terça-feira, 25 de maio de 2021

Este mundo tenebroso - parte 2 - Capítulo 15


 Por fim, a juíza Fletcher pousou a caneta e falou, olhando alternadamente através dos óculos de leitura para os papéis à sua frente e em seguida, por cima deles, para os advogados, litigantes, observadores e câmaras de televisão.

— Duvido que qualquer um dos lados fique inteiramente satisfeito com a minha decisão, mas contrário à afirmativa inicial do Sr. Jefferson, este é um caso difícil, e me coloca numa posição mais difícil ainda, na qual sou chamada a equilibrar, por assim dizer, a Constituição e os melhores interesses de uma criança de dez anos. Ao tentar conseguir esse tipo de equilíbrio, é inevitável que ambas as partes nesta disputa percam alguma coisa e descubram que seus respectivos desejos não foram totalmente satisfeitos.

— Li os autos e ouvi os argumentos dos senhores advogados. Creio ser este um caso onde alguma reparação injuntiva se faz necessária. Entretan­to, existem argumentos fortes e fracos nos dois lados, e algumas questões que me parecem, pelo menos nesta altura, indebatíveis. Tratarei das queixas separadas uma a uma.

— Repassando a lista... com relação ao 'Comportamento Religioso Chocante Contra uma Criança', concordo com a Constituição de que existe um lugar para persuasão e práticas religiosas individuais. Mas afirmo que certamente existe um lugar para restrição apropriada, e nenhum lugar para qualquer violação das leis do estado. A queixa da acusadora é clara e direta, de que Amber foi perseguida e efetivamente rotulada como alguém possuída por um espírito, um demônio, qualquer que seja a definição dessa palavra. Acredito que a correção desse comportamento deva ser questio­nado; acho que essa proteção deve permanecer. Portanto, a ordem restri­tiva contra esse tipo de comportamento deve permanecer até a questão ser resolvida em julgamento.

— Direi o mesmo quanto a qualquer outro castigo físico de qualquer criança na Academia. O estado tem interesse em proteger as suas crianças, e têm havido muitos casos onde o castigo corporal foi considerado impróprio. Conquanto a convicção religiosa tenha seu lugar legítimo em nossa sociedade, a possibilidade de abusos a crianças ainda existe, e, portanto, acho apropriado que uma ordem restritiva seja dada seguindo o teor do pedido da Sra. Brandon, e que essa questão seja levada a julgamen­to.

— Quanto às três queixas seguintes, 'Instrução Religiosa Excessiva Prejudicial à Criança', 'Perseguição' e 'Discriminação', eu concordaria com o Sr. Corrigan que essas queixas são um tanto vagas, que não foram estabelecidas para satisfação do tribunal como sendo prejudiciais a crian­ças. O tribunal concorda que essas são questões religiosas, e está claro que a posição religiosa da Academia foi bem anunciada e claramente declarada, de forma que a Sra. Brandon estava ciente da natureza religiosa da Acade­mia antes de matricular a filha. Se a acusadora argumenta que essas crenças e ensinamento são impróprios para qualquer criança, então que seu advogado edifique um caso e o apresente no julgamento.

Quanto à queixa final: 'Doutrinação Religiosa Mediante Uso de Fundos Federais', a Sra. Brandon removeu a filha da escola, e enquanto nenhum outro pagamento for feito à escola saindo do salário da Sra. Brandon, não existe, na minha opinião, nenhuma outra violação da lei, e nenhum prejuízo causado até que essa questão possa ser resolvida em julgamento. A restrição é irrelevante, e portanto, fica revogada.

— Assinarei a ordem escrita apropriada quando completada pelo senhor advogado. Os senhores advogados devem discutir a fiança apropriada a ser colocada na ordem. Se não conseguirem chegar a um acordo, chamem meu escrevente.

— Estou retendo uma decisão neste momento sobre a ordem de apresentação que a acusadora requisitou. Estou preocupada com isso. Outros argumentos podem ser necessários, ou pode ser irrelevante, mas e uma questão importante.

— Com esta ordem, não estou dizendo que as alegações da acusadora são infundadas, apenas que toda a restrição solicitada até haver o julga­mento é injustificada. A questão toda prosseguirá a julgamento no devido tempo."

