— O Senhor te repreenda! —
gritou Tal. Clangor! Rasgão!
— Onde está o Senhor? —
zombou Rafar. — Não o estou vendo! Tchuiiiimm!
Tal gritou de dor. Sua mão
esquerda pendia inutilizada.
— Senhor Deus — bradou Tal —
o nome dele é Rafar! Conte-lhes!
O Remanescente já não orava
muito agora; em vez disso, observavam todo o rebuliço e a polícia a correr,
entrando e saindo do Prédio da Administração.
— Puxa vida! — disse John
Coleman. — O Senhor está realmente respondendo às nossas orações!
— Louvado seja o Senhor! —
replicou Andy. — Serve para mostrar. .. Edith! Edith, o que há?
Edith Duster caiu de joelhos.
Estava pálida. Os santos a rodearam.
— Devemos chamar uma
ambulância? — perguntou alguém.
— Não! Não! — gritou Edith. —
Conheço esta sensação. Já a tive antes. O Senhor está tentando falar comigo!
— O quê? — perguntou Andy. —
O que é?
— Bem, parem de tagarelar e
deixem-me orar que lhes contarei! Edith começou a chorar.
— Há um espírito maligno por
aí — gritou ela. — Está causando grande dano. Seu nome é... Rafael... Rafin...
Bobby Corsi falou. — Rafar!
Edith fitou-o com olhos
arregalados.
— Sim! Sim! Esse é o nome que
o Senhor está-me transmitindo!
— Rafar! — disse Bobby outra
vez. — É o chefão!
— O Senhor. .. te repreenda!
— encontrou o anjo fôlego para repetir.
— Rafar, seu perverso
príncipe do mal, em nome de Jesus nós o repreendemos!
A grande lâmina vermelha
desceu com clangor contra a de Tal, mas a espada angelical cantava com nova
ressonância. Cortava o ar em arcos flamejantes. Com a mão boa, Tal brandia,
retalhava, cortava, empurrando Rafar para trás. Os olhos ardentes destilavam, a
espuma borbulhava pela boca e efervescia pelo peito, o fôlego amarelo se
tornara um tom escuro de carmesim.
Então, com uma horrível
estocada movida pela fúria, a enorme espada vermelha veio chiando pelo ar. Tal
revirou para trás como se fosse um brinquedo de pano jogado. Caiu ao chão
atordoado, a cabeça girando, o corpo encharcado de dor abrasadora. Não se podia
mover. Sua força se fora.
Onde estava Rafar? Onde
estava a lâmina? Tal tentou voltar a cabeça. Esforçou-se por enxergar. Aquele
era o seu inimigo? Aquele era Rafar?
Através do vapor e da
escuridão, ele podia ver o vulto danificado de Rafar oscilando qual grande
árvore ao vento. O demônio não se movia, não atacava. Quanto à espada, a enorme
mão ainda a segurava, mas a arma agora pendia inerte, a ponta descansando no
chão. Os fôlegos vinham em longos e lentos chiados. As narinas expeliam nuvens
vermelho-escuras. Aqueles olhos, aqueles olhos cheios de ódio, eram como
enormes e ardentes rubis.
O queixo, pingando e
espumando, tremeu ao abrir-se, e as palavras gorgolejaram através do piche e da
espuma.
— Se... não... fosse...
pela... oração dos seus santos! Se não fossem os seus santos...!
A grande fera oscilou para a
frente. Deixou escapar um último suspiro sibilante, e caiu com um baque surdo
ao chão numa nuvem de vermelho.
E houve silêncio.
Tal não conseguia respirar.
Não podia se mexer. Tudo o que podia ver era o vapor vermelho espalhando-se ao
longo do chão como fina névoa e a escuridão que cercava aquele corpo enorme.
Mas... sim. Em algum lugar os
santos oravam. Ele podia sentir. Estava sarando.
O que era aquilo? De algum
lugar a doce música chegou até ele. Acalmou-o. Adoração. O nome de Jesus.
Erguendo a cabeça do chão,
ele deixou que seus olhos explorassem o frio aposento de concreto. Rafar, o
poderoso, detestável Príncipe da Babilônia, se fora. Nada restava além de uma
nuvem de escuridão que se desvanecia. Acima da nuvem de escuridão a luz vinha
penetrando, quase como uma aurora.
Ele ainda ouvia a música. Ela
ecoava através dos seres celestiais, purificando-os, limpando a escuridão com a
luz santa de Deus.
E seu coração foi o primeiro
a lhe dizer: Você venceu... pelos santos de Deus e pelo Cordeiro.
Você venceu!
A luz aumentou cada vez mais,
florescendo, enchendo o aposento, e a escuridão continuava a encolher e a
recuar e a se desvanecer. Agora Tal podia ver a luz entrando pela janela. A luz
do sol? Sim.
O Exército Celestial? Sim!
Tal ergueu-se com esforço e
esperou até sentir mais forças. Elas chegaram. Ele deu um passo. Seu andar tornou-se
firme e estável. Então, como o desfraldar de seda tecida em fulgurantes
diamantes, ele estendeu as asas, dobra a dobra, centímetro a centímetro. Elas
brotaram de seus ombros e costas, e ele deixou que se fortalecessem.
