sexta-feira, 7 de maio de 2021

Este mundo tenebroso - volume 01 - Capítulo 42 - fim


 Zap! A espada de Rafar arrancou uma ponta da asa de Tal. Tal continuava arremetendo e desviando, negaceando e gin­gando, e picou o ombro e a coxa de Rafar. O ar estava repleto do mau cheiro de enxofre; a maligna escuridão era espessa como fumaça.

— O Senhor te repreenda! — gritou Tal. Clangor! Rasgão!

— Onde está o Senhor? — zombou Rafar. — Não o estou vendo! Tchuiiiimm!

Tal gritou de dor. Sua mão esquerda pendia inutilizada.

— Senhor Deus — bradou Tal — o nome dele é Rafar! Conte-lhes!

O Remanescente já não orava muito agora; em vez disso, obser­vavam todo o rebuliço e a polícia a correr, entrando e saindo do Prédio da Administração.

— Puxa vida! — disse John Coleman. — O Senhor está realmente respondendo às nossas orações!

— Louvado seja o Senhor! — replicou Andy. — Serve para mos­trar. .. Edith! Edith, o que há?

Edith Duster caiu de joelhos. Estava pálida. Os santos a rodearam.

— Devemos chamar uma ambulância? — perguntou alguém.

— Não! Não! — gritou Edith. — Conheço esta sensação. Já a tive antes. O Senhor está tentando falar comigo!

— O quê? — perguntou Andy. — O que é?

— Bem, parem de tagarelar e deixem-me orar que lhes contarei! Edith começou a chorar.

— Há um espírito maligno por aí — gritou ela. — Está causando grande dano. Seu nome é... Rafael... Rafin...

Bobby Corsi falou. — Rafar!

Edith fitou-o com olhos arregalados.

— Sim! Sim! Esse é o nome que o Senhor está-me transmitindo!

— Rafar! — disse Bobby outra vez. — É o chefão!

 Tal podia apenas afastar-se do temível ataque do demônio prín­cipe, sua mão ativa ainda segurando a espada em defesa. Rafar con­tinuava a brandir e a retalhar, as fagulhas voando das lâminas ao se chocarem. O braço de Tal abaixava mais a cada golpe.

— O Senhor. .. te repreenda! — encontrou o anjo fôlego para re­petir.

 Edith Duster estava em pé e pronta a gritá-lo aos céus.

— Rafar, seu perverso príncipe do mal, em nome de Jesus nós o repreendemos!

 A lâmina de Rafar zuniu acima da cabeça de Tal. Não acertou.

 — Nós o atamos! — gritou o Remanescente.

 Os grandes olhos amarelos estremeceram.

 — Nós o expulsamos! — disse Andy.

 Surgiu um tufo de enxofre, e Rafar dobrou-se ao meio. Tal ergueu-se de um salto.

 — Nós o repreendemos, Rafar! — gritou Edith novamente.

 Rafar berrou. A lâmina de Tal o havia rasgado.

A grande lâmina vermelha desceu com clangor contra a de Tal, mas a espada angelical cantava com nova ressonância. Cortava o ar em arcos flamejantes. Com a mão boa, Tal brandia, retalhava, cortava, empurrando Rafar para trás. Os olhos ardentes destilavam, a espuma borbulhava pela boca e efervescia pelo peito, o fôlego amarelo se tornara um tom escuro de carmesim.

Então, com uma horrível estocada movida pela fúria, a enorme espada vermelha veio chiando pelo ar. Tal revirou para trás como se fosse um brinquedo de pano jogado. Caiu ao chão atordoado, a cabeça girando, o corpo encharcado de dor abrasadora. Não se podia mover. Sua força se fora.

Onde estava Rafar? Onde estava a lâmina? Tal tentou voltar a cabeça. Esforçou-se por enxergar. Aquele era o seu inimigo? Aquele era Rafar?

Através do vapor e da escuridão, ele podia ver o vulto danificado de Rafar oscilando qual grande árvore ao vento. O demônio não se movia, não atacava. Quanto à espada, a enorme mão ainda a segurava, mas a arma agora pendia inerte, a ponta descansando no chão. Os fôlegos vinham em longos e lentos chiados. As narinas expeliam nuvens vermelho-escuras. Aqueles olhos, aqueles olhos cheios de ódio, eram como enormes e ardentes rubis.

