terça-feira, 25 de maio de 2021

Este mundo tenebroso - parte 2 - Capítulo 09

— Você fez o quê? O advogado Wayne Corrigan havia estado a escutar pacientemente a história de Tom Harris até aquele ponto e mal dissera uma palavra. Essa era a sua primeira pergunta.

Tom tentou retroceder um pouco para explicar.

— Ela estava... bem, estava "canalizando" um espírito.

Corrigan descansou a fronte sobre as pontas dos dedos e fitou fixamen­te a escrivaninha, folheando a ação judicial apenas como um escape emocional. Olhar para baixo parecia mais seguro nesse momento do que fitar Tom Harris e o pastor Mark Howard de frente.

— Canalizando...

— Bem, sim. Costuma-se chamar isso de mediunidade; a pessoa permite que um espírito demoníaco fale através de si...

— Bem, sim, sei o que isso é, mas... — E então Corrigan não conseguiu pensar nas palavras certas para os seus sentimentos. Podia apenas sacudir a cabeça.

Esse era o último compromisso do dia, e agora seria provavelmente o pior. Ele tentava ser agradável, mas era duro. Oh, o que tantas pessoas esperavam dele! Ali estava ele, com quarenta e poucos anos de idade, um advogado de cidade pequena mal ganhando o suficiente para viver, um homem sensato com uma esposa querida, quatro filhos, pagamentos do empréstimo da casa própria, e uma vida de lutas e erros como qualquer outra pessoa. Contudo, mais uma vez, alguém com uma necessidade e sem dinheiro se sentava ali esperando que ele fizesse algum milagre e sugerisse respostas rápidas e simples para um caso que seria complexo e difícil. Simplesmente não era justo.

O pastor Mark decidiu entrar naquilo.

— Sr. Corrigan, posso garantir-lhe que Tom é um homem sensato e que fala a verdade. Creio no que ele está dizendo, e, além disso, a Sra. Fields pode confirmar. Ela estava lá; também viu o que aconteceu.

— Está bem, está bem.

Corrigan deteve-se a pensar por um momento. Deveria ouvir o resto daquilo? Quanto tempo mais devia deixar que aqueles dois prosseguissem antes de dizer não? Talvez apenas devesse contar-lhes quanto custaria defender um caso como esse, e isso encerraria toda aquela conversa. Ele não conhecia Tom Harris muito bem, mas conhecia Mark Howard e gostava dele. Esse homem bondoso, genuíno, de seus cinqüenta anos de idade tinha aquelas "cãs quando se acham no caminho da justiça" de que a Bíblia falava. Corrigan considerava-o um decente homem de Deus, e quase todos concordavam que a Igreja Comunitária do Bom Pastor fazia muito por seus membros e pela comunidade.

Corrigan sacudiu a cabeça. Sempre acontece com gente boa, pensou.

Ele se reclinou com um suspiro.

— Está bem, continue.

Tom não estava certo de querer fazê-lo.

— Ela... bem, ela veio para a nossa escola cerca de três meses atrás. A mãe a trouxe e registrou.

— A Sra. Brandon concordou com sua Declaração de Fé?

— Bem, sim. Ela assinou dizendo que a aceitava. Ela conhece nossa posição doutrinária.

— E o parágrafo no manual que fala de castigos corporais?

— Bem, assumi que ela o tinha lido.

— Muito bem, continue.

Tom reuniu seus pensamentos e apanhou o fio da história novamente.

— Amber deu-se bem com as outras crianças por algum tempo. Demo­rou cerca de um mês para se entrosar. Então, durante o recreio, ela começou a ensinar as crianças... a relaxarem.

— Técnicas de relaxamento?

Tom e Mark se entreolharam com um raio de esperança nos olhos. — Já ouviu falar disso? — perguntou Tom.

— Tivemos um caso há um ano envolvendo o ensino de ioga numa aula de educação física, e técnicas de relaxamento faziam parte dela. Alguns pais, pais cristãos, reclamaram que a escola ensinava religião oriental.

— E daí... — Mark estava curioso — o que aconteceu?

