quarta-feira, 5 de maio de 2021

Este mundo tenebroso - volume 01 - Capítulo 09

Aquela noite Marshall e Kate puseram três lugares à mesa do jantar. Era um ato de fé, confiando que Sandy estaria presente como sempre. Tinham telefonado a todos os co­nhecidos, mas ninguém vira Sandy em parte alguma. A polícia não havia encontrado nada. Telefonaram para a faculdade a fim de ve­rificar se Sandy havia estado ou não presente às aulas, mas até aquela hora não tinham conseguido entrar em contato com nenhum de seus

Marshall sentou-se à mesa, fitando a cadeira vazia da filha. Kate estava sentada em frente ao marido, silenciosa, esperando enquanto o arroz cozia no vapor.

— Marshall, não se torture.

— Estraguei tudo. Sou um fracasso.

— Oh, pare com isso!

— E o problema é, agora que sei ter estragado tudo, o de não existir muita possibilidade de repetir a cena.

Kate estendeu a mão por sobre a mesa e segurou a dele.

— Claro que existe! Ela voltará. Tem idade bastante para ser ra­zoável e cuidar de si própria. Quero dizer, basta ver o que ela levou. Não pode estar pensando em ficar longe indefinidamente.

Nesse exato momento, a campainha da frente soou. Os dois deram um pulo.

— Deve ser o carteiro, ou uma bandeirante vendendo doces, ou um testemunha-de-Jeová — disse Marshall...!

— Bem, de qualquer forma, Sandy não tocaria a campainha. Kate levantou-se para atender a porta, mas Marshall correu adiante dela. Ambos chegaram à porta mais ou menos juntos e Marshall a abriu.

Nenhum deles esperava o rapaz, louro e bem arrumado, típico estudante de faculdade. Ele não trazia panfletos nem propaganda religiosa e parecia tímido.

— Sr. Hogan? — perguntou.

— Sim, sou eu — disse Marshall. — Quem é você?

O jovem era calmo mas firme bastante para tratar do que o levara ali. — Meu nome é Shawn Ormsby. Estou no terceiro ano da facul­dade Whitmore e sou amigo de sua filha Sandy.

Kate ia dizer: — Por favor, entre — mas Marshall interrompeu com: — Você sabe onde ela está?

— Sim. Sim, sei, — respondeu Shawn, depois de pequena pausa

— E então? — disse Marshall.

— Posso entrar? — perguntou Shawn.

Kate assentiu graciosamente, afastando-se e quase empurrando Marshall para o lado.

— Sim, por favor, entre.

Levaram-no à sala-de-estar e convidaram-no a sentar-se. Kate se­gurou a mão de Marshall o tempo suficiente para fazê-lo sentar-se e silenciosamente lembrá-lo de se controlar.

— Muito obrigada por ter vindo — disse Kate. — Temo-nos preo­cupado muito.

A voz de Marshall estava sob controle quando ele disse:

— O que você sabe?

Shawn estava visivelmente constrangido.

— Eu... eu a conheci no campus ontem.

— Ela foi à escola ontem? — deixou escapar Marshall, sobressaltado.

— Deixe-o falar, Marshall — lembrou-lhe Kate.

— Bem — disse Shawn — sim. Sim, ela foi. Mas encontrei-a no refeitório ao ar livre. Ela estava sozinha e tão visivelmente transtor­nada que, bem, achei que tinha de me envolver.

Marshall mal podia conter a ansiedade.

— O que quer dizer com visivelmente transtornada? Ela está bem?

— Oh, sim! Está perfeitamente bem. Isto é, nada de mau lhe acon­teceu. Mas... estou aqui em seu lugar —. Desta vez, os dois, mãe e pai estavam ouvindo sem interromper, por isso Shawn continuou. — Conversamos durante um bom tempo e ela me contou o seu lado da história. Ela realmente quer voltar para a casa; devo dizer-lhes em primeiro lugar.

— Mas? — encorajou Marshall.

— Bem, Sr. Hogan, essa foi a primeira coisa que tentei persuadir Sandy a fazer, mas... se o senhor conseguir aceitar isto, ela está com medo de voltar, e acho que um tanto envergonhada.

— Por minha causa?

Shawn estava pisando em terreno perigoso.

— O senhor pode... consegue aceitar isso?

Marshall estava preparado para ser duro consigo mesmo.

— Sim, sem dúvida, eu posso aceitar isso. Há anos que estou pe­dindo para apanhar. Bem que mereço.

Shawn pareceu aliviado.

— Bem, é isso o que estou tentando fazer, a meu próprio modo, fraco e limitado. Não sou nenhum profissional, vou me formar em geologia, mas gostaria de ver esta família unida de novo.

