terça-feira, 25 de maio de 2021

Este mundo tenebroso - parte 2 - Capítulo 12

Bem, acho que esses sujeitos não estão brincando.

Wayne Corrigan estava sentado à escrivaninha após o ex­pediente, bebendo uma última xícara de café da garrafa térmica e exami­nando diversas páginas de notas que Mark Howard, Tom Harris e o conselho da igreja haviam compilado em resposta à injunção temporária contra a escola.

Todos os argumentos de sempre em favor de castigo corporal estavam claramente delineados — os versículos bíblicos de Provérbios acerca da vara, claro, e um procedimento definitivo para aplicação do castigo claramente descrito no Manual para Alunos e Pais. A assinatura de Lucy Brandon no acordo de matrícula constituía seu acordo com o manual, de forma que aquilo não seria difícil de argumentar. Era óbvio que o conselho da igreja havia feito sua lição de casa muito além do necessário nessa área.

Quanto ao argumento contra qualquer restrição em relação a "outro tipo de comportamento religioso que possa vir a ser nocivo ao bem-estar mental, emocional ou social da criança, ou qualquer instrução religiosa excessiva que possa vir a ser prejudicial", eles também haviam feito um bom estudo da questão, com versículo após versículo declarando a exis­tência, propósito, comportamento, e "expulsão de demônios", bem como uma apologética geral da mensagem básica do evangelho. Essa era defini­tivamente uma questão de crença religiosa, supostamente protegida pela Constituição, com certeza...

Mas um exorcismo perpetrado sobre uma criança de dez anos? Uma menor de idade, sem o consentimento dos pais? Onde se encontrava essa cláusula no manual? Quando a Sra. Brandon consentiu com esse tipo de tratamento para a filha?

Ele estacou bruscamente. Esse caso era grande demais e o que estava em jogo era alto demais. Era mais do que ele podia dar conta.

É. Aqueles caras da ACAL encontraram exatamente o que procuravam; do jeito como iriam cuidar desse caso, a Constituição seria apenas um pedaço de papel higiênico quando tratasse de crianças.

Bem, Corrigan, você conseguiu de novo: disse que sim com muita facilidade. Agora tem audiência em doze dias. É melhor fazer alguma coisa.

— Senhor Deus — orou ele — estou com água pelo pescoço novamente. Preciso da sua ajuda para me tirar desta... para tirar todos nós desta.

Ele pôs-se a rabiscar um sumário para o tribunal, tentando cobrir os itens da queixa. Mau uso de fundos federais era fácil de refutar, e Discri­minação e Perseguição eram basicamente um passeio no parque, mas então vinha a parte capciosa, e ele pôs-se a orar fervorosamente enquanto escrevia cada linha.

Na manhã de segunda-feira, uma semana após Rute e Josias terem sido arrastados de sua casa, Tom recebeu um chamado de uma senhora não identificada do Departamento de Proteção à Criança. Sem consultá-lo, e sem qualquer notificação anterior a esse chamado, um horário havia sido marcado para ele visitar os filhos por uma hora sob a supervisão de um conselheiro da assistência à criança. O horário era às 11 da manhã, no tribunal de Claytonville.

Ele mal conseguiu chegar a tempo, encostando numa vaga do estacio­namento dos visitantes às 10:52. Reexaminou sua aparência no espelho do quebra-sol, endireitando a gravata, assentando o cabelo, as mãos tremendo e o estômago enjoado pela expectativa. Ele agarrou um saco de papel pardo de coisas para as crianças, trancou o carro, e subiu aos pulos os degraus de concreto do velho prédio de pedras.

O saguão interno era de frio mármore, alto, cinzento, imponente. Cada passo ecoava como um anúncio público, e ele se sentia nu nesse lugar. Advogados, escreventes, e outras pessoas apenas comuns passavam por todos os lados, e ele achava difícil fitá-las nos olhos. E se tivessem visto seu rosto no jornal ou na televisão? Provavelmente não iriam querer o seu autógrafo.

A moça no balcão de informações anotou seu nome e disse-lhe que podia sentar-se num banco duro de madeira que ficava junto à parede.

— Avisarei que o senhor está aqui — disse ela.

Ele sentou-se lá e coçou lentamente o queixo, olhando o piso de mármore. Sentia-se zangado, mas sabia que não podia deixar isso transpa­recer, não podia dar vazão à zanga, ou apenas pioraria as coisas.

