Próximo do litoral Leste, no topo dos verdes montes acima de um
rio pitoresco, gente do mundo inteiro havia encontrado um lugar especial para
se reunir; com devoção, visão e suor eles haviam trabalhado para transformar um
antigo acampamento da Associação Cristã de Moços num campus especial, um centro
de aprendizado, enriquecimento pessoal e comunidade. O Centro Ômega para
Estudos Educacionais estava agora em seu décimo quarto ano de existência e
crescendo continuamente a cada ano, sustentado e elevado por professores,
profissionais, estudiosos, artistas, intelectuais e peregrinos espirituais de
todas as esferas de ação e de muitos países do mundo. O espírito que os ligava,
que os motivava: uma visão e esperança de paz e comunidade mundiais; união com
os ritmos da natureza e a eterna expansibilidade do Universo; a aceitação do
impulso para mudar; o desafio do desconhecido.
Entre seus vizinhos, o Centro Ômega era descrito em
termos de várias tonalidades, desde rótulos como "uma verdadeira vanguarda
no potencial humano" até acusações como "uma seita satânica". As
pessoas que trabalhavam, moravam e estudavam no Centro não se deixavam
perturbar por isso. Sabiam que nem todos entenderiam sua missão e propósito
imediatamente, mas agarravam-se ao sonho de que, com o passar do tempo, a
união de todos os homens se manifestaria. Dedicavam-se a fazer com que isso
acontecesse.
Era cedo numa manhã de sexta-feira. Cree, as asas desfraldadas e imóveis
como as asas de uma gaivota, deixou-se cair sobre os topos dos bordos que
cercavam a propriedade e deslizou acima da superfície lisa como vidro do Lago
Pauline, passando silencioso os pequenos chalés de veraneio, balsas de
mergulho, desembarcadouros flutuantes e canoas abicadas na praia. Ele subiria
atrás do Centro, na esperança de evitar quaisquer espíritos que pudessem estar
de sentinela perto do principal prédio da administração.
Ele diminuiu a velocidade, ergueu-se do lago e
deixou-se ir perdendo altura até pousar na praia. A areia estava molhada de orvalho, e uma
neblina subia do lago. Barcos a remos repousavam de barriga para cima sobre
cavaletes; a área de natação, isolada por uma corda, refletia o desembarcadouro
dos barcos como um espelho perfeito. De um lado, nos fundos, entre árvores,
encontrava-se o barraco de equipamento. Cree atravessou-lhe sorrateiramente as
paredes e se escondeu entre os remos das canoas, as bolas de vôlei e as
raquetes de tênis.
Então ele se pôs à escuta. Não havia som algum. A hora estava
certa. O Centro parecia quase deserto agora. Era um breve período entre dois
retiros educacionais. O grupo da semana havia terminado, feito as malas e
partido quinta-feira à noite; o grupo de fim-de-semana deveria chegar naquela
noite.
E mais importante ainda, o príncipe desse lugar estava
ausente, sentindo-se descansado e confiante durante a calmaria, provavelmente
em alguma missão de diabruras junto com o grosso das hordas demoníacas. As
preces daqueles poucos santos fiéis na distante Baskon surtiam efeito; a
cobertura de oração era leve, ainda em decadência, mas suficiente no momento,
contanto que Cree e seus guerreiros escolhessem a hora exata.
As tropas celestiais estavam ali a fim de encontrar
certo membro residente do corpo docente, uma senhora que vivia no alojamento
dos professores.
Cree, com a aparência de um índio norte-americano de poderosos braços
bronzeados e cabelos cor-de-ébano até os ombros, tinha toda a dissimulação e
astúcia de um caçador habilidoso. Seus olhos penetrantes espiaram pela janela e
até o outro lado do lago. Ele desembainhou a espada e permitiu que apenas a
ponta brilhasse através da janela.