Respirando fundo, ele tomou o
cabo da espada nas duas mãos, segurou-a à frente, e as asas assumiram o
comando. Ele estava nos ares, subindo no céu fresco banhado de luz, olhando
diretamente para cima sem ver nenhuma escuridão, nenhuma opressão, nenhuma
nuvem.
O que viu foi luz: luz do
Exército Celestial que varria o céu de um lado a outro até que ele ficasse
límpido. O ar era tão fresco, os odores tão limpos.
Ele singrou acima da
cidadezinha e voltou à faculdade bem em tempo de ver as muitas luzes piscando
nas viaturas policiais e as ambulâncias e os carros oficiais estacionados por
toda a parte.
Onde estava Guilo? Oh, onde
estava aquele barulhento Guilo?
— Capitão Tal! — veio o
brado, e Tal deixou-se cair rumo ao prédio Ames Hall onde seu corpulento amigo
o aguardava com um abraço de quebrar costelas.
— Com certeza a batalha
terminou? — rugiu Guilo feliz.
— Terminou? — quis saber Tal.
Ele olhou em redor a fim de
se certificar. Sim, muito ao longe podia ver os últimos resquícios em fuga da
nuvem espalhando-se em todas as direções, banidos pelas forças celestiais. O
céu era de um azul muito lindo. Abaixo deles, Tal podia ver o Remanescente fiel
ainda cantando e dando vivas. Parecia que a polícia estava fazendo uma limpeza
final.
— Bem, minha gente — disse
Berenice — gostaria de apresentar-lhes Susan Jacobson. Ela tem muita coisa a
lhes mostrar!
Norm Mattily apertou a mão de
Susan e disse:
— Você é uma mulher muito
corajosa.
Susan pôde apenas apontar
para Berenice através de lágrimas de alívio e dizer:
— Sr. Mattily, olhe bem ali.
Está vendo a coragem personificada.
Berenice olhou para a maca
que dois enfermeiros tiravam do prédio. Juleen Langstrat estava coberta por um
lençol branco. Atrás da maca ia Alf Brummel, algemado e escoltado por dois de
seus próprios agentes.
Atrás de Brummel vinha o
número um, Alexander M. Kaseph. Susan fitou-o por bom tempo, mas ele não ergueu
o olhar. Entrou na viatura da polícia com um agente federal sem dizer palavra.
Hank e Mary estavam-se
abraçando e chorando, pois tudo terminara... e contudo estava apenas
começando. Olhe todos esses santos acesos! Aleluia! O que Deus podia fazer com
um grupo desses!
Marshall segurava Sandy como
se nunca a tivesse abraçado antes. Ambos haviam perdido a conta de quantas
vezes pediram desculpas um ao outro. Tudo o que desejavam fazer agora era pôr
em dia muito amor perdido.
E então. .. o que era isso,
algum tipo de conto de fadas? Esqueça as dúvidas e esqueça as perguntas, Hogan,
é mesmo Kate vindo em sua direção! O rosto dela resplandecia, e, puxa,
que visão bonita!
Os três ficaram agarrados uns
aos outros, e as lágrimas caíram em cima de todos.
— Marshall — disse Kate com
lacrimejante estouvamento — não consegui ficar longe. Ouvi dizer que você foi
preso.'
— Ora — disse Marshall,
dando-lhe um aperto amoroso — de que outra forma Deus ia conseguir a minha
atenção?
Kate achegou-se mais a ele e
disse:
— Puxa, isso parece
promissor!
— Espere só até eu lhe contar
o que aconteceu. Kate olhou ao redor para as pessoas e atividade.
— É este o fim do seu...
grande projeto?
Ele sorriu, abraçou as suas
duas garotas favoritas, e disse:
— É, sim. Pode apostar que
sim!
— Bem, capitão — disse o anjo
de cabelos prateados — quer dar-nos a honra? Dê o toque de vitória!
Tal tomou a trombeta e
descobriu que não podia vê-la através de súbito jorro de lágrimas. Ele baixou o
olhar a todos aqueles santos de oração e àquele pastorzinho de oração.
— Eles... eles jamais saberão
o que fizeram — disse. Então, respirou a fim de moderar-se e voltou-se ao
velho companheiro de armas. — Guilo, que tal você? — Empurrou a trombeta na
direção do anjo grande.
Guilo relutou. — Capitão Tal,
é sempre o senhor quem dá o toque de vitória. Tal sorriu, deu a trombeta a
Guilo, e sentou-se ali mesmo no teto.
— Caro amigo... estou cansado
demais.
Guilo remoeu aquilo um breve
momento, e a seguir pôs-se a soltar gargalhadas, depois bateu nas costas de Tal
e singrou pelos ares.
O sinal da vitória soou alto
e claro, e Guilo até precipitou-se para cima num apertado rodopio para causar
efeito.
— Ele adora fazer isso! —
disse Tal.
