Capítulo 17
NO VALE DAS SOMBRAS
É QUASE IMPOSSÍVEL colocar quarenta viciados em tóxicos
debaixo do mesmo teto, e não ter problemas — principalmente se supervisionados
por pessoal inexperiente. A única coisa que impedia a organização do Centro
Desafio Jovem de explodir era o Espírito Santo. Estávamos sentados num barril
de pólvora, e qualquer um de nós podia acender o pavio na mente de algum
psicopata, e fazer-nos ir todos pelos ares, caindo no esquecimento. A única
esperança era conservar-nos tão perto de Deus quanto possível.
A maioria daqueles homens e mulheres era perita na arte de
enganar, tornando-se assim difícil distinguir quem era autêntico e quem era
falso. Ganhavam a vida contando mentiras. Nós confiávamos naquelas pessoas
tanto quanto podíamos.
Eu era intransigente quanto à disciplina, e logo descobri
que a maior parte deles não se ressentia se fôssemos justos e razoáveis. De
fato apoiavam-se na disciplina, porque lhes dava uma base firme de operação —
um sólido sentimento de participação. Contudo, eu sabia que nem todos tinham
este sentimento.
Davi concordava com a minha filosofia. Porém a desagradável
responsabilidade de precisar repreender a toda hora os delinqüentes começou a pesar
demais sobre os meus ombros. Muitas vezes precisava sair da cama, no meio da
noite, para resolver uma querela, ou até mesmo, algumas vezes, para mandar
alguém embora, por ter quebrado as regras.
Grande parte das decisões mais importantes cabia a mim, e
precisávamos aumentar o nosso quadro de colaboradores, a maioria dos quais acabava
de sair da universidade. Comecei a sentir profundamente minha falta de preparo,
e a perceber a minha própria insegurança. Eu pouco ou nada sabia a respeito de
processos administrativos, e ainda menos a respeito dos aspectos psicológicos
das relações pessoais necessárias para manter a comunicação, e para me
relacionar com os outros membros da equipe. Podia perceber inveja da parte de
alguns dos que trabalhavam sob minha direção, e comecei a notar um
estremecimento gradual em nossas relações.
Quando Davi passava pelo Centro, eu tentava explicar que
tinha problemas grandes demais para mim, mas ele sempre me dizia: “Você saberá
resolvê-los, Nicky. Tenho grande confiança na sua capacidade.”
Os problemas, porém, continuaram a acumular-se como nuvens
negras no horizonte, antes de uma tempestade.
No outono, fui com Davi até Pittsburg, para falar na cruzada
de Kathryn Kuhlman. O ministério da Srta. Kuhlman é um dos mais abençoados
pelo Espírito em todo o mundo. Sua obra, através da Fundação Kathryn Kuhlman,
alcança todas as partes do globo Ela visitara o Centro Desafio Jovem,
demonstrando um interesse especial pelo meu trabalho. Eu lhe havia mostrado a
cidade e as favelas. “Agradeço a Deus por ter tirado você destes cortiços”,
disse-me ela. “Se um dia tiver um problema grande demais para resolver, pode
me telefonar .”
Pensei que devia tentar falar com ela, enquanto estivesse em
Pittsburg, porque meu coração estava cada vez mais pesado. Contudo, fui levado
pela grandiosidade do programa. Naquela noite, falando através do meu amigo
Jeff Morales, que me acompanhara como intérprete, dei meu testemunho perante
milhares de pessoas, no grande auditório. Depois do culto, jantamos em um
pequeno restaurante, mas, até então, não tivera oportunidade de falar a sós
com a Srta. Kuhlman. Deixei assim Pittsburg, ainda mais frustrado com minha
incapacidade de resolver meus problemas pessoais.
Em janeiro de 1964, o trabalho havia crescido muito e já não
podíamos conservar as mulheres alojadas no terceiro andar do casarão da Av.
Clinton, 416. Fizemos negociações para arranjar uma casa do outro lado da rua,
para acomodar as mulheres. Eu já percebera algumas conspirações, lideradas por
alguns viciados que me vira obrigado a disciplinar. Além disto, tínhamos
recebido várias lésbicas no Centro, que estavam causando grandes problemas. Eu
temia constantemente que qualquer delas tentasse seduzir alguma das estudantes
inexperientes que nos ajudavam como conselheiras.