Ele orou repetidamente: Oh, Senhor, o que posso fazer? Nem mesmo sei o que dizer...

Naturalmente, ele pensou em Cindy, que já havia partido havia três anos. Horas difíceis como essas relembravam-lhe quanto ele havia sempre precisado dela, e quanto havia perdido. Ele se tinha recuperado da dor inicial, sim, mas às vezes, quando a vida estava mais escura e a luta mais árdua, por hábito ele procurava por ela, pensava nela, ensaiava as palavras para compartilhar a sua dor. Mas então vinha a mesma persistente lem­brança, a conscientização de que ela se fora, substituída por uma sombra de dor que o seguia de perto.

Cindy, pensou ele, você simplesmente não acreditaria no que está acontecendo cá em baixo. Acho que é a perseguição de que Jesus e os apóstolos nos advertiram. Acho que sempre pareceu algo bem distante, talvez na Rússia Soviética, ou durante os tempos de Roma, mas não aqui, não agora. Jamais pensei que aconteceria justo comigo, e com certeza não achei que aconteceria às crianças.

Ele tirou o lenço do bolso para enxugar as lágrimas. Não podia deixar que as crianças o vissem desse jeito — e o que o pessoal do governo pensaria?

— Sr. Harris?

Ele respirou com força e imediatamente, até desesperadamente, tentou compor-se. Tom, seja o que for que faça, seja cordial! Não lhe dê nada para usar contra você!

Ele fitava nada menos do que Irene Bledsoe.

— Estou certa de que se lembra de mim — disse ela, sentando-se perto dele no banco.

— Sim. — Ele calculou que isso seria seguro.

— Antes de eu levá-lo lá em cima para ver as crianças, preciso lembrar-lhe de que estas visitas são um privilegio que pode ser revogado a qualquer momento. Esperamos que o senhor se comporte da melhor maneira possível e que siga as minhas instruções o tempo todo. O senhor não deve tocar as crianças, mas permanecer do seu próprio lado da mesa de conferência. Não pode perguntar-lhes coisa alguma acerca de onde estão. Quaisquer perguntas que eu possa considerar impróprias serão proibidas e o encontro pode ser terminado a qualquer hora que eu achar necessário. Isso tudo ficou claro para o senhor?

— Mas... Sra. Bledsoe, vamos ter oportunidade de conversar a respeito dessa coisa? Quero esclarecer toda essa embrulhada e levar meus filhos comigo para a nossa casa, que é o lugar deles.

— Isso não será possível no momento; a nossa investigação ainda está em processo.

— Que investigação? Ninguém me disse nada, e nem consegui falar com a senhora.

— Temos uma lista de casos muito extensa, Sr. Harris. Simplesmente terá de ser paciente.

Tom sentiu uma raiva, uma fome de vingança mesmo invadindo-o, algo totalmente não cristão, ele sabia, mas irreprimível. Ele simplesmente não conseguiu pensar em quaisquer palavras que fossem corteses.

Irene Bledsoe fitou-o novamente, com mais firmeza:

— Tudo o que eu disse ficou claro para o senhor? Tudo o que ele podia fazer era dar-lhe a resposta certa. —Sim.

— O que é esse pacote? Tom abriu-o para ela ver.

— Trouxe algumas coisas das crianças. Eles estão sem suas Bíblias, por isso eu as trouxe, e algumas canetas e papéis de carta.

— Muito bem. — Ela pegou o saco de papel. — Venha comigo.

Ela saiu a passos apressados, eficientes, o póc, póc, póc dos saltos avisando a todos no andar que ela passava por ali. Tom apenas tentou andar sem fazer barulho; desse tipo de atenção ele não precisava.

Ela levou-o ao segundo andar por uma escadaria de mármore em caracol, ao longo da sacada que dava para a entrada da frente, e através de uma porta pesada, hostil, com grandes dobradiças de latão e uma maçaneta que tinha de pesar quase dez quilos. Eles passaram por uma antecâmara fria e nua com uma única janela alta que deixava entrar a luz acinzentada. Um guarda de segurança postava-se numa passagem em arco à direita, parecendo apenas um pouco entediado, mas guarnecendo seu posto.

Tom, acompanhando a Sra. Bledsoe, passou pelo guarda e atravessou o arco.

O coração de Tom saltou-lhe à garganta, e lágrimas inundaram-lhe os olhos.

