terça-feira, 25 de maio de 2021

Este mundo tenebroso - parte 2 - Capítulo 13


 Sally Roe estava longe de Baskon, sentada sobre um banco duro na estação rodoviária de outra cidade, vestida bem de acordo com o papel de nômade instável, que viajava de carona, com suas velhas calças de brim e sua jaqueta azul, o cabelo tinto trançado e enfiado debaixo de um gorro de lã, as roupas mais finas escondidas na grande mochila ao seu lado no banco. Ela estava alheia aos viajantes que passavam com suas crianças choraminguentas, as páginas de jornais já lidos espalhadas pelos bancos, os papéis de goma de mascar no chão coberto de linóleo, e os anúncios ocasionais das saídas e das chegadas sendo grasnados pelo sistema de alto-falantes. Seu ônibus estaria saindo em uma hora. Ela passaria aquela hora escrevendo no caderno de espiral em seu colo. Seria uma carta, a sua primeira, para Tom Harris.

Caro Sr. Harris:

Ela se deteve. Como começo isto? Ele nem me conhece. Acho que eu poderia dizer isso.

Não sei como começar esta carta; afinal, o senhor nem sabe quem sou. Mas deixe-me apresentar-me e explicar-me, não apenas nesta carta, mas espero que em muitas outras que se seguirão. Talvez quando eu tiver escrito minha última carta ao senhor, tudo esteja claro para nós dois.

Meu nome é Sally Roe, uma ex-plainadora-lixadora na Fábrica de Portas Bergen. O senhor pode ter lido a recente notícia sobre a minha morte por suicídio. Afianço-lhe que sou a Sally Roe de quem a notícia falava, e, obviamente, estou viva.

Deixe-me contar-lhe o que realmente aconteceu...

Sally podia ver tudo acontecendo de novo, mesmo enquanto procurava as palavras que descrevessem o ocorrido.

O dia havia sido perfeitamente normal e positivamente maçante. Tra­balhar na fabrica era sempre maçante, especialmente trabalhar no depar­tamento de lixação, operando lixadeiras elétricas que zumbiam, sibilavam e vibravam até parecer que o cérebro da gente havia caído num liquidificador. Após um dia inteiro e uma quota de vinte e cinco portas, ela finalmente dirigiu a caminhonete azul pela entrada de carro coberta de pedriscos de sua casa. Estava cansada, com gosto de pó de serra na boca, e não tinha outros planos além de tomar uma chuveirada, comer qualquer coisa e ir deitar-se.

Mas, então, havia as cabras, Betty, a mãe, e os dois filhotes, Buff e Bart. Bichinhos de estimação, em grande parte. Sally havia herdado um macho e uma fêmea de uma senhora na fabrica que não tinha condições financeiras de ficar com eles. Sally vendeu o macho, ficou com a fêmea, fê-la acasalar-se, e agora tinha a mãe e dois filhotinhos que eram as coisinhas mais graciosas do mundo inteiro e boa companhia, sempre contentes de vê-la chegar em casa.

Sally estacionou o veículo e dirigiu-se ao cercado das cabras. Primeiro, saudaria os bichinhos, daria um pouco de ração, teria a conversa normal­mente unilateral com eles acerca do seu dia, e depois iria para dentro e desmoronaria.

As cabras estavam excitadas, mas não de felicidade. Pareciam contentes em vê-la novamente, e ansiosas por vê-la, mas em grande parte porque algo as perturbava.

— Ei... acalmem-se... a mamãe chegou...

Ela encheu um balde com ração trilhada no depósito ao lado da casa e atravessou o portão para entrar no cercado. Betty rodeou-a, feliz mas perturbada. Os filhotes continuaram a balir e pular para diante a para trás ao lado da cerca.

Sally sacudiu o balde para captar-lhes a atenção.

— Venham, venham buscar umas guloseimas!

Ela dirigiu-se ao barracão, esperando que os animais simplesmente a seguissem e se acalmassem. O cachorro do vizinho devia ter estado por lá. Ele freqüentemente se divertia aterrorizando as cabras.

Sally entrou no barracão.