Cuidar de viciados era como tentar apagar um incêndio na
floresta com uma toalha de banho molhada. Cada vez que eu conseguia controlar
um pequeno problema, outro maior surgia. Percebi que estava me deixando
envolver pessoalmente, e quando um viciado em narcóticos voltou para o mundo,
tomei aquilo como fracasso pessoal.
Glória advertiu-me sobre o erro de levar todo o peso
sozinho, mas a responsabilidade pesava grandemente em meus ombros.
Foi nessa época que Quetta chegou ao Centro. Fazia o papel
de “homem” e fora certa vez “casada” com outra moça.
Vestia roupas de homem, calças, camisa, sapatos e até sua
roupa de baixo era masculina. Tinha pouco mais de trinta anos, era dona de uma
bonita pele e com cabelos muitos negros cortados como de homem. Era uma garota
magra, esbelta e atraente, com personalidade marcante.
Quetta era uma das maiores traficantes de narcótico da
cidade. Durante anos dirigira uma “galeria de picadas” no seu apartamento.
Homens e mulheres iam ali, não só para comprar heroína, mas também para
participar de orgias sexuais. Ela fornecia tudo o que era necessário: agulhas,
recipientes para ferver a droga, heroína, comprimidos, e para os sexualmente
depravados: homens e mulheres. Era uma situação confusa.
Quando a polícia deu uma batida no apartamento de Quetta,
prendeu doze pessoas, inclusive algumas prostitutas profissionais, e descobriu
dez “apetrechos” (colheres, agulhas, e conta-gotas). Os policiais demoliram
literalmente o apartamento, arrancando o reboco das paredes, levantando as
tábuas do assoalho, etc., até descobrir o seu esconderijo de drogas, que valia
milhares de dólares.
Quetta veio para o Centro, enquanto estava em liberdade
condicional. Expliquei-lhe as regras, e disse-lhe que devia vestir roupas de mulher
e deixar o cabelo crescer. Além disto, nunca poderia ficar a sós com qualquer
das outras ex-viciadas, a não ser acompanhada de uma de nossas auxiliares. Ela
estava demasiado doente para discordar, e parecia estar alegre por ter se
livrado das grades. Em menos de uma semana aceitou a Cristo, e apresentou todas
as evidências externas de uma verdadeira conversão.
Contudo, logo cheguei à conclusão de que mesmo a conversão
pode ser fingida. Embora usássemos Quetta para testificar em muitos trabalhos
ao ar livre, eu sentia que havia algo de falso nela.
Duas semanas mais tarde, uma das conselheiras veio
procurar-me logo de manhã. Estava branca como um lençol, e tremendo como vara
verde.
“O que foi, Diane? Entre e sente-se.”
Diane era a mais nova de nossa equipe, uma garota
provinciana de Nebraska, que acabara de diplomar-se na Escola Bíblica.
“Não sei como contar-lhe, Nicky”, disse ela. “É sobre Quetta
e Lilly.”
Lilly era uma viciada que viera para o Centro havia apenas
uma semana. Estava freqüentando os cultos, mas ainda não se entregara ao
Senhor. Senti os lábios secos. “O que houve com elas?” perguntei.
Diane enrubesceu e baixou a cabeça.
“Estavam juntas na cozinha, ontem, por volta de meia-noite.
Aproximei-me delas e, Nicky, elas estavam ... estavam...” Sua voz embargou-se,
devido à vergonha e ao acanhamento. “Não fui capaz de dormir a noite toda. O
que podemos fazer?”
Levantei-me da cadeira e comecei a andar, medindo o
escritório a passos.
“Volte ao prédio e diga-lhes que quero vê-las no meu escritório
imediatamente”, decidi. “Este lugar é dedicado ao Senhor. Não podemos
admitir que coisas assim aconteçam aqui.”
Diane saiu, e eu me sentei novamente, com a cabeça entre as
mãos, orando desesperadamente, pedindo sabedoria. Em que ponto eu falhara? Havíamos permitido
que Quetta testificasse em nome do Centro. Os jornais tinham publicado sua
história e dado muita publicidade. Ela falara até em igrejas, a respeito da
transformação ocorrida em sua vida.
Esperei mais de uma hora, e depois saí, para ver o que
estava acontecendo. Encontrei Diane na escada.
“Elas saíram. As duas. Ficaram com medo, e disseram que iam
embora. Não pudemos impedi-las.”