— Demos queixa junto ao distrito da escola, mas não conseguimos o resultado que desejávamos. A escola simplesmente mudou todos os termos e higienizou o programa de forma a não se parecer com religião, e continuou fazendo a mesma coisa.

— Então ... — arriscou Tom — acho que o senhor perdeu esse caso.

— Perder, exatamente, não perdemos. Desistimos dele. Vamos ouvir o resto da sua história.

— Bem... vi o que Amber fazia e perguntei-lhe o que acontecia, e ela me disse que era o que havia aprendido na classe da Srta. Brewer, isso seria na Escola de Primeiro Grau de Baskon, e que era divertido porque ajudava a gente a sentir-se melhor e a encontrar amigos especiais, guias imaginá­rios. Eu não sabia muito bem como enfrentar aquilo, por isso deixei passar. As outras crianças não pareciam interessadas de qualquer forma.

— Bem, então as crianças começaram a brincar de faz-de-conta; o senhor sabe como as crianças fazem. Faziam de conta que participavam de um espetáculo eqüestre, e algumas delas agiam como cavalos e faziam proezas enquanto as outras crianças eram os amestradores. As crianças brincam de faz-de-conta assim o tempo todo; não havia nada de estranho, realmente.

— Mas então... Amber tornou-se a líder do grupo, e seu cavalo, aquele que ela fingia ser, mostrava a todos os outros cavalos como empinar, fazer proezas, e como... bem, ser bons cavalos, acho. Até aí, tudo bem. Mas depois do recreio, ela não parou de fingir que era um cavalo. Entrava empinando na sala de aula e sentava-se à carteira por algum tempo, depois ia empinando até o apontador de lápis, e empinava de um lado para o outro nos corredores entre as carteiras sem nenhum motivo, e fazia sons de cavalo sempre que eu a chamava, e começamos a ter um verdadeiro problema disciplinar. Ela perturbava a classe e causava confusão de todo o lado.

Mark sugeriu:

— Conte-lhe o nome do cavalo. Tom lembrou-se dessa parte.

— Oh, sim, certo. Fui atrás dela uma vez. Disse: "Amber, sente-se agora e fique quieta" e ela (Tom fez os movimentos com as mãos) deu patadas no ar como um cavalo selvagem, e relinchou, e disse: "Não sou Amber. Meu nome é Ametista!" — Tom deu de ombros. — Isso já bastava. Tive de levá-la ao escritório com a Sra. Fields e fazer com que fosse surrada.

— Ah... — Corrigan olhou o documento sobre a escrivaninha. — Acho que esse é o segundo item na queixa aqui.

— Acho que sim. Seguimos o procedimento claramente estabelecido no manual e com o qual qualquer pai ou mãe que matricule o filho concorda. Usamos uma régua de madeira quando a criança resolve forçar a sua vontade contra a vontade do professor e após consideramos cuida­dosamente todas as circunstâncias. Ficamos a sós com o aluno, oramos com ele, e imediatamente tentamos entrar em contato com os pais —

— Conseguiram entrar em contato com a Sra. Brandon?

— Não. Tentamos encontrá-la em casa e no correio, mas ela simples­mente não estava disponível e a situação ficou bem intensa.

— Quem bateu em Amber?

— A Sra. Fields. É diretriz nossa que as meninas apanhem de uma mulher e os meninos de um homem.

— Oh, isso é bom. Tiveram alguma testemunha?

— Sim, a nossa professora de arte estava lá aquele dia, e serviu de testemunha. Fizemos um registro da coisa toda, e finalmente conseguimos entrar em contato com a Sra. Brandon aquela noite e contar o que havia acontecido.

— E daí, qual foi a reação dela?

— Essa parte é que é estranha. Ela concordou com a nossa ação. Não se opunha a que batêssemos em Amber se Amber precisasse disso.

Corrigan olhou a ação judicial novamente.

— Mm. Alguém mudou de idéia. Mas quando foi que você... Tom sabia o que Corrigan queria dizer.

