quinta-feira, 6 de maio de 2021

Este mundo tenebroso - volume 01 - Capítulo 18


 Hank iniciou o culto da manhã de domingo com um hino vibrante, o qual Mary tocava particularmente bem ao piano. Ambos estavam alegres e sentiam-se encorajados; a despeito dos sons da batalha que se aproximava, sentiam que Deus, em sua infinita sabedoria, estava de fato operando um plano muito poderoso e eficaz para o restabelecimento do seu reino na cidade de Ashton. Vitórias grandes e pequenas estavam em preparação, e Hank sabia que tinha de ser a mão de Deus.

Em primeiro lugar, esta manhã ele estaria ministrando a uma con­gregação quase nova; pelo menos parecia assim. Muitos dos antigos dissidentes haviam saído da igreja e levado consigo sua amargura, e a disposição e estado de ânimo do lugar haviam subido diversos graus. Claro, Alf Brummel, Gordon Mayer e Sam Turner permane­ciam, um bando carrancudo que fazia lembrar o esquadrão da morte, mas nenhum deles estava presente esta manhã. Numerosos amigos e conhecidos, alguns casais, alguns solteiros, e alguns estudantes tinham seguido o exemplo dos Forsythes. Vovó Duster estava pre­sente, forte e saudável como sempre e pronta para uma luta espiritual; John e Patty Coleman estavam de volta, e John não podia deixar de dar largo sorriso de alegria e entusiasmo.

Dos demais, Hank conhecia apenas uma pessoa. Ao lado de Andy e June Forsythe, parecendo um tanto acanhado, estava Ron Forsythe, junto da namorada, uma estudante de segundo ano da faculdade, baixinha e muito pintada. Hank teve de sufocar uma emoção muito forte quando viu os Forsythes entrarem acompanhados do filho: era um milagre, um autêntico ato de graça da parte do Deus vivo. Ele teria gritado aleluia ali mesmo, mas não queria afugentar o rapazinho; esse poderia ser um daqueles casos de luvas de pelica.

Após o primeiro hino, Hank achou melhor tratar da situação que o defrontava.

— Bem — disse ele informalmente — não sei se devo chamá-los de visitantes, refugiados ou o quê.

Todos riram e trocaram olhares. Hank continuou:

— Por que não tiramos alguns momentos para nos apresentar? Acho que vocês provavelmente sabem quem sou; meu nome é Hank Busche, e sou o pastor, e aquela florzinha sentada ao piano é Mary, a minha esposa. — Mary ergueu-se depressa, sorriu humildemente, e sentou-se de novo. — Por que não vamos de um em um dizendo quem somos...

E a primeira chamada do Remanescente ocorreu enquanto os anjos e demônios vigiavam: Krioni e Triskal em seus postos ao lado de Hank e Mary, enquanto Signa e seu pelotão, agora com dez, manti­nham um cerco em torno do prédio.

Novamente Lucius havia discutido amargamente com Signa, ten­tando ser admitido. Mas ele sabia que era melhor não forçar muito a situação, como se não bastasse Hank Busche, este tinha agora uma igreja cheia de santos que oravam. Os guerreiros celestiais estavam gozando sua primeira vantagem real. Por fim, Lucius ordenou aos seus demônios que permanecessem do lado de fora e ouvissem o que pudessem.

Os únicos demônios que haviam conseguido entrar fizeram-no com seus hospedeiros humanos, e agora, espalhados pela congregação, refletiam carrancudos a respeito deste terrível acontecimento. Scion, perto da porta, parecia uma galinha vigiando a ninhada, e Sete se mantinha ao lado dos Forsythes e do grupo que estava com eles.

Havia poder no lugar hoje, e todos o sentiam crescer à medida que cada pessoa se levantava e se apresentava. A Hank parecia como a reunião de um exército especial.

— Ralph Metzer, segundanista de Whitmore...

— Judy Kemp, do segundo ano da faculdade...

— Greg e Eva Smith, amigos dos Forsythes.

— Bill e Betty Jones. Temos uma loja de miudezas na rua Oito...

 — Mike Stewart. Moro com os Jones e trabalho na usina.

— Cal e Ginger Barton. Chegamos há pouco à cidade.

— Cecil e Míriam Cooper, e realmente é um prazer ver todos aqui...

— Ben Squires. Sou o sujeito que leva a sua correspondência se você mora na zona oeste...