Virei-me e entrei vagarosamente no Centro. Sentia a derrota
pessoalmente — fora um golpe duro. Durante três dias Glória orou e conversou
comigo, enquanto eu me sentia completamente desiludido com a minha aparente
incapacidade de alcançar aquelas viciadas com a verdadeira mensagem de
transformação.
“Nicky, o próprio Jesus teve fracasso entre os seus
seguidores”, disse ela. “Lembre-se de todos os que têm sido fiéis, e que têm
tido êxito. Lembre-se de Sonny, que está no Instituto Bíblico, estudando para
ser pastor. Pense em Maria, e na maravilhosa transformação de sua vida. Lembre
se do que Deus fez por você. Esqueceu-se da sua própria experiência de
salvação? Como é que pode duvidar de Deus e ficar desanimado com esses
fracassos isolados?”
Glória tinha razão, mas eu me sentia incapaz de livrar-me
daquele desânimo. A medida que o verão avançava, a sensação de culpa se
avolumava. Julgava-me um completo fracasso. Não havia comunicação entre mim e
a maioria dos outros membros da equipe. Davi ainda acreditava em mim. mas eu
percebia, aguda e dolorosamente, as constantes falhas do Centro. A tensão
crescia. Glória continuou tentando tirar-me daquela atitude derrotista, mas
tudo o que eu fazia era inteiramente negativo.
O único ponto alto foi a chegada de Jimmy Baez. Ele vivera “fisgado”
pelos narcóticos durante oito anos. Entrou no Centro pedindo remédios, pensando
que era um hospital.
“Não tem outro remédio aqui a não ser Jesus”, disse-lhe.
Pensou que eu estivesse louco.
“Puxa, pensei que isto fosse uma clínica. Vocês são uma
cambada de birutas.” Olhou ao seu redor, desesperadamente, procurando sair do
meu escritório.
“Sente-se, Jimmy. Quero conversar com você. Cristo pode
transformá-lo.”
“Ninguém pode me transformar”, resmungou. “Já tentei, mas
não consigo.”
Levantei-me e aproximei-me dele. Colocando as mãos sobre sua
cabeça, comecei a orar. Senti que ele estremecia, e de repente caiu de joelhos,
clamando a Deus. Daquela noite em diante nunca mais sentiu necessidade de
outra “picada” de heroína.
“Veja”, observou Glória, quando lhe falei da conversão de
Jimmy, “Deus está mostrando que ainda pode ajudá-lo. Como é que você pode
continuar duvidando dele? Por que não pensar positivamente? Há vários meses
que você não sai para os cultos noturnos ao ar livre. Ponha-se a trabalhar
para Deus, e sentirá a orientação do Espírito Santo, como sentia antes.”
Aceitei o conselho, e concordei em dirigir os cultos ao ar
livre na última semana de agosto. Na primeira noite, armamos nossa plataforma
em Brooklin, e comecei a pregar. Era uma noite quente e abafada, mas a vasta
multidão estava atenta. Preguei com todas as forças, e senti que me saíra bem.
Quando me aproximava do fim, fiz um apelo.
De repente, levantei os olhos e, na extremidade da multidão
eu o vi. Seu rosto era inconfundível. Era Israel. Todos aqueles anos, eu orara,
procurara, inquirira... e, de repente, ali estava ele, um rosto na multidão.
Meu coração pulou. Talvez Deus o tivesse mandado de
volta. Senti o velho fogo derramar se
em meu coração, enquanto fazia o apelo. Parecia que prestava bastante atenção,
esticando o pescoço para ouvir as minhas palavras. O órgão portátil começou a
tocar, e um trio feminino começou a cantar. Vi Israel virar-se para se afastar.
Pulei da plataforma e, às cotoveladas, abri caminho
furiosamente entre a multidão, tentando alcançá-lo antes que ele
desaparecesse. “Israel! Israel!” gritei-lhe. “Espere! Espere!”
Ele parou e virou-se. Não nos víamos há seis anos. Tinha
ganhado corpo e amadurecido. Mas o seu rosto harmonioso tinha a aparência de
mármore cinzelado, e os seus olhos estavam fundos e tristes.
Abracei-o com força, e procurei arrastá-lo de volta para a
reunião. Ele resistiu e permaneceu imóvel.
“Israel”, gritei, transbordando de alegria, “é você mesmo?”
