha-se à escuta, olhando, sentindo. Não havia som algum, exceto as batidas violentas do seu coração. Seus sapatos rangiam de leve nos cacos do vidro da janela. O som parecia ensur­decedor.

Vamos, Hogan, toque em frente.

— Ted? — chamou ele através da porta aberta. — Ted Harmel? Sou Marshall Hogan.

Ninguém respondeu, mas essa tinha de ser a casa do Ted. Lá estava o paletó dele, pendurado no cabide; na parede acima da mesa de jantar estava emoldurada a primeira página de uma da edições do Clarim.

Ele se arriscou a entrar.

O lugar estava uma confusão. Os pratos que ficavam na arca do canto estavam agora espatifados pelo chão. Na sala de estar uma cadeira jazia quebrada logo abaixo de um grande buraco na parede. As lâmpadas estavam espatifadas. Livros das prateleiras estavam jogados por toda a parte. A janela lateral também se encontrava que­brada.

E Marshall podia sentir, tão fortemente quanto antes: aquele terror feroz, de retorcer as entranhas, que havia sentido naquela outra noite.

Ele tentou se livrar dele, tentou ignorá-lo, mas ali estava. Suas palmas suavam; ele se sentiu fraco. Correu os olhos em redor, procurando uma arma, e agarrou um atiçador de brasas da lareira. Mantenha-se de costas para a parede, Hogan, fique quieto e de olho nos cantos. Estava escuro ali dentro, e as sombras eram muito negras. Ele tentou não se apressar, tentou deixar que os olhos se acostumassem à es­curidão. Tateou à procura de um interruptor, em qualquer lugar.

Atrás e acima dele, uma asa preta de couro mudou silenciosamente de posição. Olhos amarelos desconfiados vigiavam todo movimento que ele fazia. Aqui, ali, lá adiante, por todo o aposento, nos cantos do teto, sobre o mobiliário, grudados como insetos nas paredes, en­contravam-se os demônios, alguns deixando escapar risinhos de es­cárnio, alguns babando sangue.

Marshall chegou à escrivaninha que ficava no canto e, usando um lenço para não deixar impressões digitais, abriu as gavetas. Nada havia sido mexido. Mantendo o atiçador pronto para o ataque, ele continuou a percorrer a casa.

O banheiro era uma bagunça. O espelho estava espatifado; havia cacos na pia e pelo chão.

Ele percorreu o corredor, mantendo-se pregado à parede.

Centenas de olhos amarelos vigiavam cada movimento que ele fazia. De vez em quando, um demônio dava uma tossidela, um breve jato de vapor saía de sua boca gotejante.

No quarto, aguardavam-no os espíritos mais asquerosos de todos. Das posições que ocupavam no teto, nas paredes, em cada canto, eles vigiavam a porta do quarto, e sua respiração soava como o arrastar de correntes através de lama cheia de pedregulhos.

De onde estava, Marshall podia apenas ver o canto da cama. Ele se aproximou cautelosamente, olhando para trás e até para cima.

Ao chegar ele à porta do quarto, uma única imagem, como uma fotografia, imprimiu-se instantaneamente em seu cérebro. Um se­gundo pareceu uma eternidade enquanto seus olhos voaram do co­bertor borrifado de sangue ao crânio de Ted Harmel, espatifado por uma bala, ao grande revólver que ainda pendia da sua mão inerte.

Gritos! Trovões! Presas de fora para morder! Os demônios explo­diram das paredes, dos cantos do quarto e se arremeteram como flechas na direção do coração de Marshall.

Um relâmpago ofuscante! Depois outro, e mais outro! A mais alva luz ardente descreveu brilhantes arcos chamejantes, um gume cauterizante que ceifava o bando de espíritos malignos como uma grande foice. Pedaços de demônios sumiam no ar; outros demônios implodiam e desapareciam em nuvens instantâneas de fumaça vermelha. Levas de espíritos ainda jorravam sobre o homem solitário em pé ali em terror irracional, mas de repente ele foi cercado por quatro guerreiros celestes revestidos de gloriosa luminosidade, as asas cristali­nas abertas como um dossel sobre o seu protegido, as espadas indistintas no meio do voltear e tremular de lençóis de esplendor.