Ali, sentados do outro lado de uma grande mesa, estavam Rute e Josias. Num instante, eles se encontravam de pé ao vê-lo, gritando "Papai", as vozes esganiçadas de excitação. Os dois correram para ele.

Irene Bledsoe plantou-se em seu caminho e os bloqueou com os braços.

— Sentem-se! Sentem-se à mesa!

— Quero ver o meu pai! — bradou Josias.

— Papai! — foi tudo o que Rute conseguiu dizer, as mãos estiradas. Ele não podia tomá-los nos braços. Não podia tocá-los. Tudo o que podia fazer era chorar.

— Sentem-se agora. Façam o que a Sra. Bledsoe manda. Rute pôs-se a soluçar, quase gritando.

— Papai...

— Eu a amo, Rute! O Papai ama você. Vá. Sente-se. Vai dar tudo certo. Irene Bledsoe encorajou as crianças a sentarem-se com uma mão firme em seus braços.

— Sr. Harris, o senhor pode sentar-se nesta cadeira de frente para seus filhos. Deixe-me relembrá-lo daquilo que discutimos lá embaixo.

Não "discutimos" nada, pensou Tom. A senhora deu as ordens, e eu fiquei lá sentado, ouvindo.

Ele puxou lentamente a cadeira para trás e sentou-se. Não podia desperdiçar essa hora chorando. Tentou dominar-se, e tirou o lenço para enxugar os olhos outra vez.

— Como vocês dois estão passando?

— Quero ir para a casa, Papai — disse Rute, ainda soluçando.

Josias tentava portar-se corajosamente, e enxugou os olhos como o pai.

— Sentimos saudades de você.

— A Sra. Bledsoe está cuidando bem de vocês? A Sra. Bledsoe respondeu a essa pergunta.

— Seus filhos estão em ótimas mãos, Sr. Harris, e acho que essa deve ser a última pergunta desse tipo.

Tom olhou-a furioso. Não conseguia esconder sua raiva.

— Então eu gostaria de fazer-lhe algumas perguntas mais tarde. Ela sorriu agradavelmente na presença das crianças.

— Podemos discutir isso mais tarde.

Tom notou o galo na testa de Rute assim que a viu. Agora estava pronto a perguntar-lhe acerca dele.

O que aconteceu na sua cabeça, Rute?

A Sra. Bledsoe interveio diretamente nessa pergunta, chegando mesmo a erguer-se um pouco da cadeira.

— Não podemos discutir isso! Tenho a certeza de que compreende!

— Bati a cabeça no carro — disse Rute.

— Rute, não fale a respeito disso ou a levarei embora! Ela começou a chorar de raiva agora.

— Por que?

— Tudo bem, Rute — disse Tom. — Não precisamos falar nisso. — Ele voltou-se para Josias. — E então... o que vocês têm feito?

Josias se sentia infeliz e não fez nenhuma tentativa de esconder o fato.

— Nada. Ficamos sentados por lá assistindo televisão. Tom não gostou de ouvir isso, mas não demonstrou.

— Oh, a Sra. Bledsoe os deixa assistir televisão?

— Não, e a Sra. Henley que deixa... Irene Bledsoe pegou aquilo no ar.

— Josias, não podemos falar a respeito de quem nossos pais temporários são. É segredo.

Tom tentou levar a conversa de volta a um terreno seguro. —E... o que me dizem de livros? Leram algum livro bom?

— Não — disse Rute.

— Eles têm uns jogos de vídeo — informou Josias. — Esses até que são divertidos.

— E... há outras crianças com que possam brincar? — Tom encolheu-se enquanto fazia a pergunta, mas Irene Bledsoe deixou aquela passar.

— Sim. Tem um menino chamado Teddy e outro menino chamado Luke. Mas não gosto deles.

— Oh...

— São maiores do que nós e implicam com a gente.

— Implicam com vocês?

— É, ficam provocando a gente e usam palavras feias. Não são cristãos. Rute fez beicinho e disse: — Luke me chama de nomes feios.

— Oh, Rute, que pena. Você já tentou fazer amizade com ele? Ela fitou-o e seus olhos se encheram de lágrimas outra vez.

— Quero ir embora para a casa!

— Eu também quero que vocês venham para a casa.

Tique, tique, tique. Irene Bledsoe batia na mesa com as unhas e olhava furiosa para Tom.

Josias deve ter captado aquele sinal. Ele era um menino de nove anos muito esperto.