— Há apenas um mês. Depois que castigamos Amber, as coisas correram muito bem por cerca de três dias, e então... — Tom parou para pensar. — Acho que deve ter começado novamente durante o recreio do meio-dia. Amber tornou-se um cavalo de novo, como antes, e voltou para a classe como... como "Ametista". Dessa vez eu não estava disposto a tolerar a coisa, e fui firme com ela, confrontei-a, e então...

Tom teve de parar. Parecia que ia chorar. Ele se esforçou para conti­nuar.

— E então algo tomou conta da garotinha. Toda a sua personalidade mudou. Ela começou a blasfemar, e a xingar, e zombar do nome de Jesus, e... e tive de tirá-la dali. As outras crianças realmente ficaram perturbadas por causa daquilo. Tomei-a pelo braço e tive de arrastá-la fisicamente da classe — ela se agarrava às carteiras e às cadeiras e mesmo às outras crianças. A Sra. Fields ouviu o distúrbio lá do outro lado do corredor, e veio correndo ver o que acontecia. Foi preciso nós dois para levá-la à sala comum e segurá-la. Ela estava tendo um verdadeiro acesso de raiva... não, pior que isso. Não era ela mesma. Não era Amber Brandon.

Tom parou. Nem Corrigan nem Mark disseram nada. Não havia pergun­tas. Ambos esperavam ouvir o resto.

Tom forçou-se a continuar, precipitando-se.

— Então, eu... discerni em meu espírito que Amber manifestava um demônio, e confrontei essa... Ametista no nome de Jesus; ordenei-lhe que ficasse quieta, e saísse de Amber.

Corrigan se afundou na cadeira e exalou um longo suspiro. Mark aparteou:

— Mas ela ficou bem depois disso, não ficou?

— Ela voltou a ser ela mesma, sim. Corrigan perguntou:

— Então você naturalmente concluiu que esse demônio havia deixado Amber, que você havia conseguido expulsá-lo?

Tom sentia-se obviamente sem graça.

— Sim. Acho que sim. Mas ela deve ter contado umas histórias bem exageradas quando chegou em casa. A Sra. Brandon veio para uma confe­rência no dia seguinte, e a essa altura ela estava fora de si, acusando-me de maus tratos físicos, de terror, de intimidação...

Corrigan olhou para a sua estante de livros, continuando a afundar cada vez mais na cadeira.

— Você tentou expulsar um demônio de uma criança de dez anos de idade...

Mark protestou:

— Sr. Corrigan, o senhor sabe o que a Bíblia diz acerca de atividade demoníaca. O senhor sabe que os demônios são reais, não sabe?

Corrigan deixou cair o braço sobre a escrivaninha e apontou-o para o rosto de Mark.

— O senhor acha que um júri vai aceitar essa, pastor? Vá em frente! Faça uma proeza dessas e depois tente convencer qualquer júri neste país de que seu comportamento foi apropriado! — Agora ele usou as duas mãos porque precisava de um gesto maior. — Uma criança, uma criança de dez anos, e você tentou expulsar um demônio dela!

— Bem, o que se esperava que eu fizesse?

Corrigan sentou-se ereto antes que deslizasse da cadeira. Ele se inclinou sobre a escrivaninha e folheou a queixa à sua frente.

— Bem, para começo de história, não devia ter agido sozinho e não devia ter levado adiante esse... esse ato... sem ter-se aconselhado com alguém, sem ter obtido conselho judicial.

Mark disse:

— Ele sabe isso agora. Então Tom protestou:

— Mas conselho judicial? Como eu poderia saber a respeito disso? Desde quando Paulo e Silas foram atrás de conselho judicial antes de...

— Eles acabaram indo parar na cadeia, está lembrado? — interrompeu Corrigan bruscamente, e para ele usar uma voz que estivesse mesmo um pouquinho alta tinha de significar que estava transtornado. — Eles foram surrados e jogados na cadeia por expulsar um demônio, e você enfrenta a versão civil da mesma coisa. Uma ação civil não vai fazer com que seja jogado na cadeia, mas ainda assim você vai precisar de algum tipo de terremoto filipense para tirá-lo dessa. A Associação dos Cidadãos America­nos pela Liberdade tem sua impressão digital por toda esta coisa... Suponho que sabe isso.