O ar encheu-se com os gritos ensurdecedores dos espíritos he­diondos à medida que lâminas encontravam flancos, pescoços, tor­sos, e demônio após demônio era jogado de lado em pedaços que instantaneamente se desintegravam e desvaneciam como vapor. Natã, Armote e dois outros anjos, Senter e Cree, arremetiam-se, ne­gaceavam, volteavam, esbordoavam um espírito e retalhavam outro, dando estocadas com as lâminas em miríades de direções. Os clarões de suas espadas rebrilhavam contra as paredes, ofuscantes o bastante para desbotar todas as cores.

Natã destripou um demônio e mandou-o revirando através do teto, deixando uma trilha vermelha de vapor que aos poucos se desva­neceu. Com a espada ele retalhava; com a mão livre colhia demônios pelos calcanhares.

Armote e Senter rodopiavam numa nuvem de alta potência, cor­tando demônios como quem corta grama. Cree jogou-se contra Mars­hall e manteve as asas abertas a fim de proteger o homem estonteado.

— Empurre-os! — gritou Natã, e pôs-se a girar em torno da cabeça o bando de demônios que segurava, sentindo o choque de seus corpos golpeando outros demônios ao ritmo de um pauzinho passando por uma cerca de estacas.

Os demônios começaram a retirar-se; metade já não existia, bem como também metade do seu zelo. Natã, Armote e Senter puseram-se a voar em fechada espiral em torno de Marshall, as espadas cor­tando as evanescentes fileiras demoníacas.

Um demônio, com um grito de terror, arremeteu-se diretamente ao céu. Senter lançou-se atrás dele e despachou-o depressa como uma ave abatida na caça. O anjo permaneceu acima da casa por algum tempo, contendo muito caprichosa e bruscamente qualquer espírito em fuga, eliminando-os como quem rebate rápidas bolas de tênis.

Então, quase tão subitamente como havia começado, a tormenta cessou. Nenhum demônio restava; nem um havia escapado.

Natã pousou no fundo do corredor enquanto suas asas se dobravam e a luz ao seu redor se desvanecia.

— Como está o nosso homem? Cree disse em tom de alívio:

— Ainda abalado, mas está bem. Ainda tem disposição para lutar. Armote veio descendo para pousar, e imediatamente examinou o vulto deplorável de Harmel. Senter passou através do teto e se reuniu a eles. Armote meneou a cabeça e suspirou:

— Como disse o Capitão Tal, Rafar pode escolher qualquer frente que quiser, a qualquer hora.

— Eles possuíam e atormentavam Ted Harmel havia muito tempo — aquiesceu Senter.

— Kevin Weed está protegido? — perguntou Natã. Armote respondeu com uma ponta de curiosidade:

— Tal enviou Signa para vigiar Weed.

— Signa? Ele não estava incumbido da guarda da igreja?

— Tal deve ter mudado seus planos.

Natã voltou a atenção ao problema imediato.

— É melhor cuidarmos de Marshall Hogan.

Marshall conseguiu se controlar. Por um momento pensou que realmente sucumbiria ao pânico, e essa teria sido a primeira vez em sua vida. Droga, não preciso me envolver neste negócio, não agora, pensou ele. Ele demorou mais alguns momentos para acalmar-se e pensar no que faria. Harmel era história. Mas e os outros?

Ele se dirigiu à sala de jantar e encontrou o telefone. Usando o lenço, e discando com uma caneta, chamou a telefonista, que fez a ligação com o departamento de polícia de Windsor, uma cidade que felizmente era mais próxima do que Ashton. Algo lhe dizia que, neste caso, Brummel e seus homens definitivamente não eram quem ele devia chamar.