— Rute bateu a cabeça dentro do carro.

— Agora já basta! — disse a Sra. Bledsoe.

Tom fitou Irene Bledsoe e tentou manter o rosto calmo.

— Que carro, Sra. Bledsoe?

A Sra. Bledsoe olhou para ele com as sobrancelhas erguidas e a cabeça inclinada para a frente, com enorme condescendência.

— Sr. Harris, aprendemos que as crianças geralmente inventam histórias para proteger seus pais.

Tom entendeu o que ela queria dizer. Ele precisou escolher — escolher seriamente, diligentemente — permanecer calmo e cordial.

— E que história foi que Rute e Josias inventaram, Sra. Bledsoe? Ela ergueu o queixo e pareceu olhar para ele de cima para baixo.

— Sr. Harris, posso entender como o senhor ficaria preocupado com o machucado na cabeça de Rute. Mas, como deve saber, nós também estamos. Tenho a certeza de que, quando tiverem tido tempo de vencer seus temores e condicionamento anterior, seus filhos estarão prontos a contar-nos a verdade. Por agora, acho que esta visita está concluída. — Ela ergueu-se da cadeira. — Crianças, despeçam-se do seu pai.

— Acabamos de chegar! — disse Josias.

— Não quero ir! — gritou Rute, o rosto enchendo-se de medo.

— Crianças, estamos indo! — disse a Sra. Bledsoe.

— Um momentinho só! — disse Tom. O encontro já terminara, de qualquer forma. Ele aproveitou a oportunidade. — Josias, pode falar. Conte-me como Rute fez aquele galo na testa.

— Quase tivemos um desastre... — John! — berrou a Sra. Bledsoe.

O guarda da segurança entrou no aposento e apenas deixou que sua presença constasse. Tom não queria encrencas; ele não se mexeu. A Sra. Bledsoe agarrou as duas crianças pelos braços.

— Sr. Harris, avisei-o para que se controlasse, e pode estar certo de que seu comportamento será registrado no meu relatório!

— De que parte a senhora não gostou? Quando mordi a perna da cadeira ou quando quebrei todas as janelas?

Ela pôs-se a arrastar as duas crianças em direção à porta. Tom ergueu-se, pronto a fazer alguma coisa. O guarda postou-se à sua frente — da mesma forma que Mulligan havia-se postado à sua frente há uma semana. Aconte­cia tudo de novo, bem diante dos olhos de Tom. A Sra. Bledsoe puxava Rute e Josias pelos braços, levando-os a berrar. Ela chegou à passagem. Ele queria ficar na frente dela; queria estender os braços e detê-la.

Não podia. Tudo o que podia fazer era presenciar o que acontecia.

— Que desastre, Josias? — perguntou ele.

— Crianças, vamos! — gritou Bledsoe, puxando-os na antecâmara.

— Bati a cabeça — repetiu Rute. — Ela parou muito depressa e bati minha cabeça.

Josias deu a última cartada.

— Ela atravessou um sinal de pare e quase bateu numa caminhonete azul! Rute bateu a cabeça na porta do carro!

— Ela? Você quer dizer a Sra. Bledsoe?

Irene Bledsoe havia feito Rute passar pela porta e puxou Josias com um safanão antes que ele pudesse completar a resposta. Mas o garoto acenava que sim com a cabeça ao desaparecer.

— Meninos, estou orgulhoso de vocês! Muito orgulhoso de vocês. Eu os amo!

Eles desapareceram.

— Dê-lhes uns minutos — disse o guarda, não permitindo que Tom os seguisse.

Tom sentou-se à mesa novamente. O guarda foi à porta para certificar-se de que a Sra. Bledsoe se fora.

Tom percebeu o saco de papel pardo no chão. Irene Bledsoe havia deixado o pacote para trás, e os meninos não haviam recebido suas Bíblias ou papéis de carta. Também dessa forma ele não podia tocá-los.

— Tudo bem — disse o guarda — pode ir agora.

Seu serviço terminado, o guarda saiu pela porta e foi cuidar de outras tarefas, deixando Tom sozinho no aposento frio, vazio.

— Ó Senhor...

Tom interrompeu-se. As lágrimas lhe escorriam pelo rosto.