O queixo, pingando e espumando, tremeu ao abrir-se, e as palavras gorgolejaram através do piche e da espuma.

— Se... não... fosse... pela... oração dos seus santos! Se não fossem os seus santos...!

A grande fera oscilou para a frente. Deixou escapar um último suspiro sibilante, e caiu com um baque surdo ao chão numa nuvem de vermelho.

E houve silêncio.

Tal não conseguia respirar. Não podia se mexer. Tudo o que podia ver era o vapor vermelho espalhando-se ao longo do chão como fina névoa e a escuridão que cercava aquele corpo enorme.

Mas... sim. Em algum lugar os santos oravam. Ele podia sentir. Estava sarando.

O que era aquilo? De algum lugar a doce música chegou até ele. Acalmou-o. Adoração. O nome de Jesus.

Erguendo a cabeça do chão, ele deixou que seus olhos explorassem o frio aposento de concreto. Rafar, o poderoso, detestável Príncipe da Babilônia, se fora. Nada restava além de uma nuvem de escuridão que se desvanecia. Acima da nuvem de escuridão a luz vinha pe­netrando, quase como uma aurora.

Ele ainda ouvia a música. Ela ecoava através dos seres celestiais, purificando-os, limpando a escuridão com a luz santa de Deus.

E seu coração foi o primeiro a lhe dizer: Você venceu... pelos santos de Deus e pelo Cordeiro.

Você venceu!

A luz aumentou cada vez mais, florescendo, enchendo o aposento, e a escuridão continuava a encolher e a recuar e a se desvanecer. Agora Tal podia ver a luz entrando pela janela. A luz do sol? Sim.

O Exército Celestial? Sim!

Tal ergueu-se com esforço e esperou até sentir mais forças. Elas chegaram. Ele deu um passo. Seu andar tornou-se firme e estável. Então, como o desfraldar de seda tecida em fulgurantes diamantes, ele estendeu as asas, dobra a dobra, centímetro a centímetro. Elas brotaram de seus ombros e costas, e ele deixou que se fortalecessem.

Respirando fundo, ele tomou o cabo da espada nas duas mãos, segurou-a à frente, e as asas assumiram o comando. Ele estava nos ares, subindo no céu fresco banhado de luz, olhando diretamente para cima sem ver nenhuma escuridão, nenhuma opressão, nenhuma nuvem.

O que viu foi luz: luz do Exército Celestial que varria o céu de um lado a outro até que ele ficasse límpido. O ar era tão fresco, os odores tão limpos.

Ele singrou acima da cidadezinha e voltou à faculdade bem em tempo de ver as muitas luzes piscando nas viaturas policiais e as ambulâncias e os carros oficiais estacionados por toda a parte.

Onde estava Guilo? Oh, onde estava aquele barulhento Guilo?

— Capitão Tal! — veio o brado, e Tal deixou-se cair rumo ao prédio Ames Hall onde seu corpulento amigo o aguardava com um abraço de quebrar costelas.

— Com certeza a batalha terminou? — rugiu Guilo feliz.

— Terminou? — quis saber Tal.

Ele olhou em redor a fim de se certificar. Sim, muito ao longe podia ver os últimos resquícios em fuga da nuvem espalhando-se em todas as direções, banidos pelas forças celestiais. O céu era de um azul muito lindo. Abaixo deles, Tal podia ver o Remanescente fiel ainda cantando e dando vivas. Parecia que a polícia estava fa­zendo uma limpeza final.

 Norm Mattily, Justin Parker e Al Lemley amontoavam-se em torno de Berenice e sua nova amiga.

— Bem, minha gente — disse Berenice — gostaria de apresentar-lhes Susan Jacobson. Ela tem muita coisa a lhes mostrar!

Norm Mattily apertou a mão de Susan e disse:

— Você é uma mulher muito corajosa.

Susan pôde apenas apontar para Berenice através de lágrimas de alívio e dizer:

— Sr. Mattily, olhe bem ali. Está vendo a coragem personificada.

