Mas primeiro... se pudesse fazê-lo silenciosamente o
bastante, ele pensou em usar o teletipo da polícia a fim de pedir uma averiguação
criminal de Sally Roe. Podia ser que surgisse alguma coisa.
—
Cole...
Era Mulligan, e havia algo estranho na sua voz.
—
Sim, senhor.
Mulligan saiu de seu escritório e foi à escrivaninha
de Ben. Ele inclinou-se sobre ela com seu grande punho e trespassou Ben com os
olhos. Ben estava pronto para conversar, mas não para ser encarado assim.
—
Alguma coisa errada, Haroldo? Mulligan quase sorria.
—
Você esteve bisbilhotando por aí de novo?
—
Bisbilhotando?
—
Leonardo me contou que você esteve amolando o Joey Parnell, o legista.
Ben ficou um tanto espantado ao saber que um relato
desses havia partido justamente de Leonardo.
—
Se Leonardo lhe disse que eu amolava Parnell, eu tenho de discordar do
termo. Não acho que amolei o Dr. Parnell nem um pouco. Sentei-me ao lado dele
no restaurante do Don e apenas fiz algumas perguntas. Foi tudo muito casual.
—
Já não lhe disse para largar esse negócio da Sally Roe? O que há de errado com
a sua memória, Cole?
Ben havia sido um fraco por tempo suficiente. Ele
postou-se de pé
e enfrentou Mulligan olho a olho.
—
Não há nada de errado com a minha memória, Haroldo, Sr. Sargento, senhor!
Jamais consegui esquecer o que vi relacionado a este caso e a forma como tem
sido tratado. Fiquei um pouco amolado com isso, perdi sono por causa disso, e
com toda a franqueza, fiquei muito desapontado com a incompetência que vi da
parte de alguns funcionários públicos devidamente eleitos que deveriam
conhecer sua obrigação. Se precisamos discutir memórias, descobri que a do Dr.
Parnell não é melhor do que a sua visão no que diz respeito à morta que
encontramos e sua verdadeira identidade. Perdoe-me por falar tão abertamente,
senhor.
Mulligan inclinou-se para Ben de modo que seus rostos
ficaram a apenas uns dois centímetros de distância.
—
Pensei que era para você e Leonardo darem uma batida à procura de drogas no
restaurante do Don. Não vejo nenhum contrabando, Cole. Onde está ele?
—
Leonardo cuidou disso, senhor. Mulligan chamou:
—
Leonardo?
Leonardo fazia algo lá nos fundos.
—
O que e?
—
Você trouxe algum contrabando dessa batida de drogas?
—
Sim. Uns duzentos e cinqüenta gramas de maconha. Ben cuidou disso. Ben fez uma
careta e sorriu um pouco da confusão.
—
Leonardo, você cuidou de todo o caso, lembra-se? Eu conversava com ParnelL
Leonardo entrou na sala, o rosto cheio de assombro.
—
Ben, você perdeu um parafuso? Eu lhe dei aquela erva para você arquivar como
prova.
Ben parecia incrédulo.
—
De jeito nenhum!
Mulligan olhava de um homem para o outro.
—
Caras, tem maconha faltando aqui. Vamos, onde está ela?
—
Dei a Ben para arquivar como prova — respondeu Leonardo.
—
Não! — acrescentou Ben.
—
Absolutamente!
Mulligan sorriu astuciosamente.
—
E se a gente der uma olhada no seu armário, Cole? —Claro.
Mas mesmo enquanto Ben dizia isso, passou-lhe pela cabeça o que poderia estar
acontecendo. Enquanto caminhavam pelo corredor até o local dos armários, ele
sabia que não ficaria surpreso se...
Mulligan escancarou a porta do armário. O saco plástico de
maconha caiu para fora e foi parar no chão.
Mulligan ergueu uma sobrancelha. Não era segredo que ele se
divertia com aquilo.
—
Parece que você arquivou no lugar errado, Cole.
Ben fez que sim com a cabeça plenamente consciente do
que acontecia.
—
É, certo, certo.
Olhou para Leonardo e disse:
—
Da próxima vez terei de pôr um cadeado no meu armário ao invés de confiar nas
pessoas com quem trabalho.
Leonardo revidou prontamente:
—
Cuidado com o que diz, Ben. Isso pode ser sério.
