segunda-feira, 10 de maio de 2021

Este mundo tenebroso - parte 2 - Capítulo 06

 

Chimon e Scion permaneciam escondidos em lados opostos do Quarto 12 no Hotel Repouso Tranqüilo em Claytonville. Havia espíritos sombrios por perto, aparentemente os batedores de Des­truidor — limbosos, covardes atormentadores, precipitando-se para baixo através das árvores e cabos de eletricidade, movendo-se animados de um lado para outro da rua, olhando dentro das casas, pelas janelas, chaminés abaixo, à procura da pobre e enlameada fugitiva. Os dois anjos davam duro a fim de manter uma barreira em torno da mulher, de ocultá-la da vista deles, e até então tinham conseguido manter o seu esconderijo em segredo de quaisquer espíritos enviados a atormentá-la .

Mas quatro espíritos ainda acompanhavam Sally Roe aonde quer que ela fosse, e tinham sido seus companheiros íntimos por tanto tempo que não podiam ser separados no presente. Chimon e Scion morriam de vontade de postar-se à sua frente, de despachar Desespero, Medo, Morte e Loucura a golpes cortantes para longe desde mundo, de amenizar a dor daquela alma amedrontada, castigada. Mas a vida dela era tal que eles tinham o direito de estar ali; além disso, a dor era necessária. Os dois guerreiros tinham de conter seu poder.

Sally deu boa esfregadela na cabeça com a toalha, e depois endireitou-se para uma olhada no espelho do banheiro. Os cabelos, que antes eram ruivos, agora cascateavam-lhe pelos ombros, descendo pelas costas em mechas molhadas, pretas. Bem, talvez funcionasse, se eles procurassem apenas cabelos ruivos. Mas seu rosto ainda era muito diferente; mesmo com o cabelo tingido de preto e todo preso, ela ainda parecia Sally Roe. Se pudesse esconder todas aquelas sardas talvez ajudasse. Talvez conse­guisse disfarçar os olhos castanhos com um par de óculos, daqueles estilosos, de lentes coloridas. Talvez pudesse usar bastante pintura.

O coração afundou. Era tudo tão fútil, tão infantil! Ela sonhava, tateando à busca de esperança, e sabia disso. Se eles jamais a vissem, a reconhece­riam. Ela estava acabada, liquidada, o mesmo que morta.

Apoiou-se à pia, deixou pender a cabeça, e ficou ali um tempo enorme, a mente deixando-a miseravelmente na mão; simplesmente não funciona­va. Era uma mente cansada, esgotada, desanimada. Tudo o que podia fazer era ficar ali, inspirando um fôlego de cada vez. Pelo menos podia respirar; pelo menos alguma coisa ainda funcionava.

Mas por que isso a alegrava tanto? Aquilo a incomodava.

Sally, você está cansada demais para pensar a respeito. Deixe para lá.

Mas então sua mente se ligou, apenas um pouquinho, e novamente, pela milionésima vez, ela atacou a mesma pergunta exasperante: Se a vida era tão fora de propósito, tão fútil, tão sem sentido, tão vazia, por que ela fazia tanta força para não perdê-la? Por que desejava continuar em frente? Talvez tivesse algo a ver com a maneira pela qual a vida evoluía; nada poético ou elevado, com certeza, apenas aquele misterioso instinto inex­plicável de autopreservação, o único motivo pelo qual nos mantínhamos vivos o tempo suficiente para vencer as dificuldades a fim de podermos caminhar eretos e matar uns aos outros...

Ela voltou a si. Era perda de tempo tentar compreender. Era um carrossel, um labirinto sem fim. Mantenha a coisa simples, Sally: alguém quer matar você, mas você quer continuar viva. Essas duas proposições bastam por enquanto.

Ela inclinou-se para a frente a fim de examinar o corte no ombro. Pelo menos, não havia infecção; isso era bom. No momento, havia cessado de sangrar e a ferida estava fechada, embora precariamente. Ela atou-a cuidado­samente com fita adesiva e gaze — simples tarefa manual, nada que puxasse pelo cérebro — e a seguir deslizou cuidadosamente dentro da camisa.