Ela apanhou o martelo e bateu-o com força. "Este tribunal está em recesso."

"Levantem-se todos", disse a meirinha. Todos se ergueram, e os mur­múrios e resmungos começaram enquanto a juíza Fletcher saía da sala.

— E agora? — perguntou Tom.

— Agora escapamos aos jornalistas e damos o fora daqui — disse Corrigan.

— Como nos saímos? — perguntou Mark enquanto Cathy lhe tomava o braço e escutava.

— Bem, ainda temos uma longa batalha adiante de nós. Revisando, sua escola pode permanecer aberta e vocês podem continuar ensinando seu currículo normal, mas castigos físicos estão proibidos e expulsar demônios é tabu. A juíza diz que vocês não têm de apresentar os nomes e relação financeira de qualquer outra criança, por isso essa é uma amolação que evitamos. Eu diria que nos saímos bem, considerando como poderia ter sido. Vamos dar o fora daqui.

A Sra. Fields e os Parmenters também estavam cheios de perguntas.

— A escola pode permanecer aberta? — perguntou a Sra. Fields.

— Sim, isso ficou certo — disse Tom. Cathy deu um abraço na professora e disse:

— Vamos ter uma reunião com todos e explicar tudo isso. Jack Parmenter ainda estava doido por uma briga.

— Precisamos pegar aquele... aquele bandido do Jefferson. Não preci­samos agüentar esse tipo de conversa!

— Vamos falar a respeito de tudo isso em outro lugar — disse Corrigan. Ele saiu na frente, e os outros o seguiram em fila indiana através das portas da sala do tribunal.

As luzes das câmaras eram ofuscantes; era como se fosse dia no corredor ao lado de fora.

— Sr. Harris! — veio o primeiro jornalista. — Qual é a sua reação à decisão da juíza?

— Nada a dizer — disse Wayne Corrigan.

— E os seus filhos? — perguntou outro Jornalista. — Quanto tempo faz que foram levados de sua casa?

Quanto vale a ordem da juíza, pensou Tom.

— É verdade que tentou exorcizar um demônio da criança? — perguntou uma senhora, empurrando um microfone no rosto de Tom.

Corrigan agarrou o microfone.

— Tencionamos levar nosso caso a julgamento num tribunal da lei, não na imprensa. Obrigado.

Mais perguntas.

— Vamos embora — disse Corrigan a Tom e aos outros.

Eles continuaram andando, escapulindo sorrateiros através da multi­dão.

Passaram por um grupo de jornalistas e câmaras amontoados em torno de Lucy Brandon e seus dois advogados. Jefferson discursava com um comentário extenso para a imprensa:

— ... A decisão da juíza foi exatamente o que esperávamos. Embora não possamos crer que qualquer pessoa permitisse que seus filhos fossem submetidos a esse tipo de currículo e ao tratamento severo que ele requer, posso compreender por que a juíza relutava em decidir com base na evidência abreviada que se pode produzir para uma audiência a curto prazo como esta. Estamos, contudo, satisfeitos por a juíza ter escolhido proteger as crianças de Baskon de outros abusos físicos às mãos de Tom Harris e sua equipe... esses fundamentalistas.

Tom ouviu tudo aquilo e voltou-se. Tinha de dizer alguma coisa. Ele não podia deixar que aquilo fosse parar na imprensa.

— Venha, vamos embora — disse Corrigan, puxando-o pelo braço. Eles se apressaram a sair do tribunal.

A reunião de oração da noite de quarta-feira na casa de Mark e Cathy estava lotada. A freqüência não era tão ruim em qualquer noite normal de quarta-feira, mas essa noite não era normal de jeito nenhum, e não havia cadeiras suficientes para todos.

Todos os membros do conselho compareceram, juntamente com as esposas, bem como algumas pessoas da corrente de oração: Donna Hemp­hile, Lester e Dolly Sutter, Tim e Becky Farmer, Brent e Amy Ryan, e a viúva Alice Buckmeier. Ben Cole estava presente com a esposa, Bev; a Sra. Fields estava lá, embora ela freqüentasse regularmente a igreja batista local nas noites de quarta-feira. Wayne Corrigan também se encontrava lá e provavelmente constituiria o centro das atenções.