— Este é um telefonema anônimo. Houve um tiroteio fatal, um suicídio... — Disse ele ao sargento. Então deu instruções de como chegar lá, e desligou.

A seguir saiu do lugar.

Diversos quilômetros ao norte, ele encostou o carro num posto de gasolina e entrou na cabina telefônica. Primeiro discou o número de Eldon Strachan. Não obteve resposta.

Pediu à telefonista que o ligasse com o Clarim. A essas horas Berenice já devia estar lá. Vamos, moça, atenda!

— Clarim de Ashton. — Era Carmem.

— Carmem, aqui é Marshall. Diga a Berenice que atenda, sim?

— Claro.

Berenice levantou imediatamente a sua extensão.

— Hogan, você está chamando para dizer que não vem trabalhar por que está doente?

— Aja com naturalidade, Bernie — disse Marshall. — Houve umas coisas da pesada.

— Bem, tome uma aspirina ou algo assim.

— Isso mesmo. Prepare-se para esta. Acabo de chegar da casa de Ted Harmel. Ele estourou os miolos. Recebi um chamado dele esta madrugada e ele estava falando loucuras, dizendo que alguém estava vindo atrás dele, por isso fui até a casa dele e acabei de encontrá-lo.

Parece que ele teve uma briga feia com alguma coisa. O lugar estava uma bagunça.

— E então, como está-se sentindo de verdade? — disse Berenice e Marshall percebeu que para a moça essa estava sendo a grande en­cenação de sua vida.

— Estou meio abalado, mas estou bem. Chamei a polícia de Wind­sor mas preferi sair de lá. No momento, estou perto de Windsor na Rodovia 38. Vou rumo ao norte fazer uma visitinha ao Strachan para ver como ele está. Quero que você veja como o Weed está agora mesmo. Não quero saber de nenhuma outra fonte morrer.

— Você acha... acha que é contagioso?

— Não sei ainda. Harmel era um tanto doido; pode ser um inci­dente isolado. O que sei é que tenho de falar com Strachan a esse respeito, e não quero que demore para ver como Weed está.

— Está bem, farei isso hoje mesmo.

— Devo estar de volta esta tarde. Cuidado.

— Cuide-se.

Marshall voltou ao carro e consultou o mapa a fim de descobrir a melhor maneira de chegar à casa de Eldon Strachan. Levou mais uma hora para percorrer a distância, mas logo estava encostando na mesma antiga entrada de carro da original casa da fazenda.

Ele pisou no freio e o carro parou com uma sacudidela, derrapando nos pedriscos. Abrindo a porta, ele deu mais uma olhada pela janela. Não estava enganado.

As janelas estavam quebradas nessa casa também. E pensando bem, a esta altura aquele cachorro devia estar latindo, mas o lugar estava envolto em um silêncio tumular.

Marshall deixou o carro onde estava e se encaminhou muito quieto na direção da casa. Nenhum som. As janelas da lateral também es­tavam quebradas. Ele observou que, neste caso, o vidro estava que­brado para dentro, diferindo da casa de Harmel onde o vidro havia sido quebrado para fora. Ele passou pelo lado da casa e examinou a área de estacionamento nos fundos. Nenhum carro. Ele começou a orar pedindo que Eldon e Doris tivessem ido a algum lugar e se encontrassem distantes de seja lá o que fosse que estivesse aconte­cendo.

Ele deu a volta à casa, e então entrou na varanda da frente e tentou abrir a porta. Estava trancada. Espiou pela janela da frente — quase todo o vidro se fora — e viu caos total lá dentro: a casa tinha sido saqueada.

Com cuidado, ele passou pela janela e entrou no que fora uma sala de estar, agora em lamentável estado de confusão. A mobília estava jogada por toda a parte, as almofadas do sofá estavam todas cortadas, a mesinha de centro havia sido partida em diversos pedaços, alguns abajures haviam sido atirados ao chão e quebrados, tudo fora de lugar e jogado.