Berenice olhou para a maca que dois enfermeiros tiravam do pré­dio. Juleen Langstrat estava coberta por um lençol branco. Atrás da maca ia Alf Brummel, algemado e escoltado por dois de seus próprios agentes.

Atrás de Brummel vinha o número um, Alexander M. Kaseph. Susan fitou-o por bom tempo, mas ele não ergueu o olhar. Entrou na viatura da polícia com um agente federal sem dizer palavra.

Hank e Mary estavam-se abraçando e chorando, pois tudo termi­nara... e contudo estava apenas começando. Olhe todos esses santos acesos! Aleluia! O que Deus podia fazer com um grupo desses!

Marshall segurava Sandy como se nunca a tivesse abraçado antes. Ambos haviam perdido a conta de quantas vezes pediram desculpas um ao outro. Tudo o que desejavam fazer agora era pôr em dia muito amor perdido.

E então. .. o que era isso, algum tipo de conto de fadas? Esqueça as dúvidas e esqueça as perguntas, Hogan, é mesmo Kate vindo em sua direção! O rosto dela resplandecia, e, puxa, que visão bonita!

Os três ficaram agarrados uns aos outros, e as lágrimas caíram em cima de todos.

— Marshall — disse Kate com lacrimejante estouvamento — não consegui ficar longe. Ouvi dizer que você foi preso.'

— Ora — disse Marshall, dando-lhe um aperto amoroso — de que outra forma Deus ia conseguir a minha atenção?

Kate achegou-se mais a ele e disse:

— Puxa, isso parece promissor!

— Espere só até eu lhe contar o que aconteceu. Kate olhou ao redor para as pessoas e atividade.

— É este o fim do seu... grande projeto?

Ele sorriu, abraçou as suas duas garotas favoritas, e disse:

— É, sim. Pode apostar que sim!

 O General tocou o ombro de Tal. Ele olhou e viu a grande trombeta dourada na mão do General.

— Bem, capitão — disse o anjo de cabelos prateados — quer dar-nos a honra? Dê o toque de vitória!

Tal tomou a trombeta e descobriu que não podia vê-la através de súbito jorro de lágrimas. Ele baixou o olhar a todos aqueles santos de oração e àquele pastorzinho de oração.

— Eles... eles jamais saberão o que fizeram — disse. Então, res­pirou a fim de moderar-se e voltou-se ao velho companheiro de armas. — Guilo, que tal você? — Empurrou a trombeta na direção do anjo grande.

Guilo relutou. — Capitão Tal, é sempre o senhor quem dá o toque de vitória. Tal sorriu, deu a trombeta a Guilo, e sentou-se ali mesmo no teto.

— Caro amigo... estou cansado demais.

Guilo remoeu aquilo um breve momento, e a seguir pôs-se a soltar gargalhadas, depois bateu nas costas de Tal e singrou pelos ares.

O sinal da vitória soou alto e claro, e Guilo até precipitou-se para cima num apertado rodopio para causar efeito.

— Ele adora fazer isso! — disse Tal.

O General riu.

 Assim, Hank ficou com Mary e sua igrejinha renascida; Marshall ficou com a família novamente reunida, pronta para consertar as coisas; Susan e Kevin estariam ocupados por algum tempo como testemunhas da promotoria; Berenice calculou que Marshall lhe per­mitiria cobrir a história até o final.

Mas Berenice ficou ali, machucada e exausta, sentindo-se muito separada, distante desse bando feliz. Alegrava-se por eles, e seu lado profissional, preocupado com o bem público fazia esse papel muito bem. Mas o resto dela, a verdadeira Berenice, não podia dispersar com um sorriso aquele mesmo antigo peso de profunda tristeza que havia sido seu mais íntimo companheiro por tanto tempo.

E agora ela sentia saudades de Pat. Talvez fosse o mistério de sua morte e a obsessão em encontrar as respostas que tivessem mantido Pat viva em seu coração por tanto tempo. Agora não havia nada que adiasse aquele último passo que Berenice jamais conseguira dar: dizer adeus.

E lá estava o estranho anelo no fundo do seu coração, algo que jamais sentira antes de encontrar aquela estranha mocinha, Betsy; será que havia realmente sido tocada por Deus de alguma forma? Se tivesse sido, o que deveria fazer a respeito?

Ela começou a andar. O céu estava vivo de novo, o ar cálido, o campus quieto. Talvez uma caminhada ao longo dos passeios de tijolo vermelho a acalmasse e ajudasse a pensar, ajudasse a encontrar o sentido de tudo o que estava acontecendo ao seu redor e dentro de si.

Ela se deteve embaixo de um grande carvalho, pensou em Pat, pensou em sua própria vida e o que iria fazer com ela, e então permitiu-se chorar. Achou que talvez devesse orar. "Querido Deus", sussurrou, mas então não conseguiu pensar em nada para dizer.

 Tal e o General estavam avaliando a situação abaixo deles.

— Eu diria que esse negócio todo deixou a cidade em petição de miséria — disse o General.

Tal assentiu com a cabeça.

— A faculdade não será a mesma por muito tempo, com a inves­tigação pelas autoridades estaduais e federais, sem falar no dinheiro que terá de ser achado.

— E então, temos um bom contingente para colocar a cidade nos eixos novamente?

— Estão-se reunindo para isso agora. Enquanto isso, Krioni e Tris-kal permanecerão com Busche; Natã e Armote ficarão com Hogan. A família de Hogan terá uma boa igreja onde poderá ser curada, e

— Tal notou de súbito uma figura abatida, sozinha, no outro lado do campus. — Espere —. Ele chamou a atenção de um anjo em particular. — Lá está ela. Não a deixemos escapar.

 Berenice finalmente conseguiu pensar em uma sentença para orar. "Querido Deus, não sei o que fazer."

Hank Busche. O nome surgiu em sua cabeça. Ela voltou o olhar ao Prédio da Administração. O pastor e seu povo ainda estavam lá.

Sabe, disse uma voz dentro dela, não faria mal conversar com aquele homem.

Ela olhou para Hank Busche, e depois para toda aquela gente que parecia tão feliz, tão em paz.

Você esteve clamando por Deus. Bem, talvez esse pregador possa apresentá-la a ele de uma vez por todas.

Ele bem que fez algo por Marshall, pensou Berenice.

Há algo Já atrás de que você precisa, mocinha, e se eu fosse você descobriria o que é.

 O General estava ansioso por partir.

— Estão precisando de nós no Brasil. O reavivamento vai indo bem, mas o inimigo está tramando algum plano. Você deve gostar desse tipo de desafio.

Tal pôs-se de pé outra vez e desembainhou a espada. Nesse exato momento, Guilo voltou com a trombeta. Tal lhe disse:

— Brasil.

Guilo riu-se animado e também puxou da espada.

— Espere — disse Tal, olhando para baixo.

Era Berenice, timidamente chegando perto do pastor e seu novo rebanho. Pela quieta entrega em seus olhos Tal podia ver que ela estava pronta. Logo os anjos se estariam regozijando.

Ele acenou sua aprovação ao anjinho de cabelos encaracolados que estava sentado na curvatura do grande carvalho, e ela sorriu e de­volveu o aceno, seus grandes olhos castanhos brilhando. As reful­gentes vestes brancas e sapatinhos dourados estavam muito mais de acordo com ela do que o macacão e uma motocicleta.

O General perguntou com prazer na voz:

— E então, vamos?

Tal estava olhando para Hank ao dizer:

— Um momento. Quero ouvir as palavras mais uma vez. Enquanto olhavam, Berenice chegou até Hank e Mary. Ela começou a chorar abertamente, e lhes disse palavras calmas mas apaixonadas. Hank e Mary ouviram, assim como outros que estavam por perto, e ao ouvirem, começaram a sorrir. Colocaram seus braços ao redor dela, falaram-lhe de Jesus, e então também puseram-se a chorar.

Finalmente, quando os santos se reuniram e Berenice foi cercada de braços amorosos, Hank disse as palavras:

— Vamos orar...

E Tal sorriu um longo sorriso.

— Podemos ir — disse ele.

Com uma explosão de asas fulgurantes e três rastos de faiscantes labaredas, os guerreiros arrojaram-se ao céu, rumo ao sul, tornando-se cada vez menores até sumir, deixando a agora tranqüila cidade de Ashton em competentes mãos.