—
Sério? Caras, isto é deplorável! Ben estendeu a mão ao peito.
—
Ei, que tal, hein, Haroldo? Aposto que você já está com um relatório picante
todo escrito. Não se preocupe. Não vai precisar dele. Caras, o jogo pára aqui.
Não estou brincando.
Ele removeu seu distintivo e estendeu-o para Mulligan
pegar. Mulligan pegou.
—
Devolva o seu uniforme até amanhã.
—
Pode contar com isso.
Ben dirigiu-se silenciosamente à sua escrivaninha, removeu
seu revólver, rádio e outros equipamentos, e colocou-os sobre ela. Abriu a
gaveta, tirou um Novo Testamento e outros objetos pessoais, e depois fechou-a.
Enquanto colocava sua jaqueta, percebeu que tinha
sentimentos mistos sobre o que havia acontecido. Sentia tristeza e ansiedade
por perder o emprego, mas ao mesmo tempo sentia-se eufórico e aliviado. Pelo
menos, perdia o emprego pelos motivos certos. Esperava que o Senhor o abençoasse
por isso.
Mulligan e Leonardo estavam juntos no corredor, vendo-o
partir. Ele examinou seus rostos por apenas um momento, e depois saiu porta
afora.
As duas semanas se haviam esgotado. A audiência teve lugar no dia marcado, às nove horas da manhã, no departamento da Meritíssima Emily R. Fletcher, do Tribunal Federal Regional, sala 412, no prédio do Tribunal Federal, na cidade de Westhaven, uns cem quilômetros ao sul de Baskon.
Tom e Ben foram de carro com Mark e Cathy. Eles desafiaram
a auto-estrada, esperaram os sinais de trânsito, fizeram as curvas certas e chegaram a Westhaven
apenas com tempo suficiente para deixar o carro num estacionamento de diversos
andares, pegar o cartão do estacionamento, atravessar correndo a rua até o prédio do tribunal, e
tomar um elevador apinhado até o quarto andar onde finalmente encontraram a
Sala 412.
Imediatamente, perceberam que a experiência toda ia ser
grandiosa, estranha, atemorizante e inescrutável. Já era suficientemente ruim o
fato de ocorrer nesse vasto prédio com paredes de mármore pesado que pareciam
fechar-se sobre eles. Pior ainda era saber quase nada acerca do que ia acontecer
e como o destino de Ben ia ser decidido por todos aqueles profissionais de
terno e colete que ele jamais havia visto antes. E pior ainda que isso era
descobrir que nada menos do que umas cem pessoas se aglomeravam no saguão ao
lado de fora da sala do tribunal, tentando entrar. Quem eram elas,
afinal?
Tom encolheu-se. Muitos eram jornalistas. Não lhes era permitido levar
suas câmaras, louvado fosse o Senhor, mas certamente fitavam-no embasbacados e
resmungando, trocando informações, rabiscando em seus blocos de anotações.
Alguns artistas encontravam-se ali, cavalete e giz prontos para desenhar um
retrato rápido desses estranhos cristãos de uma cidadezinha obscura.
Onde estava Wayne Corrigan? Ele tinha dito que os
encontraria ali. Oh, lá estava a mão dele, acenando no ar acima de um círculo
fechado de jornalistas. Ele foi dando cotoveladas até sair do círculo e
apressou-se ao seu encontro, os jornalistas seguindo-o como se ligados ao seu
corpo por barbantes.
—
Vamos lá para dentro — disse ele, um tom desesperado na voz. — Isto aqui mais
parece um zoológico.
Eles foram forçando passagem por entre a multidão, e, de alguma
forma, um passo de cada vez, conseguiram chegar às grandes portas de madeira e
atravessá-las.
Agora encontravam-se numa cavernosa sala de tribunal,
com lambris de madeira profundamente escurecida, um espesso tapete verde,
janelas altas, vedadas por cortinas, e uma bancada que se erguia como uma fonte
na frente. A galeria estava quase cheia.
Corrigan conduziu Tom e Mark à mesa dos acusados; Ben
sentou-se com Cathy na primeira fileira da galeria. A Sra. Fields já se
encontrava sentada lá e bordava um trabalho de ponto-cruz. Três membros do
conselho, Jack e Doug Parmenter e Bob Heely, também estavam prontos a dar seu
testemunho.
Corrigan falou com Tom e Mark em tons abafados.
