segunda-feira, 10 de maio de 2021

Este mundo tenebroso - parte 2 - Capítulo 05


 A agente do correio, Lucy Brandon, não conseguia concen­trar-se no serviço. Debbie, a moça do balcão, já lhe havia feito três perguntas — uma acerca do carteiro da Rota 2, uma acerca das bandejas de correspondência rachadas, e uma acerca... ora, ela não conseguia lembrar-se da terceira pergunta. Não podia responder a nenhu­ma delas; não conseguia lembrar-se da informação; simplesmente não conseguia pensar.

— Ei — gritou Debbie, por fim — está-se sentindo bem?

Lucy tirou os óculos e esfregou os olhos. Era geralmente uma pessoa forte, suficientemente durona. Morena alta de trinta e tantos anos, ela já havia passado por número mais do que suficiente das provaçõezinhas da vida a essa altura: pobreza, a morte precoce dos pais, uma juventude desmiolada e rebelde, um casamento abalado, a tarefa de apanhar os pedaços após amargo divórcio e de criar uma filha pequena sozinha — no total, um pacote bem completo de apuros. Por isso, aprendera a enfrentar as lutas, de modo geral; a maioria das dificuldades nunca realmente a preocupava — contanto que não lhe tocasse a família.

Ela correu os olhos pelo pequeno Correio, e felizmente ele estava tranqüilo nesse instante. A correria do meio do dia distava ainda algumas horas, todos os carteiros haviam saído para as suas rotas, e a pilha de serviço sobre sua escrivaninha aumentava, mas ela poderia dar conta.

Lucy estava determinada a responder a pelo menos uma pergunta. — Bem, não, não muito.

Debbie era jovem, bonita e compassiva. Talvez não tivesse vivido o bastante para criar um exterior duro. Ela tocou o ombro de Lucy ternamente.

— Alguma coisa que eu possa fazer?

— Bem... — Lucy examinou o relógio na parede. — Tenho um compro­misso para daqui a apenas alguns minutos. Acha que você e Tim podem dar conta do recado até eu voltar?

— Oh, claro.

Um coruscar da luz do sol refletida dançou ao longo da parede. Um carro esportivo encostou do lado de fora.

— Oh, aí está a minha carona.

— Pode ir. Não se preocupe conosco.

A motorista do carro era Claire, uma amiga maravilhosa e conselheira não apenas para Lucy como também para muitas pessoas de todas as posições sociais na cidade. Era uma bela mulher, com cabelos loiros arranjados cuidadosamente em torno da cabeça e adornados com pentes e grampos que piscavam e brilhavam. Sua blusa e longa saia, ambas de fibras naturais lindamente tecidas, drapeavam à sua volta como vestes reais, e, aos olhos de Lucy, Claire era uma verdadeira rainha. Ela e seu amigo, arquiteto Jon, formavam o casal perfeito, crescendo constantemen­te em auto-realização e harmonia e tornando-se exemplo duradouro para todos os seus amigos.

Quando Lucy entrou, Claire inclinou-se e abraçou-a. — E como vai você, Lucy?

— Oh... levando — respondeu ela, procurando o cinto de segurança. Claire deixou o estacionamento do Correio e desceu a Rua da Frente.

— E como está Amber? — perguntou.

— Vai indo bem. Não lhe contei que iríamos hoje. Não queria causar nenhum alarme antes que fosse necessário.

— Bom, bom.

— Vou levá-la de volta à escola de primeiro grau na segunda-feira e ver se consigo encaixá-la novamente nas classes que tinha lá. A Srta. Brewer não acha que ela terá muita dificuldade em pôr em dia as matérias e apenas terminar o ano.

— Oh, não, não a Amber, e ela está muito perto do fim do ano de qualquer forma.

Elas atravessaram a cidade e depois viraram na rua 187, normalmente chamada Estrada da Lagoa, porque passava por uma lagoa grande e conhecida, cercada de juncos, uns três quilômetros a oeste. Junto com a placa da rua que indicava o nome da estrada havia outra placa apontando a direção da Igreja Comunitária do Bom Pastor e da Academia do Bom Pastor.

— Penso que John e Paula estarão lá hoje — disse Claire. — Espero que não se incomode.

— Acho que não. Nem os conheço ainda.

