Rodovia 27. Esse cara tem de estar louco, pensou
Marshall, e talvez eu, ao concordar com esta bagunça, esteja tão louco quanto
ele. O cara é paranóico, um verdadeiro lunático.
Mas ele bem que soara convincente no telefone. Além disso, era uma
oportunidade de reabrir as comunicações, após aquela única entrevista.
Marshall teve de voltar algumas vezes e se reorientar
por aquele labirinto de estradas sinuosas, sem sinalização, em seus esforços de
entender as instruções de Harmel. Quando ele afinal localizou a casa de
laterais de madeira no fim de uma longa estrada de pedregulhos, uma faixa de
luz rosada crescia no horizonte. Ele havia levado hora e meia para chegar. Sim,
lá estava o velho carro de Harmel, parado na entrada. Marshall encostou atrás
dele e desceu.
A porta da frente estava aberta, a janela quebrada.
Marshall agachou-se um instante atrás do seu carro a fim de estudar a situação. Não estava
gostando nada da sensação que o invadia; suas entranhas já haviam passado por
esse tipo de dança antes, na noite em que Sandy fugira e, como daquela vez, não
parecia haver razão óbvia, visível. Ele detestava admitir, mas estava com medo
de dar mais um passo.
—
Ted? — chamou ele, não muito alto. Não houve resposta.
A coisa não estava nada boa. Marshall forçou-se a dar volta no carro,
caminhar pela calçada e entrar na varanda muito devagar, com muito cuidado.
Mantinha-se à escuta, olhando, sentindo. Não havia som algum, exceto as batidas
violentas do seu coração. Seus sapatos rangiam de leve nos cacos do vidro da
janela. O som parecia ensurdecedor.
Vamos, Hogan, toque em frente.
—
Ted? — chamou ele através da porta aberta. — Ted Harmel? Sou Marshall Hogan.
Ninguém respondeu, mas essa tinha de ser a casa do Ted. Lá estava
o paletó dele, pendurado no cabide; na parede acima da mesa de jantar estava
emoldurada a primeira página de uma da edições do Clarim.
Ele se arriscou a entrar.
O lugar estava uma confusão. Os pratos que ficavam na arca do canto estavam
agora espatifados pelo chão. Na sala de estar uma cadeira jazia quebrada logo
abaixo de um grande buraco na parede. As lâmpadas estavam espatifadas. Livros
das prateleiras estavam jogados por toda a parte. A janela lateral também se
encontrava quebrada.
E Marshall podia sentir, tão fortemente quanto antes:
aquele terror feroz, de retorcer as entranhas, que havia sentido naquela outra
noite.
Ele tentou se livrar dele, tentou ignorá-lo, mas ali estava. Suas
palmas suavam; ele se sentiu fraco. Correu os olhos em redor, procurando uma
arma, e agarrou um atiçador de brasas da lareira. Mantenha-se de costas para a
parede, Hogan, fique quieto e de olho nos cantos. Estava escuro ali dentro, e
as sombras eram muito negras. Ele tentou não se apressar, tentou deixar que os
olhos se acostumassem à escuridão. Tateou à procura de um interruptor, em
qualquer lugar.
Atrás e acima dele, uma asa preta de couro mudou silenciosamente
de posição. Olhos amarelos desconfiados vigiavam todo movimento que ele fazia.
Aqui, ali, lá adiante, por todo o aposento, nos cantos do teto, sobre o
mobiliário, grudados como insetos nas paredes, encontravam-se os demônios,
alguns deixando escapar risinhos de escárnio, alguns babando sangue.
Marshall chegou à escrivaninha que ficava no canto e, usando um lenço
para não deixar impressões digitais, abriu as gavetas. Nada havia sido mexido.
Mantendo o atiçador pronto para o ataque, ele continuou a percorrer a casa.
O banheiro era uma bagunça. O espelho estava espatifado; havia cacos na pia e
pelo chão.
Ele percorreu o corredor, mantendo-se pregado à parede.
Centenas de olhos amarelos vigiavam cada movimento que
ele fazia. De vez em quando, um demônio dava uma tossidela, um breve jato de vapor saía de
sua boca gotejante.
No quarto, aguardavam-no os espíritos mais asquerosos de
todos. Das posições que ocupavam no teto, nas paredes, em cada canto, eles
vigiavam a porta do quarto, e sua respiração soava como o arrastar de correntes
através de lama cheia de pedregulhos.
