segunda-feira, 10 de maio de 2021

Este mundo tenebroso - parte 02 - Capítulo 04

 Guilo muitas vezes havia observado como a mais horrível, mais negra maldade parecia escolher os lugares mais belos para construir um ninho, e era o que acontecia novamente. As montanhas à sua volta eram altaneiras, escarpadas, os picos coroados de neve, pitorescas. O ar matutino era límpido, a visibilidade ilimitada, o vento constante e suave, o céu azul profundo. Altos exércitos de pinheiros postavam-se em posição de sentido a cada encosta, e ribeiros cristalinos vertiam, espadanavam e cascateavam do branco puro das geleiras. Abaixo dele, a cidadezinha de Summit aninhava-se pacificamente no vale verde, cheio de flores silvestres, cercada por um silêncio tranqüilo, perceptível.

Ele assobiou quando pensou: todas aquelas pessoazinhas lá em baixo, cercadas por toda essa beleza, não podiam ver o horror que as cercava por todos os lados, a tempestade iminente que estava por engolfá-las, as trevas cancerosas que primeiro cegam, depois consomem.

Ele e cerca de uma dúzia de guerreiros evitavam ser vistos, mantendo-se rente aos pinheiros, sem mostrar nem um pouco da luz da glória. Ele não desejava ser detectado pelos poderes maléficos que apenas os espíritos podem ver — uma nuvem de demônios que enxameava e rodopiava como um tufão tão negro quanto fumaça na encosta da montanha, a menos de dois quilômetros da cidade. Abaixo do tufão que o guardava, quase Invisível no meio das árvores, havia gracioso vilarejo alpino, um campus pitoresco de prédios adornados, passagens imaculadas, trilhas fascinantes, belíssimos jardins. O lugar todo gritava convite, exalando agradável e envolvente senso de paz, beleza e fraternidade.

Era a casa do Homem Forte, seu posto avançado, o eixo de um mal que se alastrava cada vez mais. Os espíritos fuliginosos eram audaciosos e turbulentos, deleitando-se com uma lista cada vez mais longa de vitórias sobre almas humanas.

Guilo se deteve imóvel, observando-lhes os movimentos, avaliando lhes a força, calculando-lhes o número. Sim, era bom vê-los tão atrevidos; era sempre mais fácil apanhar desprevenidos os demônios nesse estado de espírito. Mas eles não estariam tão atrevidos assim por muito tempo — ele e seus guerreiros tinham visto a recente chegada de um demoniozinho choraminguento, um pequenino mensageiro de insignificante cidadezinha rural, e a notícia que o espírito trazia com certeza mudaria as coisas por todo aquele supostamente encantador vilarejo. Um ataque teria sido suficientemente difícil antes. Agora ia ser nada menos do que um verda­deiro pesadelo.

Um grito! Um berro agudo, um tremor perpassou o tufão. As fileiras de demônios começaram a comprimir-se, encolhendo-se cada vez mais, fechando-se, cada vez mais escuras, mais espessas.

— Oh... — exclamou Guilo. — Parece que o Homem Forte recebeu a notícia.

— RUUUUUGIIIIDOOOOOO!!

O disforme bulbozinho que era o corpo de Desespero espichou-se, retorceu-se e abaulou-se de um jeito e de outro, como uma grande bolha negra acabada de sair do canudo, enquanto ele explodia pelo chalé e em seguida caía ao chão, choramingando alto, seu corpo negro frouxo e chato como um soluçante e trêmulo tapete de pele de urso. Em toda a sua volta, os demônios príncipes e generais estavam em uma confusão explosiva, babosa, sulfurosa, berrando e soltando maldições e vapor amarelo tão denso quanto fumaça de charuto. O chalé se enchia de uma neblina pesada, pútrida que quase obscurecia seus vultos espectrais.

Eles também não apreciaram a notícia de Desespero.

Na ponta da sala de estar, o Homem Forte fitava furioso o demoniozinho desprezível, seus enormes e amarelos olhos de gato quase explodindo da cabeça, as narinas alargadas, o enxofre exalando delas em nuvens revoltas.

O imenso e volumoso espírito tentava decidir se se sentia melhor agora, ou se precisava de novo atirar Desespero ao outro lado do chalé.

Os príncipes e generais — quase um cento deles — começavam a voltar-se uns contra os outros, abanando os braços, atirando suas asas negras nas caras uns dos outros, gritando e chiando; alguns exigiam explicações, alguns começavam a passar adiante a culpa, alguns queriam saber o que fariam a seguir, e alguns simplesmente se deixavam ficar ali, praguejando.