Dei um passo atrás, agarrei os seus ombros, olhando para ele. “Por onde tem
andado? Onde você está morando? O que está fazendo? Conte-me tudo. Por que não
me telefonou? Tenho procurado você em todos os cantos de Nova York. Hoje é o melhor
dia da minha vida.”
Seus olhos estavam distantes e frios; sua maneira, estranha
e retraída. “Preciso ir, Nicky. Tive muito prazer em ver você de novo.”
“Precisa ir? Faz seis anos que não nos vemos. Tenho orado
todos os dias por você. Você vai para casa comigo.” Comecei a puxá-lo, mas ele
sacudiu a cabeça e retirou o braço. Pude sentir os músculos fortes enrijecendo
sob a sua pele.
“Outro dia, Nicky. Hoje não.” Tirou minha mão do seu ombro,
e começou a afastar-se.
“Ei, espere um minuto. O que é que há com você? Você é o meu
melhor amigo. Não pode ir embora assim.”
Virou-se e quase me congelou com um olhar gélido daqueles
olhos inflexíveis, cinzentos como o aço.
“Mais tarde, Nicky”, disse ele entre os dentes. Virou-se
abruptamente e desceu rua abaixo, para a escuridão.
Piquei imóvel pela surpresa, e chamei-o desesperadamente.
Mas ele nem se virou. Continuou andando, e retornou à penumbra de onde viera.
Voltei alquebrado para o Centro. Arrastei-me escada acima,
até o terceiro andar, e fechei a porta atrás de mim, em um dos quartos do
sótão. “Senhor”, gritei com voz agoniada, “o que é que eu fiz? Israel está
perdido, e a culpa é minha. Perdoa-me.” Caí no chão e passei muitos minutos
chorando incontrolavelmente. Dava socos desesperados na parede. Não recebi
resposta. Durante duas horas fiquei no sótão abafado, exaurindo-me física,
emocional e espiritualmente.
Eu sabia que iria deixar o Centro. Sentia que o meu ministério estava
terminado. Eu era um fracasso em tudo o que tentava fazer. Tudo em que eu tocava, terminava mal. Quetta.
Lilly. Agora, Israel. Não adiantava ficar lutando contra os problemas
crescentes que não podia vencer. Não adiantava continuar no ministério. Eu
estava arrasado. Derrotado. Fulminado. Pus-me de pé e fiquei olhando pela
janelinha do sótão, para o céu escuro. “Senhor, estou derrotado. Eu errei.
Tenho confiado em mim mesmo, e não em ti. Se é esta a razão pela qual tu
permitiste que isto acontecesse, estou disposto a confessar o meu terrível
pecado. Humilha-me. Mata-me, se necessário. Todavia, Deus querido, não me
lances no lixo.”
Sacudia-me em soluços. Encostei-me à porta, olhando para o
quarto. Silêncio. Eu não sabia se ele me ouvira ou não. Mas naquele momento,
pouca diferença fazia. Eu já fizera tudo o que sabia.
Desci de novo as escadas, e fui para o meu apartamento.
Glória já tinha posto o nenê na cama, e estava arrumando a cozinha. Fechei a
porta e encaminhei-me para a cadeira. Antes que eu pudesse sentar, ela estava
à minha frente. Seus braços rodearam-me a cintura, e ela me atraiu para si.
Não sabia nada do que acontecera na rua ou no sótão, mas porque somos uma só
carne, ela pôde perceber que eu fora ferido, e estava ao meu lado para
sustentar o meu espírito abatido, e me dar forças na hora da necessidade.
Apertei-a contra mim, e escondi o rosto no seu ombro,
enquanto as lágrimas começavam a cair de novo. Durante muito tempo ficamos ali,
abraçados um ao outro, meu corpo sacudido pelos soluços. Por fim o choro
passou, e levantei-lhe o rosto com ambas as mãos, olhando profundamente nos
seus olhos. Estavam cheios de lágrimas, como fontes profundas, jorrando água,
da terra pura. Mas, não chorava. Ela estava sorrindo, embora fracamente. E o
amor que fluía do seu coração transbordava dos seus olhos, enquanto as lágrimas
gotejavam e corriam em pequenos regatos pela face bronzeada.
Apertei o seu rosto com as mãos. Ela estava linda. Mais
linda do que nunca. Glória sorriu, e então os seus lábios se abriram, quando
ela se aconchegou a mim em um beijo suave e demorado. Pude sentir o sal das
minhas próprias lágrimas, e a quentura úmida da sua boca contra a minha.
