terça-feira, 25 de maio de 2021

Este mundo tenebroso - parte 2 - Capítulo 14


 Ben estaria deixando a delegacia para sair em patrulha um pouco mais cedo nessa manhã. Ele tinha planos de sentar-se atrás das árvores na ponta oeste da Ponte do Rio Snyder e flagrar motoristas em excesso de velocidade por algum tempo, talvez elevar um pouco a sua quota de multas.

Mas primeiro... se pudesse fazê-lo silenciosamente o bastante, ele pensou em usar o teletipo da polícia a fim de pedir uma averiguação criminal de Sally Roe. Podia ser que surgisse alguma coisa.

— Cole...

Era Mulligan, e havia algo estranho na sua voz.

— Sim, senhor.

Mulligan saiu de seu escritório e foi à escrivaninha de Ben. Ele inclinou-se sobre ela com seu grande punho e trespassou Ben com os olhos. Ben estava pronto para conversar, mas não para ser encarado assim.

— Alguma coisa errada, Haroldo? Mulligan quase sorria.

— Você esteve bisbilhotando por aí de novo?

— Bisbilhotando?

— Leonardo me contou que você esteve amolando o Joey Parnell, o legista.

Ben ficou um tanto espantado ao saber que um relato desses havia partido justamente de Leonardo.

— Se Leonardo lhe disse que eu amolava Parnell, eu tenho de discordar do termo. Não acho que amolei o Dr. Parnell nem um pouco. Sentei-me ao lado dele no restaurante do Don e apenas fiz algumas perguntas. Foi tudo muito casual.

— Já não lhe disse para largar esse negócio da Sally Roe? O que há de errado com a sua memória, Cole?

Ben havia sido um fraco por tempo suficiente. Ele postou-se de pé e enfrentou Mulligan olho a olho.

— Não há nada de errado com a minha memória, Haroldo, Sr. Sargento, senhor! Jamais consegui esquecer o que vi relacionado a este caso e a forma como tem sido tratado. Fiquei um pouco amolado com isso, perdi sono por causa disso, e com toda a franqueza, fiquei muito desapontado com a incompetência que vi da parte de alguns funcionários públicos devidamen­te eleitos que deveriam conhecer sua obrigação. Se precisamos discutir memórias, descobri que a do Dr. Parnell não é melhor do que a sua visão no que diz respeito à morta que encontramos e sua verdadeira identidade. Perdoe-me por falar tão abertamente, senhor.

Mulligan inclinou-se para Ben de modo que seus rostos ficaram a apenas uns dois centímetros de distância.

— Pensei que era para você e Leonardo darem uma batida à procura de drogas no restaurante do Don. Não vejo nenhum contrabando, Cole. Onde está ele?

— Leonardo cuidou disso, senhor. Mulligan chamou:

— Leonardo?

Leonardo fazia algo lá nos fundos.

— O que e?

— Você trouxe algum contrabando dessa batida de drogas?

— Sim. Uns duzentos e cinqüenta gramas de maconha. Ben cuidou disso. Ben fez uma careta e sorriu um pouco da confusão.

— Leonardo, você cuidou de todo o caso, lembra-se? Eu conversava com ParnelL

Leonardo entrou na sala, o rosto cheio de assombro.

— Ben, você perdeu um parafuso? Eu lhe dei aquela erva para você arquivar como prova.

Ben parecia incrédulo.

— De jeito nenhum!

Mulligan olhava de um homem para o outro.

— Caras, tem maconha faltando aqui. Vamos, onde está ela?

— Dei a Ben para arquivar como prova — respondeu Leonardo.

— Não! — acrescentou Ben.

— Absolutamente!

Mulligan sorriu astuciosamente.

— E se a gente der uma olhada no seu armário, Cole? —Claro.

Mas mesmo enquanto Ben dizia isso, passou-lhe pela cabeça o que poderia estar acontecendo. Enquanto caminhavam pelo corredor até o local dos armários, ele sabia que não ficaria surpreso se...

Mulligan escancarou a porta do armário. O saco plástico de maconha caiu para fora e foi parar no chão.

Mulligan ergueu uma sobrancelha. Não era segredo que ele se divertia com aquilo.

— Parece que você arquivou no lugar errado, Cole.