De onde estava, Marshall podia apenas ver o canto da
cama. Ele se aproximou cautelosamente, olhando para trás e até para cima.
Ao chegar ele à porta do quarto, uma única imagem, como uma
fotografia, imprimiu-se instantaneamente em seu cérebro. Um segundo pareceu
uma eternidade enquanto seus olhos voaram do cobertor borrifado de sangue ao
crânio de Ted Harmel, espatifado por uma bala, ao grande revólver que ainda
pendia da sua mão inerte.
Gritos! Trovões! Presas de fora para morder! Os demônios explodiram
das paredes, dos cantos do quarto e se arremeteram como flechas na direção do
coração de Marshall.
Um relâmpago ofuscante! Depois outro, e mais outro! A mais alva luz
ardente descreveu brilhantes arcos chamejantes, um gume cauterizante que
ceifava o bando de espíritos malignos como uma grande foice. Pedaços de
demônios sumiam no ar; outros demônios implodiam e desapareciam em nuvens
instantâneas de fumaça vermelha. Levas de espíritos ainda jorravam sobre o
homem solitário em pé ali em terror irracional, mas de repente ele foi cercado
por quatro guerreiros celestes revestidos de gloriosa luminosidade, as
asas cristalinas abertas como um dossel sobre o seu protegido, as espadas
indistintas no meio do voltear e tremular de lençóis de esplendor.
O ar encheu-se com os gritos ensurdecedores dos espíritos hediondos à medida
que lâminas encontravam flancos, pescoços, torsos, e demônio após demônio era
jogado de lado em pedaços que instantaneamente se desintegravam e desvaneciam
como vapor. Natã, Armote e dois outros anjos, Senter e Cree, arremetiam-se, negaceavam,
volteavam, esbordoavam um espírito e retalhavam outro, dando estocadas com as
lâminas em miríades de direções. Os clarões de suas espadas rebrilhavam contra
as paredes, ofuscantes o bastante para desbotar todas as cores.
Natã destripou um demônio e mandou-o revirando através do teto,
deixando uma trilha vermelha de vapor que aos poucos se desvaneceu. Com a
espada ele retalhava; com a mão livre colhia demônios pelos calcanhares.
Armote e Senter rodopiavam numa nuvem de alta potência, cortando demônios
como quem corta grama. Cree jogou-se contra Marshall e manteve as asas abertas
a fim de proteger o homem estonteado.
—
Empurre-os! — gritou Natã, e pôs-se a girar em torno da cabeça o bando de
demônios que segurava, sentindo o choque de seus corpos golpeando outros
demônios ao ritmo de um pauzinho passando por uma cerca de estacas.
Os demônios começaram a retirar-se; metade já não existia, bem como
também metade do seu zelo. Natã, Armote e Senter puseram-se a voar em fechada
espiral em torno de Marshall, as espadas cortando as evanescentes fileiras
demoníacas.
Um demônio, com um grito de terror, arremeteu-se diretamente ao
céu. Senter lançou-se atrás dele e despachou-o depressa como uma ave abatida na
caça. O anjo permaneceu acima da casa por algum tempo, contendo muito
caprichosa e bruscamente qualquer espírito em fuga, eliminando-os como quem
rebate rápidas bolas de tênis.
Então, quase tão subitamente como havia começado, a tormenta
cessou. Nenhum demônio restava; nem um havia escapado.
Natã pousou no fundo do corredor enquanto suas asas se dobravam
e a luz ao seu redor se desvanecia.
—
Como está o nosso homem? Cree disse em tom de alívio:
—
Ainda abalado, mas está bem. Ainda tem disposição para lutar. Armote veio
descendo para pousar, e imediatamente examinou o vulto deplorável de Harmel. Senter
passou através do teto e se reuniu a eles. Armote meneou a cabeça e suspirou:
—
Como disse o Capitão Tal, Rafar pode escolher qualquer frente que quiser, a
qualquer hora.
—
Eles possuíam e atormentavam Ted Harmel havia muito tempo — aquiesceu Senter.
—
Kevin Weed está protegido? — perguntou Natã. Armote respondeu com uma ponta de
curiosidade:
—
Tal enviou Signa para vigiar Weed.
—
Signa? Ele não estava incumbido da guarda da igreja?
—
Tal deve ter mudado seus planos.
Natã voltou a atenção ao problema imediato.
—
É melhor cuidarmos de Marshall Hogan.