—
O juiz pode não aceitar nenhum testemunho oral, mas é bom estar preparado caso
ele resolva o contrário. É um verdadeiro circo, fiquem sabendo. A ACAL está
aqui em peso, e a imprensa, e acho que algumas pessoas da liga Nacional sobre
Educação. Nossa posição é difícil. É... Lucy Brandon entrou na sala do
tribunal, trajando um vestido azul e parecendo muito formal Estava ladeada pela
loura Claire Johanson e um homem alto, de aparência
jovem, obviamente seu advogado. — Aquele é Gordon Jefferson, o advogado da
Brandon. Ele é da ACAL.
Um advogado mais velho vinha entrando, o queixo alto,
segurando uma pasta preta na frente do estômago.
—
Wendell Ames, o outro advogado da Brandon, sócio majoritário da firma Ames,
Jefferson e Morris. Seu pai havia sido o fundador da ACAL no Estado lá pelos
anos trinta.
Os quatro sentaram-se à mesa reservada aos acusadores sem olhar para o lado
deles.
— Dois
advogados? — questionou Tom.
—
Eles estão dispostos a ganhar. O que posso dizer? Fiz o melhor que pude com o
sumário. Ele deu apenas doze páginas. Os depoimentos, as declarações
juramentadas de vocês e da Sra. Fields, parecem suficientemente eficazes, mas
nossos argumentos bíblicos vão ter dificuldade em agüentar-se em pé contra os
relatórios psicológicos. Eles contrataram um especialista em cuca, sabem, um
psicólogo infantil chamado Mandanhi. É aquele sujeito sentado na segunda
fileira lá adiante.
Eles olharam para o homem de cabelos escasseando e pele
escura, aparentando ser originário da índia.
—
O que ele teve a dizer? — perguntou Mark.
—
O que o senhor acha? Diagnosticou Amber como uma meninazinha doente e
traumatizada, e tudo por sua culpa, naturalmente.
—
Naturalmente — resmungou Tom.
—
Veremos como nos sairemos, minha gente. Lembrem-se apenas de que esta e a
primeira batalha, não a guerra inteira.
A porta à esquerda da bancada escancarou-se. A meirinha colocou-se de
pé e declarou:
—
Levantem-se todos. Os trabalhos do tribunal estão agora abertos, presididos
pela Meritíssima Emily Fletcher.
A juíza Emily Fletcher era mulher grave de seus cinqüenta anos,
com cabelos loiros curtos e expressão facial agradável. Ela ocupou seu lugar
atrás da bancada e disse com voz clara.
—
Obrigada. Podem sentar-se. Todos se sentaram.
—
O caso é Brandon X Academia Bom Pastor. O que temos hoje é a audiência
sobre uma in junção temporária emitida por este tribunal há duas semanas
restringindo a Academia Bom Pastor de...
Ela encarapitou os óculos de leitura sobre o nariz e examinou os
documentos diante de si.
—
"Chocante Comportamento Religioso Contra uma Criança, Abuso Físico por
Espancamento, Instrução Religiosa Excessiva Prejudicial à Criança, Perseguição,
Discriminação e Doutrinação Religiosa Mediante Uso de Fundos Federais".
Estão os advogados prontos para prosseguir?
Ela olhou na direção de Lucy Brandem e seus dois advogados. Ames pôs-se
de pé.
—
Sim, Meritíssima.
Ela olhou na direção de Tom, Mark e Wayne Corrigan.
—
E os acusados... estão prontos?
Corrigan ergueu-se e respondeu afirmativamente.
Ela olhou por cima dos óculos de leitura para a sala lotada.
—
Este caso e obviamente de grande importância pública e intenso interesse
público. Se não houver objeções por parte dos advogados, o tribunal está
preparado para permitir o uso de câmaras e equipamento de gravação pela
imprensa.
Gordon Jefferson ergueu-se imediatamente.
—
Não temos objeções, Meritíssima.
Corrigan percebeu o pronto meneio de cabeça de Tom e Mark. Ele se
ergueu.
—
Meritíssima, os acusados pediriam que não fosse permitida a presença de nenhuma
câmara.
Jefferson se opôs:
—
Meritíssima, como a senhora observou, este caso reflete deveras questões de
grande interesse público. Acho que o público estaria bem servido através da
informação de primeira mão que a televisão pode fornecer.