Ben fez que sim com a cabeça plenamente consciente do que aconte­cia.

— É, certo, certo.

Olhou para Leonardo e disse:

— Da próxima vez terei de pôr um cadeado no meu armário ao invés de confiar nas pessoas com quem trabalho.

Leonardo revidou prontamente:

— Cuidado com o que diz, Ben. Isso pode ser sério.

— Sério? Caras, isto é deplorável! Ben estendeu a mão ao peito.

— Ei, que tal, hein, Haroldo? Aposto que você já está com um relatório picante todo escrito. Não se preocupe. Não vai precisar dele. Caras, o jogo pára aqui. Não estou brincando.

Ele removeu seu distintivo e estendeu-o para Mulligan pegar. Mulligan pegou.

— Devolva o seu uniforme até amanhã.

— Pode contar com isso.

Ben dirigiu-se silenciosamente à sua escrivaninha, removeu seu revól­ver, rádio e outros equipamentos, e colocou-os sobre ela. Abriu a gaveta, tirou um Novo Testamento e outros objetos pessoais, e depois fechou-a.

Enquanto colocava sua jaqueta, percebeu que tinha sentimentos mistos sobre o que havia acontecido. Sentia tristeza e ansiedade por perder o emprego, mas ao mesmo tempo sentia-se eufórico e aliviado. Pelo menos, perdia o emprego pelos motivos certos. Esperava que o Senhor o aben­çoasse por isso.

Mulligan e Leonardo estavam juntos no corredor, vendo-o partir. Ele examinou seus rostos por apenas um momento, e depois saiu porta afora.

As duas semanas se haviam esgotado. A audiência teve lugar no dia marcado, às nove horas da manhã, no departamento da Meritíssima Emily R. Fletcher, do Tribunal Federal Regional, sala 412, no prédio do Tribunal Federal, na cidade de Westhaven, uns cem quilômetros ao sul de Baskon.

Tom e Ben foram de carro com Mark e Cathy. Eles desafiaram a auto-es­trada, esperaram os sinais de trânsito, fizeram as curvas certas e chegaram a Westhaven apenas com tempo suficiente para deixar o carro num estacionamento de diversos andares, pegar o cartão do estacionamento, atravessar correndo a rua até o prédio do tribunal, e tomar um elevador apinhado até o quarto andar onde finalmente encontraram a Sala 412.

Imediatamente, perceberam que a experiência toda ia ser grandiosa, estranha, atemorizante e inescrutável. Já era suficientemente ruim o fato de ocorrer nesse vasto prédio com paredes de mármore pesado que pareciam fechar-se sobre eles. Pior ainda era saber quase nada acerca do que ia acontecer e como o destino de Ben ia ser decidido por todos aqueles profissionais de terno e colete que ele jamais havia visto antes. E pior ainda que isso era descobrir que nada menos do que umas cem pessoas se aglomeravam no saguão ao lado de fora da sala do tribunal, tentando entrar. Quem eram elas, afinal?

Tom encolheu-se. Muitos eram jornalistas. Não lhes era permitido levar suas câmaras, louvado fosse o Senhor, mas certamente fitavam-no embas­bacados e resmungando, trocando informações, rabiscando em seus blo­cos de anotações. Alguns artistas encontravam-se ali, cavalete e giz prontos para desenhar um retrato rápido desses estranhos cristãos de uma cidadezinha obscura.

Onde estava Wayne Corrigan? Ele tinha dito que os encontraria ali. Oh, lá estava a mão dele, acenando no ar acima de um círculo fechado de jornalistas. Ele foi dando cotoveladas até sair do círculo e apressou-se ao seu encontro, os jornalistas seguindo-o como se ligados ao seu corpo por barbantes.

— Vamos lá para dentro — disse ele, um tom desesperado na voz. — Isto aqui mais parece um zoológico.

Eles foram forçando passagem por entre a multidão, e, de alguma forma, um passo de cada vez, conseguiram chegar às grandes portas de madeira e atravessá-las.

Agora encontravam-se numa cavernosa sala de tribunal, com lambris de madeira profundamente escurecida, um espesso tapete verde, janelas altas, vedadas por cortinas, e uma bancada que se erguia como uma fonte na frente. A galeria estava quase cheia.

