Chimon e Scion permaneciam escondidos em lados opostos
do Quarto 12 no Hotel Repouso Tranqüilo em Claytonville. Havia espíritos sombrios por
perto, aparentemente os batedores de Destruidor — limbosos, covardes
atormentadores, precipitando-se para baixo através das árvores e cabos de
eletricidade, movendo-se animados de um lado para outro da rua, olhando dentro
das casas, pelas janelas, chaminés abaixo, à procura da pobre e enlameada
fugitiva. Os dois anjos davam duro a fim de manter uma barreira em torno da
mulher, de ocultá-la da vista deles, e até então tinham conseguido manter o seu
esconderijo em segredo de quaisquer espíritos enviados a atormentá-la .
Mas quatro espíritos ainda acompanhavam Sally Roe aonde quer que ela
fosse, e tinham sido seus companheiros íntimos por tanto tempo que não podiam
ser separados no presente. Chimon e Scion morriam de vontade de postar-se à sua
frente, de despachar Desespero, Medo, Morte e Loucura a golpes cortantes para
longe desde mundo, de amenizar a dor daquela alma amedrontada, castigada. Mas a
vida dela era tal que eles tinham o direito de estar ali; além disso, a dor era
necessária. Os dois guerreiros tinham de conter seu poder.
Sally deu boa esfregadela na cabeça com a toalha, e depois endireitou-se para uma olhada no espelho do banheiro. Os cabelos, que antes eram ruivos, agora cascateavam-lhe pelos ombros, descendo pelas costas em mechas molhadas, pretas. Bem, talvez funcionasse, se eles procurassem apenas cabelos ruivos. Mas seu rosto ainda era muito diferente; mesmo com o cabelo tingido de preto e todo preso, ela ainda parecia Sally Roe. Se pudesse esconder todas aquelas sardas talvez ajudasse. Talvez conseguisse disfarçar os olhos castanhos com um par de óculos, daqueles estilosos, de lentes coloridas. Talvez pudesse usar bastante pintura.
O coração afundou. Era tudo tão fútil, tão infantil! Ela sonhava,
tateando à busca de esperança, e sabia disso. Se eles jamais a vissem, a
reconheceriam. Ela estava acabada, liquidada, o mesmo que morta.
Apoiou-se à pia, deixou pender a cabeça, e ficou ali um tempo
enorme, a mente deixando-a miseravelmente na mão; simplesmente não funcionava.
Era uma mente cansada, esgotada, desanimada. Tudo o que podia fazer era ficar ali, inspirando um fôlego de cada vez. Pelo
menos podia respirar; pelo menos alguma coisa ainda funcionava.
Mas por que isso a alegrava tanto? Aquilo a incomodava.
Sally, você está cansada demais para pensar a respeito. Deixe
para lá.
Mas então sua mente se ligou, apenas um pouquinho, e novamente, pela
milionésima vez, ela atacou a mesma pergunta exasperante: Se a vida era tão
fora de propósito, tão fútil, tão sem sentido, tão vazia, por que ela fazia
tanta força para não perdê-la? Por que desejava continuar em frente? Talvez
tivesse algo a ver com a maneira pela qual a vida evoluía; nada poético ou
elevado, com certeza, apenas aquele misterioso instinto inexplicável de
autopreservação, o único motivo pelo qual nos mantínhamos vivos o tempo
suficiente para vencer as dificuldades a fim de podermos caminhar eretos e
matar uns aos outros...
Ela voltou a si. Era perda de tempo tentar compreender.
Era um carrossel, um labirinto sem fim. Mantenha a coisa simples, Sally: alguém quer matar você, mas
você quer continuar viva. Essas duas proposições bastam por enquanto.
Ela inclinou-se para a frente a fim de examinar o corte
no ombro. Pelo menos, não havia infecção; isso era bom. No momento, havia cessado de
sangrar e a ferida estava fechada, embora precariamente. Ela atou-a cuidadosamente
com fita adesiva e gaze — simples tarefa manual, nada que puxasse pelo cérebro
— e a seguir deslizou cuidadosamente dentro da camisa.