Ela saiu do banheiro, sentou-se na cama, e pôs-se a remexer no fecho de uma correntinha barata. Havia sido boa compra na loja local de armarinhos, contanto que não lhe manchasse de azul o pescoço, e lhe servisse.

Tinha ela feito compras aquela manha, tão rápida e silenciosamente quanto possível, esperando o tempo todo não ser vista por ninguém que pudesse saber quem ela era, ou que se importasse com isso. Mas precisava arrumar aquela fita adesiva e a gaze, a rinsagem para o cabelo, essa correntinha, algumas roupas limpas... e o Jornal matutino.

O jornal Estrela do Condado de Hampton ainda estava espalhado sobre a cama. Ela o havia folheado assim que voltara ao quarto. A primeira página trazia algumas histórias acerca de uma estação para tratamento de esgoto, um escândalo político local, e o trigésimo ano no cargo de um comissário municipal, mas nenhuma notícia de Baskon. As segunda e terceira páginas também nada diziam. Ela não encontrou o que procurava enquanto não chegou ao fim da última página da secção de notícias. Era um pequeno cabeçalho e menos de cinco centímetros de relato: MULHER LOCAL ENCONTRADA MORTA

Baskon — O corpo de uma mulher foi descoberto na noite de ontem em sua casa, aparentemente um suicídio. A vítima é identificada como Sally Beth Rough, 36, empregada da Fábrica de Portas Bergen.

Sua senhoria, a Sra. Fred Potter, de Baskon, descobriu o corpo após notar que algumas das cabras de Rough estavam soltas. — Uma verdadeira tragédia — comentou ela.

Era um espécime ridículo de reportagem. Uma galinha atropelada teria ocupado mais espaço, talvez até tivesse o nome escrito corretamente. Mas aquilo não aborrecia Sally. Não era esse o problema.

A história não apenas estava errada, mas estava incrivelmente, chocantemente errada.

Eles acham que a morta sou eu? A mulher que tentou matar-me? Eles acham que sou eu?

Tinha remoído a respeito daquilo durante todo o tempo em que estivera no chuveiro. Havia ficado tão amolada que tinha tido de ler as instruções no vidrinho da rinsagem três vezes.

A princípio, achou que podia ser uma boa notícia. Eles pensarão que estou morta!

Mas essa idéia logo se desvaneceu. Eles sabem que não estou. Eles têm de saber. Mentiram ao jornal, ou o jornal está mentindo.

Finalmente, conseguiu abrir o fecho da corrente e pendurou-a à volta do pescoço. A seguir, estendeu a mão ao criado-mudo e apanhou... aquele anel. Passou a corrente ao pescoço pelo anel, fechou-a, abotoou a blusa, e o anel ficou escondido.

Eles sabem quem era aquela mulher. Não querem que alguém mais saiba.

E ela sabia que não estava alucinando. O anel pendurado ao pescoço lhe dizia isso. Era uma sólida amostra de evidência que a ajudaria a agarrar-se à realidade, não importa quão bizarra essa realidade pudesse ser.

Sally apanhou a jaqueta e tirou outra sólida amostra de evidência dos bolsos... na realidade, muitas amostras.

Dinheiro. Ela já havia contado. Dez mil dólares, em três pacotes: um de notas de vinte, um de notas de cinqüenta, e um de notas de cem. O pagamento da assassina, muito provavelmente. Sally encontrou todo aque­le dinheiro nos bolsos do casaco da mulher e apossou-se dele. Por que a mulher trazia toda aquela quantia consigo era um mistério, a menos que carregasse o dinheiro pelo mesmo motivo que usava o anel de ouro.

Mas a pergunta ainda permanecia: Após todos esses anos, o que havia Sally feito? Como se havia metido no caminho deles?

Tinha de ser o que havia acontecido no Correio. Era a única coisa em que Sally conseguia pensar, uma experiência assustadora e agora uma lembrança horrível. Era o mesmo que ser apanhada, encontrada, desco­berta por um velho inimigo... inimigo selvagem!. Os olhos daquela garotinha! Aqueles olhos insultantes, abomináveis! Ela jamais poderia esquecer aquele breve momento no qual cada temor, cada pesadelo de todos os anos anteriores de sua vida retornaram numa onda torturante e impiedosa de lembrança.