Corrigan conduziu Tom e Mark à mesa dos acusados; Ben sentou-se com Cathy na primeira fileira da galeria. A Sra. Fields já se encontrava sentada lá e bordava um trabalho de ponto-cruz. Três membros do conse­lho, Jack e Doug Parmenter e Bob Heely, também estavam prontos a dar seu testemunho.

Corrigan falou com Tom e Mark em tons abafados.

— O juiz pode não aceitar nenhum testemunho oral, mas é bom estar preparado caso ele resolva o contrário. É um verdadeiro circo, fiquem sabendo. A ACAL está aqui em peso, e a imprensa, e acho que algumas pessoas da liga Nacional sobre Educação. Nossa posição é difícil. É... Lucy Brandon entrou na sala do tribunal, trajando um vestido azul e parecendo muito formal Estava ladeada pela loura Claire Johanson e um homem alto, de aparência jovem, obviamente seu advogado. — Aquele é Gordon Jefferson, o advogado da Brandon. Ele é da ACAL.

Um advogado mais velho vinha entrando, o queixo alto, segurando uma pasta preta na frente do estômago.

— Wendell Ames, o outro advogado da Brandon, sócio majoritário da firma Ames, Jefferson e Morris. Seu pai havia sido o fundador da ACAL no Estado lá pelos anos trinta.

Os quatro sentaram-se à mesa reservada aos acusadores sem olhar para o lado deles.

Dois advogados? — questionou Tom.

— Eles estão dispostos a ganhar. O que posso dizer? Fiz o melhor que pude com o sumário. Ele deu apenas doze páginas. Os depoimentos, as declarações juramentadas de vocês e da Sra. Fields, parecem suficiente­mente eficazes, mas nossos argumentos bíblicos vão ter dificuldade em agüentar-se em pé contra os relatórios psicológicos. Eles contrataram um especialista em cuca, sabem, um psicólogo infantil chamado Mandanhi. É aquele sujeito sentado na segunda fileira lá adiante.

Eles olharam para o homem de cabelos escasseando e pele escura, aparentando ser originário da índia.

— O que ele teve a dizer? — perguntou Mark.

— O que o senhor acha? Diagnosticou Amber como uma meninazinha doente e traumatizada, e tudo por sua culpa, naturalmente.

— Naturalmente — resmungou Tom.

— Veremos como nos sairemos, minha gente. Lembrem-se apenas de que esta e a primeira batalha, não a guerra inteira.

A porta à esquerda da bancada escancarou-se. A meirinha colocou-se de pé e declarou:

— Levantem-se todos. Os trabalhos do tribunal estão agora abertos, presididos pela Meritíssima Emily Fletcher.

A juíza Emily Fletcher era mulher grave de seus cinqüenta anos, com cabelos loiros curtos e expressão facial agradável. Ela ocupou seu lugar atrás da bancada e disse com voz clara.

— Obrigada. Podem sentar-se. Todos se sentaram.

— O caso é Brandon X Academia Bom Pastor. O que temos hoje é a audiência sobre uma in junção temporária emitida por este tribunal há duas semanas restringindo a Academia Bom Pastor de...

Ela encarapitou os óculos de leitura sobre o nariz e examinou os documentos diante de si.

— "Chocante Comportamento Religioso Contra uma Criança, Abuso Físico por Espancamento, Instrução Religiosa Excessiva Prejudicial à Criança, Perseguição, Discriminação e Doutrinação Religiosa Mediante Uso de Fundos Federais". Estão os advogados prontos para prosseguir?

Ela olhou na direção de Lucy Brandem e seus dois advogados. Ames pôs-se de pé.

— Sim, Meritíssima.

Ela olhou na direção de Tom, Mark e Wayne Corrigan.

— E os acusados... estão prontos?

Corrigan ergueu-se e respondeu afirmativamente.

Ela olhou por cima dos óculos de leitura para a sala lotada.

— Este caso e obviamente de grande importância pública e intenso interesse público. Se não houver objeções por parte dos advogados, o tribunal está preparado para permitir o uso de câmaras e equipamento de gravação pela imprensa.

Gordon Jefferson ergueu-se imediatamente.

— Não temos objeções, Meritíssima.

Corrigan percebeu o pronto meneio de cabeça de Tom e Mark. Ele se ergueu.