— Tom Harris, e esta é a minha esposa Mabel. Sejam todos bem-vindos e louvado seja o Senhor!

— Clint Neal, trabalho no posto de gasolina.

— Greg e Nancy Jenning. Sou professor e ela é escritora.

— Andy Forsythe, e louvado seja o Senhor!

— June Forsythe, e digo amém.

Ron pôs-se de pé, colocou as mãos nos bolsos, e olhou para o chão enquanto dizia:

— Sou... sou Ron Forsythe, e esta é Cynthia, e... fiquei conhe­cendo o pastor na Caverna, e... — Sua voz falhou de emoção. — Apenas queria agradecer a todos vocês o terem orado por mim e o se importarem comigo.

Ele permaneceu em pé por um momento, fitando o chão enquanto lágrimas lhe assomavam aos olhos. June pôs-se em pé ao lado do filho e dirigiu-se ao grupo por ele.

— Ron deseja que saibam que ele e Cynthia entregaram o coração a Jesus ontem à noite.

Todos sorriram encantados e murmuraram palavras de ânimo, e isso fez com que Ron se sentisse à vontade o bastante para dizer:

— É, e jogamos todas as drogas no vaso e demos descarga! Essa confissão cativou a todos os presentes.

Com gozo e fervor cada vez mais intensos, a chamada continuou. Do lado de fora, os demônios ouviam com grande alarme e sibilavam exclamações de mau agouro.

— Rafar precisa ficar sabendo! — disse um deles.

Lucius, as asas meio abertas apenas o bastante para evitar que seus alvoroçados subalternos o amolassem, postava-se imóvel, remoendo pensamentos desagradáveis.

Um demônio pequeno pairou acima de sua cabeça e bradou:

— Que devemos fazer, Mestre Lucius? Devemos procurar Rafar?

— Voltem ao que estavam fazendo! — sibilou ele em resposta. — Deixem que eu me incumbo de informar a Baal Rafar!

Eles se reuniram em torno dele, querendo ouvir sua próxima or­dem. Ultimamente parecia que ele havia falado muito pouco.

— O que estão olhando? — ganiu ele. — Vão embora, façam dia­bruras! Deixem que eu me preocupo com esses santinhos insignifi­cantes!

Eles adejaram em todas as direções, e Lucius permaneceu em seu lugar do lado de fora da janela da igreja.

Contar a Rafar, deveras! Que Rafar se humilhasse o suficiente para perguntar. Lucius não faria papel de lacaio.

Nesta parte da cidade de Nova York, era tudo feito sob encomenda para a elite e fregueses exigentes: as lojas, butiques e restaurantes eram do tipo exclusivo, os hotéis muito luxuosos. Árvores floridas cuidadosamente tratadas cresciam em jardineiras redondas ao longo das calçadas, e o pessoal da limpeza mantinha as ruas e calçadas impecáveis.

Entre a multidão de fregueses apressados e pessoas que estavam apenas olhando as vitrinas encontravam-se dois homens muito gran­des trajando túnicas cáqui, passeando pela calçada e olhando ao redor.

"Hotel Gibson", leu Tal na fachada de antigo e distinto prédio de pedra, que se erguia trinta andares acima deles.

— Não vejo movimento algum — disse Guilo.

— Ainda é cedo. Eles chegarão. Desincumbamo-nos rapidamente de nossa tarefa.

Os dois entraram no saguão do hotel através das grandes portas da frente. Pessoas passavam por eles, e às vezes através deles, mas isso, naturalmente, não tinha importância. Dentro de momentos eles haviam examinado na recepção a lista das reservas para o salão de banquetes e verificado que o Grande Salão de Baile estava reservado para a Sociedade da Percepção Universal.

— A informação do general era correta — comentou Tal com pra­zer.

Eles se apressaram por um longo corredor espessamente acarpetado, passando por uma barbearia, um salão de beleza, uma engraxateria, uma loja de presentes, chegando afinal a duas enormes portas de carvalho com maçanetas de latão luxuosamente ornamentadas. Passando através delas, eles se encontraram no Grande Salão de Baile, agora cheio de mesas de jantar adornadas de cristais e toalhas de linho branco. Havia uma rosa solitária de cabo comprido num pequeno vaso em cada mesa. O pessoal do bufê apressava-se com os preparativos finais, colocando os guardanapos artisticamente dobra­dos e as taças de vinho. Tal verificou os cartões com os nomes dos que se sentariam na mesa principal. Um, perto da ponta, dizia "Kaseph, Omni S.A.".