A única pessoa perceptivelmente ausente era Tom Harris. Ele havia tirado uma licença, e sentiu-se compelido a ficar de longe. Além disso, Mark achara que a discussão daquela noite seria mais livre e quaisquer reclamações poderiam ser expressadas mais facilmente se ele não estivesse presente, e Tom havia concordado com isso.

Outras ausências perturbavam um tanto Mark, que, sendo o pastor, estava mais apto a notá-las. Andrea e Wes Jessup, que geralmente compa­reciam à reunião do meio da semana, estavam ausentes, bem como os Wingers. Mark sabia o motivo da sua ausência. Ainda havia alguns descon­tentes por lá que precisavam que seus temores e falsas informações fossem esclarecidos, e, naturalmente, sendo os que mais precisavam estar presen­tes, não estavam. Lidar com eles ia ser um projeto penoso e desagradável.

No total, a casa tinha de estar contendo não menos do que cinqüenta pessoas. De fato, esta devia ser uma crise.

Mas a casa estava cheia também de outros visitantes, não menos do que cinqüenta, quase igualando a freqüência. Tal estava presente, juntamente com Guilo, recém-chegado de sua inspeção perto da cidade montanhosa de Summit; Nathan e Armoth estavam prontos ao lado de Tal, e tinham a seu comando uma tremenda tropa de guerreiros. Mota e Signa, tendo completado sua tarefa na escola primária, estavam presentes e supervisio­nando a barreira de guardas que ora cercava a casa. Esta seria uma reunião que não iria ser invadida por quaisquer espíritos saqueadores.

— Os mensageiros estão prontos — relatou Nathan. — Tudo o de que precisam é uma ordem sua.

Tal correu os olhos à volta da sala e conseguiu dar um sorriso desagra­dável.

— Talvez obtenhamos uma idéia melhor de onde está a dificuldade, e onde a nossa cobertura de oração foi parar. Talvez o Senhor conceda ao seu povo uma porção especial da sua sabedoria esta noite. — Ele deu mais uma olhadela à volta da sala e então disse:

— Os mensageiros esperarão pela minha ordem.

— Feito. —E Sally Roe? Chimon adiantou-se.

— Scion e eu acabamos de entregá-la aos cuidados de Cree e Si. Eles a estão acompanhando ao Centro Ômega.

— Bom. Dirijam-se imediatamente a Bentmore e preparem o caminho para ela ali.

— Feito.

Chimon e Scion desapareceram rumo ao seu próximo encargo. Wayne Corrigan ergueu-se a fim de dirigir-se ao grupo e rebater suas perguntas.

— Eu diria que foi uma vitória de cinqüenta por cento — falou ele — que é uma forma positiva de olhar a coisa. A Academia vai poder funcionar tranqüilamente sem número excessivo de interrupções.

— Até algumas daquelas crianças descobrirem que vocês não podem surrá-las — disse Tim Farmer, que era um sitiante, mostrava a falta de um dente sempre que ria, e cujo filho estava na quinta série da Academia. — Seja o que for que fizerem, não contem essa parte ao Jesse!

Todos riram. Ficaram contentes por ter sido o pai do Jesse quem falou isso.

— Vocês terão uma desvantagem, certamente — disse Corrigan. — Terão de arranjar outras formas de resolver problemas de disciplina.

Judy Waring, sempre que ouvia e transmitia más noticias, quase explo­dia de vontade de dizer o que pensava.

— Bem, quero saber o que nos meteu neste apuro, para começo de história. O que, exatamente, está o Tom Harris fazendo com as nossas crianças?

— Judy! — interrompeu Mark. — Estamos aqui para discutir isso até todo mundo ficar satisfeito, não se preocupe. Amy Ryan fez uma pergunta simples.

— Mark, será que podíamos ouvir isso de sua parte? Tom tentou expulsar um demônio dessa garotinha Brandon?

Mark sabia que teria problemas assim que deu a resposta.

— Sim, tentou. Ela estava...