— Bem, verá que são pessoas maravilhosas. Alegro-me por trabalharmos com eles neste negócio. Os jornalistas geralmente não são tão bem educados quanto eles.

Lucy aquietou-se por um momento, apenas vendo as lavouras e bos­ques passarem. Finalmente, disse:

— Por que precisamos envolver a imprensa nisto?

— Oh, é muito simples. Num caso como este, a opinião pública é importante. É a mente do público que acaba criando as leis pelas quais todos temos de viver. Veja você, lutamos nossas batalhas em dois níveis: nos tribunais e na arena pública. Uma porção dos casos que vencemos hoje surgiram porque a opinião pública foi moldada muitos anos atrás. O que fazemos agora para moldar a opinião pública terá efeito positivo nos casos legais que surgirem no futuro. É um processo.

— Só não sei se Amber conseguirá passar por isso.

Claire sorriu confiante. — Oh, Amber é um soldadozinho forte. Ela consegue. Fiquei impressionada com a forma como ela se manifestou e contou tudo à nossa equipe, e ao Dr. Mandanhi, e até à Sra. Bledsoe.

Lucy parecia amargurada.

Amber? Você quer dizer "Ametista", não é? Claire sorriu e fez que sim com a cabeça.

— Sim, você tem razão. Mas isso não importa. Ainda é Amber, de verdade. Ametista é uma boa amiga para Amber porque ela carrega o peso do que aconteceu e fala livremente, algo que Amber jamais poderia fazer consigo mesma.

Lucy sorriu um sorriso nervoso. — Mas, sabe uma coisa... acho que não gosto de Ametista.

Claire riu.

Lucy riu também, esperando que a declaração não fosse levada tão a sério quanto era sua intenção. — Quero dizer... Ametista é tão imperti­nente e desrespeitosa... E acho que Amber se livra de muita coisa jogando a culpa em Ametista.

— Bem, precisamos dar um jeito de parar com isso, naturalmente.

— Mas está vendo o que me preocupa? Acho que eu confiaria em Amber para dizer a verdade... e eu saberia o que ela estava pensando e sentindo. Mas eu não saberia dizer isso a respeito de Ametista. Nunca sei o que ela vai acabar falando! — Lucy sacudiu a cabeça ao pensar que estava mesmo tendo uma conversa daquelas. — Preciso de umas rédeas para aquela bichinha!

Claire riu outra vez. — Oh, não tenha medo de Ametista. Os guias íntimos são sempre dignos de confiança, e Amber precisa desse apoio e comunhão para o que vem aí.

— Oh, posso ver isso.

Mas Lucy não se sentia nada melhor, e Claire percebeu.

— O que mais? — perguntou Claire. — Já que falamos de Ametista...

— Sim?

— Você viu aquele outro artigo no jornal, acerca de Sally Roe? Claire sabia a respeito. — Lucy, você realmente não tem nada a ver com isso. Nem mesmo deveria pensar uma coisa dessas!

Lucy estava quase em lágrimas. — Mas como posso evitar?

Claire deu diversas olhadelas disfarçadas a Lucy enquanto dirigia. — Escute bem. Não é culpa de Amber. Pedi que alguns amigos meus fossem atrás de Sally Roe assim que você me contou o que aconteceu no Correio. Pelo que pude saber, Sally Roe era uma pessoa profundamente perturbada. Era atormentada por dúvidas a seu próprio respeito e culpa, e nunca conseguiu sair dessa... Era uma embrulhada cármica! Amber nada teve a ver com ela se matar. Era o que teria feito de qualquer forma.

Lucy sacudiu a cabeça e fixou os olhos fora da janela.

— Mas se você pudesse ter estado lá... se tivesse visto o rosto daquela mulher quando... quando Ametista simplesmente atacou-a. E eu não conseguia fazer com que ela parasse. Amber simplesmente não voltava a si.

— Esqueça isso — disse Claire batendo de leve na mão de Lucy. — Sally Roe se foi, cumprindo seu próprio caminho onde quer que ele a conduza. Você tem o seu, e Amber também. Precisa pensar a respeito disso.

Enfim, Lucy assentiu. Aproximavam-se da escola cristã, e ela se sentia nervosa.

— Só espero que todo esse negócio saia bem. Espero que a gente saiba o que está fazendo.

