segunda-feira, 10 de maio de 2021

Este mundo tenebroso - parte 2 - Capítulo 08


 Saqueado. O lugar estava um desastre, exatamente como a Sra. Potter tinha dito.

Ben deteve-se no umbral da porta da casinha de aluguel dos Potters e calculou que era melhor dar uma boa olhada dali antes de entrar. A pequenina sala de visitas estava parcamente mobiliada com um velho sofá, uma cadeira de balanço, um pequeno suporte de abajur com pernas fininhas, e um tapete cinza e marrom.

As almofadas do sofá estavam jogadas no chão, o tapete trançado enrolado para o lado e amontoado num canto. No meio do assoalho encontravam-se papéis, livros, caixinhas, e diversas peças de vestuário, aparentemente o conteúdo de algumas gavetas em algum lugar, trazido ali e despejado.

Ben examinou o relógio. Sim, tinha tempo de ficar mais um pouquinho. Esse desvio de volta à cena do suposto suicídio não era oficial, para dizer o mínimo, e ele realmente precisava dar mais algumas paradas. Mas havia algumas perguntas incômodas que o atraíam para o lugar, e ele esperava que uma resposta, não importa quão pequena, pudesse surgir. A Sra. Potter bem que ficou contente em vê-lo de novo, e lhe entregou a chave após prepará-lo para o que iria encontrar.

Ele entrou na casa e dirigiu-se à cozinha. Cada gaveta havia sido aberta e o conteúdo espalhado sobre a velha mesa de cavalete: algumas tigelas e pratos desemparceirados, velhos talheres de exército, alguns panos de prato bem gastos, algumas panelas e uma caixa de bolachas salgadas meio vazia. As latas de mantimento sobre o balcão estavam todas abertas. Alguém havia revirado a farinha de trigo, o chá e o açúcar, derramando boa parte deles. Ele examinou a geladeira. Também haviam passado por ali.

Ele encontrou o quarto. Estava o mais bagunçado de todos os cômodos, provavelmente por conter a maior parte dos parcos pertences de Sally Roe. Ben se deteve por um instante assim que cruzou o umbral da porta, notando o acolchoado complicado agora puxado da pequena cama, a bela escultura de cavalo sobre a penteadeira, os quadros agora pendendo tortos das paredes: gravuras de cenários bucólicos e serenos, cavalos pastando, lavradores trabalhando com afinco. Na mesa quadrada ao lado da cama encontrava-se um pequeno abajur de porcelana, rachado, mas enfeitado com flores pintadas à mão, e encimado por complicado quebra-luz de crochê. Certamente, esse era o cômodo favorito de Sally Roe, seu mundo­zinho particular. Era o que havia recebido a maior parte de sua atenção e criatividade.

O pequeno guarda-roupas havia sido revirado, mas a maioria das roupas ainda estava pendurada nele. Ben notou as blusas, as saias, os vestidos, os lenços. Estavam todos limpos, passados, bem cuidados, conservados. O guarda-roupa recendia a lavanda.

O quarto estava inundado pela luz do sol que vinha através da janela que dava para o sul. Logo abaixo da janela encontrava-se a velha escriva­ninha de nogueira de Sally, as gavetas todas abertas, o conteúdo espalhado por todos os lados. Mesmo assim, Ben conseguia visualizar com facilidade como as coisas eram antes; alguns livros, um dicionário comum e um de sinônimos em posição de sentido no lado esquerdo, um pequeno estojo de mesa contendo um suprimento de canetas e lápis no lado direito, e no meio... Bem, fosse o que fosse que Sally costumava ter ali, fosse o que fosse em que ela tivesse estado a trabalhar, encontrava-se agora no chão ou havia sido confiscado. Mas por um momento ele podia imaginá-la sentada naquela pesada cadeira de madeira da escrivaninha que tinha rodinhas nos pés, rolando de um lado e de outro, o sol aquecendo-a, toda aquela paisagem verde, florida, banhada de sol em contínua exposição através daquela janela.

Não era um pensamento longo, meticuloso, apenas uma impressão ligeira, uma simples conclusão: Mulligan não havia captado tudo o que Sally Roe era com descrições tais como "resto de hippie" e "perdedora".

Ben ouviu passos na varanda da frente e em seguida a voz da Sra. Potter chamando:

— Agente Cole?

— Sim, senhora, estou aqui.

Ele atravessou a casa ao encontro dela, e achou-a na sala de estar, os braços cruzados, meneando a cabeça ante a terrível bagunça.

— Olhe só para isto! Nunca fiquei tão revoltada! O próprio Ben estava atônito.

— Essa gente foi mandada pelo nosso departamento?

— Foi o que disseram. O Sargento Mulligan disse que eles viriam para procurar pistas e coisas assim e era para eu deixá-los entrar, por isso deixei; e quando se foram, o lugar ficou desse jeito! Acha que eu deveria dar queixa?

— Bem... quem eram eles? A senhora já os havia visto alguma vez?

— Não. Eles não eram destas redondezas.