Corrigan sussurrou para Tom:
—
A ACAL adora que certos casos sejam julgados através da imprensa. É o que
querem agora.
A juíza Fletcher não demorou muito para ponderar o assunto.
— Sr.
Corrigan, o tribunal não vê prejuízo em tal cobertura pelas câmaras, certamente
não tanto prejuízo que a importância da conscientização do público não pese
mais. As câmaras serão permitidas.
Diversos jornalistas voaram da sala a fim de apanhar
seu equipamento. A juíza virou a página para chegar à página seguinte que tinha diante de si.
—
Li os sumários e os depoimentos apresentados por ambas as partes neste caso.
Bem feitos, excelentes dos dois lados, e, como seria de esperar, em acirrada
disputa. Tendo em vista o curto prazo, e a bem da conveniência, evitaremos
testemunhos orais se os advogados concordarem, e ouviremos este caso com base em
depoimentos e argumentos orais por parte dos advogados.
Wayne Corrigan sussurrou para Tom:
—
Tudo bem. É vantagem para nós. Eles terão de satisfazer um padrão mais alto de
prova se não houver testemunho oral.
—
Em seguida falou á juíza:
—
Não temos objeções, Meritíssima.
Ames e Jefferson ainda sussurravam um ao outro. Não pareciam muito contentes
com a sugestão do tribunal Finalmente Ames respondeu:
—
Umm... não temos objeções, Meritíssima.
A juíza pareceu satisfeita com o progresso que todos faziam.
—
Bem então... se os advogados estiverem prontos, Sr. Ames e Sr. Jefferson, os
senhores podem apresentar o seu argumento.
Jefferson ergueu-se, abotoando o paletó.
—
Obrigado, Meritíssima.
Ele se adiantou e começou a formar o seu argumento, andando para a frente e
para trás, estudando o carpete, abanando uma das mãos no ar como se estivesse
regendo um coro.
—
Meritíssima, este caso não é difícil; como o tribunal já viu no sumário e nos
depoimentos, as queixas contra a Academia do Bom Pastor são bem fundadas.
Acreditamos na liberdade religiosa, naturalmente, e longe esteja de nós supor
que podemos infringir esse direito sagrado. Mas como, Meritíssima, tem uma
criança de dez anos o poder de decidir livremente em questões como essa quando
cercada por um ambiente coercivo e repressivo tal como encontramos na Academia
do Bom Pastor?
Tom ouviu embevecido o discurso de Jefferson. O sujeito
se mostrava difamatório, pensou ele, mas vendendo muito bem tudo aquilo. A imprensa com
certeza engoliria tudo.
—
A senhora viu o relatório do Dr. Mandanhi, ilustre psicólogo bem familiarizado
com traumas emocionais nas crianças. Ele declarou com clareza que a jovem Amber
foi severamente traumatizada pelo comportamento religioso chocante dessa
gente, e demonstrou que sintomas tais como doenças, dores de cabeça, perda de
apetite, e molhar a cama, para nem falarmos em severas fantasias religiosas e
até mesmo... distúrbios de personalidade podem ser atribuídos ao currículo
ensinado e ao exemplo dado pela liderança da Academia do Bom Pastor. Preciso
também informar o tribunal que o Sr. Harris está sob investigação pelo DPC por
possível abuso contra crianças, e que seus próprios filhos foram tirados de sua
casa até a conclusão dessa investigação.
Corrigan saltou da cadeira.
—
Protesto!
—
Apoiado — disse a juíza. — Sr. Jefferson, questões do Departamento de Proteção
à Criança são estritamente confidenciais e não devem ser discutidas em sessão
do tribunal aberta ao público. O senhor evitará qualquer outra referência a
isso.
—
E em vista de táticas como essa — propôs Corrigan — posso solicitar novamente
que as câmaras e equipamento de gravação sejam retirados do tribunal?
—
Solicitação negada — afirmou a juíza, que em seguida olhou para os membros da imprensa. — Mas a imprensa tem ordem
de não publicar nada sobre essa revelação.
—
Obrigado, Meritíssima — disse Corrigan, sentando-se. Ele sussurrou a Tom:
—
Jefferson sabia o que fazia. Jefferson continuou, sereno.