— Meritíssima, os acusados pediriam que não fosse permitida a presença de nenhuma câmara.

Jefferson se opôs:

— Meritíssima, como a senhora observou, este caso reflete deveras questões de grande interesse público. Acho que o público estaria bem servido através da informação de primeira mão que a televisão pode fornecer.

Corrigan sussurrou para Tom:

— A ACAL adora que certos casos sejam julgados através da imprensa. É o que querem agora.

A juíza Fletcher não demorou muito para ponderar o assunto.

— Sr. Corrigan, o tribunal não vê prejuízo em tal cobertura pelas câmaras, certamente não tanto prejuízo que a importância da conscienti­zação do público não pese mais. As câmaras serão permitidas.

Diversos jornalistas voaram da sala a fim de apanhar seu equipamento. A juíza virou a página para chegar à página seguinte que tinha diante de si.

— Li os sumários e os depoimentos apresentados por ambas as partes neste caso. Bem feitos, excelentes dos dois lados, e, como seria de esperar, em acirrada disputa. Tendo em vista o curto prazo, e a bem da conveniên­cia, evitaremos testemunhos orais se os advogados concordarem, e ouvi­remos este caso com base em depoimentos e argumentos orais por parte dos advogados.

Wayne Corrigan sussurrou para Tom:

— Tudo bem. É vantagem para nós. Eles terão de satisfazer um padrão mais alto de prova se não houver testemunho oral.

— Em seguida falou á juíza:

— Não temos objeções, Meritíssima.

Ames e Jefferson ainda sussurravam um ao outro. Não pareciam muito contentes com a sugestão do tribunal Finalmente Ames respondeu:

— Umm... não temos objeções, Meritíssima.

A juíza pareceu satisfeita com o progresso que todos faziam.

— Bem então... se os advogados estiverem prontos, Sr. Ames e Sr. Jefferson, os senhores podem apresentar o seu argumento.

Jefferson ergueu-se, abotoando o paletó.

— Obrigado, Meritíssima.

Ele se adiantou e começou a formar o seu argumento, andando para a frente e para trás, estudando o carpete, abanando uma das mãos no ar como se estivesse regendo um coro.

— Meritíssima, este caso não é difícil; como o tribunal já viu no sumário e nos depoimentos, as queixas contra a Academia do Bom Pastor são bem fundadas. Acreditamos na liberdade religiosa, naturalmente, e longe esteja de nós supor que podemos infringir esse direito sagrado. Mas como, Meritíssima, tem uma criança de dez anos o poder de decidir livremente em questões como essa quando cercada por um ambiente coercivo e repressivo tal como encontramos na Academia do Bom Pastor?

Tom ouviu embevecido o discurso de Jefferson. O sujeito se mostrava difamatório, pensou ele, mas vendendo muito bem tudo aquilo. A impren­sa com certeza engoliria tudo.

— A senhora viu o relatório do Dr. Mandanhi, ilustre psicólogo bem familiarizado com traumas emocionais nas crianças. Ele declarou com clareza que a jovem Amber foi severamente traumatizada pelo comporta­mento religioso chocante dessa gente, e demonstrou que sintomas tais como doenças, dores de cabeça, perda de apetite, e molhar a cama, para nem falarmos em severas fantasias religiosas e até mesmo... distúrbios de personalidade podem ser atribuídos ao currículo ensinado e ao exemplo dado pela liderança da Academia do Bom Pastor. Preciso também informar o tribunal que o Sr. Harris está sob investigação pelo DPC por possível abuso contra crianças, e que seus próprios filhos foram tirados de sua casa até a conclusão dessa investigação.

Corrigan saltou da cadeira.

— Protesto!

— Apoiado — disse a juíza. — Sr. Jefferson, questões do Departamento de Proteção à Criança são estritamente confidenciais e não devem ser discutidas em sessão do tribunal aberta ao público. O senhor evitará qualquer outra referência a isso.

— E em vista de táticas como essa — propôs Corrigan — posso solicitar novamente que as câmaras e equipamento de gravação sejam retirados do tribunal?

— Solicitação negada — afirmou a juíza, que em seguida olhou para os membros da imprensa. — Mas a imprensa tem ordem de não publicar nada sobre essa revelação.

— Obrigado, Meritíssima — disse Corrigan, sentando-se. Ele sussurrou a Tom:

— Jefferson sabia o que fazia. Jefferson continuou, sereno.