— Acho que é algo que precisamos fazer — respondeu Claire, firme. — Intolerância religiosa é inimiga de todos. Acho que nos estaríamos furtando à nossa responsabilidade se não fizéssemos nada.

Não havia tempo para dizer mais nada. Claire diminuía a velocidade e indicava que ia virar. Ali, à esquerda, estava a Igreja Comunitária do Bom Pastor, um prédio simples de tijolos com telhado de duas águas, janelas tradicionais em arco, e uma torre de sino. Era um marco em Baskon, abrigando diversas congregações diferentes com o passar dos anos; algu­mas tinham-se extinguido, algumas tinham-se mudado e novos grupos haviam chegado, mas ela permanecia através disso tudo por quase um século, sólido monumento a um cristianismo tenaz. Essa última congrega­ção parecia estabelecer novo recorde de permanência; estava ali há quase quinze anos, e o pastor atual a pastoreava pelo menos há oito.

Claire estacionou entre a igreja e a Academia do Bom Pastor, um prédio portátil simples, com teto de barracão, apoiado sobre estacas e pilastras. Havia quatro veículos estacionados naquele momento. Dois deviam per­tencer ao pessoal da escola; a perua pertencia a John Ziegler e a Paula, a fotógrafa, e o grande furgão branco estava claramente marcado: "KBZT Noticiário do Canal Sete".

— Uma equipe de televisão? — perguntou Lucy surpresa.

— Oh, certo — disse Claire. — Não lhe contei acerca disso. O pessoal do Canal Sete achou que esta seria uma boa história para o noticiário.

Os dois homens do Canal Sete já estavam preparados para a chegada de Claire e Lucy, e pularam do furgão assim que o carro delas encostou. O operador da câmara colocou-a sobre o ombro, e começou a observar as notícias com um olho. O outro homem, jovem, tipo atlético com terno e gravata acima da cintura e calça de brim abaixo dela, adiantou-se e saudou Claire quando esta saiu do carro.

— Ei, bem na hora! — disse ele, apertando-lhe a mão.

— Oi, Chad. Prazer em vê-lo novamente.

— Este é o Roberto. —Oi.

Roberto devolveu-lhe o sorriso, olhando-a através da câmara. Lucy saiu do carro um tanto hesitante.

Claire apresentou-a. — Chad e Roberto, esta é Lucy Brandon, a mãe.

— Oi. Chad Davis. Este é Roberto Gutierrez.

— Vão me filmar?

— Você se importa? — perguntou Chad.

— Vai ficar tudo bem — assegurou-lhe Claire. Lucy simplesmente deu de ombros.

John Ziegler e Paula estavam lá, prontos para prosseguir. Claire cum­primentou-os, e Lucy apenas sorriu.

A porta da escola se abriu, e um homem olhou para fora. Ao avistar aquele bando de gente reunido no estacionamento, seu rosto ficou pálido; ele pareceu doente.

Era, naturalmente, Tom Harris.

Claire, erguendo a mão em saudação, gritou:

— Oh, alô — e pôs-se a caminhar na direção da construção portátil, os outros seguindo-a de perto.

Não, Senhor, não...

Se eu pudesse fechar esta porta e nunca sair, pensou Tom. Se eu pudesse somente fazer cair fogo dos céus para limpar essa gente da minha vida, para fazê-los ir embora... Já não fizeram o bastante comigo?

Tom havia estado no telefone a maior parte da manhã, dando voltas no carrossel da burocracia governamental enquanto tentava dar as suas aulas, e ainda não havia encontrado os filhos. A última palavra que ele havia recebido era do DPC, e eles se recusavam terminantemente a contar-lhe onde as crianças se encontravam. O pastor Howard ainda não voltara, todos os outros trabalhavam, e nada acontecia com a necessária rapidez.

Senhor, apenas queria que essa gente se fosse. Gostaria que este dia chegasse ao fim.

Tom olhou de volta para o lado de dentro. Duas crianças, uma da terceira série e uma da quarta, se mostravam curiosas.

— Olhe... TV! — disse a garotinha.

Tom estava sendo filmado pela câmara naquele exato momento. Pelo menos dirigir-se à criança deu-lhe a oportunidade de voltar as costas.

— Sammie, vá sentar-se... isto nada tem a ver com você. Clay, você terminou? Bem, coloque-o sobre a minha mesa e comece a página seguinte. Examinarei o que fez logo depois do almoço, está bem?