— Ora, podem vir, está tudo bem.

Choque! Uma corda passou-lhe pela cabeça, vinda de trás, e começou a esmagar sua traquéia antes mesmo que ela soubesse o que era! O balde de ração caiu e a ração se espalhou pelo chão. Com força incrível, um atacante invisível puxava o laço de corda, safaneando-lhe o corpo para trás, erguendo-lhe os pés do chão. Ela chutou, tentou agarrar a corda. Faltava ar.

Seus pés encontraram a parede, e ela empurrou. Sally e o atacante caíram de costas contra o cevador que partiu-se. A corda bambeou e ela, retorcendo-se, escapuliu, caindo no chão, rolando sobre o capim, aspiran­do fortemente o ar.

Uma mulher vestida de preto, olhos selvagens de ódio, uma faca! A assassina deu um bote como um leopardo, Sally desviou-se para um lado, a faca apanhou Sally no ombro com dor ardente.

Ela tentou contorcer-se e saiu do canto onde se via encurralada, chutando e agarrando capim e pó. O joelho da mulher ergueu-se até o peito e segurou-a ali. A corda caiu em torno do seu pescoço outra vez. Sally chutou a mulher com a perna livre.

UUMP! Com essa velocidade, parecendo uma boneca de pano, a mulher chocou-se de encontro à parede oposta do barracão, a cabeça e os membros batendo contra as tábuas, como se um gigante a tivesse agarrado e atirado ali. Sally mal a havia tocado com o chute e sentiu certo assombro, mas pelo menos a mulher havia saído de cima dela. Sally apressou-se a sair do canto, os olhos na atacante. A assassina escorregou da parede em pé e caiu para a frente, os olhos vazios e esgazeados, o queixo caído.

UUF!! Algo atingiu a mulher com tamanha força que ergueu-a acima do chão. Ela desmoronou sobre o capim, os braços frouxos e voando, a cabeça torta, o corpo sem vida, a corda ainda em sua mão.

Não parei para olhar. Apenas saí de lá, ainda tentando respirar, minha única preocupação sendo a de continuar viva. Lembro-me de ter passado pelo portão e depois caído ao chão, com ânsia de vômito. Não culpo Betty e os filhotes por terem fugido. Talvez fosse bom eles terem feito isso.

Sally reclinou-se para trás, afastando-se do que escrevia, batendo dis­traída com a caneta no caderno, apenas pensando. Era um jeito bizarro de começar uma carta. Talvez se ela apenas continuasse escrevendo, parece­ria mais crível à medida que sua história progredisse. Bem, tudo o que podia fazer era tentar.

O que posso dizer, Tom? Como posso qualificar-me como testemunha confiável? Se você me perguntasse quem sou, teria de responder que não sei. Por anos, tenho-me feito a mesma pergunta e agora gostaria de saber se, escrevendo estas cartas, eu poderia estar tentando conseguir uma resposta.

Sabe, Tom, quero ajudá-lo. De minha própria maneira, e a partir de minha própria experiência, posso entender a sua situação e saber como deve sentir-se. Como uma entidade perdida sem fonte e sem destino num universo que afinal não tem significado, não posso dizer-lhe de onde foi que meu conceito de "errado" veio. Pode chamar de sentimento, pode chamar de "o modo como fui criada", pense que estou apenas fazendo uma tentativa desesperada através de moralidade antiquada, ainda assim sinto isto — o que está acontecendo com você é errado, e sinto-me penalizada pela sua dor.

Ela olhou o grande relógio acima da porta da rodoviária. Seu ônibus devia partir em meia hora. Logo o sistema de alto-falantes estaria grasnindo o aviso.

Se me permitir, gostaria de pelo menos agir como se alguma coisa importasse. Gostaria de fazer o que é "certo". Eu posso estar inventando meu próprio conceito de "boas obras" num esforço de fugir ao desespero, de me convencer de que a vida não é fútil afinal de contas, mas nada tenho a perder. Se o desespero é a verdade final que todos enfrentamos, então deixe-me esconder dele, pelo menos esta vez. Se a esperança é mera ficção que nós mesmos engendramos, então deixe-me viver numa fantasia. Quem sabe? Talvez haja algum significado nisso em alguma parte, algum propósito, alguma recompensa.