Das árvores próximas, dos barcos no lago, dos chalés e das casas
de barcos, da espessa mata do outro lado do lago, pequeninos pontos de luz
responderam, as pontas de centenas de lâminas angelicais.
Todos os guerreiros estavam nos lugares, prontos.
Cree acenou um sinalzinho rápido com sua lâmina. Um
guerreiro apareceu de trás de um barco a remos, deslizou pela água mal roçando
a superfície, ziguezagueou entre as árvores, e reuniu-se a Cree no barracão.
Outro guerreiro surgiu de uma casa de barcos, disparou pela água, escondeu-se
atrás do cais de natação, depois deu um jeito de chegar ao barracão também.
Dois outros, arremetendo de árvore em árvore e voando baixo, completaram o
número que Cree desejava. Eles permaneceram por um momento no barracão, colados
às paredes, ouvindo, observando.
—
Ela estará acordando logo — informou Cree. — Terá quatro guardando-a. Eles não
são fortes, mas têm umas bocas daquelas. Não os deixem gritar.
Eles puxaram as espadas e puseram-se a atravessar o
campus, negociando seu caminho de prédio em prédio, árvore em árvore, suavemente,
sub-repticiamente.
—
Claro, né, os zangões não prestam para grande coisa depois que terminam o vôo
com a rainha, por isso são simplesmente atirados fora da colméia com o lixo.
Eh! Conheço uma porção de homens que são assim mesmo, apenas bons para comer e
acasalar.
Pomeroy, jovial senhor aposentado de calças rancheiras, camisa de
flanela e botas pesadas, falava sobre abelhas, seu passatempo e obsessão, e
Sally apenas deixava-o falar, quanto mais ele falasse, menos ela teria de
falar, e tanto menos perguntas teria de responder sobre si mesma.
Eles estavam na velha caminhonete Chevrolet de Pomeroy,
com a grade sobre a parte de trás e o lado direito amassado; ele passara por cima de um toco
ao tentar arrancar outro e contou-lhe sobre isso. Estava mesmo a caminho da
casa de um colega apicultor a fim de examinar-lhe as colméias quando divisou
essa moça solitária e errante na estrada, vestida de calças rancheiras e velha
jaqueta azul, um gorro de meia azul na cabeça e grande mochila passada pelo
ombro. Ele era o tipo amigável e não gostava de ver uma mulher sozinha pedindo
carona; por isso, encostou, apanhou-a e fez-lhe pequena preleção sobre os
perigos de pedir carona, e depois perguntou-lhe aonde ia.
—
Ao Centro Ômega — respondeu ela.
Ela quase esperava uma reação negativa por parte
desse pensador local, tradicional, mas aparentemente ele se havia acostumado
com o Centro na vizinhança e não tinha ressentimentos, apenas curiosidade.
—
Lá em cima deve ser interessante — observou ele.
—
Não sei. Faz anos que não vou lá.
—
Bem... estamos todos buscando, não estamos?
Sally não queria meter-se em nenhuma discussão profunda, mas respondeu
mesmo assim.
—
É, estamos mesmo.
—
Sabe, eu descobri que o Deus da Bíblia é resposta espetacular as minhas
perguntas. Já pensou sobre isso alguma vez?
Sally notou o chapéu de apicultura e o véu atrás do banco e usou isso
para mudar de assunto.
—
Ei, você cuida de abelhas?
E foi isso que levou o Sr. Pomeroy a começar a falar de
trabalhadoras, zangões, rainhas, colméias, mel, extratores, e daí por diante.
Sally achou bom. Tirava-os dos assuntos incômodos e dava-lhe uma desculpa para
não ter de falar.
—
Aquele Centro fica só uns poucos quilômetros mais adiante nesta estrada. Posso
deixá-la bem no portão da frente... Que tal?