— Ora, isso é que foi uma jogada besta — manifestou-se Brent, o marido de Amy. Ele era um musculoso construtor que considerava suas áreas de competência como sendo gás natural, a Palavra de Deus, e jogadas bestas.

— Como é que ele sabia se era um demônio ou não?

Judy Waring estava mais do que pronta a vergastar aquele cavalo.

— Ele não tinha a menor idéia do que fazia, e agora meteu a nossa escola numa embrulhada da qual ela jamais sairá!

Mark tentou restaurar a ordem, e teve de falar em tom firme.

— Muito bem, pessoal. Agora, antes que todos disparemos em uma centena de direções diferentes, vamos apenas ficar quietos e primeiro ouvir o que Wayne tem a dizer. Dirijam suas perguntas a ele, uma de cada vez!

— Fizemos alguma coisa errada — insistiu Judy. — Não estaríamos no tribunal se não tivéssemos feito algo errado.

— Judy!

Ela fechou os lábios, mas com uma expressão desafiante.

— Vamos lá, santos — disse Tal — vocês podem sair-se melhor do que isso!

Guilo murmurou:

— O senhor queria saber onde a nossa cobertura de oração tinha ido parar?

Wayne Corrigan tentou começar outra vez.

Quero dar-lhes um quadro correto, mas também não quero parecer negativo. Estamos no meio de uma ação judicial, mas isso não é o fim do mundo... ou da escola. É possível que consigamos atravessar essa coisa e sair ilesos com a ajuda do Senhor e de todos os que puderem dar uma mãozinha. Por ora, a escola está debaixo de uma ordem restritiva que proíbe o uso de castigo físico ou de qualquer comportamento religioso que possa ser considerado prejudicial às crianças.

— Expulsar demônios... — sussurrou Bret baixinho. Todos ouviram.

— Não, deixem-me comentar a respeito disso agora mesmo. Vocês têm de entender como o sistema funciona, e como a ACAL funciona. Expulsar demônios não ê o ponto final de tudo isso. É apenas a questão que fica sendo impelida para a frente porque é de natureza sensacional e principal­mente porque envolve uma criança. A ACAL sabe disso e eles estão tirando o máximo proveito, fazendo da questão o ponto de aglutinação.

— Mas seria melhor acompanhar e observar a frase: "comportamento religioso chocante". Sabem, o que poderia acontecer neste caso e que os tribunais — para o bem das crianças — tenham de determinar que tipo de ação particular de um grupo religioso constitui comportamento religioso chocante; uma vez que o precedente legal esteja estabelecido, pode ser usado em casos futuros a fim de ampliar a definição original de exatamente que tipo de comportamento religioso é afrontoso e pode ser desafiado legalmente, quer uma criança esteja envolvida, quer não. Teríamos final­mente aberto a porta para os tribunais estabelecerem qual tipo de crença religiosa é aceitável e qual não é, para falar francamente.

— Mas, e a liberdade religiosa? — perguntou Lester Sutter, um dos cidadãos mais velhos da congregação. — Desde quando o governo nos diz como viver nossas vidas e como educar os nossos filhos?

— Exatamente. Essa e a verdadeira questão aqui, e quero que todos vocês entendam isso. Essa ação judiciária não é a respeito de surras ou demônios ou qualquer outra coisa. A ACAL está por trás dessa coisa toda, e podem estar certos de que ela está trabalhando a fim de estabelecer alguns precedentes legais que darão ao governo federal o poder de controlar a religião e as escolas religiosas.

— Eles não podem fazer isso! — exclamou Amy Ryan.

— Estão fazendo — respondeu Brent.

— Mas, e a Constituição? Brent deu de ombros.

— O que tem? Corrigan interveio.

— Brent percebeu o que quero mostrar. A idéia popular hoje em dia é a de que a Constituição é um "documento vivo" que pode ser reinterpretado pelos tribunais à medida que a sociedade continua a evoluir moral­mente.

— Ou apodrecer moralmente — disse Jack Parmenter.

— Ou espiritualmente — disse Mark. — Escute, minha gente, esta não é apenas algum tipo de batalha legal. É uma batalha espiritual, não se esqueçam disso.