De qualquer forma, vou reconstituir umas antigas pegadas e desco­brir algumas coisas, por você e por mim. Espero partilhar alguma informação útil com você brevemente — informação suficiente para tirá-lo de apuros e, mais importante, trazer seus filhos de volta a você.

Por favor, guarde esta carta mesmo que lhe pareça estranha, mesmo que não acredite nela. Escreverei novamente em breve.

Atenciosamente,

Sally assinou o nome completo, "Sally Beth Roe", tirou cuidadosamente as páginas do caderno espiral, e dobrou-as. Tinha uma caixa de envelopes na bolsa de viagem. Enquanto estava em Baskon, ela havia procurado o endereço da casa de Tom e o havia escrito na frente do caderno. Agora, copiou o endereço no envelope e enfiou a carta dentro. Não o selou por enquanto, mas ergueu-se do banco e caminhou até à pequena lanchonete da rodoviária a fim de trocar algum dinheiro. Se se apressasse, poderia enviar essa carta antes de partir para a próxima cidade.

Chimon e Scion caminharam ao seu lado, asas desfraldadas, espadas desembainhadas. Por enquanto, os demônios se mantinham escondidos.

Chimon olhou a carta na mão de Sally.

— A palavra de seu testemunho — disse ele.

— É uma — disse Scion.

Terga, Príncipe de Baskon, alegrou-se com umas boas notícias, e estava pronto a partilhar um raro sorriso com Ango, o pequeno Príncipe da Escola de Primeiro Grau de Baskon.

— Expulsou-os, hein? — disse Terga, andando empertigado para cima e para baixo no teto de piche da escola com Ango ao seu lado.

Ango mostrava-se extasiado com essa grande honra. Pensar que todos os seus subordinados o viam agora na companhia do Príncipe de Baskon! Antes disto, Terga nem mesmo havia sabido seu nome.

Ango se mostrava à altura da ocasião e dava seu relatório como um verdadeiro comandante-de-campo.

— Foi um ataque atrevido, meu Ba-al. Um guerreiro celestial incrivel­mente grande desafiou-me no telhado, e outro desafiou os meus guardas na porta da frente. Dois guerreiros foram apanhados lá dentro, mas foram imediatamente expulsos.

— Mas você venceu a todos eles?

— Não sem uma luta mortal. Estou muito orgulhoso dos meus guerrei­ros, que se mostraram corajosos, fogosos e ousados!

— E estou orgulhoso de você, Ango, por provar-me que Baskon ainda e segura para as nossas operações.

— Obrigado, Ba-al.

— Com os meus louvores a você e aos seus guerreiros, deixo-o agora... Terga se deteve no meio da sentença. Os dois demônios ouviram um som conhecido, e puseram-se a esquadrinhar o horizonte ocidental. De algum lugar além dos topos das árvores, um ronco baixo, uma zoada, chegou-lhes aos ouvidos, cada vez mais alto, cada vez mais perto.

— Ora, quem poderia ser? — quis saber Ango.

Os enganadores e os guardas dentro e em volta da escola ouviram o som também e pausaram em seus deveres, zunindo e saindo esvoaçando para o pátio da escola para uma olhada, ou pipocando pelo teto para ver melhor.

As asas de Terga se inflaram e ergueram-no do teto. Ele puxou a espada enquanto espiava na direção do ocidente. Então, contraiu-se somente um pouquinho e gritou para Ango e suas tropas:

— São nossos!

— Mas quem?

Terga pareceu sombrio e abanou a cabeça consternado.

— Creio que é Destruidor, com tropas adicionais do Homem Forte. Aquela palavra trouxe um murmúrio de medo de toda a tropa lá embaixo.

Então os visitantes surgiram, ainda a quase dois quilômetros de distân­cia, aproximando-se como um esquadrão de bombardeiros voando a baixa altura. Havia pelo menos uma centena, voando em formação de ponta de flecha e chegando mais perto, mais perto, mais perto. Agora o brilho rubro de suas espadas aparecia contra os escuros borrões sombreados de suas asas.