O General riu.
Mas Berenice ficou ali,
machucada e exausta, sentindo-se muito separada, distante desse bando feliz.
Alegrava-se por eles, e seu lado profissional, preocupado com o bem público
fazia esse papel muito bem. Mas o resto dela, a verdadeira Berenice, não podia
dispersar com um sorriso aquele mesmo antigo peso de profunda tristeza que
havia sido seu mais íntimo companheiro por tanto tempo.
E agora ela sentia saudades
de Pat. Talvez fosse o mistério de sua morte e a obsessão em encontrar as
respostas que tivessem mantido Pat viva em seu coração por tanto tempo. Agora
não havia nada que adiasse aquele último passo que Berenice jamais conseguira
dar: dizer adeus.
E lá estava o estranho anelo
no fundo do seu coração, algo que jamais sentira antes de encontrar aquela estranha
mocinha, Betsy; será que havia realmente sido tocada por Deus de alguma forma?
Se tivesse sido, o que deveria fazer a respeito?
Ela começou a andar. O céu
estava vivo de novo, o ar cálido, o campus quieto. Talvez uma caminhada ao
longo dos passeios de tijolo vermelho a acalmasse e ajudasse a pensar, ajudasse
a encontrar o sentido de tudo o que estava acontecendo ao seu redor e dentro de
si.
Ela se deteve embaixo de um
grande carvalho, pensou em Pat, pensou em sua própria vida e o que iria fazer
com ela, e então permitiu-se chorar. Achou que talvez devesse orar.
"Querido Deus", sussurrou, mas então não conseguiu pensar em nada
para dizer.
— Eu diria que esse negócio
todo deixou a cidade em petição de miséria — disse o General.
Tal assentiu com a cabeça.
— A faculdade não será a
mesma por muito tempo, com a investigação pelas autoridades estaduais e
federais, sem falar no dinheiro que terá de ser achado.
— E então, temos um bom
contingente para colocar a cidade nos eixos novamente?
— Estão-se reunindo para isso
agora. Enquanto isso, Krioni e Tris-kal permanecerão com Busche; Natã e Armote
ficarão com Hogan. A família de Hogan terá uma boa igreja onde poderá ser
curada, e
— Tal notou de súbito uma
figura abatida, sozinha, no outro lado do campus. — Espere —. Ele chamou a
atenção de um anjo em particular. — Lá está ela. Não a deixemos escapar.
Hank Busche. O nome
surgiu em sua cabeça. Ela voltou o olhar ao Prédio da Administração. O pastor e
seu povo ainda estavam lá.
Sabe, disse uma voz dentro dela, não faria mal conversar
com aquele homem.
Ela olhou para Hank Busche, e
depois para toda aquela gente que parecia tão feliz, tão em paz.
Você esteve clamando por Deus. Bem, talvez esse pregador possa apresentá-la
a ele de uma vez por todas.
Ele bem que fez algo por
Marshall, pensou Berenice.
Há algo Já atrás de que você
precisa, mocinha, e se eu fosse você descobriria o que é.
— Estão precisando de nós no
Brasil. O reavivamento vai indo bem, mas o inimigo está tramando algum plano.
Você deve gostar desse tipo de desafio.
Tal pôs-se de pé outra vez e
desembainhou a espada. Nesse exato momento, Guilo voltou com a trombeta. Tal
lhe disse:
— Brasil.
Guilo riu-se animado e também
puxou da espada.
— Espere — disse Tal, olhando
para baixo.
Era Berenice, timidamente
chegando perto do pastor e seu novo rebanho. Pela quieta entrega em seus olhos
Tal podia ver que ela estava pronta. Logo os anjos se estariam regozijando.
Ele acenou sua aprovação ao
anjinho de cabelos encaracolados que estava sentado na curvatura do grande
carvalho, e ela sorriu e devolveu o aceno, seus grandes olhos castanhos
brilhando. As refulgentes vestes brancas e sapatinhos dourados estavam muito
mais de acordo com ela do que o macacão e uma motocicleta.
O General perguntou com
prazer na voz:
— E então, vamos?
Tal estava olhando para Hank
ao dizer:
— Um momento. Quero ouvir as
palavras mais uma vez. Enquanto olhavam, Berenice chegou até Hank e Mary. Ela
começou a chorar abertamente, e lhes disse palavras calmas mas apaixonadas.
Hank e Mary ouviram, assim como outros que estavam por perto, e ao ouvirem,
começaram a sorrir. Colocaram seus braços ao redor dela, falaram-lhe de Jesus,
e então também puseram-se a chorar.
Finalmente, quando os santos
se reuniram e Berenice foi cercada de braços amorosos, Hank disse as palavras:
— Vamos orar...
E Tal sorriu um longo
sorriso.
— Podemos ir — disse ele.
Com uma explosão de asas
fulgurantes e três rastos de faiscantes labaredas, os guerreiros arrojaram-se
ao céu, rumo ao sul, tornando-se cada vez menores até sumir, deixando a agora
tranqüila cidade de Ashton em competentes mãos.