Mark e Tom se entreolharam. A ACAL, aquela infame associação, poder-se-ia dizer conspiração de técnicos judiciais profissionais, caiados, virtuosos, e tudo-pela-liberdade por fora, era morbidamente liberal e anticristã em seus motivos e atividades. Atualmente ficava difícil achar qualquer ação judicial movida contra cristãos, igrejas ou organizações paraeclesiásticas que não tivesse a ACAL e suas numerosas filiais em todo o país por trás.

Mark disse:

— Achamos que talvez fosse esse o caso... Corrigan bateu no fim da primeira folha da queixa.

— Ames, Jefferson e Morris são membros da ACAL; eles mandam na sede local e têm sido os valentões liberais, judiciais nestas vizinhanças por anos. Por que outro motivo acha que a imprensa saberia a respeito dos seus filhos serem levados e estar bem ali a fim de amolar você em sua casa e na delegacia de polícia? Por que acha que estava bem lá para filmar quando você foi intimado? Para criar um escândalo e sujá-lo na imprensa, por isso. Por que acha que seus dois garotos foram levados em primeiro lugar? Assim que a ACAL soube deste caso, vazou a informação — prova­velmente bem enfeitada — ao pessoal da Proteção à Criança e os trouxe para dentro do caso. Eles querem esse tipo de notícia picante. Agora você está marcado como quem maltrata crianças, Tom, antes mesmo de chegar ao tribunal. A ACAL joga sujo.

— Bem, veja apenas a queixa aqui contra.... o pastor, o diretor, a igreja, e o conselho da igreja: "Comportamento Religioso Chocante Contra uma Criança" — a expulsão do demônio, naturalmente, "Mau Trato Físico por Espancamento, Instrução Religiosa Excessiva e Prejudicial à Criança, Perseguição, Discriminação e Doutrinação Religiosa Usando Fundos Fede­rais."

— Essa coisa toda é dinamite; vai dificultar o caso porque a ACAL usará todas essas questões quentes para conseguir a atenção do público e causar alvoroço.

— E vocês viram essas grandes palavras-chave, fundos do governo federal? Isso vai levá-los através da porta dos tribunais federais: "violando os direitos civis da mãe ao ensinar religião usando fundos do governo federal — uma violação do Decreto Munson-Ross de Direitos Civis e do Decreto Federal de Assistência Escolar a Creches e Escolas Particulares de Primeiro Grau."

— Fundos do governo federal? — perguntou Tom.

— Lucy Brandon trabalha no Correio, certo? É funcionária do governo federal, e sob esse Decreto Federal de Creches ela recebe um subsídio para ajudar a pagar a mensalidade de Amber. Não sabia isso?

Tom estava obviamente surpreso.

— É novidade para mim. Ela nada disse sobre isso.

— Interessante. Talvez ela não quisesse que você soubesse. De qualquer forma, se você está recebendo fundos federais, quer dizer que não pode discriminar ou impor religião ou bater ou causar angústia mental ao sugerir que a criança está possuída por demônio, ou qualquer outra coisa que a ACAL queira alegar num tribunal judicial. Esse e todo o motivo dessa coisa: eles descobrem uma lei vaga e então arranjam casos judiciais como este aqui a fim de esticar a lei tanto quanto puderem nos tribunais. Esse Decreto Federal de Assistência Escolar a Creches e Escolas Particulares de Primeiro Grau é uma nuvem de fumaça grande, vaga, vale-tudo, uma medida esperta por parte do Congresso de que a maioria das pessoas jamais ouviu falar. Agora a ACAL está pronta a fazer com que o Decreto seja definido por meio de uma lei estabelecida por decisão judicial, precedentes legais, talvez uma decisão do Supremo Tribunal.

— É por isso que eles estão apelando para o federal com isto, citando lei federal. Olhe aqui: "V.S. está intimado a comparecer às nove horas da manhã, dentro de duas semanas, no departamento da Juíza Emily R. Fletcher do Tribunal Federal Regional, Distrito Ocidental, Sala 412, Tribu­nal Federal, blá, blá, blá." Este é um caso federal, meus chapas.