Kate disse com humildade:

— Nós também gostaríamos.

— Sim — disse Marshall — realmente queremos nos esforçar para isso. Ouça, Shawn, quando chegar a me conhecer melhor, perceberá que saí de uma fôrma bem torta e que realmente sou difícil de en­direitar. — Não saiu, não! — protestou Kate.

— Saí, sim. Mas estou aprendendo o tempo todo. Quero continuar a aprender —. Ele se inclinou para a frente na cadeira. — Diga... Sandy mandou você aqui para nos ver?

Shawn olhou pela janela.

— Ela está no carro neste momento.

Kate pôs-se de pé no mesmo instante. Marshall agarrou-lhe a mão e a fez sentar-se de novo.

— Ei — disse ele — quem está sendo super-ansiosa agora? — Ele se voltou para Shawn. — Como está ela? Ainda está com medo? Ela acha que vou passar-lhe uma carraspana?

Shawn assentiu mansamente com a cabeça.

— Bem — disse Marshall, sentindo emoções que não desejava que ninguém percebesse — escute, diga-lhe que não vou-lhe passar ne­nhum pito. Não gritarei, não acusarei, não usarei de ironia ou pa­lavras ferinas. Eu simplesmente... bem, eu...

— Ele a ama — disse Kate pelo marido. — De verdade.

— O senhor a ama? — perguntou Shawn. Marshall assentiu com a cabeça.

— Diga-me — pediu Shawn. — Diga em voz alta. Marshall olhou-o nos olhos.

— Eu a amo, Shawn. Ela é minha garota, minha filha. Eu a amo e a quero de volta.

Shawn sorriu e se ergueu.

— Vou buscá-la.

Naquela noite, havia quatro lugares à mesa.

 A edição de sexta-feira do Clarim estava nas ruas, e a calmaria pós-publicação de sempre no escritório deu a Berenice a chance de que precisava para andar um pouco. Estivera esperando ansiosa­mente a oportunidade de dar um pulo à faculdade Whitmore a fim de falar com algumas pessoas. Alguns telefonemas tinham resultado em importante convite para almoçar.

Aquele refeitório do campus era uma nova adição, uma estrutura moderna de tijolo vermelho à vista com janelas de vidros azulados que iam do chão ao teto, e canteiros de flores cuidadosamente tra­tados. Podia-se comer dentro, em pequenas mesas para dois ou para quatro, ou sentar-se no pátio, à luz do sol. Era do tipo bufê e a comida não era ruim.

Berenice saiu ao pátio carregando uma bandeja com café e uma salada leve. Ao seu lado estava Rute Williams, uma bem humorada senhora de meia idade, catedrática de economia, carregando uma salada mexicana.

Escolheram uma mesa isolada abrigada da luz direta do sol. Na primeira metade da refeição trocaram amenidades e colocaram as novidades em dia.

Mas Rute já conhecia Berenice muito bem.

— Berenice — disse, finalmente — posso ver que está preocupada com alguma coisa.

Berenice foi franca com a amiga.

— Rute, é algo nada profissional e muito desagradável.

— Quer dizer que descobriu alguma coisa nova?

— Oh, não, não a respeito de Pat. Não, esse assunto está ador­mecido há bom tempo. Mas pode ter certeza de que acordará de novo se surgir alguma novidade —. Berenice olhou para Rute por longos instantes. — Você não acha que conseguirei descobrir coisa alguma, não é?

— Berenice, você sabe que a apóio em seus esforços cem por cento, mas com esse apoio preciso acrescentar minhas sinceras dúvidas de que seus esforços jamais façam surgir alguma coisa. Foi tão... fútil. Tão trágico.

Berenice deu de ombros.

— Bem, é por isso que estou tentando concentrar meus esforços somente onde eles produzirão algum resultado. O que me leva ao assunto constrangedor do dia. Você sabia que fui presa e fui parar na cadeia domingo à noite?

Rute, naturalmente, mostrou-se incrédula.

— Presa? Por que motivo?

— Por oferecer meus serviços a um tira secreto para um ato de prostituição.

Essa resposta evocou a reação certa em Rute. Berenice contou todas as humilhações de que conseguiu se lembrar.

— Não consigo acreditar! — dizia Rute sem parar. — Isso é revol­tante! Não posso acreditar!

— Bem, de qualquer forma — disse Berenice, desfechando o golpe final — acho que tenho razão em questionar os motivos do Sr. Brum­mel. Veja bem, tudo o que tenho é teoria e especulação, mas quero seguir essas coisas até o fim para ver se realmente existe algo por trás delas.

— Bem, posso entender isso. E o que eu poderia possivelmente saber que a ajudaria?

— Você conhece a professora Juleen Langstrat, do Departamento de Psicologia?