O Homem Forte encheu a sua ponta do cômodo com as asas e estendeu os braços abertos.

— Silêncio! Fez-se silêncio.

Ele deu uma enorme passada rumo ao centro da sala, e todos os demônios recuaram um passo, curvando-se, fechando as asas. Ele deu mais alguns passos, e a sala ecoou com o som deles.

Então ele se dirigiu ao pequenino tapete no chão:

— Você tem mais alguma coisa para me contar?

— Não, meu Ba-al.

— Alguma outra perda?

— Não, meu Ba-al.

— Nenhuma outra asneira?

— Não, meu Ba-al.

O demônio senhor considerou o que ouvira por apenas um momento. Em seguida a ordem explodiu de sua boca escancarada como se de um canhão:

— Então dê o fora daqui!

A força do hálito do Homem Forte foi mais do que suficiente para fazer Desespero por-se a caminho. Ele estava fora do chalé e no céu mesmo antes de abrir as asas.

O Homem Forte caminhou de volta à sua ponta da sala e afundou em seu trono — o buraco da lareira — com uma profunda carranca. As fileiras demoníacas que o ladeavam aprumaram-se, mantendo-se empinadas e altas contra as paredes. A ordem voltou à sala cheia de trevas, sombras, fumaça amarela e um mau cheiro de morte.

— Ela está viva — cismou amargamente. — Estávamos livres dela, acha­mos que de vez, e então ela surgiu novamente. Tentamos matá-la, mas agora ela ainda está viva e... debaixo da proteção deles.

Os príncipes se postavam como estátuas, esperando silenciosamente sua próxima palavra.

— RRROOOOOOUUUULLLLLL!

As fileiras demoníacas tiveram de se aprumar em filas novamente.

— O Vidoeiro Quebrado... — continuou ele cismando. — Um bando de gente tão agradável, tão indômita e tão franca. Tão pronta a matar. Tão... tão DESAJEITADA! — Ele fervilhou, fez seus enormes dedos tamborilaram, olhou furioso a nada em particular. — Esses humanos... esses adoradores de nosso senhor são maravilhosamente maléficos, mas às vezes... às vezes eles tropeçam à nossa frente. Nenhuma sutileza, nenhuma cautela. Por isso, agora temos um erro crasso, e uma almazinha escorregadia escapou de nosso punho, uma ameaça para nós pior agora do que nunca!

Um príncipe adiantou-se e curvou-se. — O meu senhor pensará em abortar o Plano?

O Homem Forte aprumou-se, e seus punhos fechados ribombaram sobre as pedras da lareira.

— NÃO!

O príncipe recuou até as fileiras sob os olhares condenatórios dos companheiros.

— Não — rosnou o Homem Forte — não este Plano. Há coisas demais em jogo, um excesso de coisas já foram estabelecidas e preparadas. Há coisas demais a serem ganhas para permitir que uma mulherzinha, uma almazinha miserável, estrague tudo.

O odioso espírito tentou descontrair-se, inclinando a cabeça para trás e deixando que sua língua cor de âmbar rolasse pelos beiços.

— A cidade era tão perfeita — cismou ele. — Os santos de Deus tão poucos, tão pobretões... e o nosso pessoal, oh, tão forte, tão numeroso, tão... tão pioneiro! Trabalhamos com tanto afinco para estabelecer a base que temos naquela cidade. Ah... quem sabe quanto tempo demorou...?

— Vinte e três anos, Ba-al — disse um auxiliar bem intencionado. O Homem Forte fitou-o furioso. — Obrigado. Eu sei.

O auxiliar curvou-se e recuou.

O Homem Forte continuou sua revisão mental. — E os insignificantes santinhos da cidade eram... obscuros, não percebem, longe de ajuda, longe dos principais recursos, isolados no meio de ondulantes lavouras... desconhecidos. Era o lugar perfeito para começarmos o processo. — A cara bestial ficou mais fechada e amarga. — Até que começaram a orar. Até que deixaram de estar tão confortáveis e puseram-se a chorar diante de Deus! Até que começaram a de novo reivindicar o poder da... — O Homem Forte selou os lábios.

— Da Cruz? — ofereceu o auxiliar.

IAAAAA!! — A espada do Homem Forte zuniu através do ar e por uns centímetros não atingiu o auxiliar. Tanto fazia. Diversos príncipes agarra­ram aquele vassalo boca-suja e o expulsaram.