Ela saiu do banheiro, sentou-se na cama, e pôs-se a remexer no fecho de
uma correntinha barata. Havia sido boa compra na loja local de armarinhos,
contanto que não lhe manchasse de azul o pescoço, e lhe servisse.
Tinha ela feito compras aquela manha, tão rápida e silenciosamente
quanto possível, esperando o tempo todo não ser vista por ninguém que pudesse
saber quem ela era, ou que se importasse com isso. Mas precisava arrumar aquela
fita adesiva e a gaze, a rinsagem para o cabelo, essa correntinha, algumas
roupas limpas... e o Jornal matutino.
O jornal Estrela do Condado de Hampton ainda
estava espalhado sobre a cama. Ela o havia folheado assim que voltara ao
quarto. A primeira página trazia algumas histórias acerca de uma estação para tratamento de
esgoto, um escândalo político local, e o trigésimo ano no cargo de um
comissário municipal, mas nenhuma notícia de Baskon. As segunda e terceira
páginas também nada diziam. Ela não encontrou o que procurava enquanto não
chegou ao fim da última página da secção de notícias. Era um pequeno cabeçalho
e menos de cinco centímetros de relato: MULHER LOCAL ENCONTRADA MORTA
Baskon — O corpo de uma mulher foi descoberto na noite de ontem em
sua casa, aparentemente um suicídio. A vítima é identificada como Sally Beth
Rough, 36, empregada da Fábrica de Portas Bergen.
Sua senhoria, a Sra. Fred Potter, de Baskon, descobriu
o corpo após
notar que algumas das cabras de Rough estavam soltas. — Uma verdadeira tragédia
— comentou ela.
Era um espécime ridículo de reportagem. Uma galinha atropelada teria ocupado mais espaço, talvez até tivesse o nome escrito corretamente. Mas aquilo não aborrecia Sally. Não era esse o problema.
A história não apenas estava errada, mas estava incrivelmente,
chocantemente errada.
Eles acham que a morta sou eu? A mulher que tentou
matar-me? Eles acham que sou eu?
Tinha remoído a respeito daquilo durante todo o tempo em que
estivera no chuveiro. Havia ficado tão amolada que tinha tido de ler as
instruções no vidrinho da rinsagem três vezes.
A princípio, achou que podia ser uma boa notícia. Eles pensarão
que estou morta!
Mas essa idéia logo se desvaneceu. Eles sabem que não estou. Eles
têm de saber. Mentiram ao jornal, ou o jornal está mentindo.
Finalmente, conseguiu abrir o fecho da corrente e
pendurou-a à
volta do pescoço. A seguir, estendeu a mão ao criado-mudo e apanhou... aquele
anel. Passou a corrente ao pescoço pelo anel, fechou-a, abotoou a blusa, e o
anel ficou escondido.
Eles sabem quem era aquela mulher. Não querem que alguém mais
saiba.
E ela sabia que não estava alucinando. O anel pendurado ao pescoço lhe
dizia isso. Era uma sólida amostra de evidência que a ajudaria a agarrar-se à
realidade, não importa quão bizarra essa realidade pudesse ser.
Sally apanhou a jaqueta e tirou outra sólida amostra de evidência
dos bolsos... na realidade, muitas amostras.
Dinheiro. Ela já havia contado. Dez mil dólares, em três pacotes: um
de notas de vinte, um de notas de cinqüenta, e um de notas de cem. O pagamento
da assassina, muito provavelmente. Sally encontrou todo aquele dinheiro nos
bolsos do casaco da mulher e apossou-se dele. Por que a mulher trazia toda
aquela quantia consigo era um mistério, a menos que carregasse o dinheiro pelo
mesmo motivo que usava o anel de ouro.
Mas a pergunta ainda permanecia: Após todos esses anos, o que
havia Sally feito? Como se havia metido no caminho deles?
Tinha de ser o que havia acontecido no Correio. Era a única coisa em que Sally
conseguia pensar, uma experiência assustadora e agora uma lembrança horrível.
Era o mesmo que ser apanhada, encontrada, descoberta por um velho inimigo...
inimigo selvagem!. Os olhos daquela garotinha! Aqueles olhos
insultantes, abomináveis! Ela jamais poderia esquecer aquele breve
momento no qual cada temor, cada pesadelo de todos os anos anteriores de sua
vida retornaram numa onda torturante e impiedosa de lembrança.
