sábado, 24 de abril de 2021

Foge Nick Foge - 17 - No vale das sombras



Capítulo 17

NO VALE DAS SOMBRAS

É QUASE IMPOSSÍVEL colocar quarenta viciados em tóxicos debaixo do mesmo teto, e não ter pro­blemas — principalmente se supervisionados por pessoal inexperiente. A única coisa que impedia a organização do Centro Desafio Jovem de explodir era o Espírito Santo. Estávamos sentados num barril de pólvora, e qualquer um de nós podia acen­der o pavio na mente de algum psicopata, e fazer-nos ir todos pelos ares, caindo no esquecimento. A única esperança era conservar-nos tão perto de Deus quanto possível.
A maioria daqueles homens e mulheres era pe­rita na arte de enganar, tornando-se assim difícil distinguir quem era autêntico e quem era falso. Ganhavam a vida contando mentiras. Nós confiá­vamos naquelas pessoas tanto quanto podíamos.
Eu era intransigente quanto à disciplina, e logo descobri que a maior parte deles não se ressentia se fôssemos justos e razoáveis. De fato apoiavam-se na disciplina, porque lhes dava uma base firme de operação — um sólido sentimento de participa­ção. Contudo, eu sabia que nem todos tinham este sentimento.
Davi concordava com a minha filosofia. Porém a desagradável responsabilidade de precisar repreen­der a toda hora os delinqüentes começou a pesar demais sobre os meus ombros. Muitas vezes pre­cisava sair da cama, no meio da noite, para resolver uma querela, ou até mesmo, algumas vezes, para mandar alguém embora, por ter quebrado as regras.
Grande parte das decisões mais importantes cabia a mim, e precisávamos aumentar o nosso quadro de colaboradores, a maioria dos quais aca­bava de sair da universidade. Comecei a sentir profundamente minha falta de preparo, e a perceber a minha própria insegurança. Eu pouco ou nada sabia a respeito de processos administrativos, e ainda menos a respeito dos aspectos psicológicos das relações pessoais necessárias para manter a co­municação, e para me relacionar com os outros membros da equipe. Podia perceber inveja da parte de alguns dos que trabalhavam sob minha direção, e comecei a notar um estremecimento gradual em nossas relações.
Quando Davi passava pelo Centro, eu tentava explicar que tinha problemas grandes demais para mim, mas ele sempre me dizia: “Você saberá resol­vê-los, Nicky. Tenho grande confiança na sua capa­cidade.”
Os problemas, porém, continuaram a acumular-se como nuvens negras no horizonte, antes de uma tempestade.
No outono, fui com Davi até Pittsburg, para falar na cruzada de Kathryn Kuhlman. O minis­tério da Srta. Kuhlman é um dos mais abençoados pelo Espírito em todo o mundo. Sua obra, através da Fundação Kathryn Kuhlman, alcança todas as partes do globo Ela visitara o Centro Desafio Jovem, demonstrando um interesse especial pelo meu trabalho. Eu lhe havia mostrado a cidade e as favelas. “Agradeço a Deus por ter tirado você destes cortiços”, disse-me ela. “Se um dia tiver um pro­blema grande demais para resolver, pode me tele­fonar .”
Pensei que devia tentar falar com ela, enquanto estivesse em Pittsburg, porque meu coração estava cada vez mais pesado. Contudo, fui levado pela grandiosidade do programa. Naquela noite, falando através do meu amigo Jeff Morales, que me acom­panhara como intérprete, dei meu testemunho pe­rante milhares de pessoas, no grande auditório. Depois do culto, jantamos em um pequeno restau­rante, mas, até então, não tivera oportunidade de falar a sós com a Srta. Kuhlman. Deixei assim Pittsburg, ainda mais frustrado com minha incapa­cidade de resolver meus problemas pessoais.
Em janeiro de 1964, o trabalho havia crescido muito e já não podíamos conservar as mulheres alo­jadas no terceiro andar do casarão da Av. Clinton, 416. Fizemos negociações para arranjar uma casa do outro lado da rua, para acomodar as mulheres. Eu já percebera algumas conspirações, lideradas por al­guns viciados que me vira obrigado a disciplinar. Além disto, tínhamos recebido várias lésbicas no Centro, que estavam causando grandes problemas. Eu temia constantemente que qualquer delas tentas­se seduzir alguma das estudantes inexperientes que nos ajudavam como conselheiras.
Cuidar de viciados era como tentar apagar um in­cêndio na floresta com uma toalha de banho molha­da. Cada vez que eu conseguia controlar um pequeno problema, outro maior surgia. Percebi que estava me deixando envolver pessoalmente, e quando um vicia­do em narcóticos voltou para o mundo, tomei aquilo como fracasso pessoal.
Glória advertiu-me sobre o erro de levar todo o peso sozinho, mas a responsabilidade pesava grande­mente em meus ombros.
Foi nessa época que Quetta chegou ao Centro. Fazia o papel de “homem” e fora certa vez “casada” com outra moça.
Vestia roupas de homem, calças, camisa, sapa­tos e até sua roupa de baixo era masculina. Tinha pouco mais de trinta anos, era dona de uma bonita pele e com cabelos muitos negros cortados como de homem. Era uma garota magra, esbelta e atra­ente, com personalidade marcante.
Quetta era uma das maiores traficantes de nar­cótico da cidade. Durante anos dirigira uma “galeria de picadas” no seu apartamento. Homens e mulhe­res iam ali, não só para comprar heroína, mas tam­bém para participar de orgias sexuais. Ela fornecia tudo o que era necessário: agulhas, recipientes para ferver a droga, heroína, comprimidos, e para os se­xualmente depravados: homens e mulheres. Era uma situação confusa.
Quando a polícia deu uma batida no apartamen­to de Quetta, prendeu doze pessoas, inclusive algu­mas prostitutas profissionais, e descobriu dez “apetrechos” (colheres, agulhas, e conta-gotas). Os po­liciais demoliram literalmente o apartamento, arran­cando o reboco das paredes, levantando as tábuas do assoalho, etc., até descobrir o seu esconderijo de drogas, que valia milhares de dólares.
Quetta veio para o Centro, enquanto estava em liberdade condicional. Expliquei-lhe as regras, e dis­se-lhe que devia vestir roupas de mulher e deixar o cabelo crescer. Além disto, nunca poderia ficar a sós com qualquer das outras ex-viciadas, a não ser acompanhada de uma de nossas auxiliares. Ela es­tava demasiado doente para discordar, e parecia es­tar alegre por ter se livrado das grades. Em menos de uma semana aceitou a Cristo, e apresentou todas as evidências externas de uma verdadeira conversão.
Contudo, logo cheguei à conclusão de que mes­mo a conversão pode ser fingida. Embora usásse­mos Quetta para testificar em muitos trabalhos ao ar livre, eu sentia que havia algo de falso nela.
Duas semanas mais tarde, uma das conselheiras veio procurar-me logo de manhã. Estava branca co­mo um lençol, e tremendo como vara verde.
“O que foi, Diane? Entre e sente-se.”
Diane era a mais nova de nossa equipe, uma ga­rota provinciana de Nebraska, que acabara de diplo­mar-se na Escola Bíblica.
“Não sei como contar-lhe, Nicky”, disse ela. “É sobre Quetta e Lilly.”
Lilly era uma viciada que viera para o Centro havia apenas uma semana. Estava freqüentando os cultos, mas ainda não se entregara ao Senhor. Senti os lábios secos. “O que houve com elas?” perguntei.
Diane enrubesceu e baixou a cabeça.
“Estavam juntas na cozinha, ontem, por volta de meia-noite. Aproximei-me delas e, Nicky, elas es­tavam ... estavam...” Sua voz embargou-se, devido à vergonha e ao acanhamento. “Não fui capaz de dormir a noite toda. O que podemos fazer?”
Levantei-me da cadeira e comecei a andar, me­dindo o escritório a passos.
“Volte ao prédio e diga-lhes que quero vê-las no meu escritório imediatamente”, decidi. “Este lugar é dedicado ao Senhor. Não podemos admitir que coisas assim aconteçam aqui.”
Diane saiu, e eu me sentei novamente, com a cabeça entre as mãos, orando desesperadamente, pe­dindo sabedoria.  Em que ponto eu falhara? Havíamos permitido que Quetta testificasse em nome do Centro. Os jornais tinham publicado sua história e dado muita publicidade. Ela falara até em igrejas, a respeito da transformação ocorrida em sua vida.
Esperei mais de uma hora, e depois saí, para ver o que estava acontecendo. Encontrei Diane na esca­da.
“Elas saíram. As duas. Ficaram com medo, e disseram que iam embora. Não pudemos impedi-las.”
Virei-me e entrei vagarosamente no Centro. Sen­tia a derrota pessoalmente — fora um golpe duro. Durante três dias Glória orou e conversou comigo, enquanto eu me sentia completamente desiludido com a minha aparente incapacidade de alcançar aquelas viciadas com a verdadeira mensagem de transformação.
“Nicky, o próprio Jesus teve fracasso entre os seus seguidores”, disse ela. “Lembre-se de todos os que têm sido fiéis, e que têm tido êxito. Lembre-se de Sonny, que está no Instituto Bíblico, estudando para ser pastor. Pense em Maria, e na maravilhosa transformação de sua vida. Lembre se do que Deus fez por você. Esqueceu-se da sua própria experiên­cia de salvação? Como é que pode duvidar de Deus e ficar desanimado com esses fracassos isolados?”
Glória tinha razão, mas eu me sentia incapaz de livrar-me daquele desânimo. A medida que o verão avançava, a sensação de culpa se avolumava. Julga­va-me um completo fracasso. Não havia comunica­ção entre mim e a maioria dos outros membros da equipe. Davi ainda acreditava em mim. mas eu per­cebia, aguda e dolorosamente, as constantes falhas do Centro. A tensão crescia. Glória continuou ten­tando tirar-me daquela atitude derrotista, mas tudo o que eu fazia era inteiramente negativo.
O único ponto alto foi a chegada de Jimmy Baez. Ele vivera “fisgado” pelos narcóticos durante oito anos. Entrou no Centro pedindo remédios, pensando que era um hospital.
“Não tem outro remédio aqui a não ser Jesus”, disse-lhe.
Pensou que eu estivesse louco.
“Puxa, pensei que isto fosse uma clínica. Vocês são uma cambada de birutas.” Olhou ao seu redor, desesperadamente, procurando sair do meu escritó­rio.
“Sente-se, Jimmy. Quero conversar com você. Cristo pode transformá-lo.”
“Ninguém pode me transformar”, resmungou. “Já tentei, mas não consigo.”
Levantei-me e aproximei-me dele. Colocando as mãos sobre sua cabeça, comecei a orar. Senti que ele estremecia, e de repente caiu de joelhos, claman­do a Deus. Daquela noite em diante nunca mais sentiu necessidade de outra “picada” de heroína.
“Veja”, observou Glória, quando lhe falei da con­versão de Jimmy, “Deus está mostrando que ainda pode ajudá-lo. Como é que você pode continuar du­vidando dele? Por que não pensar positivamente? Há vários meses que você não sai para os cultos notur­nos ao ar livre. Ponha-se a trabalhar para Deus, e sentirá a orientação do Espírito Santo, como sentia antes.”
Aceitei o conselho, e concordei em dirigir os cul­tos ao ar livre na última semana de agosto. Na pri­meira noite, armamos nossa plataforma em Brooklin, e comecei a pregar. Era uma noite quente e abafa­da, mas a vasta multidão estava atenta. Preguei com todas as forças, e senti que me saíra bem. Quando me aproximava do fim, fiz um apelo.
De repente, levantei os olhos e, na extremidade da multidão eu o vi. Seu rosto era inconfundível. Era Israel. Todos aqueles anos, eu orara, procurara, inquirira... e, de repente, ali estava ele, um rosto na multidão.
Meu coração pulou. Talvez Deus o tivesse man­dado de volta.   Senti o velho fogo derramar se em meu coração, enquanto fazia o apelo. Parecia que prestava bastante atenção, esticando o pescoço para ouvir as minhas palavras. O órgão portátil começou a tocar, e um trio feminino começou a cantar. Vi Israel virar-se para se afastar.
Pulei da plataforma e, às cotoveladas, abri ca­minho furiosamente entre a multidão, tentando al­cançá-lo antes que ele desaparecesse. “Israel! Israel!” gritei-lhe. “Espere! Espere!”
Ele parou e virou-se. Não nos víamos há seis anos. Tinha ganhado corpo e amadurecido. Mas o seu rosto harmonioso tinha a aparência de mármore cinzelado, e os seus olhos estavam fundos e tristes.
Abracei-o com força, e procurei arrastá-lo de vol­ta para a reunião. Ele resistiu e permaneceu imóvel.
“Israel”, gritei, transbordando de alegria, “é você mesmo?” Dei um passo atrás, agarrei os seus om­bros, olhando para ele. “Por onde tem andado? Onde você está morando? O que está fazendo? Conte-me tudo. Por que não me telefonou? Tenho procurado você em todos os cantos de Nova York. Hoje é o me­lhor dia da minha vida.”
Seus olhos estavam distantes e frios; sua manei­ra, estranha e retraída. “Preciso ir, Nicky. Tive mui­to prazer em ver você de novo.”
“Precisa ir? Faz seis anos que não nos vemos. Tenho orado todos os dias por você. Você vai para casa comigo.” Comecei a puxá-lo, mas ele sacudiu a cabeça e retirou o braço. Pude sentir os músculos fortes enrijecendo sob a sua pele.
“Outro dia, Nicky. Hoje não.” Tirou minha mão do seu ombro, e começou a afastar-se.
“Ei, espere um minuto. O que é que há com você? Você é o meu melhor amigo. Não pode ir em­bora assim.”
Virou-se e quase me congelou com um olhar gé­lido daqueles olhos inflexíveis, cinzentos como o aço.
“Mais tarde, Nicky”, disse ele entre os dentes. Virou-se abruptamente e desceu rua abaixo, para a escuridão.
Piquei imóvel pela surpresa, e chamei-o desespe­radamente. Mas ele nem se virou. Continuou an­dando, e retornou à penumbra de onde viera.
Voltei alquebrado para o Centro. Arrastei-me es­cada acima, até o terceiro andar, e fechei a porta atrás de mim, em um dos quartos do sótão. “Se­nhor”, gritei com voz agoniada, “o que é que eu fiz? Israel está perdido, e a culpa é minha. Perdoa-me.” Caí no chão e passei muitos minutos chorando incontrolavelmente. Dava socos desesperados na pa­rede. Não recebi resposta. Durante duas horas fiquei no sótão abafado, exaurindo-me física, emocio­nal e espiritualmente.
Eu sabia que iria deixar o Centro.   Sentia que o meu ministério estava terminado. Eu era um fra­casso em tudo o que tentava fazer.  Tudo em que eu tocava, terminava mal. Quetta. Lilly. Agora, Is­rael. Não adiantava ficar lutando contra os proble­mas crescentes que não podia vencer. Não adiantava continuar no ministério. Eu estava arrasado. Derro­tado. Fulminado. Pus-me de pé e fiquei olhando pela janelinha do sótão, para o céu escuro. “Senhor, estou derrotado.  Eu errei.   Tenho confiado em mim mesmo, e não em ti. Se é esta a razão pela qual tu permitiste que isto acontecesse, estou disposto a con­fessar o meu terrível pecado. Humilha-me. Mata-me, se necessário. Todavia, Deus querido, não me lances no lixo.”
Sacudia-me em soluços. Encostei-me à porta, olhando para o quarto. Silêncio. Eu não sabia se ele me ouvira ou não. Mas naquele momento, pouca diferença fazia. Eu já fizera tudo o que sabia.
Desci de novo as escadas, e fui para o meu apar­tamento. Glória já tinha posto o nenê na cama, e es­tava arrumando a cozinha. Fechei a porta e enca­minhei-me para a cadeira. Antes que eu pudesse sen­tar, ela estava à minha frente. Seus braços rodea­ram-me a cintura, e ela me atraiu para si. Não sa­bia nada do que acontecera na rua ou no sótão, mas porque somos uma só carne, ela pôde perceber que eu fora ferido, e estava ao meu lado para sustentar o meu espírito abatido, e me dar forças na hora da necessidade.
Apertei-a contra mim, e escondi o rosto no seu ombro, enquanto as lágrimas começavam a cair de novo. Durante muito tempo ficamos ali, abraçados um ao outro, meu corpo sacudido pelos soluços. Por fim o choro passou, e levantei-lhe o rosto com ambas as mãos, olhando profundamente nos seus olhos. Estavam cheios de lágrimas, como fontes pro­fundas, jorrando água, da terra pura. Mas, não cho­rava. Ela estava sorrindo, embora fracamente. E o amor que fluía do seu coração transbordava dos seus olhos, enquanto as lágrimas gotejavam e cor­riam em pequenos regatos pela face bronzeada.
Apertei o seu rosto com as mãos. Ela estava lin­da. Mais linda do que nunca. Glória sorriu, e então os seus lábios se abriram, quando ela se aconchegou a mim em um beijo suave e demorado. Pude sentir o sal das minhas próprias lágrimas, e a quentura úmida da sua boca contra a minha.
“Pronto, Glória, terminou. Vou embora. Pode ser que eu tenha ficado orgulhoso. Talvez tenha pecado. Não sei, mas sei que o Espírito afastou-se de mim. Estou como Sansão. ao sair para guerrear os filis­teus, sem o poder de Deus. Sou um fracasso. Arruíno todas as coisas em que toco.”
“O que é, Nicky?” Sua voz era macia e suave. “O que aconteceu?”
“Vi Israel hoje. Pela primeira vez depois de seis anos, vi o meu melhor amigo. Ele me deu as costas. A culpa dele ser o que é, cabe a mim. Se eu não o tivesse deixado sozinho na cidade, há seis anos atrás, ele estaria trabalhando hoje ao meu la­do. Em vez disso, passou cinco anos na prisão, e está perdido. Deus não se importa mais.”
“Nicky, isto é quase uma blasfêmia”, disse Gló­ria, com voz ainda suave. “Você não pode culpar-se pelo que aconteceu a Israel. Naquela manhã em que saiu da cidade, não passava de um garoto amedron­tado. Não foi sua a culpa de não ter encontrado Is­rael. Está errado ao culpar-se a si próprio. Como tem coragem de dizer que Deus não se importa mais? Ele se importa. Ele se importou o suficiente para salvá-lo."
"Você não compreende" disse eu, movendo a ca­beça. "Desde que Davi me contou que Israel voltou para a quadrilha, culpei-me a mim mesmo. Tenho carregado o peso da culpa em meu coração. Esta noite eu o vi, e ele virou-me as costas. Nem quis falar comigo. Se você tivesse visto a dureza do seu semblante!"
"Mas, Nicky, você não pode desistir agora, jus­tamente quando Deus está começando a operar..."
"Amanhã vou me demitir", interrompi. "Meu lu­gar não é aqui. Meu lugar não é no ministério. Não sou suficientemente bom. Se eu ficar, todo o Cen­tro Desafio Jovem vai ser destruído. Sou como Jonas. Pode ser que ainda esteja fugindo de Deus, e não saiba disso. Eles precisam lançar-me ao mar, para que um peixe me coma. Se não se livrarem de mim, o barco inteiro vai afundar."
"Nicky, que conversa louca! Satanás é quem está fazendo você ficar assim", disse Glória, quase cho­rando. Afastei-me dela.
"Tem razão, Satanás está em mim. Mas eu vou renunciar."
"Nicky, pelo menos fale com Davi primeiro."
"Já tentei, centenas de vezes. Mas ele sempre está ocupado demais. Acha que eu posso resolver tudo sozinho, mas está errado. Não agüento mais. Sou incapaz, e já é tempo de admiti-lo. Sou um fra­casso ...  um fracasso."
Depois que fomos deitar, Glória passou o braço em torno da minha cabeça e acariciou meu pescoço.
"Nicky, antes de renunciar você me promete uma coisa? Você telefona para Kathryn Kuhlman e con­versa com ela?"
Acenei que sim, com a cabeça. Meu travesseiro estava molhado de lágrimas, e ouvi Glória murmu­rar: "Nicky, Deus vai tomar conta de nós."
Enterrei a cabeça no travesseiro, pedindo a Deus que não me permitisse ver o sol despontar outro dia, em minha vida.
Naqueles dias de trevas e indecisão, só uma es­trela brilhante surgiu, na forma daquela senhora majestosa, que parecia transpirar a própria presença do Espírito Santo. Só o fato de conversar com a Srta. Kuhlman, pelo telefone, no dia seguinte, parece que ajudou. Ela insistiu para que eu fosse a Pittsburg, com as despesas pagas por ela, antes de tomar uma decisão final.
Na tarde seguinte, tomei o avião para Pittsburg. Fiquei surpreso quando ela não procurou forçar-me a ficar no Centro.  Em vez disso, declarou:
"Talvez Deus esteja dirigindo você para um mi­nistério diferente, Nicky. Pode ser que ele o esteja levando pelo vale das sombras, a fim de que possa sair ao sol, do outro lado. