Aquela noite Marshall e Kate puseram três lugares à mesa do
jantar. Era um ato de fé, confiando que Sandy estaria presente como sempre.
Tinham telefonado a todos os conhecidos, mas ninguém vira Sandy em parte
alguma. A polícia não havia encontrado nada. Telefonaram para a faculdade a fim
de verificar se Sandy havia estado ou não presente às aulas, mas até aquela
hora não tinham conseguido entrar em contato com nenhum de seus
Marshall sentou-se à mesa, fitando a cadeira vazia da filha. Kate estava
sentada em frente ao marido, silenciosa, esperando enquanto o arroz cozia no
vapor.
—
Marshall, não se torture.
—
Estraguei tudo. Sou um fracasso.
—
Oh, pare com isso!
—
E o problema é, agora que sei ter estragado tudo, o de não existir muita possibilidade
de repetir a cena.
Kate estendeu a mão por sobre a mesa e segurou a dele.
—
Claro que existe! Ela voltará. Tem idade bastante para ser razoável e cuidar
de si própria. Quero dizer, basta ver o que ela levou. Não pode estar pensando
em ficar longe indefinidamente.
Nesse exato momento, a campainha da frente soou. Os
dois deram um pulo.
—
Deve ser o carteiro, ou uma bandeirante vendendo doces, ou um
testemunha-de-Jeová — disse Marshall...!
—
Bem, de qualquer forma, Sandy não tocaria a campainha. Kate levantou-se para
atender a porta, mas Marshall correu adiante dela. Ambos chegaram à porta mais ou menos
juntos e Marshall a abriu.
Nenhum deles esperava o rapaz, louro e bem arrumado, típico estudante de
faculdade. Ele não trazia panfletos nem propaganda religiosa e parecia tímido.
—
Sr. Hogan? — perguntou.
—
Sim, sou eu — disse Marshall. — Quem é você?
O jovem era calmo mas firme bastante para tratar do que
o levara ali. —
Meu nome é Shawn Ormsby. Estou no terceiro ano da faculdade Whitmore e sou
amigo de sua filha Sandy.
Kate ia dizer: — Por favor, entre — mas Marshall interrompeu com: —
Você sabe onde ela está?
—
Sim. Sim, sei, — respondeu Shawn, depois de pequena pausa
—
E então? — disse Marshall.
—
Posso entrar? — perguntou Shawn.
Kate assentiu graciosamente, afastando-se e quase
empurrando Marshall para o lado.
—
Sim, por favor, entre.
Levaram-no à sala-de-estar e convidaram-no a sentar-se. Kate segurou
a mão de Marshall o tempo suficiente para fazê-lo sentar-se e silenciosamente
lembrá-lo de se controlar.
—
Muito obrigada por ter vindo — disse Kate. — Temo-nos preocupado muito.
A voz de Marshall estava sob controle quando ele disse:
—
O que você sabe?
Shawn estava visivelmente constrangido.
—
Eu... eu a conheci no campus ontem.
—
Ela foi à escola ontem? — deixou escapar Marshall, sobressaltado.
—
Deixe-o falar, Marshall — lembrou-lhe Kate.
—
Bem — disse Shawn — sim. Sim, ela foi. Mas encontrei-a no refeitório ao ar
livre. Ela estava sozinha e tão visivelmente transtornada que, bem, achei que
tinha de me envolver.
Marshall mal podia conter a ansiedade.
—
O que quer dizer com visivelmente transtornada? Ela está bem?
—
Oh, sim! Está perfeitamente bem. Isto é, nada de mau lhe aconteceu. Mas...
estou aqui em seu lugar —. Desta vez, os dois, mãe e pai estavam ouvindo sem
interromper, por isso Shawn continuou. — Conversamos durante um bom tempo e ela
me contou o seu lado da história. Ela realmente quer voltar para a casa; devo
dizer-lhes em primeiro lugar.
—
Mas? — encorajou Marshall.
—
Bem, Sr. Hogan, essa foi a primeira coisa que tentei persuadir Sandy a fazer,
mas... se o senhor conseguir aceitar isto, ela está com medo de voltar, e acho
que um tanto envergonhada.
—
Por minha causa?
Shawn estava pisando em terreno perigoso.
—
O senhor pode... consegue aceitar isso?
Marshall estava preparado para ser duro consigo mesmo.
—
Sim, sem dúvida, eu posso aceitar isso. Há anos que estou pedindo para
apanhar. Bem que mereço.
Shawn pareceu aliviado.
—
Bem, é isso o que estou tentando fazer, a meu próprio modo, fraco e limitado.
Não sou nenhum profissional, vou me formar em geologia, mas gostaria de ver
esta família unida de novo.
Kate disse com humildade:
—
Nós também gostaríamos.
— Sim — disse Marshall — realmente queremos nos esforçar para isso. Ouça, Shawn, quando chegar a me conhecer melhor, perceberá que saí de uma fôrma bem torta e que realmente sou difícil de endireitar. — Não saiu, não! — protestou Kate.
—
Saí, sim. Mas estou aprendendo o tempo todo. Quero continuar a aprender —. Ele se
inclinou para a frente na cadeira. — Diga... Sandy mandou você aqui para nos
ver?
Shawn olhou pela janela.
—
Ela está no carro neste momento.
Kate pôs-se de pé no mesmo instante. Marshall agarrou-lhe a mão e a
fez sentar-se de novo.
—
Ei — disse ele — quem está sendo super-ansiosa agora? — Ele se voltou para Shawn. — Como está ela? Ainda está com medo? Ela acha que vou
passar-lhe uma carraspana?
Shawn assentiu mansamente com a cabeça.
—
Bem — disse Marshall, sentindo emoções que não desejava que ninguém percebesse
— escute, diga-lhe que não vou-lhe passar nenhum pito. Não gritarei, não
acusarei, não usarei de ironia ou palavras ferinas. Eu simplesmente... bem,
eu...
—
Ele a ama — disse Kate pelo marido. — De verdade.
—
O senhor a ama? — perguntou Shawn. Marshall assentiu com a cabeça.
—
Diga-me — pediu Shawn. — Diga em voz alta. Marshall olhou-o nos olhos.
—
Eu a amo, Shawn. Ela é minha garota, minha filha. Eu a amo e a quero de volta.
Shawn sorriu e se ergueu.
—
Vou buscá-la.
Naquela noite, havia quatro lugares à mesa.
Aquele refeitório do campus era uma nova adição, uma estrutura
moderna de tijolo vermelho à vista com janelas de vidros azulados que iam do
chão ao teto, e canteiros de flores cuidadosamente tratados. Podia-se comer
dentro, em pequenas mesas para dois ou para quatro, ou sentar-se no pátio, à
luz do sol. Era do tipo bufê e a comida não era ruim.
Berenice saiu ao pátio carregando uma bandeja com café e uma salada leve.
Ao seu lado estava Rute Williams, uma bem humorada senhora de meia idade,
catedrática de economia, carregando uma salada mexicana.
Escolheram uma mesa isolada abrigada da luz direta do
sol. Na primeira metade da refeição trocaram amenidades e colocaram as novidades em dia.
Mas Rute já conhecia Berenice muito bem.
—
Berenice — disse, finalmente — posso ver que está preocupada com alguma coisa.
Berenice foi franca com a amiga.
—
Rute, é algo nada profissional e muito desagradável.
—
Quer dizer que descobriu alguma coisa nova?
—
Oh, não, não a respeito de Pat. Não, esse assunto está adormecido há bom
tempo. Mas pode ter certeza de que acordará de novo se surgir alguma novidade
—. Berenice olhou para Rute por longos instantes. — Você não acha que
conseguirei descobrir coisa alguma, não é?
—
Berenice, você sabe que a apóio em seus esforços cem por cento, mas com esse
apoio preciso acrescentar minhas sinceras dúvidas de que seus esforços jamais
façam surgir alguma coisa. Foi tão... fútil. Tão trágico.
Berenice deu de ombros.
—
Bem, é por isso que estou tentando concentrar meus esforços somente onde eles
produzirão algum resultado. O que me leva ao assunto constrangedor do dia. Você
sabia que fui presa e fui parar na cadeia domingo à noite?
Rute, naturalmente, mostrou-se incrédula.
—
Presa? Por que motivo?
—
Por oferecer meus serviços a um tira secreto para um ato de prostituição.
Essa resposta evocou a reação certa em Rute. Berenice
contou todas as humilhações de que conseguiu se lembrar.
—
Não consigo acreditar! — dizia Rute sem parar. — Isso é revoltante! Não posso
acreditar!
—
Bem, de qualquer forma — disse Berenice, desfechando o golpe final — acho que
tenho razão em questionar os motivos do Sr. Brummel. Veja bem, tudo o que
tenho é teoria e especulação, mas quero seguir essas coisas até o fim para ver
se realmente existe algo por trás delas.
—
Bem, posso entender isso. E o que eu poderia possivelmente saber que a
ajudaria?
—
Você conhece a professora Juleen Langstrat, do Departamento de Psicologia?
—
Oh... já nos encontramos uma ou duas vezes. Sentamo-nos à mesma mesa em um
almoço dos professores.
Berenice surpreendeu um resquício de desagrado na
expressão da amiga.
—
Hum. Algo errado com ela?
—
Bem, cada um na sua — disse Rute, absorta a remexer a salada com o garfo. — Mas
achei muito difícil relacionar-me com ela. Foi praticamente impossível dar
início a uma conversa coerente com ela.
—
Como ela se porta? É dinâmica, retraída, agressiva, irritante...?
—
Distante, em parte, e acho que misteriosa, embora eu use essa palavra por não
achar outra melhor. Tenho a impressão de que ela considera as pessoas nada mais
que uma chatice. Seus interesses acadêmicos são muito esotéricos
e metafísicos, e ela parece preferi-los à realidade prosaica.
—
Com que tipo de gente ela se associa?
—
Não saberia dizer. Acho que até ficaria surpresa ao saber que ela se dá bem com
alguém.
—
Então você nunca a viu na companhia de Alf Brummel?
—
Oh, e esse deve ser o objetivo final de suas perguntas. Não, nunca mesmo.
—
Mas, de qualquer modo, acho que você não a vê muito.
—
Ela não é muito sociável, por isso, não. Mas, ouça, realmente me esforço para
não me meter na vida dos outros, se entende o que quero dizer. Eu
definitivamente gostaria de ajudá-la no que pudesse para satisfazer às suas
dúvidas a respeito da morte de Pat, mas o que você está querendo desta vez é...
—
Pouco profissional e muito desagradável.
—
Sim, realmente tem razão nesse ponto. Mas, acompanhando meu próprio conselho
para que se desvencilhe dessa coisa, deixe-me, como amiga, dar-lhe o nome de
alguém que pode saber mais. Está com o lápis à mão? Seu nome é Albert Darr, e
ele é do Departamento de Psicologia. Pelo que fiquei sabendo, na maior parte
por intermédio do próprio, ele convive com Langstrat quase diariamente, não
gosta dela, e adora fofocar. Posso até chamá-lo para você.
—
Bem, alô, alô — disse ele quando Berenice entrou.
—
Bem, alô, alô para você — respondeu ela. — Eu sou Berenice Krueger, amiga de
Rute Williams.
—
Ah... — Ele olhou para os lados procurando uma cadeira vazia, e finalmente
removeu uma pilha de livros de referência. — Sente-se. Desculpe a bagunça —.
Ele se sentou em outra pilha de livros e papéis que poderia ter tido uma
cadeira por baixo. — Em que posso ajudá-la?
—
Bem, esta visita não é realmente oficial, professor Darr...
—
Albert.
—
Obrigada. Albert. A bem da verdade, estou aqui por razões pessoais, mas se
minhas teorias estiverem certas, poderia ser importante num sentido noticioso
—. Com uma pausa, ela indicou novo parágrafo e uma pergunta difícil. — Olhe,
Rute me disse que você conhece Juleen Langstrat...
De súbito, Darr sorriu um amplo sorriso, reclinou-se para trás em
sua cadeira cheia de livros e descansou as mãos atrás da nuca. Pelo visto, esse seria um assunto que ele teria prazer em discutir.
—
Ah — disse, encantado — então você se atreve a invadir solo sagrado! — Darr
olhou em volta do aposento fingindo-se desconfiado, procurando bisbilhoteiros
imaginários, depois inclinou-se para diante e disse, abaixando a voz: — Escute,
há certas coisas que ninguém deveria saber, nem mesmo eu —. Então animou-se
novamente e disse: — Mas a nossa cara professora já teve muitas ocasiões de me
magoar e espezinhar, e portanto sinto que não tenho nenhuma dívida para com
ela. Estou morrendo de vontade de responder às suas perguntas.
Evidentemente, Berenice podia simplesmente mergulhar de
cabeça;
aquele sujeito não parecia precisar de formalidades.
—
Muito bem, para começar — disse ela, apanhando a caneta e o bloco de anotações
— o que realmente estou tentando descobrir é algo a respeito de Alf Brummel, o
Delegado de polícia. Fui informada de que ele e Langstrat se vêem bastante.
Pode confirmar isso?
—
Oh, sem dúvida.
—
E então... há alguma coisa entre eles?
—
O que quer dizer com “alguma coisa”?
—
Você preenche o espaço em branco.
—
Se está falando de um caso romântico... — Ele sorriu e meneou a cabeça. — Não
sei se vai gostar da resposta, mas não, não acho que isso esteja ocorrendo.
—
Mas ele a vê com bastante regularidade?
—
Oh, sim, mas muita gente faz a mesma coisa. Ela dá consultas nas horas vagas.