— Então, o que fazemos? — perguntou Tom. Corrigan tornou-se silencioso e depois tateou na gaveta.

— Bem... eu diria que você precisa de um advogado, com certeza, mas... não sei bem quem deveria consultar a respeito desse tipo de coisa.

— Quer dizer que não aceitará este caso? — perguntou Mark.

Corrigan deu uma risadinha nervosa e abanou a cabeça.

— Bem... não. Não, não posso. — Ele soltou abruptamente: — Agora antes que digam qualquer coisa ou perguntem por que não...

Então ele parou. Oh, vida, aqui vou eu novamente, tendo de explicar isto a outro bando de mártires ingênuos.

— Escutem, não quero ofendê-los, por favor, compreendam. Isto e, posso avaliar a sua posição... — Corrigan empurrou a cadeira da escriva­ninha para trás, acenou com as mãos por ali um pouquinho, e olhou para a sua estante enquanto tentava encontrar as palavras. — Mas acabei de estabelecer uma nova regra neste escritório de não mais defender cristãos que não me podem pagar por meus serviços.

Mark achou a declaração um tanto estranha.

— Mas... não pensamos que o senhor faria isso de graça.

Não era um escape suficientemente bom para Corrigan baixar o olhar à escrivaninha. Agora ele olhava para o tapete.

— Pastor Howard, o senhor é a última pessoa sobre a terra a quem eu jamais desejaria recusar, mas... Bem, deixem-me apenas partilhar uma informação deprimente com vocês.

— Muito bem, sou cristão e todo mundo sabe disso; a polícia sabe, os juizes locais sabem, o promotor municipal sabe... O pior e que todos os cristãos deste município sabem. Isso quer dizer que, quando os cristãos se metem em dificuldades judiciais, chamam-me, porque sou um "irmão no Senhor".

— Mas, então, por serem... cristãos... eles entram na coisa com algumas convicções sobre como meus serviços vão ser pagos, se é que vão ser pagos; eles sentam-se em meu escritório e me falam da fê e da provisão de Deus, e geralmente inserem alguma coisa sobre Deus me recompensar por todo o meu tempo e sacrifício; mas, nesse meio de tempo, a minha carreira entra pelo cano por causa de dívidas não saldadas.

— Mas, por favor, não me entendam mal. Não estou culpando os cristãos. É apenas o modo como o sistema funciona. O povinho — os cristãos — mete-se em complicações legais porque o estado, ou a ACAL, ou alguma outra organização secularista fanática, papa-cristão, resolve persegui-los, e essa gente sempre tem todo o poder, as conexões e o dinheiro de que precisam para ganhar qualquer batalha que desejem num tribunal. Não é o que se dá com os cristãos. Eles precisam promover jantares e operações lava-carro e maratonas apenas para contratar algum advogado pobre de segunda como eu, que supostamente tem tanto amor por causas justas que não se importa com o dinheiro.

Corrigan viu que Mark e Tom ouviam sem nenhum sinal de animosida­de, pelo menos não por enquanto; assim, ele continuou.

— Ora, essa é uma metade do problema. A outra metade e que com demasiada freqüência os cristãos simplesmente não são verossímeis. Sabe, eu já cheguei mesmo a instruir alguns clientes a não testemunharem no tribunal que são cristãos porque em muitos casos essa informação dimi­nuiria a sua credibilidade! O mundo aí de fora... o sistema... acha que nos entende. Ele nos identificou, categorizou, definiu. Acreditamos em Deus; acreditamos em absolutos. Portanto, talvez não sejamos dignos de crédito! — Ele deu uma risada irônica. — Quando eu estava na faculdade de direito a coisa era o contrário. A percepção era a de que as pessoas não tinham credibilidade se não acreditassem em Deus. Como as coisas muda­ram, não?

