Guilo muitas
vezes havia observado como a mais horrível, mais negra maldade parecia escolher os lugares
mais belos para construir um ninho, e era o que acontecia novamente. As
montanhas à sua volta eram altaneiras, escarpadas, os picos coroados de neve,
pitorescas. O ar matutino era límpido, a visibilidade ilimitada, o vento
constante e suave, o céu azul profundo. Altos exércitos de pinheiros
postavam-se em posição de sentido a cada encosta, e ribeiros cristalinos
vertiam, espadanavam e cascateavam do branco puro das geleiras. Abaixo dele, a
cidadezinha de Summit aninhava-se pacificamente no vale verde, cheio de flores
silvestres, cercada por um silêncio tranqüilo, perceptível.
Ele assobiou quando pensou: todas aquelas pessoazinhas
lá em baixo,
cercadas por toda essa beleza, não podiam ver o horror que as cercava por todos
os lados, a tempestade iminente que estava por engolfá-las, as trevas
cancerosas que primeiro cegam, depois consomem.
Ele e cerca de uma dúzia de guerreiros evitavam ser vistos, mantendo-se
rente aos pinheiros, sem mostrar nem um pouco da luz da glória. Ele não
desejava ser detectado pelos poderes maléficos que apenas os espíritos podem ver — uma nuvem de demônios que
enxameava e rodopiava como um tufão tão negro quanto fumaça na encosta da
montanha, a menos de dois quilômetros da cidade. Abaixo do tufão que o
guardava, quase Invisível no meio das árvores, havia gracioso vilarejo alpino,
um campus pitoresco de prédios adornados, passagens imaculadas, trilhas
fascinantes, belíssimos jardins. O lugar todo gritava convite, exalando
agradável e envolvente senso de paz, beleza e fraternidade.
Era a casa do Homem Forte, seu posto avançado, o eixo de um mal que
se alastrava cada vez mais. Os espíritos fuliginosos eram audaciosos e
turbulentos, deleitando-se com uma lista cada vez mais longa de vitórias sobre
almas humanas.
Guilo se deteve imóvel, observando-lhes os movimentos, avaliando lhes a
força, calculando-lhes o número. Sim, era bom vê-los tão atrevidos; era sempre
mais fácil apanhar desprevenidos os demônios nesse estado de espírito. Mas eles
não estariam tão atrevidos assim por muito tempo — ele e seus guerreiros tinham
visto a recente chegada de um demoniozinho choraminguento, um pequenino
mensageiro de insignificante cidadezinha rural, e a notícia que o espírito
trazia com certeza mudaria as coisas por todo aquele supostamente encantador
vilarejo. Um ataque teria sido suficientemente difícil antes. Agora ia ser nada
menos do que um verdadeiro pesadelo.
Um grito! Um berro agudo, um tremor perpassou o tufão. As fileiras de demônios
começaram a comprimir-se, encolhendo-se cada vez mais, fechando-se, cada vez
mais escuras, mais espessas.
—
Oh... — exclamou Guilo. — Parece que o Homem Forte recebeu a notícia.
—
RUUUUUGIIIIDOOOOOO!!
O disforme bulbozinho que era o corpo de Desespero
espichou-se, retorceu-se e abaulou-se de um jeito e de outro, como uma grande
bolha negra acabada de sair do canudo, enquanto ele explodia pelo chalé e em seguida caía ao
chão, choramingando alto, seu corpo negro frouxo e chato como um soluçante e
trêmulo tapete de pele de urso. Em toda a sua volta, os demônios príncipes e
generais estavam em uma confusão explosiva, babosa, sulfurosa, berrando e
soltando maldições e vapor amarelo tão denso quanto fumaça de charuto. O chalé
se enchia de uma neblina pesada, pútrida que quase obscurecia seus vultos
espectrais.
Eles também não apreciaram a notícia de Desespero.
Na ponta da sala de estar, o Homem Forte fitava furioso
o demoniozinho desprezível, seus enormes e amarelos olhos de gato quase explodindo
da cabeça, as narinas alargadas, o enxofre exalando delas em nuvens revoltas.
O imenso e volumoso espírito tentava decidir se se sentia melhor agora, ou se
precisava de novo atirar Desespero ao outro lado do chalé.
Os príncipes e generais — quase um cento deles — começavam a
voltar-se uns contra os outros, abanando os braços, atirando suas asas negras
nas caras uns dos outros, gritando e chiando; alguns exigiam explicações, alguns
começavam a passar adiante a culpa, alguns queriam saber o que fariam a seguir,
e alguns simplesmente se deixavam ficar ali, praguejando.
