terça-feira, 25 de maio de 2021

Este mundo tenebroso - parte 2 - Capítulo 16

Próximo do litoral Leste, no topo dos verdes montes acima de um rio pitoresco, gente do mundo inteiro havia encontrado um lugar especial para se reunir; com devoção, visão e suor eles haviam trabalhado para transformar um antigo acampamento da Associação Cristã de Moços num campus especial, um centro de aprendi­zado, enriquecimento pessoal e comunidade. O Centro Ômega para Estudos Educacionais estava agora em seu décimo quarto ano de existência e crescendo continuamente a cada ano, sustentado e elevado por profes­sores, profissionais, estudiosos, artistas, intelectuais e peregrinos espiri­tuais de todas as esferas de ação e de muitos países do mundo. O espírito que os ligava, que os motivava: uma visão e esperança de paz e comunidade mundiais; união com os ritmos da natureza e a eterna expansibilidade do Universo; a aceitação do impulso para mudar; o desafio do desconhecido.

Entre seus vizinhos, o Centro Ômega era descrito em termos de várias tonalidades, desde rótulos como "uma verdadeira vanguarda no potencial humano" até acusações como "uma seita satânica". As pessoas que traba­lhavam, moravam e estudavam no Centro não se deixavam perturbar por isso. Sabiam que nem todos entenderiam sua missão e propósito imedia­tamente, mas agarravam-se ao sonho de que, com o passar do tempo, a união de todos os homens se manifestaria. Dedicavam-se a fazer com que isso acontecesse.

Era cedo numa manhã de sexta-feira. Cree, as asas desfraldadas e imóveis como as asas de uma gaivota, deixou-se cair sobre os topos dos bordos que cercavam a propriedade e deslizou acima da superfície lisa como vidro do Lago Pauline, passando silencioso os pequenos chalés de veraneio, balsas de mergulho, desembarcadouros flutuantes e canoas abicadas na praia. Ele subiria atrás do Centro, na esperança de evitar quaisquer espíritos que pudessem estar de sentinela perto do principal prédio da administração.

Ele diminuiu a velocidade, ergueu-se do lago e deixou-se ir perdendo altura até pousar na praia. A areia estava molhada de orvalho, e uma neblina subia do lago. Barcos a remos repousavam de barriga para cima sobre cavaletes; a área de natação, isolada por uma corda, refletia o desembarcadouro dos barcos como um espelho perfeito. De um lado, nos fundos, entre árvores, encontrava-se o barraco de equipamento. Cree atravessou-lhe sorrateiramente as paredes e se escondeu entre os remos das canoas, as bolas de vôlei e as raquetes de tênis.

Então ele se pôs à escuta. Não havia som algum. A hora estava certa. O Centro parecia quase deserto agora. Era um breve período entre dois retiros educacionais. O grupo da semana havia terminado, feito as malas e partido quinta-feira à noite; o grupo de fim-de-semana deveria chegar naquela noite.

E mais importante ainda, o príncipe desse lugar estava ausente, sentin­do-se descansado e confiante durante a calmaria, provavelmente em alguma missão de diabruras junto com o grosso das hordas demoníacas. As preces daqueles poucos santos fiéis na distante Baskon surtiam efeito; a cobertura de oração era leve, ainda em decadência, mas suficiente no momento, contanto que Cree e seus guerreiros escolhessem a hora exata.

As tropas celestiais estavam ali a fim de encontrar certo membro residente do corpo docente, uma senhora que vivia no alojamento dos professores.

Cree, com a aparência de um índio norte-americano de poderosos braços bronzeados e cabelos cor-de-ébano até os ombros, tinha toda a dissimulação e astúcia de um caçador habilidoso. Seus olhos penetrantes espiaram pela janela e até o outro lado do lago. Ele desembainhou a espada e permitiu que apenas a ponta brilhasse através da janela.

Das árvores próximas, dos barcos no lago, dos chalés e das casas de barcos, da espessa mata do outro lado do lago, pequeninos pontos de luz responderam, as pontas de centenas de lâminas angelicais.

Todos os guerreiros estavam nos lugares, prontos.

Cree acenou um sinalzinho rápido com sua lâmina. Um guerreiro apareceu de trás de um barco a remos, deslizou pela água mal roçando a superfície, ziguezagueou entre as árvores, e reuniu-se a Cree no barracão. Outro guerreiro surgiu de uma casa de barcos, disparou pela água, escon­deu-se atrás do cais de natação, depois deu um jeito de chegar ao barracão também. Dois outros, arremetendo de árvore em árvore e voando baixo, completaram o número que Cree desejava. Eles permaneceram por um momento no barracão, colados às paredes, ouvindo, observando.