— Assim, de qualquer forma, defrontamo-nos com duas opções: Posso ser contratado pelos cristãos e descobrir mais tarde que eles não podem pagar pelos meus serviços, ou posso aceitar seu caso de graça ou por preço reduzido — geralmente um preço drasticamente reduzido. Nesse caso aqui, haveria em torno de zero possibilidade de qualquer recuperação contin­gente. Eu poderia apenas esperar receber parte do acordo, mas mesmo assim o sistema já está tão pré-arranjado contra mim que não tenho a mínima possibilidade justa de ganhar, e portanto nenhuma chance de receber dessa forma também.

— Estou deixando isto bem claro para vocês? Simplificando mais, não posso dar-me a esse luxo, pelo bem das minhas finanças e da minha reputação. Já cheguei perto demais da falência demasiadas vezes para aceitar outro caso como este. Acho que vocês precisam de um visionário bisonho, um cavalo novo em folha que ainda tenha disposição para correr alguns quilômetros, alguém que possa fatigar-se por quase nada.

Corrigan deteve-se.

Ele se sentia desafogado agora, embora também um tanto envergonha­do. Olhou para a parede onde seus olhos incidiram sobre o diploma que lhe permitia exercer a advocacia, e concluiu com:

— Por vezes, quase admito a mim mesmo quanto odeio este trabalho. Vejam o que ele faz comigo... leva-me a despejar todos os meus sentimen­tos sobre gente boa como vocês.

Mark olhou o torpedo judicial sobre a escrivaninha de Corrigan e suspirou.

— Então, aonde isso nos leva? Os filhos de Tom lhe foram tirados, e ele ainda não sabe onde se encontram. Agora a escola é atacada com uma ação judicial... Bem, parece que nossas próprias liberdades estão sendo amea­çadas. Não existem advogados em Baskon; poderíamos ter ido a outro lugar, mas viemos a Claytonville para vê-lo porque — e não me envergonho de dizê-lo — sabíamos que era cristão. Sabíamos que teria a perspectiva certa.

Corrigan olhou o ministro com apenas um bocadinho de acanhamento.

— Bem, acho que acabei de vez com essa idéia sua.

— Mas, e Tom? Ele poderia estar amargurado neste momento. Perdeu a esposa num desastre de carro há apenas três anos, seu salário é uma miséria, mas ele permaneceu aqui com os dois filhos e vem servindo como diretor de nossa escola cristã por quatro anos agora, fazendo um trabalho excelente. E que recompensa recebe? Seus filhos lhe são tirados e uma ação judicial contra a escola que pode colocar em risco tudo o que ele e o resto de nós preza. Não é justo. Mesmo assim, ele permaneceu fiel ao seu chamado. É um homem justo, um homem de princípios e convicção...

— Daí o salário miserável. Desculpe-me, continue. Mark ficava aborrecido.

— Já acabei.

Corrigan sentou-se em silêncio, apoiou o queixo nas juntas dos dedos, pensou por um momento, então moveu a cabeça concordando com os próprios pensamentos.

— E pensar que tudo começou em Baskon! Acho que tinha de acontecer em algum lugar. — Ele sentou-se ereto e cruzou as mãos sobre a escriva­ninha. Pela primeira vez em diversos minutos, olhou diretamente para Tom e Mark. — Pastor, a ACAL não está atrás de sua escolinha; Tom, não estão realmente interessados em você também; quanto a essa criança que alegam ter sido traumatizada, não se importam nem um pouco com ela. Não, o que realmente querem é um precedente legal, algo que vai atingir não apenas vocês, mas todos. Eles têm todo o dinheiro e habilidade de que precisam para fazer essa coisa dar certo, e sabem que vocês não têm, e é com isso que estão contando. É por isso que escolheram um lugarzinho como Baskon e uma igrejinha paupérrima como a sua.

— E acho que me conseguiram colocar bem onde me queriam. Posso ver aqueles advogados da ACAL sentados em seu escritório lá na firma Ames, Jefferson e Morris dizendo: "É, ataquem Baskon. Aquele Wayne Corrigan é um pavio queimado, jamais aceitará o caso." Ora, não seria uma beleza para eles?

Olhou novamente os papéis sobre a escrivaninha.