Atravessaram a porta de uma saída próxima, e olharam à direita e à esquerda. No fim do corredor, à esquerda e na direção dos fundos ficava o toalete das senhoras. Entraram, passaram por algumas mu­lheres que se enfeitavam diante dos espelhos e encontraram o que procuravam: o último sanitário, para o uso de deficientes. Era cons­truído contra a parede de trás do hotel, logo abaixo de uma janela grande bastante para permitir que um ser humano ágil se arrastasse por ela. Tal ergueu a mão, quebrou a tranca, e testou a janela, assegurando-se de que se abriria e fecharia facilmente. Guilo atravessou depressa a parede e na viela encontrou uma grande lixeira e, com incrível facilidade, moveu-a alguns metros de forma que ela foi para baixo da janela. A seguir, ele arranjou alguns engradados e latas de lixo de encontro à lixeira, formando degraus.

Tal reuniu-se a ele e os dois seguiram pela viela até a rua. A um quarteirão de distância havia uma cabina telefônica. Tal ergueu o receptor e assegurou-se de que tudo estava funcionando.

— Aí vêm eles! — avisou Guilo, e saltaram pela parede de uma loja de departamentos e espiaram para fora da janela bem no mo­mento em que uma longa limusine preta e depois outra e depois outra deram início a lúgubre desfile pela rua na direção do hotel. Dentro das limusines sentavam-se dignitários e outras pessoas im­portantes de muitas nações e raças diferentes, e dentro e em cima estavam demônios, grandes, negros, verrugosos e ferozes, os olhos amarelos percorrendo rápida e cautelosamente todas as direções.

Tal e Guilo observaram fascinados. Acima, no céu, outros demô­nios apareceram, dirigindo-se ao hotel qual bandos de andorinhas, suas negras silhuetas aladas desenhadas contra o céu avermelhado.

— Um significativo ajuntamento, Capitão — disse Guilo.

Tal assentiu com a cabeça e continuou a observar. Entre as li­musines vieram muitos táxis, também transportando vasto exemplar da humanidade em geral: orientais, africanos, europeus, ocidentais, árabes; pessoas de grande poder, honra e dignidade de todas as partes do mundo.

— Como dizem as Escrituras, os reis da Terra — observou Tal — embriagando-se com o vinho da imoralidade da grande meretriz.

— A Grande Babilônia — disse Guilo. — A grande Meretriz erguendo-se por fim.

— Sim, Percepção Universal. A religião do mundo, a doutrina dos demônios espalhando-se entre todas as nações. A Babilônia ressus­citada logo antes do final dos tempos.

— Daí o retorno do Príncipe da Babilônia, Rafar.

— Claro. E isso explica por que nós fomos chamados. Fomos os últimos a enfrentá-lo.

Guilo, ao ouvir isso, fez uma careta.

— Meu Capitão, nossa última batalha com Rafar não é uma lem­brança agradável.

— Nem uma expectativa agradável.

— O senhor acha que ele vem aqui?

— Não. Esta reunião é apenas uma festa antes da verdadeira ba­talha, e a verdadeira batalha está marcada para a cidade de Ashton.

Tal e Guilo permaneceram onde estavam, observando a reunião das forças da humanidade e do mal satânico convergirem ao Hotel Gibson. Estavam à espera da pessoa chave: Susan Jacobson, a Serva de Alexander Kaseph.

Por fim viram-na dentro de um luxuosíssimo Lincoln Continental, provavelmente o veículo particular de Kaseph, dirigido por motorista contratado. Vinha escoltada por dois acompanhantes, sentados um de cada lado.

— Ela será vigiada de perto — disse Tal. — Vamos, precisamos ver melhor.

Passaram depressa pela loja de departamentos, através de paredes, mostruários e pessoas, em seguida afundaram-se na rua e foram sair dentro do restaurante que ficava exatamente em frente à porta prin­cipal do hotel. Em toda a volta, pessoas bem vestidas sentavam-se à mesas silenciosas, iluminadas por velas, consumindo caros pratos da cozinha francesa. Apressando-se na direção de uma janela da frente, ao lado de um casal idoso que saboreava frutos do mar e vinho, observaram o carro que conduzia Susan encostar à frente do hotel.