— Disseram o que procuravam?

— Não, nem me lembrei de perguntar.

— Bem... — Ben olhou em toda a volta, sem saber ao certo o que dizer. — Eu, ... perguntarei ao sargento Mulligan a respeito. Não me preocupa­ria. Tenho certeza de que também assumirão a responsabilidade por limpar o lugar assim que tiverem terminado a investigação.

Ela meneou a cabeça e dirigiu-se lentamente à porta.

— Bem, acho que é melhor eles empacotarem tudo e doarem a alguma instituição de caridade ou algo parecido. Não sei o que mais fazer com todas as roupas e coisas agora que Sally está morta. E diga-me, o que devo fazer com sua... — Ela se deteve bruscamente, parada na varanda da frente, olhando de um lado para o outro à procura do carro. — Ora... é isso mesmo! Sua caminhonete! Ben saiu para juntar-se a ela.

— Algo errado?

Cecília ainda estava olhando à volta.

— Bem, eu estava por perguntar o que deveria fazer com a caminhonete dela agora que ela está morta, mas agora me lembro... nem mesmo está aqui.

Ben anotou aquilo.

— Isso.. isso é anormal?

— Bem, ela sempre dirigia a caminhonete quando ia trabalhar, e sempre voltava nela para casa todos os dias, e, se esteve em casa na outra noite, parece razoável que sua caminhonete tivesse estado aqui também. Ela a teria estacionado logo ali. Está vendo aquela grama? Era ali que ela sempre a deixava.

— Talvez já tenha sido apreendida. Averiguarei.

— Mas ela não estava ali na noite em que encontrei Sally. O rosto de Ben assumiu expressão curiosa.

— Isso é um tanto esquisito, não é?

— Oh... quem sabe o que está acontecendo a esta altura... — Cecília olhou através da porta, examinando a sala de estar de novo. — Mas acho que ela era terrivelmente solitária. Parecia que os animais eram seus únicos amigos. Calculei que ela fosse divorciada, ou separada, ou algo assim. Não posso entender como, se não fosse por isso, uma linda ruiva como ela pudesse estar tão sozinha e solteira.

Ben não achou que a pergunta fosse tão importante assim quando a fez.

— Ela era ruiva?

— Claro. Tinha os cabelos da cor da aurora.

Não. Aquilo não fazia sentido; não assentava bem.

— Umm... como era a aparência dela, Sra. Potter?

— Oh... era bonita, mas cansada, sabe? Tinha sardas, grandes olhos castanhos... mas muitas rugas, muitos cuidados no rosto.

— Quanto a senhora diria que ela tinha de altura?

— Mmmm... — Ela ergueu a mão, com a palma para baixo. — Mais ou menos isso.

— Um e sessenta e quatro, um e sessenta e seis... e a idade dela?

— Bem, ela disse trinta e quatro no contrato de aluguel, mas isso foi há dois anos, portanto eu diria cerca de trinta e seis; isso estaria mais ou menos certo.

Ben certificou-se:

— E cabelo ruivo?

Ela olhou para ele um tanto impaciente.

— O senhor não a viu na outra noite?

— Bem, sim...

Mas de repente ele não tinha tanta certeza.

O Porsche vermelho ia rodando a mais de cento e quarenta quilômetros por hora quando, não conseguindo fazer uma curva, voou pelo acostamen­to e mergulhou num aterro. Diversos carros pararam assim que o desastre ocorreu, e houve muitas testemunhas.

— É — disse um veranista aposentado — ele vinha bem lá atrás, passou meu veículo como se eu estivesse parado, e depois, zing! Voou do acostamento, sem mais nem menos!

— Ele ia depressa demais — disse a esposa — muito mais que depressa! O patrulheiro anotou tudo aquilo. Havia uma equipe adequada à mão: dois carros-patrulha, dois carros de socorros, e até mesmo um caminhão de bombeiro, acionando suas luzes, colocando tochas, e criando um espetá­culo e tanto. Todos os motoristas que passavam espichavam o pescoço como de costume, e o tráfego na rodovia havia-se reduzido a passo de tartaruga.

O patrulheiro gritou:

— Ei, vamos mandar alguém lá para cuidar do tráfego! Fazer esses carros andarem!

Seu companheiro subiu do aterro, dos destroços.

— Tenho uma identidade para você, Brent!

— Então, eu estava certo?

— Sim, é James Bardine, o advogadozinho metido a importante, seu favorito.

— Morto, aposto.

— Oh, sim. Metade do corpo atravessou o pára-brisa, e ele está amon­toado sobre o capô. Vão ter de cortar o carro para tirá-lo de lá.

O patrulheiro anotou tudo com uns rabiscos apressados.

— Bem, agora já não poderemos brincar de pega-pega com ele. Que pena!

O companheiro baixou os olhos à ravina onde diversos homens esta­vam cortando e içando a parte da frente do carro para demoli-la, tentando desembaraçar o corpo.