— Oh... já nos encontramos uma ou duas vezes. Sentamo-nos à mesma mesa em um almoço dos professores.

Berenice surpreendeu um resquício de desagrado na expressão da amiga.

— Hum. Algo errado com ela?

— Bem, cada um na sua — disse Rute, absorta a remexer a salada com o garfo. — Mas achei muito difícil relacionar-me com ela. Foi praticamente impossível dar início a uma conversa coerente com ela.

— Como ela se porta? É dinâmica, retraída, agressiva, irritante...?

— Distante, em parte, e acho que misteriosa, embora eu use essa palavra por não achar outra melhor. Tenho a impressão de que ela considera as pessoas nada mais que uma chatice. Seus interesses acadêmicos são muito esotéricos e metafísicos, e ela parece preferi-los à realidade prosaica.

— Com que tipo de gente ela se associa?

— Não saberia dizer. Acho que até ficaria surpresa ao saber que ela se dá bem com alguém.

— Então você nunca a viu na companhia de Alf Brummel?

— Oh, e esse deve ser o objetivo final de suas perguntas. Não, nunca mesmo.

— Mas, de qualquer modo, acho que você não a vê muito.

— Ela não é muito sociável, por isso, não. Mas, ouça, realmente me esforço para não me meter na vida dos outros, se entende o que quero dizer. Eu definitivamente gostaria de ajudá-la no que pudesse para satisfazer às suas dúvidas a respeito da morte de Pat, mas o que você está querendo desta vez é...

— Pouco profissional e muito desagradável.

— Sim, realmente tem razão nesse ponto. Mas, acompanhando meu próprio conselho para que se desvencilhe dessa coisa, deixe-me, como amiga, dar-lhe o nome de alguém que pode saber mais. Está com o lápis à mão? Seu nome é Albert Darr, e ele é do Depar­tamento de Psicologia. Pelo que fiquei sabendo, na maior parte por intermédio do próprio, ele convive com Langstrat quase diariamente, não gosta dela, e adora fofocar. Posso até chamá-lo para você.

 Albert Darr, um jovem professor com cara de bebê, roupas elegantes e certa queda pelas mulheres, estava em seu escritório, corrigindo provas. Ele tinha tempo para conversar, especialmente com a ado­rável repórter do Clarim.

— Bem, alô, alô — disse ele quando Berenice entrou.

— Bem, alô, alô para você — respondeu ela. — Eu sou Berenice Krueger, amiga de Rute Williams.

— Ah... — Ele olhou para os lados procurando uma cadeira vazia, e finalmente removeu uma pilha de livros de referência. — Sente-se. Desculpe a bagunça —. Ele se sentou em outra pilha de livros e papéis que poderia ter tido uma cadeira por baixo. — Em que posso ajudá-la?

— Bem, esta visita não é realmente oficial, professor Darr...

— Albert.

— Obrigada. Albert. A bem da verdade, estou aqui por razões pes­soais, mas se minhas teorias estiverem certas, poderia ser importante num sentido noticioso —. Com uma pausa, ela indicou novo pará­grafo e uma pergunta difícil. — Olhe, Rute me disse que você conhece Juleen Langstrat...

De súbito, Darr sorriu um amplo sorriso, reclinou-se para trás em sua cadeira cheia de livros e descansou as mãos atrás da nuca. Pelo visto, esse seria um assunto que ele teria prazer em discutir.

— Ah — disse, encantado — então você se atreve a invadir solo sagrado! — Darr olhou em volta do aposento fingindo-se desconfiado, procurando bisbilhoteiros imaginários, depois inclinou-se para diante e disse, abaixando a voz: — Escute, há certas coisas que nin­guém deveria saber, nem mesmo eu —. Então animou-se novamente e disse: — Mas a nossa cara professora já teve muitas ocasiões de me magoar e espezinhar, e portanto sinto que não tenho nenhuma dívida para com ela. Estou morrendo de vontade de responder às suas perguntas.

Evidentemente, Berenice podia simplesmente mergulhar de ca­beça; aquele sujeito não parecia precisar de formalidades.

— Muito bem, para começar — disse ela, apanhando a caneta e o bloco de anotações — o que realmente estou tentando descobrir é algo a respeito de Alf Brummel, o Delegado de polícia. Fui informada de que ele e Langstrat se vêem bastante. Pode confirmar isso?

— Oh, sem dúvida.

— E então... há alguma coisa entre eles?

— O que quer dizer com “alguma coisa”?

— Você preenche o espaço em branco.

— Se está falando de um caso romântico... — Ele sorriu e meneou a cabeça. — Não sei se vai gostar da resposta, mas não, não acho que isso esteja ocorrendo.

— Mas ele a vê com bastante regularidade?

— Oh, sim, mas muita gente faz a mesma coisa. Ela dá consultas nas horas vagas. Ora, diga-me, Brummel não a vê semanalmente?

Um pouco desapontada, Berenice respondeu:

— Sim, todas as terças-feiras. Pontualmente.

— Aí, está vendo só? Ele a procura para fazer sessões semanais regulares.

— Mas por que ele não conta a ninguém? Faz grande segredo em torno dessas visitas.

Ele se inclinou para diante e abaixou a voz.

— Tudo o que Langstrat faz é segredo profundo, sombrio! O Círculo íntimo, Berenice. Ninguém deve sequer saber da existência das cha­madas consultas, ninguém além dos privilegiados, a elite, os pode­rosos, os muitos patrocinadores especiais que a procuram. É assim que ela é.

— Mas o que ela está aprontando?

— Ora, veja bem — disse ele com um brilho malicioso no olhar — isso é informação confidencial, e também é melhor adverti-la de que não é de inteira confiança. Sei muito pouco do que vou contar por observação direta; a maior parte eu dei um jeito de descobrir aqui pelo departamento. Felizmente, a professora Langstrat fez tantos inimigos que poucos dos que trabalham com ela lhe têm algum com­promisso e dedicação —. Ele se reposicionou numa postura em que os olhos ficavam na mesma altura. — Berenice, a professora Langstrat é, como diria? Não uma pessoa... do andar térreo. Suas áreas de estudo excedem tudo aquilo em que o resto de nós tem o menor desejo de se meter: a Fonte, a Mente Universal, os Planos Elevados...

 — Receio não saber do que você está falando.

— Oh, ninguém aqui também sabe do que ela está falando. Alguns de nós estamos muito preocupados; não sabemos se ela é muito brilhante e está fazendo descobertas muito reais, ou se ela é meio louca.

— Bem, que negócio é esse, essa Fonte, e essa Mente?

— Pelo que sabemos, ela tira essas coisas das religiões orientais, das antigas seitas e escritos místicos, coisas das quais nada sei, nem quero saber. No que me diz respeito, os estudos que ela fez nessas áreas podem tê-la levado a perder todo o contato com a realidade. De fato, pode até ser que meus colegas caçoem e falem mal de mim por dizer isto, mas vejo o progresso de Langstrat nessas áreas como nada mais do que feitiçaria tola, neo-pagã. Acho que ela está desesperadamente confusa!

Berenice lembrava-se agora das estranhas descrições que Marshall havia feito de Langstrat.

— Ouvi dizer que ela faz coisas estranhas com as pessoas...

— Tolice. Pura tolice. Acho que ela pensa que pode ler minha mente, controlar-me, enfeitiçar-me, sei lá. Simplesmente não penso no assunto e faço força para ficar longe dela.

— Mas nada disso é digno de crédito?

— De forma alguma. As únicas pessoas que ela pode controlar ou afetar são os pobres trouxas do Círculo íntimo que são idiotas e ingênuos o bastante para...

— O Círculo íntimo... você já usou esse termo antes... Ele ergueu a mão em advertência.

— Não é fato, não é fato. Eu mesmo cunhei esse título. Tudo o que tenho é dois aqui, dois ali, que dão um quatro muito persuasivo. Já a ouvi admitir que aconselha as pessoas que a procuram, e percebi que algumas delas são bem importantes. Mas como poderia uma conselheira com idéias tão distorcidas possivelmente endireitar os outros? Mas, então...

— Sim?

— Seria de esperar que ela... reivindicasse uma vantagem especial numa situação dessas. Quem sabe, talvez ela faça sessões espíritas ou de leitura da mente. Talvez ela cozinhe cauda de lesma e olhos de lagartixa e os sirva com pernas de aranha empanadas para invocar alguma resposta do sobrenatural... mas agora estou fazendo pilhéria.

— Mas você acha que há possibilidade disso?

— Bem, nada tão bizarro quanto o que descrevi, mas, sim, algo parecido, de acordo com o interesse que ela tem no oculto.

— E essas pessoas do Círculo íntimo a vêem regularmente.

— Pelo que sei, sim. Realmente não tenho a mínima idéia sobre como isso é feito ou por que as pessoas chegam a ir lá. Que bem pode lhes fazer?

— Pode me dar alguns exemplos?

— Bem... — Ele pensou por um momento. — Claro, já mencio­namos e confirmamos o seu Sr. Brummel. Oh, e você conhece Ted Harmel?

Berenice quase derrubou a caneta.

— Ted?

— Sim, o antigo redator do Clarim.

— Trabalhei para ele antes de ele se ir embora e Hogan comprar o jornal.