Marshall conseguiu se controlar. Por um momento pensou
que realmente sucumbiria ao pânico, e essa teria sido a primeira vez em sua vida. Droga,
não preciso me envolver neste negócio, não agora, pensou ele. Ele demorou mais
alguns momentos para acalmar-se e pensar no que faria. Harmel era história. Mas
e os outros?
Ele se dirigiu à sala de jantar e encontrou o telefone. Usando o
lenço, e discando com uma caneta, chamou a telefonista, que fez a ligação com o
departamento de polícia de Windsor, uma cidade que felizmente era mais próxima
do que Ashton. Algo lhe dizia que, neste caso, Brummel e seus homens
definitivamente não eram quem ele devia chamar.
—
Este é um telefonema anônimo. Houve um tiroteio fatal, um suicídio... — Disse
ele ao sargento. Então deu instruções de como chegar lá, e desligou.
A seguir saiu do lugar.
Diversos quilômetros ao norte, ele encostou o carro num posto de
gasolina e entrou na cabina telefônica. Primeiro discou o número de Eldon
Strachan. Não obteve resposta.
Pediu à telefonista que o ligasse com o Clarim. A essas horas
Berenice já devia estar lá. Vamos, moça, atenda!
—
Clarim de Ashton. — Era Carmem.
—
Carmem, aqui é Marshall. Diga a Berenice que atenda, sim?
—
Claro.
Berenice levantou imediatamente a sua extensão.
—
Hogan, você está chamando para dizer que não vem trabalhar por que está doente?
—
Aja com naturalidade, Bernie — disse Marshall. — Houve umas coisas da pesada.
—
Bem, tome uma aspirina ou algo assim.
—
Isso mesmo. Prepare-se para esta. Acabo de chegar da casa de Ted Harmel. Ele
estourou os miolos. Recebi um chamado dele esta madrugada e ele estava falando
loucuras, dizendo que alguém estava vindo atrás dele, por isso fui até a casa
dele e acabei de encontrá-lo.
Parece que ele teve uma briga feia com alguma coisa. O
lugar estava uma bagunça.
—
E então, como está-se sentindo de verdade? — disse Berenice e Marshall percebeu
que para a moça essa estava sendo a grande encenação de sua vida.
—
Estou meio abalado, mas estou bem. Chamei a polícia de Windsor mas preferi
sair de lá. No momento, estou perto de Windsor na Rodovia 38. Vou rumo ao norte
fazer uma visitinha ao Strachan para ver como ele está. Quero que você veja como
o Weed está agora mesmo. Não quero saber de nenhuma outra fonte morrer.
—
Você acha... acha que é contagioso?
—
Não sei ainda. Harmel era um tanto doido; pode ser um incidente isolado. O que
sei é que tenho de falar com Strachan a esse respeito, e não quero que demore
para ver como Weed está.
—
Está bem, farei isso hoje mesmo.
—
Devo estar de volta esta tarde. Cuidado.
—
Cuide-se.
Marshall voltou ao carro e consultou o mapa a fim de
descobrir a melhor maneira de chegar à casa de Eldon Strachan. Levou mais uma hora para
percorrer a distância, mas logo estava encostando na mesma antiga entrada de
carro da original casa da fazenda.
Ele pisou no freio e o carro parou com uma sacudidela,
derrapando nos pedriscos. Abrindo a porta, ele deu mais uma olhada pela janela.
Não estava
enganado.
As janelas estavam quebradas nessa casa também. E pensando bem, a esta
altura aquele cachorro devia estar latindo, mas o lugar estava envolto em um
silêncio tumular.
Marshall deixou o carro onde estava e se encaminhou
muito quieto na direção da casa. Nenhum som. As janelas da lateral também estavam quebradas.
Ele observou que, neste caso, o vidro estava quebrado para dentro, diferindo
da casa de Harmel onde o vidro havia sido quebrado para fora. Ele passou pelo
lado da casa e examinou a área de estacionamento nos fundos. Nenhum carro. Ele
começou a orar pedindo que Eldon e Doris tivessem ido a algum lugar e se
encontrassem distantes de seja lá o que fosse que estivesse acontecendo.
Ele deu a volta à casa, e então entrou na varanda da frente e tentou
abrir a porta. Estava trancada. Espiou pela janela da frente — quase todo o
vidro se fora — e viu caos total lá dentro: a casa tinha sido saqueada.