— Ela estará acordando logo — informou Cree. — Terá quatro guardando-a. Eles não são fortes, mas têm umas bocas daquelas. Não os deixem gritar.

Eles puxaram as espadas e puseram-se a atravessar o campus, negociando seu caminho de prédio em prédio, árvore em árvore, suavemente, sub-repticiamente.

— Claro, né, os zangões não prestam para grande coisa depois que terminam o vôo com a rainha, por isso são simplesmente atirados fora da colméia com o lixo. Eh! Conheço uma porção de homens que são assim mesmo, apenas bons para comer e acasalar.

Pomeroy, jovial senhor aposentado de calças rancheiras, camisa de flanela e botas pesadas, falava sobre abelhas, seu passatempo e obsessão, e Sally apenas deixava-o falar, quanto mais ele falasse, menos ela teria de falar, e tanto menos perguntas teria de responder sobre si mesma.

Eles estavam na velha caminhonete Chevrolet de Pomeroy, com a grade sobre a parte de trás e o lado direito amassado; ele passara por cima de um toco ao tentar arrancar outro e contou-lhe sobre isso. Estava mesmo a caminho da casa de um colega apicultor a fim de examinar-lhe as colméias quando divisou essa moça solitária e errante na estrada, vestida de calças rancheiras e velha jaqueta azul, um gorro de meia azul na cabeça e grande mochila passada pelo ombro. Ele era o tipo amigável e não gostava de ver uma mulher sozinha pedindo carona; por isso, encostou, apanhou-a e fez-lhe pequena preleção sobre os perigos de pedir carona, e depois perguntou-lhe aonde ia.

— Ao Centro Ômega — respondeu ela.

Ela quase esperava uma reação negativa por parte desse pensador local, tradicional, mas aparentemente ele se havia acostumado com o Centro na vizinhança e não tinha ressentimentos, apenas curiosidade.

— Lá em cima deve ser interessante — observou ele.

— Não sei. Faz anos que não vou lá.

— Bem... estamos todos buscando, não estamos?

Sally não queria meter-se em nenhuma discussão profunda, mas res­pondeu mesmo assim.

— É, estamos mesmo.

— Sabe, eu descobri que o Deus da Bíblia é resposta espetacular as minhas perguntas. Já pensou sobre isso alguma vez?

Sally notou o chapéu de apicultura e o véu atrás do banco e usou isso para mudar de assunto.

— Ei, você cuida de abelhas?

E foi isso que levou o Sr. Pomeroy a começar a falar de trabalhadoras, zangões, rainhas, colméias, mel, extratores, e daí por diante. Sally achou bom. Tirava-os dos assuntos incômodos e dava-lhe uma desculpa para não ter de falar.

— Aquele Centro fica só uns poucos quilômetros mais adiante nesta estrada. Posso deixá-la bem no portão da frente... Que tal?

O alojamento dos professores era um prédio novo, de dois andares, com vinte unidades. O revestimento externo das paredes de madeira compensada chanfrada de cor escura e o telhado de ripas combinava com a decoração geral do campus, rústico, silvestre, mas funcional. Cree e seus guerreiros encontraram abundância de lugares onde se esconder no espesso matagal logo abaixo das janelas dos fundos.

Numa das pontas do prédio, um braço escuro, de couro liso, caia através da folha fechada de uma janela e balançava do lado de fora, as garras prateadas andando distraídas, divertidas, de um lado para outro pela parede. Sim, havia espíritos inimigos por ali. Aquele devia pertencer a outro membro residente do corpo docente. Era esse o seu quarto.

A ponta oposta do prédio era uma parede lisa, sem janelas e flanqueada por grandes árvores. Cree nomeou uma sentinela, e então, enquanto a sentinela vigiava dos arbustos, os outros quatro guerreiros esconderam-se atrás daquela ponta do prédio, flutuaram parede acima e desapareceram no local do sótão. Então a sentinela seguiu-os.

Eles agacharam-se bem debaixo dos caibros, os pés na manta de fibra de vidro cor-de-rosa. Agora eles podiam ouvir um som leve, queixoso, não muito diferente do de um violino nas mãos de um principiante. Vinha de um dos cômodos não muito distante deles. Eles se adiantaram, o suporte do teto atravessando-lhes os peitos enquanto caminhavam. Agora eles se encontravam em cima do som.