— É — disse Brent, mostrando uma leve viravolta em sua atitude. — E se fosse mesmo um demônio? Logo, logo, vai ser contra a lei expulsar um deles.

— Mas quem foi que disse que temos de fazer o que o governo diz? — perguntou Tim Farmer. — E os apóstolos? Eles não obedeceram aos governantes judeus quando receberam ordens de não pregar a respeito de Jesus.

Corrigan replicou:

— Esse e um ponto importante, e algo que vocês precisam considerar seriamente: podem escolher a desobediência civil como os apóstolos fizeram, e obedecer antes a lei de Deus do que a dos homens...

— Vamos fazer isso! — disse Frank Parmenter.

— Mas — acrescentou Corrigan depressa lembrem-se de que os apóstolos foram para a prisão, foram açoitados, torturados e martirizados por causa da sua posição. E como já disse antes, Paulo e Silas expulsaram um demônio em Filipos e acabaram na prisão por causa disso. A desobe­diência civil não vem sem um preço. — Agora a sala estava em silêncio. Corrigan continuou:

— E esse preço poderia também significar extremo dano para a sua credibilidade nesta ação judicial. Seus argumentos num apelo serão mais difíceis de sustentar. Agora, é claro que precisam seguir a sua consciência diante de Deus, e existe um precedente bíblico para a desobediência civil — as parteiras hebréias que violaram as ordens de Faraó de matar os meninos hebreus, Raabe que escondeu os espias, os apóstolos que prega­ram em nome de Jesus quando receberam ordens de não fazê-lo. Mas meu conselho para vocês é o de trabalharem através do sistema primeiro, o velho jeito de Romanos 13. Será melhor para vocês no julgamento!

— E se perdermos? — perguntou Brent.

— Então... — Corrigan hesitou e considerou sua resposta. — Então simplesmente terão de fazer o que tiverem de fazer. — E acrescentou apressadamente:

— Mas, por favor, lembrem-se, o processo legal demora. Precisam ser pacientes e não fazer nada impensado que possa prejudicar suas chances de vencer no tribunal. Lembrem-se de que a ACAL pretende levar este caso a âmbito nacional, tão longe quanto conseguir, com atenção da imprensa nacional e tanta publicidade negativa quanto possa gerar. Eles estão usando o Decreto das Creches para entrar nos tribunais federais também, de modo que este caso poderia facilmente ter precedentes danosos que poderiam afetar todas as outras igrejas, todas as outras escolas cristãs no país. Vocês não estão apenas fazendo escolhas para si mesmos esta noite, mas para os seus irmãos e irmãs em toda a parte. São a primeira pedra do dominó. Lembrem-se disso.

— A primeira pedra do dominó — disse Brent baixinho, e depois sacudiu a cabeça ao pensar nisso. — Parece que a perseguição começou, minha gente.

Mark interveio.

— E então, o que vem a seguir, Wayne?

— A parte mais difícil de todas, acho eu. Teremos de enviar interroga­tórios ao outro lado, tomar depoimentos deles, e construir uma defesa. Para aqueles de vocês que não sabem o que essas palavras significam, um interrogatório é apenas uma lista de perguntas, coisas que queremos descobrir da parte deles. Queremos saber quais são as suas queixas e o que sabem, de modo que possamos rebater seja lá qual for o seu argumento. Os depoimentos são parecidos. Faremos uma reunião com as testemunhas que estarão depondo contra nós, e elas responderão às nossas perguntas sob juramento, com um taquígrafo do tribunal para fazer um registro verbal do que elas disserem. O outro lado vai fazer o mesmo com as nossas testemunhas, e supostamente os dois lados saberão que testemunho e evidência serão apresentados de modo que possam preparar seus argu­mentos para o julgamento.

— Então, o que podemos fazer para ajudar? — perguntou Jack Parmenter, e todos os rostos na sala concordaram com a pergunta.

— Bem... — Corrigan olhou para o teto em busca de uma resposta. — Qualquer advogado é apenas tão bom quanto a informação que tem, e como já discuti com seu pastor e com Tom Harris, estou apurado no que toca ao tempo que tenho disponível para fazer toda a lição de casa. Eu... — Ele não sabia ao certo se devia expressar seu próximo pensamento

— Bem, com certa reserva, deixem-me dizer apenas isto: obviamente, estamos enfrentando umas pessoas agressivas, muito organizadas, alta­mente motivadas, com contatos e assistência em todo o país tão à mão quanto seu telefone. Eles não estão brincando, querem ganhar, e seus métodos nem sempre são limpos...