— Sr. Harris? — disse Claire, subindo os degraus de madeira. —Sim?

— Meu nome é Claire Johanson. Sou assistente legal com a firma Ames, Jefferson e Morris. Estou aqui como representante da Sra. Lucy Brandon, a quem o senhor já conhece. Podemos conversar brevemente?

— Este está sendo um dia muito difícil para mim, Sra. Johanson...

Srta. Johanson.

— Nada tenho a dizer a outros jornalistas. Para mim, já basta.

— Este é um problema legal, Sr. Harris.

Oh, formidável. O que mais podia dar errado? Tom sabia que não devia embarcar em qualquer conversa na presença de jornalistas orelhudos e uma câmara de televisão.

— Por que não entram? — Então, ele deixou claro. — A senhorita e a Sra. Brandon. Esses outros podem esperar aqui fora.

Ele se afastou para o lado para que as duas mulheres entrassem, depois fechou a porta na cara dos jornalistas.

Encontravam-se numa sala comum que servia de refeitório, guarda-agasalhos e biblioteca, entre duas salas de aula. Tom enfiou a cabeça dentro de sua sala de aula à direita. Uma classe de primeira e segunda séries de cerca de dez crianças trabalhava indolentemente numas mesinhas baixas, colorindo, colando e mantendo o nível de barulho apenas abaixo do limite estabelecido pelo professor.

— Sra. Fields?

Uma senhora gorduchinha de meia-idade saiu da sala de aula. Tinha as faces rosadas e os cabelos em permanente muito crespa. Seus olhos imediatamente demonstraram alarme ao darem com Lucy Brandon e aquela mulher de aparência intrometida ao seu lado.

— Temos umas visitas importantes — explicou Tom em voz baixa. — Pode ficar de olho na minha classe por alguns minutos?

— Certamente — disse a Sra. Fields, incapaz de tirar os olhos das duas mulheres.

— Eles fazem as lições de leitura agora, e devem terminar até às 10. Clay faz um projeto especial que lhe dei; apenas certifique-se de que ele o ponha sobre a minha mesa.

Ela assentiu com a cabeça e atravessou a sala para espiar a classe da terceira a sexta séries.

— Vamos ao meu escritório — disse Tom, e foi à frente até um diminuto cubículo na parte de trás do prédio, que continha uma escrivaninha, um computador, uma copiadora, e dois arquivos. Mal havia lugar para três pessoas se sentarem. Tom ofereceu às senhoras as únicas duas cadeiras e preferiu manter-se em pé, recostado contra os arquivos.

Claire não perdeu tempo:

— Sr. Harris, estamos aqui para tirar Amber da escola. Gostaríamos que nos desse todo o seu histórico escolar.

— Falarei com a nossa secretária e terei esses papéis preparados para a senhora — respondeu Tom mantendo-se calmo e sério. — A senhora compreende que todos os pagamentos mensais devem estar quitados antes que a papelada possa ser liberada.

Claire olhou para Lucy enquanto dizia:

— Todos os pagamentos serão efetuados. Gostaríamos de processar isso o mais cedo possível.

— Certamente — Tom olhava para Lucy. — Sinto muito não termos podido discutir isso...

Claire interpôs:

— Não há nada a discutir. — Dito isso, ela se ergueu e Lucy fez o mesmo. — Agora, se o senhor puder avisar Amber que estamos aqui. . .

As duas mulheres saíram para a sala comum e Tom seguiu-as. Ele simplesmente não estava satisfeito.

— Uh, isto nos pegou um tanto de surpresa. Pelo que entendo, não conseguimos resolver as coisas a contento para a senhora?

Claire começou a responder

— Não, Sr. Harris...

— A pergunta foi dirigida à Sra. Brandon — atalhou Tom educada mas firmemente. Ele olhou para Lucy. — Já faz um mês que tivemos aquele probleminha. Conversamos a respeito, e pensei que estivesse tudo resol­vido. Se a senhora ainda tinha dúvidas ou receios, eu certamente teria de boa vontade feito outra reunião com a senhora.

— Quer fazer o favor de chamar Amber? — solicitou Claire.