O alojamento dos professores era um prédio novo, de dois andares,
com vinte unidades. O revestimento externo das paredes de madeira compensada
chanfrada de cor escura e o telhado de ripas combinava com a decoração geral do
campus, rústico, silvestre, mas funcional. Cree e seus guerreiros encontraram
abundância de lugares onde se esconder no espesso matagal logo abaixo das
janelas dos fundos.
Numa das pontas do prédio, um braço escuro, de couro liso, caia através da
folha fechada de uma janela e balançava do lado de fora, as garras prateadas
andando distraídas, divertidas, de um lado para outro pela parede. Sim, havia
espíritos inimigos por ali. Aquele devia pertencer a outro membro residente do
corpo docente. Era esse o seu quarto.
A ponta oposta do prédio era uma parede lisa, sem janelas e flanqueada por grandes
árvores. Cree nomeou uma sentinela, e então, enquanto a sentinela vigiava dos
arbustos, os outros quatro guerreiros esconderam-se atrás daquela ponta do
prédio, flutuaram parede acima e desapareceram no local do sótão. Então a
sentinela seguiu-os.
Eles agacharam-se bem debaixo dos caibros, os pés na manta de fibra de
vidro cor-de-rosa. Agora eles podiam ouvir um som leve, queixoso, não muito
diferente do de um violino nas mãos de um principiante. Vinha de um dos cômodos
não muito distante deles. Eles se adiantaram, o suporte do teto
atravessando-lhes os peitos enquanto caminhavam. Agora eles se encontravam em
cima do som.
Cree lançou-se para a frente, mergulhando lentamente através da fibra
de vidro e das vigas do teto até poder olhar dentro do quarto.
Sim. Haviam encontrado o quarto de Sybill Denning,
antiga educadora, bondosa e matronal, cochilando em sua cama, não completamente acordada.
Aparentemente, ela se deliciava com alguns fragmentos de sonhos que ainda
brincavam na sua cabeça, e não estava pronta ainda para abrir os olhos.
Sentado ao seu lado na cama, um espírito brincalhão,
pequenino, revolvia-lhe o cérebro com o dedo como se estivesse mexendo numa
tigela de sopa, cantando baixinho para si mesmo, dando risadinhas entre suas
frases monótonas, ásperas, enquanto lhe pintava quadros na mente.
—
Você vai gostar deste aqui — provocou ele soando como um corvo. — Vamos...
deixe seu corpo e toque a lua...
Havia três outros espíritos no quarto, um pendurado na parede como um
morcego, um de costas sobre o tapete com os pés cheios de garras no ar, e um
deitado numa ponta da cama como que dormindo. Eles lembravam a Cree jovens
delinqüentes escondidos em algum antro proibido, alegremente cometendo pecado
em segredo.
—
Oh, não lhe dê esse aí outra vez — disse o espírito pendurado na parede.
—
Por que não? — perguntou o pintor de sonhos. — Ela sempre acredita.
—
Posso fazer um melhor.
—
Hoje à noite e a sua vez.
Cree ergueu os olhos aos guerreiros. Eles estavam
prontos. Os olhos amarelos do pintor de sonhos dançavam de prazer ante sua
própria esperteza.
—
Ôôôô, lembra-se deste lugar? Você já esteve aqui antes. É parte de você!
Um clarão ofuscante! Quatro anjos, quatro demônios! Espadas rutilantes,
fumaça vermelha!
A Sra. Denning acordou assustada.
Oh! Era de manhã. O que havia estado sonhando? Andando sobre a lua,
tocando-a, conhecendo-a como se a tivesse feito. Sim. Que lindo! Talvez fosse
verdade, apenas enterrada por trás de um véu de esquecimento. Algum dia
precisava analisar o que poderia significar.
Ela sentou-se. Sentia-se descansada mas não cheia de energia. Por
algum motivo, sua inspiração normal não estava presente. Talvez o trabalho da
semana anterior lhe tivesse esgotado o poder.
Cree e seus guerreiros se reagruparam no sótão a fim de vigiá-la. O quarto
estava vazio agora, exceto por ela.