Ela havia olhado dentro dos olhos de um diabo. Pôde reconhecê-lo; já havia visto aquele olhar antes, sentido o ódio mordaz, zombeteiro, ouvido a mesma mentira perversa.

Sally desabou sobre a cama. Não, ela não podia pensar sobre aquilo. Sentia-se simplesmente cansada demais, assustada. Seu cabelo parecia negro e esquisito, ela não conseguia pensar, era um animal acossado, e estava simplesmente cansada demais.

Sua esperança está perdida, sua criatura imprestável, disse uma voz dentro de sua cabeça.

É apenas questão de tempo; muito pouco tempo, disse outra.

— Amber... — A voz se parecia muito com a dela.

Agora você pode ver quanto somos grandes, e quanto você é peque­na!

Você ê uma criatura morta, imprestável! Você é louca!

Sally saltou da cama e agarrou uma caneta da mesa. Encontrou algumas folhas de papel de carta numa gaveta, ao lado de uma Bíblia dos Gideões. Escreveria tudo, isso era o que faria! Talvez sua mente não ficasse tão confusa se confiasse tudo ao papel. Ela podia registrar seus pensamentos antes que eles se derretessem. Curvou-se sobre a mesa, a caneta posicio­nada sobre o papel.

Mas Desespero estava ferido, humilhado, indignado, e determinado a redimir-se. Ele se agarrou às costas da mulher como uma sanguessuga negra, sugando-lhe a vontade, sussurrando-lhe confusão à mente. Os outros três espíritos que estavam com ele rodeavam Sally, insultando-a, espetando-a com suas espadas.

Loucura atravessou-lhe repentinamente o cérebro com a espada.

Sally fixou os olhos no papel. Sem saber como, ela havia ido parar no chão. Nada surgia. O que era aquele pensamento? Ele havia acabado de passar-lhe pela cabeça, ela estava prestes a escrevê-lo, e agora desaparece­ra.

Desista. Entregue-se.

Ninguém acreditará em você. Você está louca.

Louca. Era uma palavra. Ela a colocou no papel.

Loucura, cacarejando sua risada maléfica, agarrou-lhe a mente entre as duas palmas hirsutas e enterrou nela as garras. Morte juntou-se ao ataque.

A mente de Sally ficou em branco. O papel começou a expandir-se numa tela branca que lhe encheu os olhos como uma neblina, uma nevasca esbranquiçada. Ela flutuava. Continuou escrevendo: "Meu nome é Sally Roe... Sally Roe..."

Conseguia ouvir vozes no quarto, insultando-a, e conseguia sentir garras afiadas agarrando-a. Essas coisas permaneciam invisíveis, esconden­do-se dela, provocando, atormentando.

Então chegou Medo. Sally foi sufocada por um medo entorpecedor, paralisador. Sentia-se perdida e caindo, rodopiando, rolando pelo espaço. Não conseguia parar.

Ela se obrigou a pensar, a formar a palavra na mente. Sally. Sally. Sally.

Vamos, escreva. Tome a maldita caneta na mão e escreva!

Você é nossa agora. Jamais a soltaremos.

Sally. Ela conseguia sentir a caneta movendo-se.

A caneta correu sobre o papel em círculos, cobrinhas, linhas pontudas, entrecruzadas.

Eram rabiscos incoerentes. Tolice.

Ela continuou escrevendo. Tinha de capturar um pensamento, qual­quer pensamento.

Chimon e Scion tinham visto o suficiente. Teria de ser algo rápido. Scion deslizou para fora a fim de examinar a redondeza. Chimon rastejou como sombra pelas paredes, aproximando-se.

Todos os quatro espíritos se agruparam em torno da cabeça de Sally, espatifando-lhe o consciente em miríade de fragmentos inanimados. Chi­mon recebeu um aceno afirmativo de Scion, este conseguiria servir de proteção contra os espíritos que estavam do lado de fora. Agora, quanto a esses insetos ali dentro, teria de ser o momento precisamente certo, apenas aquele único instante de oportunidade.