A porta de Susan foi aberta por um porteiro de casaco vermelho. Um dos acompanhantes saiu e estendeu a mão para ajudá-la a descer; ela saltou e imediatamente o outro acompanhante estava ao seu lado. Os dois acompanhantes, vestidos a rigor, eram muito atraentes mas ao mesmo tempo muito intimidantes. Mantinham-se grudados a ela. Susan trajava um vestido de noite solto que lhe cobria o corpo de forma estonteante, e cascateava até os pés.

Guilo teve de perguntar:

— Os planos dela são os mesmos que os nossos? Tal respondeu com segurança:

— O general ainda não errou.

Guilo apenas meneou a cabeça apreensivo.

— Para a viela — disse Tal.

 Seguiram por baixo da viela coberta de pedras e rachaduras e despontaram num esconderijo atrás de uma saída de incêndio. A noite havia caído, e a viela estava escura. Do seu posto de observação, conseguiam contar vinte pares de inquietos olhos amarelos, a espaços regulares ao longo da viela e contra o hotel.

— Há cerca de cem sentinelas — disse Tal.

— Em melhores circunstâncias, um mero punhado — murmurou Guilo.

— Preocupe-se somente com estas vinte.

Guilo tomou a espada na mão. Podia sentir as orações dos santos locais.

— Será difícil — disse. — A cobertura de orações é limitada.

— Não precisa derrotá-los — respondeu Tal. — Apenas faça com que o persigam. Precisamos da viela livre por apenas alguns mo­mentos.

Aguardaram. O ar estava parado e úmido. Os demônios quase não se mexiam, permaneciam nos postos, trocavam resmungos em lín­guas diferentes, seu hálito sulfuroso formando uma fita estranha e sinuosa de vapor amarelo que corria pela viela como um rio pútrido, flutuante. Tal e Guilo podiam sentir sua crescente tensão, como mo­las cada vez mais apertadas, a cada segundo que passava. O banquete devia estar em progresso a essa hora. A qualquer momento, Susan poderia pedir licença e deixar a mesa.

Mais tempo se passou. De repente, tanto Tal quanto Guilo sentiram a instigação do Espírito. Tal olhou para Guilo, que acenou com a cabeça. Ela estava a caminho. Vigiaram a janela. A luz do toalete feminino brilhava; eles mal podiam ouvir o som da porta que se abria e fechava à medida que as senhoras entravam e saíam.

A porta abriu-se. Saltos altos ressoaram no piso de cerâmica, movendo-se na direção da janela. Os demônios se remexeram um pouco, resmungando entre si. A porta do último sanitário girou nas dobradiças. A mão de Guilo agarrou a espada. Ele começou a respirar fundo, o grande torso a expandir-se e encolher-se, o poder de Deus percorrendo-o. Os olhos dos dois estavam pregados na janela. Os demônios se puseram mais alertas, os olhos amarelos muito abertos correndo de um lado para outro. Falavam mais alto.

A sombra da cabeça de uma mulher apareceu na janela. Uma mão de mulher procurou a trava.

Tal tocou o ombro de Guilo, e este se deixou cair entrando pelo chão. Apenas uma fração de segundo se passou.

— IAHAAAAA! — o súbito e ensurdecedor brado de guerra partiu dos poderosos pulmões de Guilo, e a viela toda explodiu instanta­neamente em ofuscante raio de luz branca enquanto Guilo brotava com ímpeto do chão, a espada fulgurante e tremeluzente traçando brilhantes arcos no ar. Os demônios saltaram, berrando e guinchando aterrorizados, mas recobraram-se imediatamente e sacaram as es­padas. A viela ecoou com o retinir metálico, e o fulgor avermelhado de suas lâminas dançava como cometas nas altas paredes de tijolos.

Guilo postou-se alto e forte, e bramiu uma gargalhada que estre­meceu o chão.

— Agora, suas lagartixas negras, testarei seu brio!

Um grande espírito ganiu uma ordem, e os vinte demônios con­vergiram sobre Guilo como predadores famintos, as espadas faiscando e as presas à mostra. Guilo arremeteu para o alto, escapando deles qual sabonete escorregadio, e acrescentou um ágil volteio ao prosseguir, espalhando luz por todos os lados em espirais coloridas. Os demônios abriram as asas e lançaram-se atrás dele. Diante dos olhos de Tal, Guilo foi descrevendo arcos e rodopiando por todo o céu como um balão solto, rindo, atiçando e provocando, mantendo-se um pouco além do alcance dos seus perseguidores. A essa altura, os demônios estavam em fúria cega.