O Homem Forte acomodou-se na lareira com um baque. —Destruidor!

Os príncipes olharam para a outra ponta da sala. Um murmúrio percor­reu-lhes as fileiras. Alguns recuaram.

Uma sombra adiantou-se, uma silhueta. Era alta, envolta em asas ondu­lantes. Ela se movia tão suavemente, tão silenciosamente, que parecia flutuar. Os outros demônios não se atreviam a tocá-la. Alguns se curvavam de leve.

A sombra atravessou a sala e então postou-se diante do Homem Forte, a cabeça abaixada em deferência. Ela permaneceu absolutamente imóvel.

O Homem Forte estudou aquela forma escura e silenciosa por um momento. — Você tem estado perceptivelmente quieto durante estas discussões.

A coisa ergueu a cabeça e fitou seu senhor com olhos estreitos, calculistas. A cara não era inteiramente odiosa; era quase humana. Mas era má; era fria e cheia de ódio.

— Fale, meu Ba-al — disse ele — e responderei.

Os olhos do Homem Forte se estreitaram. — Seus lacaios fracassaram, Destruidor. Ela está viva e livre. O que me diz disso?

A cara de Destruidor era pétrea, sua espinha aprumada. — Ela ainda é minha?

Havia um tom estranho, cortante na voz do Homem Forte. — Você ainda a merece, Destruidor?

O Homem Forte falou claramente, ameaçadoramente. — Quero que dê um sumiço nela, de modo que jamais reapareça de novo. — Havia uma leve sombra de dúvida na voz do Homem Forte ao perguntar —Você consegue dar conta disso?

A coisa não se moveu por um momento.

GOLPE CORTANTE! Relâmpago vermelho! Uma espada crepitante cortou o ar e dividiu o espaço em dois segmentos ardentes. Negras asas encheram o aposento como fumaça e ribombaram como trovão. Os príncipes caíram para trás de encontro às paredes; o Homem Forte chegou a se encolher.

A coisa postou-se ali, novamente imóvel, os olhos ardendo de ira, as asas negras acalmando-se lentamente, a candente espada vermelha firme em sua mão.

A voz, baixa e sinistra, fervilhava de ressentimento. — Dê-me alguns guerreiros de verdade, não Terga e seus desajeitados e choraminguentos diabretes de Baskon! Coloque seus melhores guerreiros sob meu comando e deixe que eles energizem o Vidoeiro Quebrado, e verá o que seu servo pode fazer!

O Homem Forte estudou a cara de Destruidor e sem o menor sorriso perguntou: — E o que me diz dos boatos que tenho ouvido?

Destruidor bufou uma risada escarninha através das narinas dilatadas. — São rumores espalhados por espíritos encolhidos de medo! Se o nosso oponente for esse Tal, tanto maior a emoção do desafio.

— Ele é poderoso.

Destruidor contrapôs: — Ele é sabido. Sua força não reside na própria espada, mas nos santos de Deus. Nossos exércitos transformaram numa lenda a sua vitória sobre nós em Ashton, mas prestam-lhe respeito em demasia. Foram as orações dos santos que nos derrotaram, não esse astuto Capitão dos Exércitos. — Destruidor abanou a espada lentamente pelo ar, admirando o ardente reflexo que seguia de perto o gume afiado. — £ assim aconteceu neste revés recente, insignificante. Mas agora ganhei uma vantagem, Ba-al: já provei a astúcia do inimigo, testei sua força e conheço a fonte do seu poder.

O Homem Forte ainda duvidava. — E como é que espera frustrá-lo se de novo não conseguiu?

— Procurarei os santos primeiro. Já existe mais do que suficiente em Baskon com o que eles se preocuparem, mais do que suficiente para dividi-los. Manterei aquelas pessoas ocupadas censurando e atacando-se mutuamente, e então seus corações estarão afastados da oração. — Ele segurou alto a espada; seu brilho vermelho iluminou a sala e os olhos amarelos refletiam o ardor em carmesim raiado de sangue. — Puxarei a força de Tal bem de baixo dele!

O Homem Forte parecia bem impressionado, pelo menos no momento. — Designarei meus melhores homens para acompanhá-lo. A sociedade do Vidoeiro Quebrado é desajeitada por vezes, mas nos é totalmente dedica­da. Use-a a seu bel prazer. Agora, vá!