Tom enfiou a cabeça dentro da porta da sala de aula e chamou baixinho:

— Amber? Sua mãe está aqui. É melhor apanhar seu casaco e suas coisas. Havia dezoito alunos da terceira a sexta séries na sala de aula, cada qual sentado numa pequena carteira, e todas as carteiras estavam colocadas em filas alinhadas. Cartazes de natureza, astronomia, do alfabeto e conselhos sobre higiene adornavam as paredes. Encostado numa parede, um grande aquário borbulhava, e ali perto encontrava-se um telescópio doado, posi­cionado para sondar os céus. Sobre uma mesa havia vasinhos de ervilhas plantadas, todos enfileirados e rotulados, e, a seu lado, uma família de hamsters em grande gaiola movimentada.

Na antepenúltima carteira, quarta fileira, encontrava-se Amber Brandon, aluna da quarta série, vivaz, esperta, um tantinho travessa, com farta cabeleira de fios loiros muitas vezes desordenados, e grandes olhos azuis. Ela trazia um macacão roxo e tênis cor-de-rosa, e ao ombro, um brochinho de um cavalo de brinquedo.

A menina ficou surpresa ao saber que sua mãe havia vindo, mas também um tanto excitada. Ela fechou depressa o caderno, ajuntou seus livros e o estojo de lápis, e veio à porta.

Lucy abaixou-se e deu-lhe um abraço.

— Vá buscar seu casado, meu bem, e sua lancheira.

Aquelas foram as primeiras palavras que Tom ouviu da parte dela nesse dia.

Assim que Amber ficou pronta, Tom acompanhou-as à porta, escancarando-a para elas passarem. Os jornalistas ainda esperavam do lado de fora, claro, e Tom quase podia sentir o olhar fixo do olho único daquela câmara de televisão.

— Ei, escutem — disse ele aos jornalistas — vocês estão em propriedade particular, e acho que seria melhor se fossem embora, está bem?

— Oh, Sr. Harris — disse Claire, voltando e juntando-se a ele no vão da porta. A câmara pegou uma perfeita cena dupla. — Também estou aqui para entregar-lhe isto.

Ela tirou um envelope do bolso do casaco e colocou-o na mão dele. A lente Zoomar da câmara focalizou-o num close-up. A câmara de Paula deu um estalido e bateu diversas fotos.

— Vê-lo-ei no tribunal, senhor. Bom dia.

Ela desceu a escada e caminhou com Lucy e Amber de volta ao carro.

Tom ficou petrificado no lugar por um momento, o que Paula e Roberto acharam ótimo. Ele fitou o envelope, o estômago dando nó, o coração batendo tão forte que ele podia sentir. O envelope começava a tremer-lhe na mão. Olhou para o pessoal da imprensa. Eles tiraram mais alguns instantâneos.

— Por favor, vão embora — disse ele, a voz quase inaudível.

— Obrigado, Sr. Harris — disse John Ziegler.

Tom fechou a porta e então reclinou-se contra ela, completamente sozinho na sala comum. Sentiu que as pernas iriam dobrar debaixo de si e ele afundaria ao chão a qualquer instante.

— Oh, Deus — orou ele num sussurro. — Oh, Deus, o que está aconte­cendo?

Das duas salas de aula, a quieta atividade e os estudos continuavam. Subitamente, esse som lhe foi muito precioso. Ele olhou à volta da sala comum e reconheceu os casacos e as lancheiras de todas as crianças, toda a sua querida tribozinha. Não demoraria muito e eles estariam fazendo uma oração e saindo para o recreio da manhã, enchendo os balanços e o pátio como sempre faziam. Essas preciosas rotinas diárias agora pareciam tão inestimáveis por causa do envelope em sua mão, esse invasor, esse câncer, esse inimigo rancoroso, importuno! Ele queria mui ardentemente picá-lo em um milhão de pedaços, mas sabia que não podia.

Agora tudo se encaixava. Agora as coisas começavam a fazer sentido. Seus olhos enuviaram-se com lágrimas.

Então foi por isso que eles levaram Rute e Josias!

Tal estava ali, a espada desembainhada, mantendo-se perto da constru­ção, sem ser visto, observando o carro e o furgão do noticiário indo embora. Apenas alguns espíritos sombrios acompanhavam os visitantes, e não houve escaramuças, pelo menos por ora. O fato de Tom estar bem guardado por dois guerreiros muito altos ajudava a manter as coisas quietas, além do fato de Natã e Armoth estarem no topo da igreja bem à vista.