— São um bando de vigaristas, em outras palavras — disse Brent.

— Bem... — Corrigan ergueu as mãos no ar. — Acho que não debaterei essa opinião. O que estou tentando dizer é que vocês precisam de um investigador; alguém que possa desenterrar os fatos que nossos oponentes tentarão ao máximo esconder. Já enfrentei a ACAL antes, e eles não cooperam quando se trata de fornecer qualquer informação em resposta aos interrogatórios. São dissimulados, maquinadores, fraudulentos e im­placáveis. Dentro do que e condizente com o Cristianismo, naturalmente, necessitam de alguém tão implacável que descubra o que necessitam saber mesmo que a ACAL tente escondê-lo. Isso requer tempo, habilidade e experiência; precisam de alguém que possa ajudá-los a fazer isso.

— Então a quem chamamos? — perguntou Jack Parmenter.

— Não sei de ninguém aqui por perto que faça o trabalho por um preço que vocês possam pagar.

De repente Ben Cole falou.

— Bem, talvez eu possa trabalhar nisso aí. Estou sem emprego no momento; tenho o tempo, pelos menos por um pouco.

Amy Ryan inclinou-se para a frente a fim de ver Ben além de diversas outras cabeças.

— Ben, não sabia que você estava sem emprego. O que aconteceu? Ben deu de ombros.

— É uma história comprida.

Bev olho-o por apenas um momento.

— Você vai contar a eles?

Ben hesitou, por isso Bev mergulhou no assunto.

— Se querem falar de negócios sujos acontecendo, acho que Ben foi pego enfiando o nariz onde certas pessoas não queriam. Ele descobria alguma coisa, eu sei.

Ben desculpou-se.

— Ora, isso nada tem a ver com o assunto.

Mas Bev não desistiu. Alta, esguia e atlética, não era nenhuma fracota e podia ser muito persistente quando tinha de lutar pela verdade.

— Pode estar bem dentro do assunto. Sabem aquele suicídio que aconteceu há umas duas semanas?

Alguns sabiam, alguns não. Poucos podiam ver o que tinha a ver com qualquer coisa.

— Ben acha que foi assassinato, mas os tiras escondem a coisa. Acho que ele chegou muito perto de descobrir e foi por isso que o despediram.

Ben levantou a mão e sorriu desculpando-se.

— Olhem, é uma ótima história. Contarei a todos vocês mais tarde. Mark disse sinceramente:

— Ben, oraremos a respeito disso esta noite. Ben assentiu com a cabeça.

— Obrigado. De qualquer jeito, tudo o que eu queria dizer era que ficarei feliz de fazer o que puder. Farei uma parte das andanças; apenas digam-me o que fazer.

Mark agradeceu a Wayne Corrigan e então foi até o centro da sala.

— Vamos orar. Acho que vamos ter uma verdadeira montanha de coisas para fazer, e todos os tipos de batalhas para lutar no nível natural; estaremos lutando contra intrigas dos homens, contra todas as jogadas de surpresa ocultas nos tribunais, contra o desafio financeiro que isto vai ser. Mas nenhuma parte da batalha vai ser vencida se não lutarmos em primeiro lugar onde a verdadeira batalha está ocorrendo, e isso é no reino espiritual.

— Pastor — disse Donna Hemphile — posso apenas dizer uma coisa?

— Pode falar.

Dona Hemphile colocou-se em pé e dirigiu-se ao grupo.

— Sinto um verdadeiro espírito de derrota no grupo esta noite, e apenas quero que todos nós saibamos que não precisamos aceitar nada disto! Deus é a nossa Vitória, e ele já venceu por nós! Tudo o que temos a fazer e nos adiantar e apanhar essa vitória, somente apanhá-la como fruta madura!

— É isso aí — disse alguém.

— Amém — disse Jack Parmenter.