Ela levantou-se, vestiu-se, e desceu as escadas. Talvez
uma breve caminhada nessa manhã fresca e clara despertasse outra vez seu potencial intimo e
botasse os humores criativos em circulação. Sempre havia funcionado antes.
—
Isso mesmo, aqui está — disse o Sr. Pomeroy, encostando perto de uma larga
entrada de pedriscos que se curvava para dentro do bosque. Logo ao lado da
estrada havia uma bonita placa tratada com jatos de areia: CENTRO ÔMEGA PARA
ESTUDOS EDUCACIONAIS.
Sally empurrou a porta e pulou fora.
—
Muito obrigada.
—
Que Deus lhe abençoe — disse o bondoso homem. Mais pensamentos tradicionais,
pensou Sally.
—
Claro. Cuide-se.
Ele acenou com a cabeça e sorriu. Ela fechou a porta da cabine e tirou a
mochila da carroceria da caminhonete. Deu com a mão e ele se foi, aparentemente
com abelhas e colméias na cabeça.
O som da velha caminhonete se esvaneceu, e então ficou apenas o silêncio
dessa manhã montanhosa. Sally se postou imóvel por um momento, apenas olhando
para aquela placa. Achou que eles provavelmente a haviam repintado em alguma ocasião, mas fora isso, ainda
era a mesma. A entrada de pedriscos também era a mesma. Quantos anos se haviam
passado? Pelo menos dez.
Ela temia, mas tinha de arriscar-se. Começou a subir a entrada de
pedrisco, vigiando cuidadosamente todos os lados. Tentou lembrar-se como era,
onde estava tudo. Tinha a esperança de que nada lhe escapasse à observação e a
surpreendesse.
A velha caminhonete do Sr. Pomeroy subiu roncando pela estrada
montanhosa e fez uma longa e constante curva. Quando a estrada passou por trás de um fechado bosque, o
som da caminhonete sumiu depressa, substituído pelo farfalhar murmurante de
asas sedosas.
Quando a estrada reapareceu, Si, o escuro indiano, estava
no ar, as asas desfraldadas e a espada na mão. Com uma explosão de energia, ele ganhou altura em
linha quase reta e circulou de volta na direção do Centro.
A Sra. Denning sentiu-se melhor ao ar fresco, andando
pelo caminho liso de asfalto que ficava entre as salas de aula e os salões de reuniões. Logo o
campus estaria cheio de gente outra vez e essa solidão repousante terminaria.
Certamente estava agradável a essa hora; lá ia um esquilinho subindo aquela
árvore, e como os pássaros tagarelavam!
Oh, o que era aquilo? alguém chegando antes da hora?
Pouco adiante do campo de esportes, uma jovem subia a estrada principal que
levava ao conjunto. Seus olhos se encontraram.
Cree tocou os olhos da Sra. Denning. Calma lá... não enxergue muito
bem. Então
ele disparou para dentro das árvores e fora de vista. Em algum lugar, os outros
guerreiros estavam presentes, prontos e invisíveis.
Sally olhou cuidadosamente aquela mulher de quem se
aproximava. Ela não tinha certeza de quem pudesse ser. Tinha medo que pudessem ter-se
conhecido antes.Continuou andando.
Enfim, as duas mulheres encontraram-se face a face na
frente do pitoresco Café Cabana de Toras.
—
Alô - disse a Sra. Denning. — E quem seria você?
Sally sorriu, mas sua mente estava instantaneamente
distante, a mais de dezoito anos de distância.
Conheço esta mulher.
A mulher diante dela, trajando calças cinza e um moletom
esportivo do Centro Ômega, era dezoito anos mais velha, mais grisalha, o rosto
mais enrugado. Mas os olhos cinza ainda tinham o mesmo brilho, e a cabeça ainda
tinha a mesma inclinação brincalhona quando ela falava. Era Sybil Denning!