O Homem Forte encheu a sua ponta do cômodo com as asas e
estendeu os braços abertos.
—
Silêncio! Fez-se silêncio.
Ele deu uma enorme passada rumo ao centro da sala, e
todos os demônios
recuaram um passo, curvando-se, fechando as asas. Ele deu mais alguns passos, e
a sala ecoou com o som deles.
Então ele se dirigiu ao pequenino tapete no chão:
—
Você tem mais alguma coisa para me contar?
—
Não, meu Ba-al.
—
Alguma outra perda?
—
Não, meu Ba-al.
—
Nenhuma outra asneira?
—
Não, meu Ba-al.
O demônio senhor considerou o que ouvira por apenas um momento. Em
seguida a ordem explodiu de sua boca escancarada como se de um canhão:
—
Então dê o fora daqui!
A força do hálito do Homem Forte foi mais do que suficiente para
fazer Desespero por-se a caminho. Ele estava fora do chalé e no céu mesmo antes
de abrir as asas.
O Homem Forte caminhou de volta à sua ponta da sala e
afundou em seu trono — o buraco da lareira — com uma profunda carranca. As
fileiras demoníacas que o ladeavam aprumaram-se, mantendo-se empinadas e altas
contra as paredes. A ordem voltou à sala cheia de trevas, sombras, fumaça
amarela e um mau cheiro de morte.
—
Ela está viva — cismou amargamente. — Estávamos livres dela, achamos que de
vez, e então ela surgiu novamente. Tentamos matá-la, mas agora ela ainda está
viva e... debaixo da proteção deles.
Os príncipes se postavam como estátuas, esperando silenciosamente
sua próxima palavra.
—
RRROOOOOOUUUULLLLLL!
As fileiras demoníacas tiveram de se aprumar em filas novamente.
—
O Vidoeiro Quebrado... — continuou ele cismando. — Um bando de gente tão
agradável, tão indômita e tão franca. Tão pronta a matar. Tão... tão DESAJEITADA! — Ele fervilhou, fez seus
enormes dedos tamborilaram, olhou furioso a nada em particular. — Esses
humanos... esses adoradores de nosso senhor são maravilhosamente maléficos, mas
às vezes... às vezes eles tropeçam à nossa frente. Nenhuma sutileza,
nenhuma cautela. Por isso, agora temos um erro crasso, e uma almazinha
escorregadia escapou de nosso punho, uma ameaça para nós pior agora do que
nunca!
Um príncipe adiantou-se e curvou-se. — O meu senhor pensará em
abortar o Plano?
O Homem Forte aprumou-se, e seus punhos fechados
ribombaram sobre as pedras da lareira.
— NÃO!
O príncipe recuou até as fileiras sob os olhares condenatórios
dos companheiros.
— Não
— rosnou o Homem Forte — não este Plano. Há coisas demais em jogo, um excesso
de coisas já foram estabelecidas e preparadas. Há coisas demais a serem ganhas
para permitir que uma mulherzinha, uma almazinha miserável, estrague tudo.
O odioso espírito tentou descontrair-se, inclinando a cabeça para
trás e deixando que sua língua cor de âmbar rolasse pelos beiços.
—
A cidade era tão perfeita — cismou ele. — Os santos de Deus tão poucos, tão
pobretões... e o nosso pessoal, oh, tão forte, tão numeroso, tão... tão
pioneiro! Trabalhamos com tanto afinco para estabelecer a base que temos
naquela cidade. Ah... quem sabe quanto tempo demorou...?
—
Vinte e três anos, Ba-al — disse um auxiliar bem intencionado. O Homem Forte
fitou-o furioso. — Obrigado. Eu sei.
O auxiliar curvou-se e recuou.
O Homem Forte continuou sua revisão mental. — E os
insignificantes santinhos da cidade eram... obscuros, não percebem, longe de
ajuda, longe dos principais recursos, isolados no meio de ondulantes
lavouras... desconhecidos. Era o lugar perfeito para começarmos o processo. — A
cara bestial ficou mais fechada e amarga. — Até que começaram a orar. Até que
deixaram de estar tão confortáveis e puseram-se a chorar diante de Deus! Até
que começaram a de novo reivindicar o poder da... — O Homem Forte selou os
lábios.
—
Da Cruz? — ofereceu o auxiliar.
— IAAAAA!!
— A espada do Homem Forte zuniu através do ar e por uns centímetros não
atingiu o auxiliar. Tanto fazia. Diversos príncipes agarraram aquele vassalo
boca-suja e o expulsaram.