Ben encontrava-se sentado à sua pequena escrivaninha no escritório da frente da delegacia e tentava terminar de trabalhar nuns papéis antes de sair em patrulha. Era um escritoriozinho gostoso, com duas pequenas escrivaninhas, uma copiadora, alguns cartazes coloridos sobre segurança no transito e um gradil baixo que fazia o papel de divisória. Nesse exato momento, o sol matutino jorrava pelas grandes janelas, aquecendo o lugar. Em circunstâncias diferentes, ele sempre gostara de trabalhar ali.

Mas Ben não se sentia contente nessa manhã, e sua mente estava longe da sua papelada. Tinha visto o relatório final de Mulligan sobre o suposto suicídio, e considerava-o inacreditável. Ele não podia ter certeza, mas as fotografias do corpo e as condições que o cercavam simplesmente não correspondiam ao que se lembrava de ter visto. De repente havia uma corda em torno do pescoço da mulher — na noite anterior Ben não viu corda alguma em torno do pescoço, e até a Sra. Potter disse que a mulher tinha a corda na mão. A ração derramada havia sumido misteriosamente, e a palha à volta do corpo parecia intacta, de forma alguma da maneira bagunçada, pisoteada e remexida em que estivera na noite anterior.

Ben não queria pensar nisso, mas era óbvio que a cena — e as fotografias dela — tinham sido alteradas, como se Mulligan e Leonardo tivessem dado cabo de todas as provas antes de tirarem as fotos e redigirem o relatório.

Como se isso não fosse o suficiente para preocupá-lo, havia também a zombaria e a acusação que Milligan fizera a Tom Harris, e na frente dos jornalistas. E, afinal, por que cargas dágua a imprensa estava na delegacia? Uma porção de coisas estavam parecendo muito suspeitas a Ben naquele instante.

O Estrela do Condado de Hampton estava sobre o canto da escriva­ninha. Ele teve de repassar o jornal inteiro antes de encontrar a mínima menção que fosse — e nada mais era do que isso — à morte no sítio dos Potters. O artigo era mais um preenchimento de espaço do que uma notícia de verdade, como se o repórter derrubasse todos os fatos em algum canto do chão e se esquecesse deles... ou propositadamente os abandonasse ali. A coisa toda dava a sensação de estar errada, tão errada que revirava o estômago de Ben.

Preciso dar o fora daqui, sair em patrulha. Não quero falar com o Mulligan, não quero nem olhar para ele.

Mas Mulligan era difícil de ser ignorado — ele gostava que fosse assim. Ele veio até a frente, arrotou bem alto, e sentou-se atrás da escrivaninha do outro lado do aposento como se fosse uma carga de cereais caindo num desembarcadouro. Trazia o relatório da investigação na mão, e pôs-se a virar as folhas para dar uma última olhada.

— Bem — disse, sua voz retumbante reduzindo nervos a estilhaços — é isso aí.

— Algum parente a quem devamos notificar? — perguntou Ben. Mulligan puxou um envelope de papel-manilha de uma gaveta. — Não existe nenhum. Roe era uma maria-ninguém, uma solitária. — Ele fez deslizar o relatório, juntamente com os esquemas e fotografias que o acompanhavam, para dentro do envelope e dobrou-lhe a aba. — Ela se desligou sozinha e agora é nosso trabalho plantá-la silenciosamente e continuar com a vida.

— Não suponho que vai haver um relatório do legista, vai?

Ben sabia que havia avançado demais. Mulligan começava a ferver. — Claro que vai haver. E daí?

Ben queria recuar, mas agora tinha de responder à pergunta de Mulli­gan.

— Bem... com todo o devido respeito... o legista poderia encontrar alguma evidência que sugira outra causa da morte.

Mulligan não tinha tempo para isso.

— Ouça, Cole, se apenas ser um tira comum, trabalhador, limpo, não chega para você... se simplesmente não acha que tem responsabilidade o bastante... tenho a certeza de que encontrarei alguns trabalhos mais importantes para você fazer, algo de que realmente possa se orgulhar. O lugar bem que está precisando de uma varrida, e sei que você seria muito meticuloso; meteria a vassoura em todos os cantos, limparia todas as teias de aranha, não?

Ben sabia que estava encarando Mulligan furiosamente, mas não fez o menor esforço para suavizar a expressão. E então lhe disse:

— Eu poderia ser muito meticuloso ao examinar se a investigação da noite passada foi ou não correta.

Mulligan abriu com força a gaveta do arquivo e jogou o envelope ali dentro.

— Concentre-se em fazer o seu serviço, Cole. Não lhe estou pagando para ser a minha consciência.