— Eldon! — chamou Marshall. — Doris! Ó de casa!

Como se eu realmente esperasse resposta, pensou ele. Mas o que era aquilo no espelho em cima da lareira? Ele se aproximou para ver mais de perto. Alguém havia tomado tinta vermelha... ou seria san­gue? Marshall examinou atentamente. Com grande alívio, sentiu o inconfundível cheiro de tinta. Mas alguém havia rabiscado uma men­sagem obscena de ódio no espelho, uma ameaça muito clara.

Ele sabia que teria de examinar cada cômodo da casa, e naquele exato momento perguntou-se por que não sentia o mesmo terror que sentira na casa de Harmel. Talvez o dia o estivesse deixando amor­tecido. Talvez já não estivesse acreditando em nada daquilo.

Ele verificou a casa toda, a parte de cima e a de baixo, e até o porão, mas não encontrou nada terrível, o que o deixou muito con­tente. Contudo, isso não o deixou menos preocupado, nervoso ou perplexo. A despeito das diferenças básicas, era muita coincidência. Dando mais uma olhada na sala de estar, ele tentou encontrar uma ligação. Obviamente, tanto Harmel quanto Strachan haviam sido fon­tes de informação para a investigação de Marshall e poderiam ter-se tornado alvo de intimidação. Mas Harmel, em seu incrível pavor, poderia ter feito o estrago em sua casa sozinho, lutando contra o que quer que fosse, ao passo que o estrago da casa de Strachan era cla­ramente ação de vândalos, de tipos malévolos desejosos de assustá-lo. Havia uma ligação: o medo. Não importa a forma que tomassem, tanto Harmel quanto Strachan haviam sido alvo de táticas de inti­midação. Mas por que iria...

— Muito bem! Pare! Polícia!

Marshall ficou imóvel, mas olhou para fora pela janela quebrada. Lá, na varanda, estava um policial apontando-lhe um revólver.

— Calma — disse Marshall com muita suavidade, sem se mover.

— Ponha as mãos para o alto, bem à vista! — ordenou o oficial. Marshall obedeceu.

— Meu nome é Marshall Hogan, redator do Clarim de Ashton. Sou amigo dos Strachans.

— Não se mexa. Terei de ver alguma identidade, Sr. Hogan. Marshall foi explicando tudo o que fazia.

— Vou enfiar a mão no bolso de trás, está vendo? Aqui está a minha carteira. Agora vou jogá-la para você através da janela.

A essa altura, o companheiro do oficial havia entrado na varanda e também apontava a arma para Marshall. Marshall jogou a carteira através da janela quebrada, e o primeiro policial a apanhou.

O oficial examinou a identidade de Marshall.

— O que está fazendo aqui, Sr. Hogan?

— Tentando descobrir que barbaridade foi essa que aconteceu com a casa de Eldon. E também gostaria de saber o que aconteceu com Eldon e Doris, a esposa dele.

O oficial pareceu satisfeito com a identificação de Marshall e des­contraiu-se um pouco, mas seu companheiro manteve o revólver apontado.

O oficial tentou abrir a porta da frente e então perguntou:

— Como foi que você entrou aí?

— Por aquela janela — respondeu Marshall.

— Muito bem, Sr. Hogan, vou-lhe pedir que saia com muito cui­dado pela mesma janela, e o faça bem devagar. Por favor, fique com as duas mãos bem à vista.

Marshall obedeceu. Assim que pisou na varanda, o oficial fê-lo voltar-se, as mãos contra a parede, e revistou-o. Marshall perguntou:

— Vocês são de Windsor?

— Delegacia de Windsor — veio a breve resposta, e com isso, o oficial agarrou os pulsos de Marshall, um de cada vez, e os algemou. — Está sendo preso. Tem o direito de permanecer em silêncio...

Marshall podia pensar em muitos tipos de perguntas que queria fazer e mal pôde impedir-se de desmontar esses dois, mas sabia que era melhor não dizer nada.