O Homem Forte acomodou-se na lareira com um baque. —Destruidor!
Os príncipes olharam para a outra ponta da sala. Um murmúrio
percorreu-lhes as fileiras. Alguns recuaram.
Uma sombra adiantou-se, uma silhueta. Era alta, envolta
em asas ondulantes. Ela se movia tão suavemente, tão silenciosamente, que parecia flutuar. Os outros demônios não se atreviam a
tocá-la. Alguns se curvavam de leve.
A sombra atravessou a sala e então postou-se diante do
Homem Forte, a cabeça abaixada em deferência. Ela permaneceu absolutamente
imóvel.
O Homem Forte estudou aquela forma escura e silenciosa
por um momento. — Você tem estado perceptivelmente quieto durante estas discussões.
A coisa ergueu a cabeça e fitou seu senhor com olhos estreitos, calculistas.
A cara não era inteiramente odiosa; era quase humana. Mas era má; era fria e
cheia de ódio.
—
Fale, meu Ba-al — disse ele — e responderei.
Os olhos do Homem Forte se estreitaram. — Seus lacaios fracassaram,
Destruidor. Ela está viva e livre. O que me diz disso?
A cara de Destruidor era pétrea, sua espinha
aprumada. — Ela ainda é minha?
Havia um tom estranho, cortante na voz do Homem Forte. — Você ainda a merece,
Destruidor?
O Homem Forte falou claramente, ameaçadoramente. — Quero que dê
um sumiço nela, de modo que jamais reapareça de novo. — Havia uma leve sombra
de dúvida na voz do Homem Forte ao perguntar —Você consegue dar conta
disso?
A coisa não se moveu por um momento.
GOLPE CORTANTE! Relâmpago vermelho! Uma espada crepitante cortou o ar e
dividiu o espaço em dois segmentos ardentes. Negras asas encheram o aposento
como fumaça e ribombaram como trovão. Os príncipes caíram para trás de encontro
às paredes; o Homem Forte chegou a se encolher.
A coisa postou-se ali, novamente imóvel, os olhos ardendo de
ira, as asas negras acalmando-se lentamente, a candente espada vermelha firme
em sua mão.
A voz, baixa e sinistra, fervilhava de ressentimento. — Dê-me alguns guerreiros
de verdade, não Terga e seus desajeitados e choraminguentos diabretes de
Baskon! Coloque seus melhores guerreiros sob meu comando e deixe que eles
energizem o Vidoeiro Quebrado, e verá o que seu servo pode fazer!
O Homem Forte estudou a cara de Destruidor e sem o
menor sorriso perguntou: — E o que me diz dos boatos que tenho ouvido?
Destruidor bufou uma risada escarninha através das narinas dilatadas. —
São rumores espalhados por espíritos encolhidos de medo! Se o nosso
oponente for esse Tal, tanto maior a emoção do desafio.
—
Ele é poderoso.
Destruidor contrapôs: — Ele é sabido. Sua força não reside na
própria espada, mas nos santos de Deus. Nossos exércitos transformaram numa lenda a sua vitória sobre nós em Ashton,
mas prestam-lhe respeito em demasia. Foram as orações dos santos que nos
derrotaram, não esse astuto Capitão dos Exércitos. — Destruidor abanou a espada
lentamente pelo ar, admirando o ardente reflexo que seguia de perto o gume
afiado. — £ assim aconteceu neste revés recente, insignificante. Mas agora
ganhei uma vantagem, Ba-al: já provei a astúcia do inimigo, testei sua força e
conheço a fonte do seu poder.
O Homem Forte ainda duvidava. — E como é que espera
frustrá-lo se de novo não conseguiu?
—
Procurarei os santos primeiro. Já existe mais do que suficiente em Baskon com o
que eles se preocuparem, mais do que suficiente para dividi-los. Manterei
aquelas pessoas ocupadas censurando e atacando-se mutuamente, e então seus
corações estarão afastados da oração. — Ele segurou alto a espada; seu brilho
vermelho iluminou a sala e os olhos amarelos refletiam o ardor em carmesim
raiado de sangue. — Puxarei a força de Tal bem de baixo dele!
O Homem Forte parecia bem impressionado, pelo menos no
momento. —
Designarei meus melhores homens para acompanhá-lo. A sociedade do Vidoeiro
Quebrado é desajeitada por vezes, mas nos é totalmente dedicada. Use-a a seu
bel prazer. Agora, vá!