Ela havia olhado dentro dos olhos de um diabo. Pôde reconhecê-lo; já havia
visto aquele olhar antes, sentido o ódio mordaz, zombeteiro, ouvido a mesma
mentira perversa.
Sally desabou sobre a cama. Não, ela não podia pensar
sobre aquilo. Sentia-se simplesmente cansada demais, assustada. Seu cabelo
parecia negro e esquisito, ela não conseguia pensar, era um animal acossado, e
estava simplesmente cansada demais.
Sua esperança está perdida, sua criatura imprestável, disse uma
voz dentro de sua cabeça.
É
apenas questão de tempo; muito pouco tempo, disse outra.
—
Amber... — A voz se parecia muito com a dela.
Agora você pode ver quanto somos grandes, e quanto você é pequena!
Você ê uma criatura morta, imprestável! Você é louca!
Sally saltou da cama e agarrou uma caneta da mesa.
Encontrou algumas folhas de papel de carta numa gaveta, ao lado de uma Bíblia dos Gideões.
Escreveria tudo, isso era o que faria! Talvez sua mente não ficasse tão confusa
se confiasse tudo ao papel. Ela podia registrar seus pensamentos antes que eles
se derretessem. Curvou-se sobre a mesa, a caneta posicionada sobre o papel.
Mas Desespero estava ferido, humilhado, indignado, e
determinado a redimir-se. Ele se agarrou às costas da mulher como uma sanguessuga negra,
sugando-lhe a vontade, sussurrando-lhe confusão à mente. Os outros três
espíritos que estavam com ele rodeavam Sally, insultando-a, espetando-a com
suas espadas.
Loucura atravessou-lhe repentinamente o cérebro com a espada.
Sally fixou os olhos no papel. Sem saber como, ela
havia ido parar no chão. Nada surgia. O que era aquele pensamento? Ele havia acabado de
passar-lhe pela cabeça, ela estava prestes a escrevê-lo, e agora desaparecera.
Desista. Entregue-se.
Ninguém acreditará em você. Você está louca.
Louca. Era uma palavra. Ela a colocou no papel.
Loucura, cacarejando sua risada maléfica, agarrou-lhe a mente
entre as duas palmas hirsutas e enterrou nela as garras. Morte juntou-se ao
ataque.
A mente de Sally ficou em branco. O papel começou a expandir-se numa tela
branca que lhe encheu os olhos como uma neblina, uma nevasca esbranquiçada. Ela
flutuava. Continuou escrevendo: "Meu nome é Sally Roe... Sally
Roe..."
Conseguia ouvir vozes no quarto, insultando-a, e
conseguia sentir garras afiadas agarrando-a. Essas coisas permaneciam invisíveis, escondendo-se dela,
provocando, atormentando.
Então chegou Medo. Sally foi sufocada por um medo entorpecedor,
paralisador. Sentia-se perdida e caindo, rodopiando, rolando pelo espaço. Não
conseguia parar.
Ela se obrigou a pensar, a formar a palavra na mente.
Sally. Sally. Sally.
Vamos, escreva. Tome a maldita caneta na mão e escreva!
Você é nossa agora. Jamais a soltaremos.
Sally. Ela conseguia sentir a caneta movendo-se.
A caneta correu sobre o papel em círculos, cobrinhas, linhas
pontudas, entrecruzadas.
Eram rabiscos incoerentes. Tolice.
Ela continuou escrevendo. Tinha de capturar um
pensamento, qualquer pensamento.
Chimon e Scion tinham visto o suficiente. Teria de ser
algo rápido.
Scion deslizou para fora a fim de examinar a redondeza. Chimon rastejou como
sombra pelas paredes, aproximando-se.
Todos os quatro espíritos se agruparam em torno da cabeça de Sally,
espatifando-lhe o consciente em miríade de fragmentos inanimados. Chimon
recebeu um aceno afirmativo de Scion, este conseguiria servir de proteção
contra os espíritos que estavam do lado de fora. Agora, quanto a esses insetos
ali dentro, teria de ser o momento precisamente certo, apenas aquele único
instante de oportunidade.