—
Quanto ao "comportamento religioso chocante", os detalhes são claros
no arquivo do tribunal, naturalmente, e mal preciso comentar sobre o comportamento
descrito, a tentativa de expulsar um demônio de Amber, e mesmo sugerir a uma
criança impressionável que ela está possuída por um espírito. Meritíssima, essa
é uma tendência totalmente diferente, uma forma nova e obviamente bizarra de
abusar de crianças; isso deve ficar fora da proteção da liberdade religiosa, e
pedimos que o tribunal decida em favor disso.
—
O abuso físico por espancamento também é igualmente claro — prosseguiu
Jefferson — e mesmo os acusados admitem que o espancamento ocorreu. Como é do
conhecimento do tribunal, essa prática já é proibida pelo estado em qualquer
lar temporário e nas escolas públicas, e gostaríamos de lembrar que os
precedentes na lei e na sociedade são claros nessa questão. Esse não é um
comportamento apropriado para com uma criança, mas outra forma de abuso, e
deveria também ser retirado de sob a proteção da liberdade religiosa.
Tom e Mark podiam ver o caso formando-se; aquele
advogado esperto reduzia gradualmente algo que ele chamava repetidas vezes de
"proteção
da liberdade religiosa". Estava claro para eles que proteção pouco tinha a
ver com aquilo. A própria liberdade religiosa era o objeto dos seus ataques.
Mas Jefferson era bom no que fazia, eles tinham de admitir isso. Sua oratória
era vigorosa, bem coreografada e persuasiva. O pensamento inquietante agora
era: Será que o Corrigan vai ser capaz de sair-se melhor?
—
Quanto à instrução religiosa excessiva — continuou Jefferson — quem pode
opor-se ao ensinamento de virtudes como honestidade, auto-estima, a Regra de
Ouro? Nossa dificuldade é a idéia fundamentalista penetrante de que todos somos
pecadores fracos, desprezíveis, insignificantes, incapazes de qualquer bem em
nós mesmos, mas dependentes de um "salvador" externo para nos erguer
de nosso atoleiro moral, e sem quem não temos a mínima esperança... uma idéia
que, temos de admitir, é destrutiva à saúde e ao bem-estar mental de qualquer
criança, e o relatório do Dr. Mandanhi reflete isso.
—
Para encerrar rapidamente a questão e não tomar mais tempo do tribunal —
continuou Jefferson — as ofensas mencionadas acima constituem necessariamente
uma forma de perseguição e discriminação porque nenhuma idéia que se oponha a
essas crenças fundamentais e permitida; isso, naturalmente, é intolerância e
terreno fértil para a semente do fanatismo.
—
Mas, naturalmente, uma questão legal maior ainda aqui e o fato de que esses
ensinamentos e doutrinações são sustentados por fundos federais, visto que a
Sra. Brandon é funcionária federal e recebe subsídio para sustento da filha sob
o Decreto Federal de Assistência a Creches e Escolas Particulares de Primeiro
Grau, parte do qual ela usou para pagar as mensalidades da filha.
A juíza Fletcher interrompeu.
—
Senhor advogado, é a impressão do tribunal que Amber foi agora tirada da
escola.
—
Sim, Meritíssima, para o seu próprio bem, naturalmente. Mas submetemos que a
questão da separação entre a igreja e o estado ainda é viável, visto que fundos
federais foram usados na doutrinação religiosa de Amber enquanto freqüentava a
escola, o que faria com que a escola incorresse em responsabilidade para com o
estado. Isso é coberto detalhadamente em nosso sumário sobre a aplicabilidade do
Decreto de Direitos Civis Munson-Ross e o Decreto Federal de Assistência a
Creches e Escolas Particulares de Primeiro Grau. Conquanto o Congresso
tencionasse prestar assistência aos pais que trabalham fora no cuidado aos
filhos, ninguém em seu juízo perfeito argumentaria que fundos federais devessem
ser usados para instrução religiosa. Nosso sumário mostra como a história
legislativa e a lei de antecedentes legais tornam isso abundantemente claro.
—
Finalmente, solicitaríamos que o tribunal considerasse não apenas Amber, que
teve a sorte de ser removida da escola e portanto salva de maiores prejuízos;
solicitaríamos que o tribunal considerasse também as crianças que ainda estão
lá, ainda sujeitas a esse comportamento e instrução excessivos, ainda muito sujeitas
a serem prejudicadas. Não sabemos quem são as outras crianças na escola, e se
fundos federais estão ou não sendo usados para também suplementar sua
mensalidade. É por isso que solicitamos ao tribunal que exija que os acusados
apresentem o nome de cada criança e qualquer informação financeira relacionada
à matrícula da criança na escola, além de continuar as restrições.