“Pronto, Glória, terminou. Vou embora. Pode ser que eu tenha
ficado orgulhoso. Talvez tenha pecado. Não sei, mas sei que o Espírito
afastou-se de mim. Estou como Sansão. ao sair para guerrear os filisteus, sem
o poder de Deus. Sou um fracasso. Arruíno todas as coisas em que toco.”
“O que é, Nicky?” Sua voz era macia e suave. “O que
aconteceu?”
“Vi Israel hoje. Pela primeira vez depois de seis anos, vi o
meu melhor amigo. Ele me deu as costas. A culpa dele ser o que é, cabe a mim. Se
eu não o tivesse deixado sozinho na cidade, há seis anos atrás, ele estaria
trabalhando hoje ao meu lado. Em vez disso, passou cinco anos na prisão, e
está perdido. Deus não se importa mais.”
“Nicky, isto é quase uma blasfêmia”,
disse Glória, com voz ainda suave. “Você não pode culpar-se pelo que aconteceu
a Israel. Naquela manhã em que saiu da cidade, não passava de um garoto amedrontado.
Não foi sua a culpa de não ter encontrado Israel. Está errado ao culpar-se a
si próprio. Como tem coragem de dizer que Deus não se importa mais? Ele se
importa. Ele se importou o suficiente para salvá-lo."
"Você não compreende" disse eu, movendo a cabeça.
"Desde que Davi me contou que Israel voltou para a quadrilha, culpei-me a
mim mesmo. Tenho carregado o peso da culpa em meu coração. Esta noite eu o vi,
e ele virou-me as costas. Nem quis falar comigo. Se você tivesse visto a dureza
do seu semblante!"
"Mas, Nicky, você não pode desistir agora, justamente
quando Deus está começando a operar..."
"Amanhã vou me demitir", interrompi. "Meu lugar
não é aqui. Meu lugar não é no ministério. Não sou suficientemente bom. Se eu
ficar, todo o Centro Desafio Jovem vai ser destruído. Sou como Jonas. Pode ser
que ainda esteja fugindo de Deus, e não saiba disso. Eles precisam lançar-me ao
mar, para que um peixe me coma. Se não se livrarem de mim, o barco inteiro vai
afundar."
"Nicky, que conversa louca! Satanás é quem está fazendo
você ficar assim", disse Glória, quase chorando. Afastei-me dela.
"Tem razão, Satanás está em mim. Mas eu vou
renunciar."
"Nicky, pelo menos fale com Davi primeiro."
"Já tentei, centenas de vezes. Mas ele sempre está
ocupado demais. Acha que eu posso resolver tudo sozinho, mas está errado. Não
agüento mais. Sou incapaz, e já é tempo de admiti-lo. Sou um fracasso ... um fracasso."
Depois que fomos deitar, Glória passou o braço em torno da
minha cabeça e acariciou meu pescoço.
"Nicky, antes de renunciar você me promete uma coisa?
Você telefona para Kathryn Kuhlman e conversa com ela?"
Acenei que sim, com a cabeça. Meu travesseiro estava molhado
de lágrimas, e ouvi Glória murmurar: "Nicky, Deus vai tomar conta de
nós."
Enterrei a cabeça no travesseiro, pedindo a Deus que não me
permitisse ver o sol despontar outro dia, em minha vida.
Naqueles dias de trevas e indecisão, só uma estrela
brilhante surgiu, na forma daquela senhora majestosa, que parecia transpirar a
própria presença do Espírito Santo. Só o fato de conversar com a Srta. Kuhlman,
pelo telefone, no dia seguinte, parece que ajudou. Ela insistiu para que eu
fosse a Pittsburg, com as despesas pagas por ela, antes de tomar uma decisão
final.
Na tarde seguinte, tomei o avião para Pittsburg. Fiquei
surpreso quando ela não procurou forçar-me a ficar no Centro. Em vez disso, declarou:
"Talvez Deus esteja dirigindo você para um ministério
diferente, Nicky. Pode ser que ele o esteja levando pelo vale das sombras, a
fim de que possa sair ao sol, do outro lado. Tão somente, conserve os olhos em
Jesus. Não fique amargurado nem desanimado. Deus pôs a mão sobre você, e não
vai abandoná-lo agora. Lembre-se, Nicky, quando passamos pelo vale da sombra,
ele está conosco."