Mas não eram apenas lágrimas de tristeza, e certamente não eram lágrimas de desespero. Ele tinha visto seus filhos, e eles lhe haviam contado algo, a despeito de Irene Bledsoe, a despeito do guarda. Ele sabia que suas almas se haviam tocado, que seus corações ainda estavam juntos. Claro que não era suficiente vê-los por apenas aqueles poucos minutos. Uma visita tão fria e regimentada jamais poderia ser suficiente. Mas por agora, saber que eles o amavam era o suficiente. Eles amavam seu papai. Queriam estar com ele.

Agora suas dúvidas se dissiparam. No meio de toda a dor e desafio, da lama e da sujeira que lhe haviam jogado sobre o nome, ele se descobrira questionando qual sua verdadeira posição. Havia vozes em sua mente dizendo-lhe coisas horríveis que jamais pensara a seu próprio respeito. Ele tentou não dar lugar a essas mentiras; contudo, por as vozes serem tão implacáveis, ele tinha questionado se havia algo de errado com a sua pessoa, algo a que havia estado cego. Talvez, as vozes diziam, ele mereces­se o que lhe acontecia.

Mas agora ele sabia. Ainda tinha a sua integridade, e diante de Deus ainda tinha o coração dos seus filhos. No momento, era maravilhoso ter certeza disso.

Ben e Leonardo entraram depressa no Restaurante do Don, tentando aparentar despreocupação, embora estivessem plenamente uniformiza­dos, carregassem cassetetes, portassem armas, e trouxessem os rádios portáteis na cinta, chiando e grasnando. Todos os olhos no local foram atraídos instantaneamente em sua direção.

Era uma batida! Era algo para todo o mundo ver e depois contar a respeito em casa. Os construtores sentados ao balcão e os caminhoneiros sentados às mesas ergueram os olhos do seu almoço e moveram as mandíbulas hirsutas apenas o suficiente para terminar o último bocado de sopa e sanduíche. Alguns continuaram falando só para aparentarem natu­ralidade, mas observavam, sem dúvida.

O nome foi resmungado pelo aposento por diversos, e elevou-se acima da confusão geral:

— Krantz. Sim, o rapazinho Krantz. Ele ainda está aprontando.

Na ponta do balcão, Kyle Krantz estava sentado debaixo do olhar vigilante do calvo e gorducho Don Murphy, o proprietário, e de dois rapazes vestidos de brim, os filhos de sitiantes de constituição desenvol­vida para jogar feno, lidar com o gado e apreender ladrões de lojas.

— Ei, Kyle — disse Ben. — O que você andou aprontando agora?

— Peguei-o com a mão na caixa registradora — disse Don. — Depois ele se mandou para a porta tentando escapar. Bub e Jack entravam e o seguraram até vocês chegarem aqui.

— Quanto ele tirou? — perguntou Leonardo.

— Oitenta e cinco dólares — disse Don, indicando o pacote de notas sobre o balcão.

Leonardo correu cuidadosamente os olhos por Kyle. O rapaz tinha apenas quinze anos, era magricela como um trilho, com cabelo preto desgrenhado e sujo, e espinhas. O rosto era apático e sem expressão, e os olhos vermelhos e lacrimejantes.

— Sabe, filho — disse Leonardo — acho que tenho motivo para pensar que você poderia estar carregando algo ilegal. Gostaria que esvaziasse seus bolsos para mim.

Kyle hesitou.

— Você ouviu o que o homem disse — falou Jack, empurrando o chapéu para a frente a fim de enfatizar sua inclinação na direção do rapaz.

— Podemos ajudá-lo se você não conseguir — disse Bub.

Kyle começou a esvaziar os bolsos. Primeiro colocou uns trocados sobre o balcão, depois alguns papéis de cigarro.

— Os bolsos da jaqueta — instruiu Leonardo.

Kyle hesitou, depois murchou, vencido, rebuscou o bolso da jaqueta e retirou um saco de plástico cheio de folhas verdes moídas. A porta da frente abriu-se.

— Eh... — disse Don, penalizado de precisar perder o resto daquilo. — Freguês.

Ben relanceou os olhos pelo homem que havia entrado. Era de meia-idade, boa aparência, bem vestido. Ben reconheceu-o: Joey Parnell, o médico legista do município.

Leonardo cuidava direitinho do garoto. Ben disse num sussurro:

— Ei... você está controlando a situação; talvez eu vá dar uma palavri­nha ao Parnell lá...

Leonardo deu de ombros. —Pode ir.

Ben caminhou até a outra ponta do balcão onde Parnell havia ocupado um banquinho e examinava o menu simples.