— Quanto ao "comportamento religioso chocante", os detalhes são claros no arquivo do tribunal, naturalmente, e mal preciso comentar sobre o comportamento descrito, a tentativa de expulsar um demônio de Amber, e mesmo sugerir a uma criança impressionável que ela está possuída por um espírito. Meritíssima, essa é uma tendência totalmente diferente, uma forma nova e obviamente bizarra de abusar de crianças; isso deve ficar fora da proteção da liberdade religiosa, e pedimos que o tribunal decida em favor disso.

— O abuso físico por espancamento também é igualmente claro — prosse­guiu Jefferson — e mesmo os acusados admitem que o espancamento ocorreu. Como é do conhecimento do tribunal, essa prática já é proibida pelo estado em qualquer lar temporário e nas escolas públicas, e gostaríamos de lembrar que os precedentes na lei e na sociedade são claros nessa questão. Esse não é um comportamento apropriado para com uma criança, mas outra forma de abuso, e deveria também ser retirado de sob a proteção da liberdade religiosa.

Tom e Mark podiam ver o caso formando-se; aquele advogado esperto reduzia gradualmente algo que ele chamava repetidas vezes de "proteção da liberdade religiosa". Estava claro para eles que proteção pouco tinha a ver com aquilo. A própria liberdade religiosa era o objeto dos seus ataques. Mas Jefferson era bom no que fazia, eles tinham de admitir isso. Sua oratória era vigorosa, bem coreografada e persuasiva. O pensamento inquietante agora era: Será que o Corrigan vai ser capaz de sair-se melhor?

— Quanto à instrução religiosa excessiva — continuou Jefferson — quem pode opor-se ao ensinamento de virtudes como honestidade, auto-estima, a Regra de Ouro? Nossa dificuldade é a idéia fundamentalista penetrante de que todos somos pecadores fracos, desprezíveis, insignificantes, inca­pazes de qualquer bem em nós mesmos, mas dependentes de um "salva­dor" externo para nos erguer de nosso atoleiro moral, e sem quem não temos a mínima esperança... uma idéia que, temos de admitir, é destrutiva à saúde e ao bem-estar mental de qualquer criança, e o relatório do Dr. Mandanhi reflete isso.

— Para encerrar rapidamente a questão e não tomar mais tempo do tribunal — continuou Jefferson — as ofensas mencionadas acima consti­tuem necessariamente uma forma de perseguição e discriminação porque nenhuma idéia que se oponha a essas crenças fundamentais e permitida; isso, naturalmente, é intolerância e terreno fértil para a semente do fanatismo.

— Mas, naturalmente, uma questão legal maior ainda aqui e o fato de que esses ensinamentos e doutrinações são sustentados por fundos fede­rais, visto que a Sra. Brandon é funcionária federal e recebe subsídio para sustento da filha sob o Decreto Federal de Assistência a Creches e Escolas Particulares de Primeiro Grau, parte do qual ela usou para pagar as mensalidades da filha.

A juíza Fletcher interrompeu.

— Senhor advogado, é a impressão do tribunal que Amber foi agora tirada da escola.

— Sim, Meritíssima, para o seu próprio bem, naturalmente. Mas subme­temos que a questão da separação entre a igreja e o estado ainda é viável, visto que fundos federais foram usados na doutrinação religiosa de Amber enquanto freqüentava a escola, o que faria com que a escola incorresse em responsabilidade para com o estado. Isso é coberto detalhadamente em nosso sumário sobre a aplicabilidade do Decreto de Direitos Civis Munson-Ross e o Decreto Federal de Assistência a Creches e Escolas Particulares de Primeiro Grau. Conquanto o Congresso tencionasse prestar assistência aos pais que trabalham fora no cuidado aos filhos, ninguém em seu juízo perfeito argumentaria que fundos federais devessem ser usados para instrução religiosa. Nosso sumário mostra como a história legislativa e a lei de antecedentes legais tornam isso abundantemente claro.