— Puxa, o jeito que ele podia fazer as curvas naquela coisa! Nunca perdeu uma! Deve ter sido que um pneu explodiu ou algo assim.

— Provavelmente dormiu ao volante.

— No meio do dia? — O companheiro franziu o cenho. — Não ele. Era bom motorista. Estou meio surpreso.

— Ah, os outros caras acharão uma resposta, por isso não se preocupe. Vamos apenas fazer o nosso serviço e cair fora.

James Bardine estava tão amassado e espremido quanto o carro; seu sangue pingava no chão mesmo enquanto os paramédicos começavam a puxar o corpo para fora do metal retorcido. Era um trabalho cansativo, e eles estavam indo devagar.

Mas durante a sinistra tarefa, ninguém sentiu o cheiro de enxofre, ou viu os olhos amarelos espiando da parte de trás do carro; ninguém ouviu a risadinha demoníaca, ou o súbito adejar de asas pretas, secas, quando os espíritos saíram voando.

Lucy Brandon e a filha Amber chegaram em casa por volta das cinco da tarde, e ambas estavam cansadas, mal-humoradas e desorientadas. O dia de Lucy havia sido traumático o bastante com a requisição de uma ação judicial e tudo o que isso acarretava, e ela se apavorava ante a idéia de ver seu rosto na televisão aquela noite. O dia de Amber tinha sido um desastre; ela havia passado a maior parte do tempo na casa de Claire em vez de na escola com as amigas, e ainda não sabia exatamente por quê.

Lucy encontrou um pouco de ensopado no congelador. Podia esquen­tá-lo no forno microondas e então fazer uma salada, e isso deveria resolver o problema do jantar por enquanto. Sentia-se demasiado cansada e preo­cupada para dedicar grandes esforços a uma refeição naquela noite.

Amber tirou o casaco e deixou-se cair no chão da sala de estar entre suas bonecas e brinquedos. Apanhou uma boneca, um bebê loiro com longo vestido cor-de-rosa, e abraçou-a, ninando-a suavemente.

— Mãezinha? — chamou ela.

— Sim, meu bem — respondeu Lucy.

— Não posso voltar à escola?

Lucy não gostou da pergunta. Tornava ainda mais difícil manter a decisão que havia tomado.

— Não, benzinho, não à escola cristã. Tentaremos colocar você de volta na classe da Srta. Brewer. Gostaria disso?

Amber ninou a boneca e baixou o olhar aos olhinhos pintados.

— Quero ir à escola cristã.

Lucy apertou os botões no forninho microondas, fazendo-o zumbir.

— Falaremos... bem, falaremos disso mais tarde, Amber. Foi um dia confuso.

Amber foi afundando cada vez mais numa disposição melancólica.

— Não quero voltar à classe da Srta. Brewer. Não quero mais fazer aquelas coisas.

Lucy retornou à sala de visitas.

— Amber, pendure o casaco, por favor.

A garotinha ignorou-a.

— Amber!

Ela permaneceu sentada ali, imóvel, os olhos azuis olhando fixamente para a frente, vazios. A boneca havia caído de seus braços. Lucy aproximou-se dela para dar mais ênfase à ordem.

— Amber, disse-lhe para pendurar o casaco!

— Aahhh! — a garotinha guinchou de alegria, o rosto abrindo-se num sorriso extasiado. Olhava para um carrinho de brinquedo sobre a mesinha de centro.

O medo paralisou Lucy onde ela se encontrava. Oh, não! Acontecera de novo.

Amber pôs-se de pé, deu um salto, e pôs-se a dar patadas no ar como se fosse um triunfante cavalo de espetáculo. Ela relinchou como um garanhão selvagem, os olhos azuis dançando; atirou para trás a cabeça, fazendo com que os cachos dourados se agitassem sobre os ombros.

— Verdade! Está tudo bem, Amber! Verdade, não tenha medo, pois seus amigos seguem à sua frente!

Lucy não sabia o que fazer. Simplesmente estava ficando muito cansada disso.

— Amber, chega! Não precisa ser Ametista! Não quero que você seja Ametista! Agora pendure o casaco!

Amber trotou até à mesinha de centro e agarrou o carrinho. "Varruuum!" Ela rodou-o à volta da mesinha, imitando o som de pneus cantando. Lucy estava zangada agora.

— Amber! Quer que eu lhe dê umas — ia dizer a palavra "palmadas", mas... agora essa palavra não parecia ter cabimento.

— Mais depressa — disse Ametista — mais depressa, mais depressa... até morrer, até morrer!

Então, com um cantar final de pneus e um poderoso impulso da mão, ela arremessou o carrinho pela ponta da mesa. Ele atravessou a sala voando e mergulhou no tapete, dando uma cambalhota.

— E agora você se foi, removido daquilo que é chamado de vida! — disse Ametista com uma risada rouca e outra relinchada. — Você era simples­mente muito inepto!

Lucy recuou enquanto a filha dançava e pulava à volta do carrinho revirado.

Ela apanhou o casaco de Amber e pendurou-o ela mesma.