A viela estava vazia. A janela se abria. Num instante, Tal estava debaixo da janela, apagado e escondido pela escuridão. Ele agarrou Susan assim que a mão dela apontou na janela e puxou-a com tanta força que ela praticamente saiu voando. A moça vestia uma blusa simples e calça de brim, e tinha nos pés pequenas sapatilhas. Do pescoço para cima, ainda estava deslumbrante; do pescoço para baixo, estava preparada para correr por vielas escuras.

Tal a ajudou a encontrar a maneira de descer da lixeira e depois instigou-a a seguir pela viela e chegar à rua onde ela hesitou, olhou de um lado e de outro, e então viu a cabina telefônica. Ela correu como o vento, numa pressa terrível e desesperada. Tal a seguiu, tentando manter-se tão encoberto quanto possível. Ele olhou para trás por sobre o ombro; o estratagema de Guilo funcionara. No mo­mento, Guilo era o maior problema para os demônios, e a atenção deles estava longe daquela mulher a correr freneticamente.

Susan atirou-se para dentro da cabina e bateu a porta atrás de si. Ela tirou uma pilha de moedas do bolso da calça, chamou a telefonista e pediu uma ligação interurbana.

 Em algum lugar entre Ashton e a pequena beira de estrada que era Baker, em um depósito em ruínas transformado em apartamentos de baixo aluguel, Kevin Weed acordou de um sono exausto com o tilintar do telefone. Ele revirou no colchão e ergueu o aparelho.

— Pronto, quem fala? — perguntou.

— É Kevin? — veio uma voz desesperada do outro lado. Kevin prestou mais atenção. Era voz de mulher.

— Sim, sou eu. Quem fala?

Na cabina telefônica, Susan olhou de um lado a outro da rua me­drosamente ao dizer:

— Kevin, é Susan. Susan Jacobson.

Kevin estava começando a perguntar-se o que era tudo aquilo.

— Ei, o que você quer comigo afinal?

— Preciso de ajuda, Kevin. Não tenho muito tempo. Não há muito tempo.

— Tempo para quê? — perguntou ele obtusamente.

— Por favor, escute. Anote se precisar.

— Não tenho com que anotar.

— Então escute apenas. Olhe, você já ouviu falar do Clarim de Ashton? O jornal de Ashton?

— Sim, sim, já ouvi falar.

— Berenice Krueger trabalha lá. Ela é a irmã da minha antiga com­panheira de quarto, Pat, aquela que se suicidou.

— Caramba... o que está acontecendo?

— Kevin, você me faz um favor? Entre em contato com Berenice Krueger no Clarim e... Kevin?

— Sim, estou ouvindo.

— Kevin, estou em apuros. Preciso da sua ajuda.

— E então, onde está o seu namorado?

— É dele que estou com medo. Você sabe a respeito dele. Conte a Berenice Krueger tudo acerca de Alexander Kaseph, tudo o que sabe.

Kevin estava perplexo.

— Então que sei eu?

— Diga-lhe o que aconteceu, sabe, entre nós, com Kaseph, diga-lhe tudo. Diga-lhe o que Kaseph está planejando.

— Não estou entendendo.

— Não tenho tempo para explicar. Apenas diga a ela... diga que Kaseph está tomando conta da cidade toda... e faça com que ela saiba que tenho informações muito importantes a respeito de Pat, irmã dela. Tentarei entrar em contato com ela, mas temo que o te­lefone do Clarim esteja grampeado. Kevin, preciso que você esteja lá para atender ao telefone, para... — Susan estava frustrada, cheia de emoção, incapaz de encontrar as palavras certas. Ela tinha coisas demais para dizer, e muito pouco tempo.

— Você não está fazendo muito sentido — murmurou Kevin. — Você tomou alguma coisa?

— Apenas faça o que pedi, Kevin, por favor! Ligarei de novo para você assim que puder, ou escrevei, ou darei um jeito qualquer, mas por favor ligue para Berenice Krueger e diga-lhe tudo o que sabe sobre Kaseph e sobre mim. Diga-lhe que fui eu quem ela viu no festival.

— E como é que vou me lembrar de tudo isso?