Donna continuou falando nesses termos. Um discurso dela à congrega­ção geralmente demorava mais do que o necessário, mas suas palavras eram sempre encorajadoras, e por isso todos aprenderam a tolerá-las com paciência.

Tal podia sentir o Espírito de Deus falando, e percebeu Cathy Howard ouvindo a voz suave do Senhor.

Cathy inclinou-se e sussurrou ao ouvido de Mark:

— Meu bem, sinto um impedimento. Não confio nela.

Ele apertou-lhe a mão em sinal de que recebera a mensagem. Donna continuava.

— Temos o direito de falar o que quisermos e ver isso acontecer. Precisamos buscar em nossos próprios corações a força que é nossa!

Muito bem, já bastava. Mark rapidamente, com muito boas maneiras, tomou a palavra de Donna e continuou:

— Vamos todos clamar ao Senhor esta noite, e pedir-lhe que nos ajude e nos guie através desta coisa. Como disse Jônatas, o Senhor não é constrangido a vencer por muitos ou por poucos. Se Deus estiver do nosso lado, ele fará as coisas acontecerem exatamente da forma que ele as deseja. Oremos.

Os santos uniram-se em prece, um genuíno concerto de louvor e petição. Concordaram de coração, e como um corpo, eram um no propó­sito. Pediram a direção especial de Deus para Wayne Corrigan enquanto este trabalhava no caso, e clamaram ao Senhor em favor da escola. Jack Parmenter orou pelas crianças que ainda permaneciam na escola, para que sua educação e treinamento espiritual continuasse com força e clareza; a Sra. Fields orou por Tom, para que o Senhor lhe desse força e o reunisse aos filhos; Brent Ryan orou por Lucy Brandon e os outros que moviam a ação contra eles; Mark orou por Ben e seu problema de emprego.

Tal podia sentir um bom concerto de oração aqui — mas também se perturbava por uma presença má no grupo. Em algum lugar, de alguma forma, Destruidor havia plantado uma infecção invisível, insidiosa, e Tal podia senti-la crescendo. Destruidor havia trabalhado bem; na superfície, a infecção era quase impossível de se notar; seria difícil desmascará-la, e mesmo que o Exército Celestial pudesse revelá-la, os corações das próprias pessoas envolvidas teria de mudar antes que o germe pudesse ser exposto.

Mas da maneira comum, inconscientes das tendências ocultas, os santos continuaram a orar, e por enquanto bastava.

Ben orou pedindo ajuda, qualquer ajuda, que o Senhor pudesse lhes dar — alguém que soubesse o que fazer, onde olhar, como lutar.

E Tal recebeu sua ordem do Céu.

— Vá!—disse ele.

Nathan transmitiu a ordem aos dois mensageiros que esperavam logo do lado de fora da casa:

— Vão!

Os dois mensageiros explodiram instantaneamente em brilhantes vul­tos de luz e arremeteram ao céu com um ruflar de asas adornadas de pedrarias. Eles alçaram cada vez mais as alturas, a cidade de Baskon encolhendo-se até virar um aglomerado de pequeninas luzes abaixo deles, perdida no centro de um vasto planalto de quadradinhos de plantações. Em seguida, eles dispararam como um raio rumo ao leste, passando sobre morros verdes e montanhas cobertas de florestas como se num salto instantâneo, os rios sinuosos, as estradas rurais e as auto-estradas cinzentas aparecessem à frente e sumissem atrás num piscar de olhos.

E então chegaram ao seu destino, outro aglomerado de luzes, embora muito maior do que Baskon, no meio de fazendinhas e de uma área rural. Eles mergulharam de cabeça naquele aglomerado que cresceu diante deles, tornando-se uma grade discernível de ruas, vicias, bairros, um novo centro de compras e o gracioso campus de uma faculdade. Ainda havia automóveis movendo-se continuamente para cima e para baixo na rua principal, besourinhos escuros com luzes vermelhas nas caudas e faróis dianteiros perscrutando as poças de luz que formavam na rua à sua frente. As luzes dos postes ardiam num âmbar cálido, agradável. Subindo o morro que ficava acima da rua principal, as luzes das varandas brilhavam em todas as casas onde as famílias estavam acomodadas para a noite com as lições de casa, arrumação da cozinha após o jantar, talvez um jogo de futebol na televisão.