Sally encontrou a língua e o nome que havia resolvido usar.
—
Umm... Sou Bethany Farrell. Apenas passava por esta área, e alguém me disse que
eu poderia encontrar um lugar para ficar aqui em cima.
A Sra. Denning sorriu.
—
Oh, até pode ser que sim. Temos lugar onde se pode acampar para passar a noite
aqui, e alguns bons chalés. Estamos esperando gente que chegará para um retiro
de fim-de-semana esta tarde, mas é um grupo pequeno. Estou certa de que ainda
teremos alguns quartos desocupados. O que tinha em mente?
—
Oh... apenas um lugar quente abrigado da chuva, alguns cobertores, talvez um
colchão.
A Sra. Denning riu.
—
Oh, podemos oferecer um pouquinho mais do que isso! Escute, o escritório ainda
demora algumas horas para abrir. Acho que os Galvins já estão de pé agora;
talvez abram o restaurante e a gente possa tomar uma xícara de café, está bem?
—Está.
A Sra. Denning voltou-se rumo ao Café Cabana de Toras, e Sally
a seguiu.
—
A propósito, sou Sybil Denning.
—
Prazer em conhecê-la.
—
Desculpe. Como é mesmo o seu nome?
—
Bethany Farrell.
A Sra. Denning se deteve no grande pátio à frente do
restaurante.
—
Bethany Farrell... — Ela fitou Sally fixamente por um instante. — Não sei por
que tenho a impressão de conhecê-la. Como se escreve seu último nome?
—
F-a-r-r-e-l-l.
A Sra. Denning sacudiu a cabeça um pouco.
—
Não... não parece familiar. Diga-me, já nos encontramos antes?
O sargento Mulligan dirigiu-se ao Correio assim que
recebeu o chamado. Estacionou o carro silenciosamente, subiu as escadas
silenciosamente, e silenciosamente encontrou a agente do Correio Lucy Brandon,
e então quase
estourou uma veia tentando conter-se.
—
Oi, Lucy — disse, provavelmente alto demais.
—
Oh, oi, Haroldo — respondeu ela de trás do balcão. Ajudava uma freguesa a
resolver se mandava algo de primeira ou quarta classe, e a pequena senhora não parecia
conseguir decidir-se. Lucy voltou-se para Debbie, que acabava de entregar uma
caixa de pintinhos a uma ginasiana atordoada.
—
Debbie, você poderia terminar de servir a Sra. Barcino?
Debbie foi até lá e começou a verificar o peso do pacote na balança.
—
Quarta classe?
A Sra. Barcino ainda não estava satisfeita.
—
Bem, não sei... Assim é meio lento, não é?
Lucy apressou-se ate a sala dos fundos e abriu a porta
marcada Reservada Aos Funcionários para Mulligan. Ele entrou, a mão no quadril, os pés
arrastando-se nervosamente. Lucy nada disse, mas entrou depressa atrás de uma
divisória para ficar isolada. Mulligan seguiu-a e quando ambos estavam
resguardados de algum olhar vigilante, ela mostrou-lhe uma carta, ainda no
envelope fechado.
Ele a tomou em seus grandes dedos, leu o endereço e o endereço do
remetente, na realidade, apenas um nome, e nada disse. Não podia pensar em nada
para dizer.
Era uma carta endereçada a Tom Harris. O nome no canto esquerdo superior
era Sally Roe.
—
Quando foi que isto chegou? — perguntou Mulligan.
—
Hoje. E olhe a data do carimbo: de três dias atrás apenas. Mais uma vez Mulligan
não podia pensar em nada para dizer. Lucy estava muito preocupada.
—
Não entendo. Acho que poderia ter ficado perdida em algum canto, ou ter sido
reenviada, não sei, mas... existe apenas um carimbo, e a... meio país de
distância.
Mulligan murmurou:
—
Alguém está sendo bem mórbido. É uma piada.