— Não quero que ele sofra outra hostilidade pelo resto do dia — instruiu Tal aos guardas. — Deixem-no sarar desta aqui primeiro.

Em seguida ele estendeu as asas e alcançou o teto da igreja num salto suave.

— Então, eles resolveram levar o negócio adiante! — comentou Natã.

— O Homem Forte pode ser inflexível — avisou Tal. — Acho que esta será uma luta até o fim. É ...

FUUUM! Uma explosão súbita de asas! Os três guerreiros formaram imediatamente um feixe apertado, cada qual olhando para fora, espada desembainhada, posicionada para a peleja.

— Lá! — berrou Tal, e todos voltaram-se para a velha torre do sino. Era Destruidor, ereto e imponente, as asas expandidas começando a acomodar-se, a fulgurante espada vermelha desembainhada. Uma dúzia de guerreiros o acompanhavam, seis de cada lado, quase tão monstruosos quanto ele. O quente vapor amarelo saindo das narinas de cada demônio formava uma fita contorcida que flutuava sobre o estacionamento como uma serpente lenta, curiosa.

— Se não me engano, você é Tal, o Capitão dos Exércitos! — gritou o demônio.

Tal, Natã e Armoth analisavam aquele bando. Era melhor evitar uma luta.

— Sim, sou — disse Tal.

Os beiços negros, hirsutos, arreganharam para trás numa careta zombeteira, pondo à mostra longas presas cor-de-âmbar.

— Então os boatos nas fileiras eram verdadeiros!

— E quem seria você?

— Chame-me de Destruidor por enquanto. — A seguir, ele proclamou orgulhosamente: — Sou aquele que foi designado para a mulher!

Tal não se mexeu. Zombaria nunca o incomodava. Ele nunca lutava antes de estar pronto.

O demônio continuou, a espada de prontidão:

— Achei que antes que a batalha comece, os dois comandantes deveriam encontrar-se. Eu queria conhecê-lo para ver se toda a conversa arrogante que ouvi é verdadeira. — Destruidor observou Tal cuidadosamente. — Talvez não. — Ele brandiu a espada ao redor. — Mas, por favor, olhe para este lugar, esta escolinha! Será que é realmente um prêmio que valha todos os seus exércitos? Pode estar certo, não queremos ter mais problemas para tomá-la do que vocês desejam ter para salvá-la. Capitão dos Exércitos, poderíamos resolver essa questão mais cedo ao invés de mais tarde.

Tal respondeu:

— A escola é nossa. Os santos são nossos.

Destruidor abriu os braços com um floreio e fez um pronunciamento.

— O Homem Forte autorizou-me a dar-lhe as escolas cristãs de Westhaven, de Claytonville, de Toe Springs. Pode ficar com todas elas! Deixare­mos aquelas escolas em paz!

Tal permaneceu completamente firme.

— Não.

Destruidor apenas riu.

— Oh, deve ser a mulher. Talvez você ainda esteja animado por sua recente vitória em salvá-la. Considere isso um presente, capitão, nosso último erro. Sim, você a salvou, mas ela vive para nós. Sua alma nos pertence!

Tal nada disse.

— E não apenas a mulher, como também todo o poder, os recursos, as pessoas, as mentes, o dinheiro... tudo de que jamais precisaremos para calcar você e seu rebanhozinho heterogêneo de santos na poeira! Você chegou tarde demais, Capitão do Exército! O tempo já passou para você e seus santos. Nós temos o poder agora! Renda-se, corte suas perdas, e contente-se com isso!

— Veremos você na batalha — avisou Tal.

Destruidor olhou Tal por um longo momento, meneando a cabeça devagar, admirado da teimosia desse guerreiro angelical. Por fim, assentiu.

— Na batalha, então.

Com outra explosão de asas rápidas, secas, os demônios ergueram-se no céu, ululando e berrando, zombando e cuspindo até desaparecerem. Somente então Tal guardou a espada.

— Foi essa uma tentativa de nos amedrontar? — perguntou Armoth.

— Uma jogada estratégica — respondeu Tal. — Ele tentava roubar nossa coragem no inicio.

— E agora, que pensa das nossas probabilidades? — perguntou Natã.

— Iguais às deles — informou Tal. — Talvez somente iguais.