Terga pousou no telhado outra vez.

— Ango, prepare suas tropas para saudar hóspedes ilustres!

— Tropas! — berrou Ango. Guerreiros adejaram até ele saindo da escola e do pátio. Ango ordenou-lhes que se organizassem em filas retas no gramado da frente. Eles formaram as filas imediatamente, um bando heterogêneo e desleixado de cerca de trezentos — diminutos espíritos de raiva, ódio, rebelião; enormes, vultosos gigantes de violência, vandalismo, destruição; enganadores espertos com seus modos astuciosos e olhos evasivos. Eles pareciam ativos, todos posicionados em filas ordeiras, os mais altos atrás, os mais baixos na frente, e cada demônio segurava a espada atravessada sobre o peito.

O esquadrão de Destruidor chegou em cima da cidade, lançando uma sombra espiritual sobre todo o comprimento da Rua Fronte e causando uma friagem no ar que os seres humanos lá embaixo puderam sentir. A sombra passou por cima da estação dos bombeiros e em seguida ao longo de uma fileira de casas por todo o Círculo Strawberry, e cães por toda a vizinhança puseram-se a uivar.

Terga, Ango e toda a assembléia de demônios podia ver agora o líder do esquadrão bem à frente, na ponta da formação. Podiam ver o brilho amarelo dos seus olhos e o fulgor vermelho de sua espada. Todos fizeram profunda mesura.

Destruidor e um aterrorizante batalhão dos melhores guerreiros cuida­dosamente selecionados pelo Homem Forte desceram sobre a escola como uma nuvem de gafanhotos gigantes, suas asas produzindo um rugido que podia ser sentido, e levantando um vento tal que os demônios menores no gramado da frente foram soprados e rolaram como folhas pela grama.

Destruidor pousou no telhado da escola com doze capitães hediondos ao seu redor. O resto do batalhão tomou posições por todo o perímetro da propriedade da escola. As asas se aquietaram, o rugido diminuiu. Agora Terga e Ango encontravam-se na presença de um espírito tão mau que nenhum dos dois conseguia erguer os olhos de puro medo.

Destruidor tirou um momento para olhar à volta toda. Ele fitou com olhos ardentes, espreitando as tropas reunidas sobre o gramado. Não ficou bem impressionado. Andou devagar em direção aos dois príncipes curva­dos daquele lugar, seus artelhos pousando sobre o piche, suas garras enterrando-se profundamente a cada passo. Ele plantou-se diante deles, seus capitães em pé dos dois lados como troncos de árvores.

— Então, Terga — perguntou ele numa voz tão fria quanto gelo — parece que você tem motivo para estar aturdido?

Endireitando-se, Terga disse:

— Tenho, sim, meu Ba-al — e em seguida curvou-se novamente. Entorpecido de medo, Terga sentiu de repente o corte quente da lamina do Ba-al sob seu queixo. Ele seguiu o impulso da lâmina e ergueu a cabeça.

— Quem é esse ao seu lado?

— É Ango, o príncipe desta escola, um líder corajoso. A espada ardente ergueu o queixo de Ango.

— Você é o príncipe deste lugar?

Ango tentou falar com voz forte, mas não pôde impedi-la de tremer.

— Sim, meu Ba-al.

Destruidor inclinou-se perto da cara de Ango.

— Fui informado de que você teve uma confrontação aqui com o Exército Celestial.

Ango sorriu de leve.

— Foi meu dever e júbilo agradar gente como o senhor, e expulsar os guerreiros celestiais.

— Quantos guerreiros celestiais?

— Quatro, meu Ba-al. Um atacou-me no telhado, um atacou nossos guardas na frente, e dois lançaram um ataque de dentro. Expulsamo-los imediatamente.

Destruidor ponderou aquilo por apenas um momento. Não teve elogios imediatos às ações de Ango.

— O que mais aconteceu nesse dia?

Ango não estava preparado para a pergunta de forma alguma.

— O que mais?