— Com licença — disse Ben. — Joey Parnell? Parnell ergueu os olhos e sorriu.

— Sim.

Ben apresentou-se.

— Pode me dar um minutinho do seu tempo?

Parnell concordou. Ben ocupou o banquinho vizinho ao dele e tentou pensar por onde começar.

— Apenas por mim, sem ter nada de oficial...— começou ele, e sentiu-se um tanto acanhado mesmo dizendo isso. — Gostaria de perguntar-lhe o que descobriu naquele caso de suicídio de Sally Roe.

Parnell olhou outra vez o menu, um sinal claro de que não estava interessado em falar sobre o assunto.

— Mexo com uma porção de casos, agente Cole. O que exatamente quer saber?

— Bem... sei que pode parecer meio estranho, mas... o senhor conseguiu fazer uma identificação positiva do corpo?

Parnell fitou Ben como se este estivesse brincando.

— Ora, espero que sim. Eu não seria um legista muito bom se nem mesmo pudesse determinar a quem pertenciam os restos mortais que examinava.

Ben sabia que parecia bobo, mas tentou continuar.

— Bem, e que me diz daquela blusa xadrez suja de sangue? O senhor a recebeu?

Parnell não respondeu imediatamente. Parecia estar tendo dificuldade em se lembrar.

— Uh... é, acho que a recebi.

— Os tipos de sangue eram os mesmos?

— O que você quer dizer, os tipos de sangue eram os mesmos?

— Ora, o sangue na blusa era do mesmo tipo que o da falecida? Parnell abriu-se num sorriso e correu os olhos pelo menu outra vez.

— Bem, não sei. Acho que nunca examinei isso. Por que deveria?

— Havia algum ferimento na falecida que pudesse explicar de onde tinha vindo o sangue da blusa?

— Eu... não me lembro se havia ou não.

— E qual foi a causa da morte? Acho que o senhor disse asfixia por enforcamento no seu relatório?

— Isso mesmo. Dessa parte eu me lembro.

— Eu estive lá na cena, Dr. Parnell, e o que vi indicava uma morte violenta, de forma alguma o que se esperaria num suicídio. Além disso... o corpo não estava pendurado, mas atirado violentamente no chão, e não havia nenhuma corda em torno do pescoço.

Parnell apenas ficou olhando-o, ouvindo, sem nada dizer. Ben continuou mais um pouco.

— Poderia fazer-me... apenas para eu saber com certeza... uma descrição da falecida?

Don chegou pelo lado de dentro do balcão, e Parnell pediu um sanduíche de bife e uma sopa. Parnell demorou, e parecia gostar de não ter de conversar com esse jovem e inquiridor policial.

Ben esperou pacientemente. Finalmente Parnell voltou-se para ele e com um sorriso irônico, falou:

— Não, agente Cole, não poderia. Aquilo não soou certo a Ben.

— É... informação confidencial?

— Isso mesmo.

— Bem, que me diz da cor do cabelo? Lembro-me de ter visto uma mulher de cabelos pretos, de vinte e poucos anos, altura média...

— Que tal perguntar-me outra coisa?

Ben se deteve, pensou, e depois perguntou outra coisa.

— De acordo com o que vi lá na delegacia, e depois na casa de aluguel dos Potters, alguma coisa está faltando, talvez algo que pertencesse à falecida. O senhor tem alguma idéia do que todo mundo está procurando?

Parnell claramente se impacientava.

— Ora, essa pergunta eu não tenho condições de responder mesmo.

— Bem, o Sargento Mulligan enviou alguém à casa para dar uma busca, e sei que ele lhe perguntou acerca de alguma coisa.

— Sem comentários, senhor! — Ele estava visivelmente aborrecido. Ben achou melhor afastar-se desse tipo de pergunta. Mas e agora?

— Uh... bem, só mais uma pergunta.

Parnell foi enfático.

— Só uma.

— Ainda é possível ver o corpo? Parnell deu uma risada ao ouvir aquilo.

Sinto muito. Já foi cremado. Agora, será que isso o satisfaz? Ben sorriu.

— Claro. Muito obrigado, Dr. Parnell. Desculpe tê-lo amolado.

— Tudo bem.

Parnell desdobrou um exemplar do Estrela do Condado de Hampton e devotou-lhe toda a atenção. Ben reuniu-se a Leonardo, que agora tinha Kyle Krantz sob guarda, e eles saíram para o carro-patrulha.