— Muito bem, digo-lhes o que farei: Voltarei atrás. . . mais ou menos. Aceitarei o caso, mas aceitarei o mínimo possível. Isso quer dizer que vocês fazem o trabalho, fazem as andanças, fazem a pesquisa, constroem o caso. Eu lhes direi o que fazer, redigirei os depoimentos, tomarei nota das declarações, defenderei o caso e apresentarei os argumentos, aconselharei vocês; mas qualquer informação relacionada a este caso é sua responsabi­lidade. Sugiro que arrumem um investigador particular para ajudar. No que diz respeito ao meu envolvimento, receberão aquilo que pagarem, e... — Ele engoliu em seco, chegou a uma decisão relutante, e acrescentou: — Reduzirei meus honorários pela metade, mas vocês têm de concordar em conseguir a outra metade.

Tom e Mark trocaram um rápido olhar e concordaram depressa.

— Está certo.

— E daí, o que vem primeiro? — perguntou Mark. Corrigan folheou os papéis.

— Número Um, vocês têm uma injunção temporária aqui que os impede de fazer quase tudo que foi mencionado na queixa. Uh... acho que vai resumir-se ao fato de que você terá de desistir de vez de castigos físicos e de qualquer outro "comportamento religioso chocante". Acho que isso significa que não pode expulsar nenhum outro demônio até à audiência no tribunal em duas semanas.

— O que acontece em duas semanas? — perguntou Tom.

— Temos que comparecer ao tribunal... "para demonstrar motivo, se você tiver algum, pelo qual você e todas as pessoas que o representam ou representam a escola não devam ser imediatamente impedidas de bater, espancar, ou de alguma outra forma ter contato físico com as crianças da escola por qualquer motivo que seja, e porque você e todas as pessoas que o representam e estão de comum acordo consigo não devam ser imedia­tamente impedidas de qualquer outro comportamento religioso que possa comprovadamente ser nocivo ao bem-estar mental, emocional ou social da criança, ou qualquer instrução religiosa excessiva, direta ou indireta, de qualquer tipo, na escola ou na creche, que possa ser comprovadamente nociva... " E a injunção continua e fala a respeito de todas essas outras coisas.

— O que exatamente querem dizer com "instrução religiosa excessiva"? — perguntou Tom.

— Isso ainda vai ser definido.

— O que devemos fazer? — perguntou Mark.

— Tentem ficar bem comportados nas próximas duas semanas. Não sejam chocantes, seja lá o que for que isso signifique. Enquanto isso, precisam dar-me bons argumentos que justifiquem continuarem as ativi­dades acima mencionadas. Então protocolarei os resumos e os depoimen­tos junto ao tribunal, e então iremos lá para ver se podemos livrar vocês dessa injunção. Essa é a primeira coisa.

— E depois? — perguntou Mark.

Corrigan subitamente pareceu preocupado e desgastado.

— Um bocado de cada vez, pastor. O senhor vai estar ocupado por muito, muito tempo.

— E o que me diz de Rute e Josias? — perguntou Tom.

— Não existem respostas fáceis aí. Vai ser uma embrulhada daquelas, e poderia ser ate pior, dependendo de com quem você estiver lidando no sistema. Acho que você tem direito a uma audiência dentro de setenta e duas horas a fim de determinar se a remoção das crianças tem mérito, mas essa é geralmente uma sessão predeterminada na qual o juiz aprova a remoção das crianças baseado no testemunho da assistente social. Você pode ser chamado a comparecer, pode ser barrado totalmente da audiên­cia. Depende de quem estiver cuidando do caso. Darei uma olhada.

— Mas... não vou reaver os meus filhos? Corrigan hesitou antes de responder à pergunta.

— Provavelmente terá de passar por um julgamento primeiro, e isso poderia significar uma espera de seis meses ou mais.

Nem Tom nem Mark estavam preparados para uma resposta como essa.

— Isso não pode ser tudo a respeito! — disse Mark. — Tem de haver outras opções, algo que possamos fazer!

— Podem orar — respondeu Corrigan. — Especificamente, orem pedin­do alguns amigos nos lugares certos. Têm uma luta diante de si.