— Sua
decisão hoje afetará o futuro bem-estar de outras crianças também — concluiu
Jefferson — e por isso estamos certos de que o tribunal decidirá em seu favor.
Jefferson sentou-se enquanto cada câmara de televisão na sala
seguiu-o ao seu lugar e as máquinas fotográficas relampejavam seus flashes.
Tom e Mark olharam para Corrigan. Ele relia rapidamente
suas notas rabiscadas, parecendo esperar uma inspiração. Essa inspiração não
lhe parecia estar vindo.
—
Sr. Corrigan? — anunciou a juíza.
Tom deu a Corrigan um tapinha encorajador no ombro.
—
Vá com Deus, irmão.
Corrigan pôs-se de pé. Aquele era o seu momento. Abotoou o paletó também, não para mostrar sua determinação de batalhar, mas
porque suas mãos nervosas precisavam de algo para fazer. Isso também lhe deu um
momento para orar.
—
Meritíssima, o advogado da acusadora envidou grandes esforços para pintar um
quadro triste e horroroso da Academia do Bom Pastor. Podemos assegurar-lhe que
as coisas na escola são muito diferentes daquilo que tentaram fazer parecer que
eram. Em primeiro lugar, não tivemos oportunidade de nos reunir com o Dr.
Mandanhi e discutir seu parecer, e portanto não podemos estar certos de que os
problemas de Amber são inteiramente devidos ao fato de ela freqüentar a escola.
Conforme tentamos mostrar nos depoimentos, ela já veio para a Academia do Bom
Pastor com alguns problemas, e sugiro não ser justo nem correto atribuir todos
os seus problemas ao ambiente da escola. Deveríamos ter a oportunidade de fazer
com que nosso próprio perito examinasse Amber, pois tenho a certeza de que
outro perito poderia equilibrar o relatório do Dr. Mandanhi.
—
Quanto a castigos corporais — prosseguiu Corrigan — certamente não são o
anacronismo que a acusadora tenta dizer que são, e não vamos resolver a questão
neste caso. Castigo físico, quando administrado por pais amorosos, ou pelo
diretor de uma escola cristã seguindo procedimento aceito, não é abuso de forma
alguma, mas disciplina apropriada, e conforme demonstramos em nossa ficha do
tribunal, é questão de doutrina bíblica, questão de profunda convicção
religiosa. Além disso, gostaria de relembrar ao tribunal que as diretrizes para
disciplina corporal estão estabelecidas claramente no manual da Academia, e que
a Sra. Brandon assinou uma carta concordando com essas diretrizes. Os dois
itens estão incluídos em nosso sumário e falam por si.
—
Por isso, acho que a questão da surra não está resolvida de forma alguma,
especialmente quando não pode haver dúvida de que o castigo de Amber foi
administrado de forma apropriada e amorosa. Não seria justo nem correto
rotulá-lo de abuso infantil. Fazer isso seria invadir a privaticidade e
convicções de milhões de pais em todo o país que ainda acreditam em castigo
físico. Além do mais, existe a questão de convicção religiosa e liberdade
religiosa. Elas devem ser protegidas, e não infringidas.
—
Precisamos também protestar contra a acusação da acusadora de ter havido
"instrução religiosa excessiva". A acusadora refere-se a algo que é
parte fundamental do evangelho, mas preciso relembrar ao tribunal que o
evangelho é Boas Novas e não Más Novas. A mensagem do evangelho não nos deixa
todos condenados... ou como o advogado da acusadora declarou, como
"pecadores fracos, desprezíveis". Cremos... isto é, a posição doutrinária
da Academia do Bom Pastor é... a de que, sim, o homem é pecador. Está separado
de Deus porque transgrediu a lei justa de Deus, e, em si mesmo, não tem
salvação. Mas essa mensagem nunca é forçada ou imposta a qualquer criança sem o
lado positivo da mensagem, de que Deus enviou seu Filho a pagar o preço dos nossos pecados com sua própria vida, e portanto
salvar-nos e reconciliar-nos com Deus.