Com cuidado, ele passou pela janela e entrou no que
fora uma sala de estar, agora em lamentável estado de confusão. A mobília estava jogada por
toda a parte, as almofadas do sofá estavam todas cortadas, a mesinha de centro
havia sido partida em diversos pedaços, alguns abajures haviam sido
atirados ao chão
e quebrados, tudo fora de lugar e jogado.
—
Eldon! — chamou Marshall. — Doris! Ó de casa!
Como se eu realmente esperasse resposta, pensou ele.
Mas o que era aquilo no espelho em cima da lareira? Ele se aproximou para ver
mais de perto. Alguém havia tomado tinta vermelha... ou seria sangue? Marshall examinou
atentamente. Com grande alívio, sentiu o inconfundível cheiro de tinta. Mas
alguém havia rabiscado uma mensagem obscena de ódio no espelho, uma ameaça
muito clara.
Ele sabia que teria de examinar cada cômodo da casa, e naquele
exato momento perguntou-se por que não sentia o mesmo terror que sentira na
casa de Harmel. Talvez o dia o estivesse deixando amortecido. Talvez já não
estivesse acreditando em nada daquilo.
Ele verificou a casa toda, a parte de cima e a de baixo,
e até o porão,
mas não encontrou nada terrível, o que o deixou muito contente. Contudo, isso
não o deixou menos preocupado, nervoso ou perplexo. A despeito das diferenças
básicas, era muita coincidência. Dando mais uma olhada na sala de estar, ele
tentou encontrar uma ligação. Obviamente, tanto Harmel quanto Strachan haviam
sido fontes de informação para a investigação de Marshall e poderiam ter-se
tornado alvo de intimidação. Mas Harmel, em seu incrível pavor, poderia ter
feito o estrago em sua casa sozinho, lutando contra o que quer que fosse, ao
passo que o estrago da casa de Strachan era claramente ação de vândalos, de
tipos malévolos desejosos de assustá-lo. Havia uma ligação: o medo. Não importa
a forma que tomassem, tanto Harmel quanto Strachan haviam sido alvo de táticas
de intimidação. Mas por que iria...
—
Muito bem! Pare! Polícia!
Marshall ficou imóvel, mas olhou para fora pela janela quebrada. Lá, na
varanda, estava um policial apontando-lhe um revólver.
—
Calma — disse Marshall com muita suavidade, sem se mover.
—
Ponha as mãos para o alto, bem à vista! — ordenou o oficial. Marshall obedeceu.
—
Meu nome é Marshall Hogan, redator do Clarim de Ashton. Sou amigo dos
Strachans.
—
Não se mexa. Terei de ver alguma identidade, Sr. Hogan. Marshall foi explicando
tudo o que fazia.
—
Vou enfiar a mão no bolso de trás, está vendo? Aqui está a minha carteira.
Agora vou jogá-la para você através da janela.
A essa altura, o companheiro do oficial havia entrado
na varanda e também apontava a arma para Marshall. Marshall jogou a carteira através da
janela quebrada, e o primeiro policial a apanhou.
O oficial examinou a identidade de Marshall.
—
O que está fazendo aqui, Sr. Hogan?
—
Tentando descobrir que barbaridade foi essa que aconteceu com a casa de Eldon.
E também gostaria de saber o que aconteceu com Eldon e Doris, a esposa dele.
O oficial pareceu satisfeito com a identificação de Marshall e descontraiu-se
um pouco, mas seu companheiro manteve o revólver apontado.
O oficial tentou abrir a porta da frente e então perguntou:
—
Como foi que você entrou aí?
—
Por aquela janela — respondeu Marshall.
—
Muito bem, Sr. Hogan, vou-lhe pedir que saia com muito cuidado pela mesma
janela, e o faça bem devagar. Por favor, fique com as duas mãos bem à vista.
Marshall obedeceu. Assim que pisou na varanda, o
oficial fê-lo
voltar-se, as mãos contra a parede, e revistou-o. Marshall perguntou:
—
Vocês são de Windsor?
—
Delegacia de Windsor — veio a breve resposta, e com isso, o oficial agarrou os
pulsos de Marshall, um de cada vez, e os algemou. — Está sendo preso. Tem o
direito de permanecer em silêncio...
Marshall podia pensar em muitos tipos de perguntas que queria fazer e mal pôde impedir-se de desmontar esses dois, mas sabia que era melhor não dizer nada.