Os dois mensageiros saíram do mergulho e dispararam pela rua princi­pal, sulcando duas trilhas brilhantes entre as luzes dos postes. A seguir, diminuíram a velocidade até flutuarem acima de um pequeno escritório num prédio comercial, entre a nova padaria e uma loja de bicicletas. Deixaram-se cair através do telhado e pousaram na área do escritório da frente.

O lugar estava deserto; não era horário de expediente. Eles detiveram-se um momento a fim de olhar por ali. Esse humilde e pequenino lar do jornal da cidade não havia mudado muito desde a última vez em que haviam estado lá. As três escrivaninhas velhas ainda se encontravam ali, mas agora uma das duas máquinas de escrever havia sido substituída por um processador de textos, e o sistema de telefones havia sido promovido de uma linha para duas.

O escritório do editor, fechado por vidro, ainda era o mesmo — ainda não se encaixava nesse prédio entulhado, apertado, e ainda um tanto bagunçado. Na parede acima da escrivaninha encontrava-se um pequeno calendário indicando todos os jogos do próximo campeonato do time de futebol favorito do editor, e sobre a escrivaninha, num canto especial isolado de qualquer papel, galé, foto ou nota rabiscada, estavam fotografias emolduradas de uma bonita ruiva e alguém que tinha de ser sua filha, também bonita e também ruiva.

Logo atrás da divisória estava a sala do teletipo. Os mensageiros examinaram as notícias recentes emitidas. Encontraram a que queriam, separaram-na com cuidado das outras matérias para publicação, em segui­da levaram-na ao escritório do editor e colocaram-na bem no centro da sua escrivaninha.

Então, esperaram. Ele a veria. Estavam ali para garantir que ele a visse.

Precisamente às oito horas, uma chave virou na fechadura da porta da frente, a porta se abriu, um sininho em cima da porta dingue-dongou, e o editor entrou, acendendo as luzes, aumentando o termostato, dependurando o casaco e dirigindo-se à cafeteira. Ele despejou o pó ali dentro, encheu-a de água, e ligou-a na tomada, depois entrou no escritório.

Os dois mensageiros estavam lá, observando cada movimento que ele fazia. O homem ainda não olhava para a escrivaninha, mas em vez disso pôs-se a remexer em umas notas rabiscadas fixadas no quadro de avisos acima dos fichários, resmungando algumas palavras ininteligíveis de frus­tração contra alguém que não havia feito o que devia ter feito quando disse que faria. Ele derrubou alguns dos pinos do quadro de aviso, por isso teve de apanhá-los; e então, tendo removido alguns dos itens do quadro de avisos, descobriu que finalmente tinha pinos o bastante para prender cada item lá sem reuni-los, e isso o deixou satisfeito.

Então ele se dirigiu ao telefone sobre a sua escrivaninha e apanhou o aparelho. Seus olhos deram com a cópia do teletipo que os mensageiros haviam colocado ali, mas ele não lhe prestou muita atenção.

O Senhor falou.

Os mensageiros ouviram a sua voz claramente e se perguntaram se o sujeito grandalhão, ruivo, também ouvira. Ele ainda não discava o telefone, mas segurava o aparelho perto da cabeça sem se mover. Ficou daquele jeito por apenas um momento.

Ele sacudiu um pouco a cabeça — seu modo de dar de ombros que era menos que um dar de ombros — e depois começou a discar um número no telefone.

O Senhor falou novamente.

Ele estacou no meio da discagem e desligou o telefone. Os mensageiros chegaram mais perto a fim de ver melhor.

Sim, ele estava lendo a notícia. Ela dizia respeito à recente audiência na cidade de Westhaven, e falava do escândalo numa escola crista que abalava uma obscura cidadezinha rural chamada Baskon.

O Senhor falou. O homenzarrão sentou-se à escrivaninha e ouviu, segurando a notícia na mão, lendo-a novamente devagar.

Por fim, com voz baixa, grave, de quem acordou há pouco, ele disse:

— Bem, Senhor... o que deseja que eu faça?