Ben encontrava-se sentado à sua pequena escrivaninha
no escritório da frente da delegacia e tentava terminar de trabalhar nuns
papéis antes de sair em patrulha. Era um escritoriozinho gostoso, com duas
pequenas escrivaninhas, uma copiadora, alguns cartazes coloridos sobre
segurança no transito e um gradil baixo que fazia o papel de divisória. Nesse
exato momento, o sol matutino jorrava pelas grandes janelas, aquecendo o lugar.
Em circunstâncias diferentes, ele sempre gostara de trabalhar ali.
Mas Ben não se sentia contente nessa manhã, e sua mente estava longe
da sua papelada. Tinha visto o relatório final de Mulligan sobre o suposto
suicídio, e considerava-o inacreditável. Ele não podia ter certeza, mas as
fotografias do corpo e as condições que o cercavam simplesmente não
correspondiam ao que se lembrava de ter visto. De repente havia uma corda em
torno do pescoço da mulher — na noite anterior Ben não viu corda alguma em
torno do pescoço, e até a Sra. Potter disse que a mulher tinha a corda na mão.
A ração derramada havia sumido misteriosamente, e a palha à volta do corpo
parecia intacta, de forma alguma da maneira bagunçada, pisoteada e remexida em
que estivera na noite anterior.
Ben não queria pensar nisso, mas era óbvio que a cena — e as
fotografias dela — tinham sido alteradas, como se Mulligan e Leonardo tivessem
dado cabo de todas as provas antes de tirarem as fotos e redigirem o relatório.
Como se isso não fosse o suficiente para preocupá-lo, havia também a zombaria e a acusação que Milligan fizera a
Tom Harris, e na frente dos jornalistas. E, afinal, por que cargas dágua a
imprensa estava na delegacia? Uma porção de coisas estavam parecendo muito
suspeitas a Ben naquele instante.
O Estrela do Condado de Hampton estava sobre o
canto da escrivaninha. Ele teve de repassar o jornal inteiro antes de
encontrar a mínima
menção que fosse — e nada mais era do que isso — à morte no sítio dos Potters.
O artigo era mais um preenchimento de espaço do que uma notícia de verdade,
como se o repórter derrubasse todos os fatos em algum canto do chão e se
esquecesse deles... ou propositadamente os abandonasse ali. A coisa toda dava a
sensação de estar errada, tão errada que revirava o estômago de Ben.
Preciso dar o fora daqui, sair em patrulha. Não quero falar com o
Mulligan, não quero nem olhar para ele.
Mas Mulligan era difícil de ser ignorado — ele gostava que fosse assim. Ele
veio até a frente, arrotou bem alto, e sentou-se atrás da escrivaninha do outro
lado do aposento como se fosse uma carga de cereais caindo num desembarcadouro.
Trazia o relatório da investigação na mão, e pôs-se a virar as folhas para dar
uma última olhada.
—
Bem — disse, sua voz retumbante reduzindo nervos a estilhaços — é isso aí.
—
Algum parente a quem devamos notificar? — perguntou Ben. Mulligan puxou um
envelope de papel-manilha de uma gaveta. — Não existe nenhum. Roe era
uma maria-ninguém, uma solitária. — Ele fez deslizar o relatório, juntamente com os
esquemas e fotografias que o acompanhavam, para dentro do envelope e dobrou-lhe
a aba. — Ela se desligou sozinha e agora é nosso trabalho plantá-la
silenciosamente e continuar com a vida.
—
Não suponho que vai haver um relatório do legista, vai?
Ben sabia que havia avançado demais. Mulligan começava a ferver. — Claro que
vai haver. E daí?
Ben queria recuar, mas agora tinha de responder à pergunta de Mulligan.
—
Bem... com todo o devido respeito... o legista poderia encontrar alguma
evidência que sugira outra causa da morte.
Mulligan não tinha tempo para isso.
—
Ouça, Cole, se apenas ser um tira comum, trabalhador, limpo, não chega para
você... se simplesmente não acha que tem responsabilidade o bastante... tenho a
certeza de que encontrarei alguns trabalhos mais importantes para você fazer,
algo de que realmente possa se orgulhar. O lugar bem que está precisando de uma
varrida, e sei que você seria muito meticuloso; meteria a vassoura em todos os
cantos, limparia todas as teias de aranha, não?
Ben sabia que estava encarando Mulligan furiosamente,
mas não fez o
menor esforço para suavizar a expressão. E então lhe disse:
—
Eu poderia ser muito meticuloso ao examinar se a investigação da noite passada
foi ou não correta.
Mulligan abriu com força a gaveta do arquivo e jogou o envelope ali dentro.
— Concentre-se em fazer o seu serviço, Cole. Não lhe estou pagando para ser a minha consciência.