Oramos e ela pediu que, se fosse da vontade de Deus que eu
deixasse o Centro Desafio Jovem, que ele conservasse aquela nuvem de desânimo
ao meu redor. Se quisesse que eu permanecesse, dissipasse a nuvem, para que eu
me sentisse disposto a ficar em Nova York.
Voltei à cidade na manhã seguinte, grato pela amizade e
confiança daquela senhora cristã, gentil e dinâmica.
Naquela noite, depois que o nenê
dormiu, sentei à mesa da cozinha e conversei outra vez com Glória. Eu queria mesmo
sair. Começaríamos tudo de novo, talvez na Califórnia. Glória disse que me seguiria
onde quer que eu fosse. O seu grande amor e
sua confiança davam-me novas
forças. Antes de ir para a cama,
peguei um pedaço de papel e uma caneta, e escrevi meu pedido de demissão.
Foi um fim de semana horrível. Na segunda-feira cedo, quando
Davi chegou ao Centro, estendi-lhe meu pedido de demissão, e esperei enquanto
ele lia.
Ele baixou a cabeça.
“Fui eu quem falhei com você, Nicky?” perguntou suavemente.
“Será que eu estava tão ocupado que não fiquei aqui o tempo suficiente, quando
você precisou de mim? Venha ao meu escritório; vamos conversar .”
Segui-o silenciosamente pelo saguão, e entramos no
escritório. Ele fechou a porta, e encarou-me com um semblante profundamente
aflito.
“Nicky, não sei o que está por trás de tudo isto. Mas sei
que, em grande parte, sou culpado. Todos os dias tenho me repreendido por não
passar mais tempo com você. Vivo correndo, levantando dinheiro para o Centro.
Não tenho tido tempo nem para a minha família. Sinto em meus ombros o pesado
fardo da responsabilidade. Então, antes de conversarmos, quero pedir-lhe que
me perdoe por ter falhado com você.
Você me perdoa, Nicky?”
Baixei a cabeça, e meneei-a silenciosamente. Davi suspirou
fundo, e caiu na cadeira.
“Vamos conversar, Nicky.”
“É tarde demais para conversar, Davi. Várias vezes procurei
falar-lhe. Sinto que é isto que eu devo fazer.”
“Mas, por que, Nicky? O que causou esta decisão repentina?”
“Não é repentina, Davi. Está sendo preparada há muito
tempo.” Aí, então, abri o coração diante dele.
“Nicky”, disse Davi, com os olhos penetrantes fixos em mim,
“todos nós passamos por esses períodos de depressão. Eu já decepcionei algumas
pessoas, e já fiquei decepcionado com outras. Pensei em desistir várias vezes.
Freqüentemente, tenho me sentido como Elias, debaixo de um zimbro, gritando:
“Basta; toma agora, Senhor, a minha alma.” Contudo, Nicky,
você entrou em lugares onde os anjos temeriam andar. Não consigo imaginá-lo
fugindo destas pequenas derrotas.”
“Elas não são pequenas para mim, Davi. Já resolvi. Desculpe.”
No dia seguinte, Glória e Alicia embarcaram de avião para
Oakland, e dois dias depois voei até Houston, para cumprir o meu último
compromisso, pregando naquela cidade. Estávamos em agosto de 1964. Eu passara
dois anos e nove meses no Centro Desafio Jovem.
Em Houston, fiquei meio envergonhado de contar que saíra do
Centro. A minha pregação, porém, foi fria e ineficaz. Estava ansioso para
seguir para a Califórnia e encontrar-me com Glória.
Enquanto voava através do país, apercebi-me de que não
estava mais viajando por conta do ministério. Havíamos economizado muito
pouco, e as passagens de avião e despesas de mudança iriam deixar-nos sem
dinheiro. Fiquei assustado. Inseguro. Com medo.
Lembrei-me das vezes em que pessoas tinham tentado colocar
dinheiro em minhas mãos, quando pregara em concentrações e conferências. Eu
agradecia, e mandava que fizessem um cheque em nome do Centro Desafio Jovem.
Nada queria para mim. Toda a minha vida fora dedicada ao Centro. Parecia
irônico que até mesmo em Houston eu tinha continuado a dizer, aos que queriam
contribuir, que fizessem os cheques em nome do Centro Desafio Jovem, sabendo
que eu mal tinha dinheiro para viver, nos dias seguintes.
Glória foi encontrar-se comigo no aeroporto. Ela alugara um
apartamento pequeno. Estávamos “quebrados” e deprimidos. Eu dera a Deus quase
seis anos da minha vida, e sentia que ele me voltara as costas. Pretendia
desistir, deixar o ministério, e começar da estaca zero, em alguma outra
atividade. O sol mergulhou no Oceano Pacífico, e todo meu mundo afundou na
escuridão.
Não sabia para onde me voltar. Percebi que estava me
afastando de tudo. Não queria ir à igreja com Glória, preferindo ficar sentado em
casa, olhando para as paredes. Glória tentou orar comigo, mas eu me sentia
desanimado e afastava-a de mim, dizendo que ela podia orar, mas, quanto a mim,
sentia-me vazio.
Dentro de algumas semanas, espalhou-se a notícia de minha
volta à Califórnia. Começaram a chegar convites para falar nas igrejas. Logo
me cansei de dizer “não” e de inventar desculpas. Finalmente, disse a Glória
para não atender mais interurbanos, e não responder às cartas.
Nossa situação financeira era, porém, desesperadora. Havíamos
gastado todas as economias, e Glória não conseguira achar emprego.
Como último recurso, aceitei um convite para pregar em uma
cruzada para jovens. Estava espiritualmente frio. Pela primeira vez na vida,
subi ao púlpito sem orar. Sentado na plataforma, admirei minha própria dureza e
frieza. Fiquei chocado com a minha atitude mercenária. Não obstante, estava
desesperado. Se Deus me deixara cair, como eu sentia que ele o fizera, em Nova
York, então não me sentia obrigado a buscar a sua bênção para pregar. Se me
pagassem, eu aceitaria. Era simplesmente isso.
O Senhor, todavia, não considerava as coisas assim tão
simples. Ele tinha planos muito mais elevados para mim, mais do que apenas
receber um cheque como pagamento pela pregação. Pregar Cristo é coisa sagrada
— e ele prometeu: “Minha palavra... não voltará para mim vazia.”
Quando fiz o apelo, algo aconteceu. Primeiro, um jovem saiu
do meio da multidão e aproximou-se, ajoelhando-se diante do altar. Depois,
outro veio do canto mais afastado do auditório. Outros ainda vieram à frente,
e os corredores ficaram cheios de jovens dirigindo-se ao altar, ajoelhando-se
defronte do gradil e entregando suas vidas a Cristo. Tão grande era o número de
jovens ali na frente, que muitos precisaram ficar de pé, atrás dos que se
ajoelharam diante do gradil superlotado. No fundo da igreja, vi gente caindo de
joelhos e clamando a Deus. Outros continuavam se apresentando. Nunca estivera
em um culto em que o Espírito de Deus caísse sobre a congregação com tanto
poder.
O Senhor procurava dizer-me algo, não baixinho, sussurrando,
mas com voz trovejante. Dizia-me que ainda estava no seu trono, relembrando-me
que, embora eu o decepcionasse, ele não me decepcionava. Estava me dizendo, em
termos inconfundíveis, que não terminara sua obra em minha vida... e que ainda
queria usar-me, embora eu não estivesse disposto a ser usado.
Senti os joelhos tremerem, e tentei segurar-me no púlpito.
De repente, meus olhos encheram-se de lágrimas e eu, o pregador da noite, caí
para a frente, de joelhos diante do gradil. Ali, com o coração cheio de
arrependimento, derramei a alma perante o meu Deus, numa nova dedicação a ele.
Depois do culto, Glória e eu entramos no carro que estava
estacionado no pátio da igreja. Havíamos planejado sair para lanchar e depois
dar um passeio de carro. Em vez disso, concordamos em ir para casa.
Quando entramos, caí de joelhos. Glória ajoelhou-se ao meu
lado, e nós dois choramos e clamamos a Deus. E eu sabia. Sabia que havia mais
ainda. Sabia que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus.
Abri os olhos, e através das lágrimas, vi que ele estava ao meu lado. Podia
sentir a sua presença. Quase podia ouvir as palavras: Sim, “ainda que eu ande
pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, porque tu estás comigo:
a tua vara e o teu cajado me consolam...” Salmo 23.
Havíamos atravessado o vale da sombra da mor> te, mas a
sua graça nos guiara, e agora a luz do sol já coroava o pico das montanhas
distantes, anunciando o alvorecer de um novo dia.