—
Bem, não tem endereço para o qual a possamos devolver. Não sei...
—
Podemos abrir esta coisa?
—
Não, não podemos mexer com a correspondência...
—
Mmm.
—
Mas é meio apavorante. A data é posterior ao suicídio de Sally Roe. E se Sally
Roe ainda estiver viva em algum canto?
Mulligan não respondeu muito bem a pergunta.
—
Não está! Isso é loucura!
Ela levou o dedo ao lábio a fim de fazê-lo aquietar-se.
A atenção de Debbie, contudo, foi chamada por aquela explosão. Ela
havia terminado de atender à Sra. Barcino e podia ver só um pouquinho do que
ocorria por trás da divisória.
Ele esforçou-se para encontrar uma resposta.
—
Bem... ouça, não sei o que é tudo isto, mas deixe-me levar a carta comigo e
averiguar o que está acontecendo.
—
Mas ... é correspondência! Ele ergueu a mão.
—
Ei, estamos apenas atrasando-a, só isso. Precisamos averiguar o que está
acontecendo.
—
Mas...
—
Se Tom Harris algum dia receber esta carta... Nunca se sabe, poderia atrapalhar
a sua ação judicial.
Lucy hesitou quando ele disse isso.
—
Mas estou preocupada com a lei...
—
Não se preocupe com isso. Protegeremos você. Apenas farei alguns amigos examinarem
isto aqui, e devolveremos a você.
—
Você não vai abri-la ...
—
Não se preocupe. Simplesmente não se preocupe.
Ele colocou a carta no bolso e saiu de lá, deixando Lucy
perturbada, curiosa, nervosa e, sim, preocupada.
Quando ele colocou a carta no bolso, Debbie viu o que
ele fez. Ela não
sabia o que tudo aquilo significava; apenas achou que podia ser algo de que
valesse a pena lembrar-se.
Debbie não foi a única que viu aquilo. Dois espiritozinhos seguiam
Mulligan, adejando sobre seus ombros como enormes mosquitos, cuidadosamente de
olho na carta, fungando e sibilando numa frenética conversa secreta.
Mulligan entrou no carro e ligou o motor. Teria de dar
alguns telefonemas quando voltasse à delegacia.
Os espíritos tinham visto o suficiente.
—
Destruidor! — sibilou um deles.
—
Ele nos recompensará por isto! — babou o outro.
Eles dispararam pela rua, inclinando-se sobre as
capotas dos caminhões e carros, desviando-se dos postes, voando por aqui e por ali entre as
lojas e negócios e através deles. Destruidor ainda devia estar por perto; eles
o encontrariam.
Logo abaixo deles, despercebido, um grande carro marrom
desceu a rua Fronte. O homenzarrão que o dirigia passava calmamente pela cidade, apenas
procurando ter uma impressão do lugar. Não era grande coisa, esse lugar. De um
lado ficava o único posto de gasolina da cidade, que se gabava de oferecer
preços módicos e consertar de graça pneus para as senhoras. Ao seu lado estava
a Mercearia Baskon, um armazém veterano de muitas épocas difíceis, da mesma
forma que o velho trator enferrujado estacionado ao seu lado em grama da
altura dos eixos.
Do outro lado da rua ficava a Casa Agrícola de Ração Myers. O
lugar parecia estar indo bem nos negócios, havia uma porção de gastas caminhonetes
estacionadas à sua volta e diversos chapéus de tratoristas por ali. Então
vinham os elevadores de grãos, as elevadas sentinelas que eram visíveis por
muitos quilômetros e traziam o nome da cidade para qualquer pessoa que pudesse
estar-se perguntando o que todas essas pequenas construções faziam no fim do
mundo. O supermercado Bom Preço parecia fora de lugar, precisava de outras
lojas a seu redor para parecer certo.
—
Então, aonde vamos agora? — perguntou o homem grandalhão à esposa.