— Tiveram alguma visita humana inesperada na escola? Destruidor o encarava fixamente, esperando uma resposta, e agora

Ango podia sentir que Terga o encarava. Mas ele não conseguia pensar numa resposta.

— Eu... não sei de nenhuma.

— Pode me dar alguma boa razão pela qual quatro — apenas quatro — dos exércitos inimigos apareceriam aqui de repente, apenas para se permitirem ser expulsos por espíritos insignificantes e fracos como vocês?

Ango estremeceu. Essa conversa se tornava desagradável.

— Eles... eles vieram nos espionar, invadir a escola...

— Essa é a sua explicação?

— É a... Sim, e o que sei.

Destruidor embainhou a espada, e todos respiraram um tanto aliviados.

— Volte aos seus deveres, Ango, o Terrível, você e seus guerreiros. Faça o pior que puder com essas criancinhas. Terga, quero uma palavra com você.

Terga seguiu Destruidor à outra ponta do telhado, enquanto Ango debandava seus demônios para retornarem aos seus deveres. Quando Destruidor se deteve, satisfeito com o lugar, os doze capitães circundaram-no e a Terga como o muro de um castelo.

Terga estava preocupado.

Destruidor fitou-o furioso — enraivecido, mas propositadamente con­trolado.

— Ela esteve aqui.

Terga, naturalmente, não queria acreditar.

— Como sabe, meu Ba-al?

— Aonde ela foi ao sair do hotel em Claytonville?

— Eu...

— Seus desordeiros insignificantes a seguiram? Eles a tinham debaixo de cuidadosa vigilância o tempo todo?

Terga sentiu que derreteria através do telhado.

— O... o Exército Celestial... Ficamos confusos... Eles nos atrapalha­ram... Já não podíamos vê-la...

— Vocês a perderam de vista. Ela lhes escapou.

Terga sabia muito bem que os saqueadores do próprio Destruidor também a seguiam, mas aquele não parecia o momento apropriado para lembrar-lhe isso.

— Uh... sim. Mas... ela não voltaria aqui, o lugar de maior perigo.

— Perigo? — A voz de Destruidor era tão cortante quanto sua lâmina. — Que perigo, quando você e esse tal Ango são responsáveis pelo lugar?

— Mas por que ela viria aqui?

Terga nem chegou a ver a enorme mão de Destruidor antes que ela o atingisse, jogando-o no telhado. Terga não fez movimento algum retaliató­rio; nunca teve mesmo a intenção de fazê-lo, e além disso, doze enormes espadas encontravam-se a apenas poucos centímetros de sua garganta. Tudo o que podia fazer era erguer o olhar à cara furiosa de Destruidor enquanto o espírito maléfico descarregava seu veneno.

— Seu idiota! — berrou Destruidor. — Por que ela não viria aqui? Foi aqui que nosso Plano começou, ou não se lembra de todos os nossos anos de desenvolvimento, nossa infiltração deste lugar? Você estava aqui, fez parte dele. Acha que fizemos tudo isso sem ter um objetivo em mente?

— Sinto muito, meu Ba-al.

O pé de Destruidor atingiu Terga debaixo das costelas e chutou-o mais de metro para o ar. O corpo de Terga chocou-se contra o peito impassível de um dos capitães e então revirou para o telhado outra vez.

— Sente muito... — resmungou Destruidor zombeteiro. — Você lhe permite escaparem Claytonville, permite-lhe entrar sorrateiramente nesta escola bem debaixo do seu nariz, deixa-a escapar novamente, para desa­parecer até rebentar de novo para fazer maior estrago, para desvendar mais o nosso Plano, não sabemos onde, e tudo o que você tem a dizer é: "Sinto muito"!

Terga queria desculpar-se outra vez, mas sabia que a desculpa não seria aceita. Agora ele não tinha mais nada a dizer.

— Vá! — disse Destruidor. — Cuide de sua cidadezinha. Deixe Sally Roe por minha conta.

Um dos capitães, com a compleição de um touro, tomou Terga por uma asa e arremessou-o ao céu. Terga revirou e adejou rumo ao céu até poder recobrar o controle das asas, e em seguida disparou envergonhado para longe.