Cree lançou-se para a frente, mergulhando lentamente através da fibra de vidro e das vigas do teto até poder olhar dentro do quarto.

Sim. Haviam encontrado o quarto de Sybill Denning, antiga educadora, bondosa e matronal, cochilando em sua cama, não completamente acor­dada. Aparentemente, ela se deliciava com alguns fragmentos de sonhos que ainda brincavam na sua cabeça, e não estava pronta ainda para abrir os olhos.

Sentado ao seu lado na cama, um espírito brincalhão, pequenino, revolvia-lhe o cérebro com o dedo como se estivesse mexendo numa tigela de sopa, cantando baixinho para si mesmo, dando risadinhas entre suas frases monótonas, ásperas, enquanto lhe pintava quadros na mente.

— Você vai gostar deste aqui — provocou ele soando como um corvo. — Vamos... deixe seu corpo e toque a lua...

Havia três outros espíritos no quarto, um pendurado na parede como um morcego, um de costas sobre o tapete com os pés cheios de garras no ar, e um deitado numa ponta da cama como que dormindo. Eles lembravam a Cree jovens delinqüentes escondidos em algum antro proibido, alegre­mente cometendo pecado em segredo.

— Oh, não lhe dê esse aí outra vez — disse o espírito pendurado na parede.

— Por que não? — perguntou o pintor de sonhos. — Ela sempre acredita.

— Posso fazer um melhor.

— Hoje à noite e a sua vez.

Cree ergueu os olhos aos guerreiros. Eles estavam prontos. Os olhos amarelos do pintor de sonhos dançavam de prazer ante sua própria esperteza.

— Ôôôô, lembra-se deste lugar? Você já esteve aqui antes. É parte de você!

Um clarão ofuscante! Quatro anjos, quatro demônios! Espadas rutilan­tes, fumaça vermelha!

A Sra. Denning acordou assustada.

Oh! Era de manhã. O que havia estado sonhando? Andando sobre a lua, tocando-a, conhecendo-a como se a tivesse feito. Sim. Que lindo! Talvez fosse verdade, apenas enterrada por trás de um véu de esquecimento. Algum dia precisava analisar o que poderia significar.

Ela sentou-se. Sentia-se descansada mas não cheia de energia. Por algum motivo, sua inspiração normal não estava presente. Talvez o trabalho da semana anterior lhe tivesse esgotado o poder.

Cree e seus guerreiros se reagruparam no sótão a fim de vigiá-la. O quarto estava vazio agora, exceto por ela.

Ela levantou-se, vestiu-se, e desceu as escadas. Talvez uma breve caminhada nessa manhã fresca e clara despertasse outra vez seu potencial intimo e botasse os humores criativos em circulação. Sempre havia fun­cionado antes.

— Isso mesmo, aqui está — disse o Sr. Pomeroy, encostando perto de uma larga entrada de pedriscos que se curvava para dentro do bosque. Logo ao lado da estrada havia uma bonita placa tratada com jatos de areia: CENTRO ÔMEGA PARA ESTUDOS EDUCACIONAIS.

Sally empurrou a porta e pulou fora.

— Muito obrigada.

— Que Deus lhe abençoe — disse o bondoso homem. Mais pensamentos tradicionais, pensou Sally.

— Claro. Cuide-se.

Ele acenou com a cabeça e sorriu. Ela fechou a porta da cabine e tirou a mochila da carroceria da caminhonete. Deu com a mão e ele se foi, aparentemente com abelhas e colméias na cabeça.

O som da velha caminhonete se esvaneceu, e então ficou apenas o silêncio dessa manhã montanhosa. Sally se postou imóvel por um momen­to, apenas olhando para aquela placa. Achou que eles provavelmente a haviam repintado em alguma ocasião, mas fora isso, ainda era a mesma. A entrada de pedriscos também era a mesma. Quantos anos se haviam passado? Pelo menos dez.

Ela temia, mas tinha de arriscar-se. Começou a subir a entrada de pedrisco, vigiando cuidadosamente todos os lados. Tentou lembrar-se como era, onde estava tudo. Tinha a esperança de que nada lhe escapasse à observação e a surpreendesse.

A velha caminhonete do Sr. Pomeroy subiu roncando pela estrada montanhosa e fez uma longa e constante curva. Quando a estrada passou por trás de um fechado bosque, o som da caminhonete sumiu depressa, substituído pelo farfalhar murmurante de asas sedosas.

Quando a estrada reapareceu, Si, o escuro indiano, estava no ar, as asas desfraldadas e a espada na mão. Com uma explosão de energia, ele ganhou altura em linha quase reta e circulou de volta na direção do Centro.

A Sra. Denning sentiu-se melhor ao ar fresco, andando pelo caminho liso de asfalto que ficava entre as salas de aula e os salões de reuniões. Logo o campus estaria cheio de gente outra vez e essa solidão repousante terminaria. Certamente estava agradável a essa hora; lá ia um esquilinho subindo aquela árvore, e como os pássaros tagarelavam!

Oh, o que era aquilo? alguém chegando antes da hora? Pouco adiante do campo de esportes, uma jovem subia a estrada principal que levava ao conjunto. Seus olhos se encontraram.

Cree tocou os olhos da Sra. Denning. Calma lá... não enxergue muito bem. Então ele disparou para dentro das árvores e fora de vista. Em algum lugar, os outros guerreiros estavam presentes, prontos e invisíveis.

Sally olhou cuidadosamente aquela mulher de quem se aproximava. Ela não tinha certeza de quem pudesse ser. Tinha medo que pudessem ter-se conhecido antes.Continuou andando.

Enfim, as duas mulheres encontraram-se face a face na frente do pitoresco Café Cabana de Toras.

— Alô - disse a Sra. Denning. — E quem seria você?

Sally sorriu, mas sua mente estava instantaneamente distante, a mais de dezoito anos de distância.

Conheço esta mulher.

A mulher diante dela, trajando calças cinza e um moletom esportivo do Centro Ômega, era dezoito anos mais velha, mais grisalha, o rosto mais enrugado. Mas os olhos cinza ainda tinham o mesmo brilho, e a cabeça ainda tinha a mesma inclinação brincalhona quando ela falava. Era Sybil Denning!

Sally encontrou a língua e o nome que havia resolvido usar.

— Umm... Sou Bethany Farrell. Apenas passava por esta área, e alguém me disse que eu poderia encontrar um lugar para ficar aqui em cima.

A Sra. Denning sorriu.

— Oh, até pode ser que sim. Temos lugar onde se pode acampar para passar a noite aqui, e alguns bons chalés. Estamos esperando gente que chegará para um retiro de fim-de-semana esta tarde, mas é um grupo pequeno. Estou certa de que ainda teremos alguns quartos desocupados. O que tinha em mente?

— Oh... apenas um lugar quente abrigado da chuva, alguns cobertores, talvez um colchão.

A Sra. Denning riu.

— Oh, podemos oferecer um pouquinho mais do que isso! Escute, o escritório ainda demora algumas horas para abrir. Acho que os Galvins já estão de pé agora; talvez abram o restaurante e a gente possa tomar uma xícara de café, está bem?

—Está.

A Sra. Denning voltou-se rumo ao Café Cabana de Toras, e Sally a seguiu.

— A propósito, sou Sybil Denning.

— Prazer em conhecê-la.

— Desculpe. Como é mesmo o seu nome?

— Bethany Farrell.

A Sra. Denning se deteve no grande pátio à frente do restaurante.

— Bethany Farrell... — Ela fitou Sally fixamente por um instante. — Não sei por que tenho a impressão de conhecê-la. Como se escreve seu último nome?

— F-a-r-r-e-l-l.

A Sra. Denning sacudiu a cabeça um pouco.

— Não... não parece familiar. Diga-me, já nos encontramos antes?

O sargento Mulligan dirigiu-se ao Correio assim que recebeu o chama­do. Estacionou o carro silenciosamente, subiu as escadas silenciosamente, e silenciosamente encontrou a agente do Correio Lucy Brandon, e então quase estourou uma veia tentando conter-se.

— Oi, Lucy — disse, provavelmente alto demais.

— Oh, oi, Haroldo — respondeu ela de trás do balcão. Ajudava uma freguesa a resolver se mandava algo de primeira ou quarta classe, e a pequena senhora não parecia conseguir decidir-se. Lucy voltou-se para Debbie, que acabava de entregar uma caixa de pintinhos a uma ginasiana atordoada.

— Debbie, você poderia terminar de servir a Sra. Barcino?

Debbie foi até lá e começou a verificar o peso do pacote na balança.

— Quarta classe?

A Sra. Barcino ainda não estava satisfeita.

— Bem, não sei... Assim é meio lento, não é?

Lucy apressou-se ate a sala dos fundos e abriu a porta marcada Reser­vada Aos Funcionários para Mulligan. Ele entrou, a mão no quadril, os pés arrastando-se nervosamente. Lucy nada disse, mas entrou depressa atrás de uma divisória para ficar isolada. Mulligan seguiu-a e quando ambos estavam resguardados de algum olhar vigilante, ela mostrou-lhe uma carta, ainda no envelope fechado.

Ele a tomou em seus grandes dedos, leu o endereço e o endereço do remetente, na realidade, apenas um nome, e nada disse. Não podia pensar em nada para dizer.

Era uma carta endereçada a Tom Harris. O nome no canto esquerdo superior era Sally Roe.

— Quando foi que isto chegou? — perguntou Mulligan.

— Hoje. E olhe a data do carimbo: de três dias atrás apenas. Mais uma vez Mulligan não podia pensar em nada para dizer. Lucy estava muito preocupada.

— Não entendo. Acho que poderia ter ficado perdida em algum canto, ou ter sido reenviada, não sei, mas... existe apenas um carimbo, e a... meio país de distância.

Mulligan murmurou:

— Alguém está sendo bem mórbido. É uma piada.

— Bem, não tem endereço para o qual a possamos devolver. Não sei...

— Podemos abrir esta coisa?

— Não, não podemos mexer com a correspondência...

— Mmm.

— Mas é meio apavorante. A data é posterior ao suicídio de Sally Roe. E se Sally Roe ainda estiver viva em algum canto?

Mulligan não respondeu muito bem a pergunta.

— Não está! Isso é loucura!

Ela levou o dedo ao lábio a fim de fazê-lo aquietar-se.

A atenção de Debbie, contudo, foi chamada por aquela explosão. Ela havia terminado de atender à Sra. Barcino e podia ver só um pouquinho do que ocorria por trás da divisória.

Ele esforçou-se para encontrar uma resposta.

— Bem... ouça, não sei o que é tudo isto, mas deixe-me levar a carta comigo e averiguar o que está acontecendo.

— Mas ... é correspondência! Ele ergueu a mão.

— Ei, estamos apenas atrasando-a, só isso. Precisamos averiguar o que está acontecendo.

— Mas...

— Se Tom Harris algum dia receber esta carta... Nunca se sabe, poderia atrapalhar a sua ação judicial.

Lucy hesitou quando ele disse isso.

— Mas estou preocupada com a lei...

— Não se preocupe com isso. Protegeremos você. Apenas farei alguns amigos examinarem isto aqui, e devolveremos a você.

— Você não vai abri-la ...

— Não se preocupe. Simplesmente não se preocupe.

Ele colocou a carta no bolso e saiu de lá, deixando Lucy perturbada, curiosa, nervosa e, sim, preocupada.

Quando ele colocou a carta no bolso, Debbie viu o que ele fez. Ela não sabia o que tudo aquilo significava; apenas achou que podia ser algo de que valesse a pena lembrar-se.

Debbie não foi a única que viu aquilo. Dois espiritozinhos seguiam Mulligan, adejando sobre seus ombros como enormes mosquitos, cuida­dosamente de olho na carta, fungando e sibilando numa frenética conversa secreta.

Mulligan entrou no carro e ligou o motor. Teria de dar alguns telefone­mas quando voltasse à delegacia.

Os espíritos tinham visto o suficiente.

— Destruidor! — sibilou um deles.

— Ele nos recompensará por isto! — babou o outro.

Eles dispararam pela rua, inclinando-se sobre as capotas dos caminhões e carros, desviando-se dos postes, voando por aqui e por ali entre as lojas e negócios e através deles. Destruidor ainda devia estar por perto; eles o encontrariam.

Logo abaixo deles, despercebido, um grande carro marrom desceu a rua Fronte. O homenzarrão que o dirigia passava calmamente pela cidade, apenas procurando ter uma impressão do lugar. Não era grande coisa, esse lugar. De um lado ficava o único posto de gasolina da cidade, que se gabava de oferecer preços módicos e consertar de graça pneus para as senhoras. Ao seu lado estava a Mercearia Baskon, um armazém veterano de muitas épocas difíceis, da mesma forma que o velho trator enferrujado estaciona­do ao seu lado em grama da altura dos eixos.

Do outro lado da rua ficava a Casa Agrícola de Ração Myers. O lugar parecia estar indo bem nos negócios, havia uma porção de gastas cami­nhonetes estacionadas à sua volta e diversos chapéus de tratoristas por ali. Então vinham os elevadores de grãos, as elevadas sentinelas que eram visíveis por muitos quilômetros e traziam o nome da cidade para qualquer pessoa que pudesse estar-se perguntando o que todas essas pequenas construções faziam no fim do mundo. O supermercado Bom Preço parecia fora de lugar, precisava de outras lojas a seu redor para parecer certo.

— Então, aonde vamos agora? — perguntou o homem grandalhão à esposa.

Ela estava sentada ao seu lado, pelo menos tão radiante na vida real quanto naquela fotografia que ele sempre mantinha em sua escrivaninha.

— O que era aquela igreja que passamos lá atrás?

— Metodista, acho.

— Oh, aqui está uma luterana.

— É. Muito atraente.

— Então, onde podemos encontrar uma Igreja Comunitária?

— Estamos saindo fora da comunidade, Kate. Teremos de voltar.

— Acho que é melhor perguntar a alguém.

Ele encostou na frente da Barbearia do Max, muito no interesse dos dois sossegados cavalheiros aposentados que ocupavam suas cadeiras de madeira na varanda da frente.

— Alô — cumprimentou ele, e os dois se puseram de pé e chegaram mais perto.

— Ora, olá — respondeu Ed.

— Que desejam? — perguntou Mose.

— Estou à procura da Igreja Comunitária do Bom Pastor.

Os dois homens grisalhos se entreolharam e trocaram uma piada silenciosa e intima com os olhos.

Ed reclinou-se contra o carro e quase botou a cabeça para dentro através da janela.

— É outro repórter?

— Bem... de certa forma, sim. Uh, não exatamente.

Mose postou-se atrás de Ed para fazer a sua pergunta, enquanto Ed permanecia ali, o nariz quase atravessando a janela, dando uma olhada naquele sujeito grandalhão.

— Acho que ninguém está na igreja agora. Mas a escola está aberta, e talvez o pastor esteja lá, mas ele e aquela outra senhora...

— A Sra. Fields — disse Ed.

— Isso. Eles devem estar muito atarefados com as crianças no momento. Mas Tom Harris é o quente nessa história. Se você quiser ver o homem ...

O homem olhou para a esposa. Ela já estava com uma sobrancelha erguida. A coisa era notícia importante nesta cidadezinha. Ele se voltou para Mose... e Ed, o que era inevitável.

— Está bem. Onde posso encontrar Tom Harris?

— Está quase lá. Suba até o banco, vire à direita. Aquela é a Estrada do Lago. Continue por uns oitocentos metros, e verá primeiro a igreja, à esquerda, e então a casa do Tom Harris fica logo do outro lado do lago, à direita, uma casinha branca com um terraço de vidro na banda sul.

— De onde você é? — perguntou Ed.

— Você nunca ouviu falar do lugar.

— Só estava perguntando.

Ed afastou-se do carro e deu um pequeno aceno quando o cairão partiu. Mose apenas ficou olhando com um sorriso no rosto. Ed moveu a cabeça com grande convicção.

— Ele é repórter, Mose. Sei que é.

Tom repassava algumas notas que ele havia feito para alguns dos interrogatórios que teriam em breve. Wayne Corrigan havia dito que a ACAL provavelmente tentaria evitar responder à maioria delas, mas ele ia perguntar de qualquer forma. Tinha uma porção de perguntas a fazer àqueles tipos, e ia começar ali mesmo.

Alguém bateu à porta. Ele fechou a pasta e a enfiou na prateleira.

Então abriu a porta. Seu primeiro pensamento foi o de que se defron­tava com outro grupo de jornalistas, mas esses dois eram provavelmente casados, pelo modo como ficavam perto um do outro. O homem era alto e aparentemente forte, cerca de meia-idade, vestido esportivamente. A esposa era atraente, também em trajes esportivos, mas irradiando tranqüila dignidade.

— Tom Harris? — perguntou o homenzarrão.

— Sim — respondeu ele, sem fazer nenhum esforço para esconder seu aborrecimento com os dois estranhos. — E quem são vocês?

— Meu nome é Marshall Hogan, e esta é a minha esposa, Kate. Viemos de muito longe e gostaríamos de conversar com você.