Ela estava sentada ao seu lado, pelo menos tão radiante na vida real
quanto naquela fotografia que ele sempre mantinha em sua escrivaninha.
—
O que era aquela igreja que passamos lá atrás?
—
Metodista, acho.
—
Oh, aqui está uma luterana.
—
É. Muito atraente.
—
Então, onde podemos encontrar uma Igreja Comunitária?
—
Estamos saindo fora da comunidade, Kate. Teremos de voltar.
—
Acho que é melhor perguntar a alguém.
Ele encostou na frente da Barbearia do Max, muito no
interesse dos dois sossegados cavalheiros aposentados que ocupavam suas
cadeiras de madeira na varanda da frente.
—
Alô — cumprimentou ele, e os dois se puseram de pé e chegaram mais perto.
—
Ora, olá — respondeu Ed.
—
Que desejam? — perguntou Mose.
—
Estou à procura da Igreja Comunitária do Bom Pastor.
Os dois homens grisalhos se entreolharam e trocaram uma
piada silenciosa e intima com os olhos.
Ed reclinou-se contra o carro e quase botou a cabeça para dentro através da
janela.
—
É outro repórter?
—
Bem... de certa forma, sim. Uh, não exatamente.
Mose postou-se atrás de Ed para fazer a sua pergunta, enquanto Ed
permanecia ali, o nariz quase atravessando a janela, dando uma olhada naquele
sujeito grandalhão.
—
Acho que ninguém está na igreja agora. Mas a escola está aberta, e talvez o
pastor esteja lá, mas ele e aquela outra senhora...
—
A Sra. Fields — disse Ed.
—
Isso. Eles devem estar muito atarefados com as crianças no momento. Mas Tom
Harris é o quente nessa história. Se você quiser ver o homem ...
O homem olhou para a esposa. Ela já estava com uma
sobrancelha erguida. A coisa era notícia importante nesta cidadezinha.
Ele se voltou para Mose... e Ed, o que era inevitável.
—
Está bem. Onde posso encontrar Tom Harris?
—
Está quase lá. Suba até o banco, vire à direita. Aquela é a Estrada do Lago.
Continue por uns oitocentos metros, e verá primeiro a igreja, à esquerda, e
então a casa do Tom Harris fica logo do outro lado do lago, à direita, uma
casinha branca com um terraço de vidro na banda sul.
—
De onde você é? — perguntou Ed.
—
Você nunca ouviu falar do lugar.
—
Só estava perguntando.
Ed afastou-se do carro e deu um pequeno aceno quando o
cairão partiu.
Mose apenas ficou olhando com um sorriso no rosto. Ed moveu a cabeça com grande
convicção.
—
Ele é repórter, Mose. Sei que é.
Tom repassava algumas notas que ele havia feito para
alguns dos interrogatórios que teriam em breve. Wayne Corrigan havia dito que a ACAL
provavelmente tentaria evitar responder à maioria delas, mas ele ia perguntar
de qualquer forma. Tinha uma porção de perguntas a fazer àqueles tipos, e ia
começar ali mesmo.
Alguém bateu à porta. Ele fechou a pasta e a enfiou na
prateleira.
Então abriu a porta. Seu primeiro pensamento foi o de que se
defrontava com outro grupo de jornalistas, mas esses dois eram provavelmente
casados, pelo modo como ficavam perto um do outro. O homem era alto e
aparentemente forte, cerca de meia-idade, vestido esportivamente. A esposa era
atraente, também em trajes esportivos, mas irradiando tranqüila dignidade.
—
Tom Harris? — perguntou o homenzarrão.
—
Sim — respondeu ele, sem fazer nenhum esforço para esconder seu aborrecimento
com os dois estranhos. — E quem são vocês?
— Meu nome é Marshall Hogan, e esta é a minha esposa, Kate. Viemos de muito longe e gostaríamos de conversar com você.