Destruidor observou até Terga ter sumido, então falou em tons baixos aos doze demônios que estavam com ele.

— O Homem Forte tem todos os seus jogadores nos lugares e uma forte rede pronta para ser usada, mas vimos por nós mesmos quanto o Plano pode ser vulnerável, especialmente com o Exército Celestial interessado em nosso empreendimento, e com toda a certeza interessado em Sally Roe. Eles tentam erigir uma cerca em torno dela, escondê-la dos nossos olhos, acompanhá-la. Eles também têm um plano.

Um espírito volumoso lembrou a Destruidor — Mas o Homem Forte não abandonará seu Plano; está comprometido com ele.

— Uma posição fácil para ele assumir — sibilou Destruidor rancorosa­mente, acariciando o cabo de sua espada. — Se o Plano falhar, não e a cabeça dele que rolará, mas sim as nossas. Ele tratará disso. Precisamos ser bem sucedidos.

Ele se deteve para pensar um momento, as garras pretas, como gan­chos, repuxando os pelos duros do pescoço.

— Estou aprendendo cada vez mais a respeito desse Tal; ele é bom estrategista, um mestre da sutileza. Até aqui, o Exército Celestial foi eficaz e contudo largamente invisível. Tal está esperando, manobrando. Ele é um colocador de armadilhas, um armador de ciladas.

Outro espírito, grotesco e cheio de cicatrizes, grunhiu:

— Eu estava em Ashton. Vi a emboscada.

Destruidor cuspiu enxofre e deixou que sua raiva se elevasse.

— Então você sabe como Tal esperou até nossas tropas não poderem mais esperar e voarem de cabeça em sua paciente armadilha, impetuosas e desavisadas. Nós tínhamos apenas a nossa confiança, mas Tal estava pronto. Não cometeremos o mesmo erro novamente.

Destruidor esquadrinhou a cidade do seu poleiro no telhado.

— Se Tal é tão sutil, seremos até mais do que ele. Se depende das orações do povo de Deus, então trabalharemos com mais afinco para evitar que o povo de Deus ore. — Ele deu uma risada sulfurosa. — Vocês não sabem a respeito dos diabretes que requisitei do Homem Forte: Contenda, Divisão, Mexerico e uma hoste de outros que estão inundando esta cidade neste exato momento! Esses seres humanos são apenas feitos de carne, de barro, e sugiro que existe um poder mais forte que seu zelo por Deus: sua própria virtude! Faremos com que se transformem em juizes uns dos outros, orgulhosos, puros aos próprios olhos, vingativos, injustos, e causaremos tamanho barulho entre eles que nem a mais simples oração será pronun­ciada!

Os guerreiros ficaram impressionados e murmuraram seu espanto e aprovação.

— Enquanto isso — continuou Destruidor — não nos esqueçamos de que o nosso povo também está orando, dedicando muito tempo e adoração ao nosso senhor, e ele está respondendo com grande favor para conosco, enviando mais e mais tropas para reforçar as nossas fileiras e confundir os nossos inimigos! O Tempo está do nosso lado! — Ele se deteve e sorriu. — Assim, se Tal é um mestre da espera, faremos o mesmo! Embora Tal abane Sally Roe como uma cenoura adiante dos nossos narizes, não a atacaremos cedo demais. Não voaremos em outra emboscada. — Os olhos de Destrui­dor estreitaram-se com astúcia. — Esperaremos, da mesma maneira que Tal. Observaremos, seguiremos, até o momento certo para nós, até esse poderoso Capitão do Exército já não estar tão poderoso, mas confuso, destituído de seu poder pelos próprios santos de Deus!

— E então em algum momento, em algum lugar, Sally Roe terá o seu Getsêmani. Ela estará sozinha. Seus acompanhantes estarão desavisados, despreparados, pequenos em números. O momento será nosso para tomá-la.

— Mas como saberemos? — perguntou um quarto demônio.

— Saberemos, como antes, porque um Judas nos contará. Tudo o que precisamos fazer é encontrá-lo. — Destruidor deu uma risada hedionda. — Uma coisa tão maravilhosa, a traição!