Ora, diga-me, Brummel não a vê semanalmente?
Um pouco desapontada, Berenice respondeu:
—
Sim, todas as terças-feiras. Pontualmente.
—
Aí, está vendo só? Ele a procura para fazer sessões semanais regulares.
—
Mas por que ele não conta a ninguém? Faz grande segredo em torno dessas
visitas.
Ele se inclinou para diante e abaixou a voz.
—
Tudo o que Langstrat faz é segredo profundo, sombrio! O Círculo íntimo, Berenice.
Ninguém deve sequer saber da existência das chamadas consultas, ninguém além
dos privilegiados, a elite, os poderosos, os muitos patrocinadores especiais
que a procuram. É assim que ela é.
—
Mas o que ela está aprontando?
—
Ora, veja bem — disse ele com um brilho malicioso no olhar — isso é informação
confidencial, e também é melhor adverti-la de que não é de inteira confiança.
Sei muito pouco do que vou contar por observação direta; a maior parte eu dei
um jeito de descobrir aqui pelo departamento. Felizmente, a professora
Langstrat fez tantos inimigos que poucos dos que
trabalham com ela lhe têm algum compromisso e dedicação —. Ele se reposicionou numa
postura em que os olhos ficavam na mesma altura. — Berenice, a professora
Langstrat é, como diria? Não uma pessoa... do andar térreo. Suas áreas de
estudo excedem tudo aquilo em que o resto de nós tem o menor desejo de se
meter: a Fonte, a Mente Universal, os Planos Elevados...
—
Oh, ninguém aqui também sabe do que ela está falando. Alguns de nós estamos
muito preocupados; não sabemos se ela é muito brilhante e está fazendo
descobertas muito reais, ou se ela é meio louca.
—
Bem, que negócio é esse, essa Fonte, e essa Mente?
—
Pelo que sabemos, ela tira essas coisas das religiões orientais, das antigas
seitas e escritos místicos, coisas das quais nada sei, nem quero saber. No que
me diz respeito, os estudos que ela fez nessas áreas podem tê-la levado a
perder todo o contato com a realidade. De fato, pode até ser que meus colegas
caçoem e falem mal de mim por dizer isto, mas vejo o progresso de Langstrat
nessas áreas como nada mais do que feitiçaria tola, neo-pagã. Acho que ela está
desesperadamente confusa!
Berenice lembrava-se agora das estranhas descrições que Marshall havia
feito de Langstrat.
—
Ouvi dizer que ela faz coisas estranhas com as pessoas...
—
Tolice. Pura tolice. Acho que ela pensa que pode ler minha mente, controlar-me,
enfeitiçar-me, sei lá. Simplesmente não penso no assunto e faço força para ficar
longe dela.
—
Mas nada disso é digno de crédito?
—
De forma alguma. As únicas pessoas que ela pode controlar ou afetar são os
pobres trouxas do Círculo íntimo que são idiotas e ingênuos o bastante para...
—
O Círculo íntimo... você já usou esse termo antes... Ele ergueu a mão em
advertência.
—
Não é fato, não é fato. Eu mesmo cunhei esse título. Tudo o que tenho é dois
aqui, dois ali, que dão um quatro muito persuasivo. Já a ouvi admitir que
aconselha as pessoas que a procuram, e percebi que algumas delas são bem
importantes. Mas como poderia uma conselheira com idéias tão distorcidas
possivelmente endireitar os outros? Mas, então...
—
Sim?
—
Seria de esperar que ela... reivindicasse uma vantagem especial numa situação
dessas. Quem sabe, talvez ela faça sessões espíritas ou de leitura da mente.
Talvez ela cozinhe cauda de lesma e olhos de lagartixa e os sirva com pernas de
aranha empanadas para invocar alguma resposta do sobrenatural...
mas agora estou fazendo pilhéria.
—
Mas você acha que há possibilidade disso?
—
Bem, nada tão bizarro quanto o que descrevi, mas, sim, algo parecido, de acordo
com o interesse que ela tem no oculto.
—
E essas pessoas do Círculo íntimo a vêem regularmente.
—
Pelo que sei, sim. Realmente não tenho a mínima idéia sobre como isso é feito
ou por que as pessoas chegam a ir lá. Que bem pode lhes fazer?
—
Pode me dar alguns exemplos?
—
Bem... — Ele pensou por um momento. — Claro, já mencionamos e confirmamos o
seu Sr. Brummel. Oh, e você conhece Ted Harmel?
Berenice quase derrubou a caneta.
—
Ted?
—
Sim, o antigo redator do Clarim.
— Trabalhei para ele antes de ele se ir embora e Hogan comprar o jornal.