— Finalmente, solicitaríamos que o tribunal considerasse não apenas Amber, que teve a sorte de ser removida da escola e portanto salva de maiores prejuízos; solicitaríamos que o tribunal considerasse também as crianças que ainda estão lá, ainda sujeitas a esse comportamento e instru­ção excessivos, ainda muito sujeitas a serem prejudicadas. Não sabemos quem são as outras crianças na escola, e se fundos federais estão ou não sendo usados para também suplementar sua mensalidade. É por isso que solicitamos ao tribunal que exija que os acusados apresentem o nome de cada criança e qualquer informação financeira relacionada à matrícula da criança na escola, além de continuar as restrições.

— Sua decisão hoje afetará o futuro bem-estar de outras crianças também — concluiu Jefferson — e por isso estamos certos de que o tribunal decidirá em seu favor.

Jefferson sentou-se enquanto cada câmara de televisão na sala seguiu-o ao seu lugar e as máquinas fotográficas relampejavam seus flashes.

Tom e Mark olharam para Corrigan. Ele relia rapidamente suas notas rabiscadas, parecendo esperar uma inspiração. Essa inspiração não lhe parecia estar vindo.

— Sr. Corrigan? — anunciou a juíza.

Tom deu a Corrigan um tapinha encorajador no ombro.

— Vá com Deus, irmão.

Corrigan pôs-se de pé. Aquele era o seu momento. Abotoou o paletó também, não para mostrar sua determinação de batalhar, mas porque suas mãos nervosas precisavam de algo para fazer. Isso também lhe deu um momento para orar.

— Meritíssima, o advogado da acusadora envidou grandes esforços para pintar um quadro triste e horroroso da Academia do Bom Pastor. Podemos assegurar-lhe que as coisas na escola são muito diferentes daquilo que tentaram fazer parecer que eram. Em primeiro lugar, não tivemos oportu­nidade de nos reunir com o Dr. Mandanhi e discutir seu parecer, e portanto não podemos estar certos de que os problemas de Amber são inteiramente devidos ao fato de ela freqüentar a escola. Conforme tentamos mostrar nos depoimentos, ela já veio para a Academia do Bom Pastor com alguns problemas, e sugiro não ser justo nem correto atribuir todos os seus problemas ao ambiente da escola. Deveríamos ter a oportunidade de fazer com que nosso próprio perito examinasse Amber, pois tenho a certeza de que outro perito poderia equilibrar o relatório do Dr. Mandanhi.

— Quanto a castigos corporais — prosseguiu Corrigan — certamente não são o anacronismo que a acusadora tenta dizer que são, e não vamos resolver a questão neste caso. Castigo físico, quando administrado por pais amorosos, ou pelo diretor de uma escola cristã seguindo procedimento aceito, não é abuso de forma alguma, mas disciplina apropriada, e confor­me demonstramos em nossa ficha do tribunal, é questão de doutrina bíblica, questão de profunda convicção religiosa. Além disso, gostaria de relembrar ao tribunal que as diretrizes para disciplina corporal estão estabelecidas claramente no manual da Academia, e que a Sra. Brandon assinou uma carta concordando com essas diretrizes. Os dois itens estão incluídos em nosso sumário e falam por si.

— Por isso, acho que a questão da surra não está resolvida de forma alguma, especialmente quando não pode haver dúvida de que o castigo de Amber foi administrado de forma apropriada e amorosa. Não seria justo nem correto rotulá-lo de abuso infantil. Fazer isso seria invadir a privatici­dade e convicções de milhões de pais em todo o país que ainda acreditam em castigo físico. Além do mais, existe a questão de convicção religiosa e liberdade religiosa. Elas devem ser protegidas, e não infringidas.

— Precisamos também protestar contra a acusação da acusadora de ter havido "instrução religiosa excessiva". A acusadora refere-se a algo que é parte fundamental do evangelho, mas preciso relembrar ao tribunal que o evangelho é Boas Novas e não Más Novas. A mensagem do evangelho não nos deixa todos condenados... ou como o advogado da acusadora decla­rou, como "pecadores fracos, desprezíveis". Cremos... isto é, a posição doutrinária da Academia do Bom Pastor é... a de que, sim, o homem é pecador. Está separado de Deus porque transgrediu a lei justa de Deus, e, em si mesmo, não tem salvação. Mas essa mensagem nunca é forçada ou imposta a qualquer criança sem o lado positivo da mensagem, de que Deus enviou seu Filho a pagar o preço dos nossos pecados com sua própria vida, e portanto salvar-nos e reconciliar-nos com Deus.