—
Ora, percebo que posso estar parecendo um pregador aqui, mas esse é, afinal de
contas, um ponto de disputa levantado pela acusadora, e preciso responder a
ele.
Corrigan se animou um pouco quando um pensamento lhe
ocorreu.
—
Mas talvez seja apropriado eu demonstrar neste exato ponto que esta é
claramente uma questão religiosa. Meritíssima, estamos discutindo doutrina religiosa,
e num tribunal judicial! Sim, Meritíssima, de fato, contestamos a alegação da
acusadora de ter havido qualquer instrução religiosa excessiva que fosse
prejudicial a Amber. Mas também relembramos ao tribunal que através dessa
queixa a acusadora pediu que o estado legisle sobre a correção de uma crença
religiosa específica, e isso é algo que o estado é constitucionalmente proibido
de fazer.
Você os pegou aí, pensou Tom.
—
Também negamos qualquer perseguição ou discriminação, e como o arquivo do
tribunal mostra, embora a acusadora tenha obtido o parecer profissional do Dr.
Mandanhi relacionado a suposto trauma da criança, a acusadora deixou de provar
quaisquer alegações específicas de comportamento excessivo ou chocante.
A juíza ergueu os olhos de suas notas com uma expressão
inquisitiva.
—
Senhor advogado, seu sumário incluiu pelo menos uma referência superficial ao
suposto "comportamento religioso chocante" citado pela acusadora. O
senhor nega agora a alegação da acusadora de que o Sr. Harris tentou expulsar
um demônio da criança?
Tom e Mark sabiam que Corrigan ficaria encurralado por
essa pergunta, mas ele não pareceu querer evitá-la. Aparentemente, ele havia pensado
muito sobre ela.
—
A alegação pode ser contestada, Meritíssima, visto que poderia haver muitas
interpretações diferentes, muitas definições diferentes da palavra
"demônio".
A juíza debruçou-se, abaixando o seu queixo até ficar a apenas
alguns centímetros da bancada.
— Seria
justo supor uma interpretação judaico-cristã ou bíblica da palavra
"demônio" neste caso?
Tom podia sentir seu coração batendo com força e seu estômago dando nó.
Corrigan respirou fundo e ofereceu sua resposta.
—
Suponho que seria, Meritíssima, mas então, mesmo dentro dos parâmetros de uma
interpretação bíblica, seria necessário decidir entre... uh seria uma
interpretação liberal, alegórica da palavra, ou a interpretação mais
fundamentalista, literal...
A juíza sorriu um pouco. Alguém na sala do tribunal deu uma
risadinha abafada.
—
Suponho que poderíamos repisar esse ponto, senhor advogado, e realmente entrar
numa argumentação teológica. Por favor, continue.
Tom olhou para Mark. Era um bom ou um mau sinal? Não podiam deixar de tentar
adivinhar o que a juíza pensava. Corrigan tentou coroar seu argumento.
—
Estamos aqui hoje, Meritíssima, para mostrar justa causa pela qual não devamos
ser impedidos de certas atividades. Bem, antes de tudo, eu argumentaria que
essas alegações de atividades são espúrias e sem base, na melhor das hipóteses,
e que a acusadora neste caso ficou tristemente aquém de provar a veracidade de
cada uma delas. Sendo esse o caso, uma ordem restritiva contra a escola é
simplesmente desnecessária, e eu sugeriria que acarreta uma violação da
separação entre a igreja e o estado, por o estado se intrometer no livre
exercício da religião por parte da Academia do Bom Pastor ao colocar-se numa
posição de decidir pela Academia o que é religião aceitável e o que não é.
Espero que não encontremos esse tipo de situação ocorrendo aqui, e que essa
ordem restritiva seja revogada. É apropriado aqui que o tribunal revogue a
restrição porque a acusadora já não é mais afetada pelas políticas da escola, e
nenhum outro aluno se apresenta aqui como acusador e, portanto, este caso é
irrelevante.
Dito isso, Corrigan sentou-se.
—
Muito obrigada, Sr. Corrigan — disse a juíza Fletcher.
Então veio a longa espera, de segundo a segundo. A juíza Emily
R. Fletcher folheou suas notas, rabiscou algumas notas ao lado das suas notas,
e em seguida fitou fixamente as notas enquanto um silêncio tenso caía sobre o
grande aposento.