Agora. Eles não o veriam. Chimon moveu subitamente a espada num
círculo rápido, apertado, um disco brilhante de luz. PAM! A parte chata
da lâmina golpeou os demônios, fazendo-os cair inertes, e destroçou seu
apertado grupinho. Desespero saiu rolando de costas num rodopio borrado e foi
parar no lado de fora do hotel; Medo, Morte e Loucura, entrelaçados, caíram
juntos longe da mulher, braços, pernas e asas, um emaranhado rodopiante,
fumegante, enraivecido.
Os dois guerreiros esconderam-se de novo dentro das
paredes.
Desespero endireitou-se com um berro e um acesso de
raiva, e somente então percebeu onde se encontrava. Com um adejar furioso de asas, ele se
lançou de volta através da parede quarto adentro. Seus três comparsas começavam
a recuperar-se. Os quatro lançaram-se à mente de Sally novamente.
Mas era tarde demais. Ela havia escorregado para fora
de suas garras como um pássaro da armadilha. Seus pensamentos, embora lerdos, moviam-se
numa seqüência ordenada através do cérebro.
Sally foi subitamente capaz de ler as palavras na página. Havia somente seis
palavras legíveis no topo: "Louca, meu nome é Sally Roe." O resto da
página estava cheio de rabiscos a esmo, caóticos. Ela se ergueu do chão e
sentou-se à mesa para tentar novamente. Tinha de continuar escrevendo, primeiro uma palavra, depois uma frase, depois outra palavra, qualquer
coisa que captasse seus pensamentos disparados, fragmentados, antes que eles
lhe escapassem.
"Morte e desespero e medo e loucura
voltaram", escreveu ela, e em seguida outro pensamento: "Por que me
matar? Eu morri anos atrás."
Sally continuava movendo a caneta, quer sua mente
acompanhasse o instrumento, quer não. Ela ia vencer essa loucura. Precisava fazê-lo. Ia
colocar os pensamentos no papel onde eles não poderiam escapar. Ela ia vencer.
Ben começava a se admirar de seu dom em saber a hora certa para as coisas. Ele acabara de sair em patrulha e por acaso passara pela delegacia a fim de apanhar mais algumas tochas para sinalização nas estradas. Assim que entrou pela porta dos fundos, pôde ouvir Mulligan em seu escritório, falando com alguém no telefone, e usando um tom de voz sussurrado que imediatamente chamou a atenção de Ben. Desde quando Mulligan ficava assim tão quieto?
Ben apanhou as tochas na sala de almoxarifado. Quanto
mais cedo saísse
dali, melhor.
Oh-oh! Lá ia a cadeira do Mulligan outra vez, rolando para trás e
batendo na parede. Ben pulou para dentro do almoxarifado, esperando que Mulligan
explodisse porta afora.
Mas Mulligan deve ter dado um pulo de raiva. Ele
permaneceu no escritório, berrando com quem quer que fosse que estivesse no telefone.
—
Não, Parnell, digo-lhe, não havia nada em nenhuma das mãos! É o que estou
dizendo, nada!
Hmm. Parnell. Era o médico legista.
Mulligan deu a Parnell tempo de dizer alguma coisa, e a
seguir atacou-o novamente.
—
Não, também não encontrei nada nos bolsos dela! Que tipo de idiota acha que
sou? — Parnell conseguiu inserir mais um palpitezinho, e então Mulligan
respondeu: — Ora, vai ter de voltar lá e examinar os arredores novamente! Faço
o meu serviço, agora você faz o seu! — Outra pausa. — Ei, foi você quem pegou o
corpo, não eu. Eu o entreguei do jeitinho que encontrei. Por que não perguntar
aos paramédicos, se está com algum problema? É, Parnell, o problema é seu, e
posso fazer com que fique bem maior, é só falar!
Ele bateu o telefone no gancho e praguejou.
Ben escapou para fora novamente tão depressa quanto
conseguiu. Mesmo enquanto fechava a porta atrás de si, podia ouvir o sargento
ainda chiando e praguejando baixinho.