— Ora, percebo que posso estar parecendo um pregador aqui, mas esse é, afinal de contas, um ponto de disputa levantado pela acusadora, e preciso responder a ele.

Corrigan se animou um pouco quando um pensamento lhe ocorreu.

— Mas talvez seja apropriado eu demonstrar neste exato ponto que esta é claramente uma questão religiosa. Meritíssima, estamos discutindo dou­trina religiosa, e num tribunal judicial! Sim, Meritíssima, de fato, contes­tamos a alegação da acusadora de ter havido qualquer instrução religiosa excessiva que fosse prejudicial a Amber. Mas também relembramos ao tribunal que através dessa queixa a acusadora pediu que o estado legisle sobre a correção de uma crença religiosa específica, e isso é algo que o estado é constitucionalmente proibido de fazer.

Você os pegou aí, pensou Tom.

— Também negamos qualquer perseguição ou discriminação, e como o arquivo do tribunal mostra, embora a acusadora tenha obtido o parecer profissional do Dr. Mandanhi relacionado a suposto trauma da criança, a acusadora deixou de provar quaisquer alegações específicas de compor­tamento excessivo ou chocante.

A juíza ergueu os olhos de suas notas com uma expressão inquisitiva.

— Senhor advogado, seu sumário incluiu pelo menos uma referência superficial ao suposto "comportamento religioso chocante" citado pela acusadora. O senhor nega agora a alegação da acusadora de que o Sr. Harris tentou expulsar um demônio da criança?

Tom e Mark sabiam que Corrigan ficaria encurralado por essa pergunta, mas ele não pareceu querer evitá-la. Aparentemente, ele havia pensado muito sobre ela.

— A alegação pode ser contestada, Meritíssima, visto que poderia haver muitas interpretações diferentes, muitas definições diferentes da palavra "demônio".

A juíza debruçou-se, abaixando o seu queixo até ficar a apenas alguns centímetros da bancada.

— Seria justo supor uma interpretação judaico-cristã ou bíblica da palavra "demônio" neste caso?

Tom podia sentir seu coração batendo com força e seu estômago dando nó.

Corrigan respirou fundo e ofereceu sua resposta.

— Suponho que seria, Meritíssima, mas então, mesmo dentro dos parâme­tros de uma interpretação bíblica, seria necessário decidir entre... uh seria uma interpretação liberal, alegórica da palavra, ou a interpretação mais fundamentalista, literal...

A juíza sorriu um pouco. Alguém na sala do tribunal deu uma risadinha abafada.

— Suponho que poderíamos repisar esse ponto, senhor advogado, e realmente entrar numa argumentação teológica. Por favor, continue.

Tom olhou para Mark. Era um bom ou um mau sinal? Não podiam deixar de tentar adivinhar o que a juíza pensava. Corrigan tentou coroar seu argumento.

— Estamos aqui hoje, Meritíssima, para mostrar justa causa pela qual não devamos ser impedidos de certas atividades. Bem, antes de tudo, eu argumentaria que essas alegações de atividades são espúrias e sem base, na melhor das hipóteses, e que a acusadora neste caso ficou tristemente aquém de provar a veracidade de cada uma delas. Sendo esse o caso, uma ordem restritiva contra a escola é simplesmente desnecessária, e eu sugeriria que acarreta uma violação da separação entre a igreja e o estado, por o estado se intrometer no livre exercício da religião por parte da Academia do Bom Pastor ao colocar-se numa posição de decidir pela Academia o que é religião aceitável e o que não é. Espero que não encontremos esse tipo de situação ocorrendo aqui, e que essa ordem restritiva seja revogada. É apropriado aqui que o tribunal revogue a restrição porque a acusadora já não é mais afetada pelas políticas da escola, e nenhum outro aluno se apresenta aqui como acusador e, portanto, este caso é irrelevante.

Dito isso, Corrigan sentou-se.

— Muito obrigada, Sr. Corrigan — disse a juíza Fletcher.

Então veio a longa espera, de segundo a segundo. A juíza Emily R. Fletcher folheou suas notas, rabiscou algumas notas ao lado das suas notas, e em seguida fitou fixamente as notas enquanto um silêncio tenso caía sobre o grande aposento.