Agora. Eles não o veriam. Chimon moveu subitamente a espada num círculo rápido, apertado, um disco brilhante de luz. PAM! A parte chata da lâmina golpeou os demônios, fazendo-os cair inertes, e destroçou seu apertado grupinho. Desespero saiu rolando de costas num rodopio borra­do e foi parar no lado de fora do hotel; Medo, Morte e Loucura, entrelaça­dos, caíram juntos longe da mulher, braços, pernas e asas, um emaranhado rodopiante, fumegante, enraivecido.

Os dois guerreiros esconderam-se de novo dentro das paredes.

Desespero endireitou-se com um berro e um acesso de raiva, e somente então percebeu onde se encontrava. Com um adejar furioso de asas, ele se lançou de volta através da parede quarto adentro. Seus três comparsas começavam a recuperar-se. Os quatro lançaram-se à mente de Sally nova­mente.

Mas era tarde demais. Ela havia escorregado para fora de suas garras como um pássaro da armadilha. Seus pensamentos, embora lerdos, mo­viam-se numa seqüência ordenada através do cérebro.

Sally foi subitamente capaz de ler as palavras na página. Havia somente seis palavras legíveis no topo: "Louca, meu nome é Sally Roe." O resto da página estava cheio de rabiscos a esmo, caóticos. Ela se ergueu do chão e sentou-se à mesa para tentar novamente. Tinha de continuar escrevendo, primeiro uma palavra, depois uma frase, depois outra palavra, qualquer coisa que captasse seus pensamentos disparados, fragmentados, antes que eles lhe escapassem.

"Morte e desespero e medo e loucura voltaram", escreveu ela, e em seguida outro pensamento: "Por que me matar? Eu morri anos atrás."

Sally continuava movendo a caneta, quer sua mente acompanhasse o instrumento, quer não. Ela ia vencer essa loucura. Precisava fazê-lo. Ia colocar os pensamentos no papel onde eles não poderiam escapar. Ela ia vencer.

Ben começava a se admirar de seu dom em saber a hora certa para as coisas. Ele acabara de sair em patrulha e por acaso passara pela delegacia a fim de apanhar mais algumas tochas para sinalização nas estradas. Assim que entrou pela porta dos fundos, pôde ouvir Mulligan em seu escritório, falando com alguém no telefone, e usando um tom de voz sussurrado que imediatamente chamou a atenção de Ben. Desde quando Mulligan ficava assim tão quieto?

Ben apanhou as tochas na sala de almoxarifado. Quanto mais cedo saísse dali, melhor.

Oh-oh! Lá ia a cadeira do Mulligan outra vez, rolando para trás e batendo na parede. Ben pulou para dentro do almoxarifado, esperando que Mulli­gan explodisse porta afora.

Mas Mulligan deve ter dado um pulo de raiva. Ele permaneceu no escritório, berrando com quem quer que fosse que estivesse no telefone.

— Não, Parnell, digo-lhe, não havia nada em nenhuma das mãos! É o que estou dizendo, nada!

Hmm. Parnell. Era o médico legista.

Mulligan deu a Parnell tempo de dizer alguma coisa, e a seguir atacou-o novamente.

— Não, também não encontrei nada nos bolsos dela! Que tipo de idiota acha que sou? — Parnell conseguiu inserir mais um palpitezinho, e então Mulligan respondeu: — Ora, vai ter de voltar lá e examinar os arredores novamente! Faço o meu serviço, agora você faz o seu! — Outra pausa. — Ei, foi você quem pegou o corpo, não eu. Eu o entreguei do jeitinho que encontrei. Por que não perguntar aos paramédicos, se está com algum problema? É, Parnell, o problema é seu, e posso fazer com que fique bem maior, é só falar!

Ele bateu o telefone no gancho e praguejou.

Ben escapou para fora novamente tão depressa quanto conseguiu. Mesmo enquanto fechava a porta atrás de si, podia ouvir o sargento ainda chiando e praguejando baixinho.