— Por favor, dê um jeito. Diga-me que o fará!

— Sim, está bem, farei.

— Tenho de ir! Até logo!

Susan desligou o telefone e saiu correndo da cabina. Tal a seguiu, desviando-se para dentro de prédios tanto quanto possível.

Ele chegou à viela alguns instantes antes dela a fim de verificar o terreno. Encrenca! Outras quatro sentinelas haviam chegado para tomar o lugar das vinte originais, e estavam totalmente alertas. Não havia como saber onde Guilo e as vinte poderiam estar. Tal olhou atrás de si. Susan vinha em disparada.

Tal mergulhou de cabeça pelo calçamento e penetrou fundo na cidade, ganhando velocidade, estendendo a espada prateada. O po­der de Deus estava aumentando agora; os santos deviam estar orando em algum lugar. Ele podia senti-lo. Tinha apenas segundos, e sabia disso. Ele verificou sua posição, descreveu um grande arco subter­râneo distanciando-se do hotel, e então, a quase dois quilômetros de distância, voltou, ganhando velocidade, ganhando velocidade, ga­nhando velocidade, faiscando, armazenando poder, mais depressa, mais depressa, mais depressa, a espada um ofuscante relâmpago, os olhos em fogo, a terra um borrão ao seu redor, o rugir de cimento, vigas, canos e pedras que ficavam para trás como o ruído de um trem de carga. Ele segurou a espada atravessada, a ponta coruscante pronta para aquele momento infinitesimal.

Mais rápido que um pensamento, como a explosão de um foguete, um fulgurante raio de luz jorrou do chão do outro lado da rua e pareceu cortar o espaço em dois ao precipitar-se pela viela bem diante dos olhos dos quatro demônios. Os demônios, estonteados e cegos, caíram ao chão, tropeçaram, tentaram encontrar um ao outro. 0 raio de luz desvaneceu-se no chão tão depressa quanto apareceu. Susan virou a esquina e entrou na viela, dirigindo-se à janela. Tal dobrou as asas e parou. Tinha de voltar para ajudá-la a passar pela janela antes que algum demônio se recuperasse e desse o alarme. Ele engrenou as asas em violento ímpeto para a frente e fez uma volta apressada.

Susan escalou os engradados e latas e chegou à lixeira. Os de­mônios começavam a recobrar a visão e esfregavam os olhos. Tal surgiu de trás da saída de incêndio, tentando calcular o tempo que ainda lhe sobrava.

Ótimo! Guilo estava de volta e caiu como um gavião, agarrando Susan e empurrando-a através da janela num instante, segurando-a de maneira que ela não rolasse ao chão do lado de dentro. O próprio Guilo fechou a janela. Tal voou ao encontro de Guilo. — Mais uma vez — gritou ele.

Não precisava dizer mais nada. As quatro sentinelas se haviam recuperado e se precipitavam sobre eles, e as outras vinte retornavam, furiosas no encalço de Guilo. Tal e Guilo arremeteram para cima e se distanciaram como um raio, perseguidos por um bando de de­mônios espumando de raiva. Os anjos voaram seguindo um curso bem alto sobre a cidade e contiveram a velocidade apenas o suficiente para encorajar os demônios. Rumando para o oeste, os dois adentra­ram o céu escuro da noite, deixando um rasto de brilhantes listas brancas atrás de si. Os demônios foram tenazes na perseguição du­rante centenas de quilômetros, mas afinal Tal voltou-se e descobriu que haviam desistido de segui-los e retornado à cidade. Tal e Guilo aumentaram a velocidade e rumaram para Ashton.

No toalete feminino, Susan enrolou apressada as pernas da calça de brim, apanhou o vestido de gala do gancho e logo recobrou a aparência apropriada ao banquete. Tirou as sapatilhas e as colocou na bolsa, calçou os sapatos de salto, abriu a porta e saiu.

Uma voz masculina do lado de fora da porta do toalete chamou:

— Susan, estão à sua espera!

Ela verificou a aparência no espelho, penteou o cabelo, e tentou acalmar a respiração.

— Mas que pressa — disse ela, provocante.

Com dignidade refinada, ela surgiu no corredor e tomou o braço do acompanhante. Ele a conduziu de volta ao Grande Salão de Baile, agora cheio de gente, levando-a até o seu lugar na mesa principal, fazendo um aceno tranqüilizador ao outro acompanhante.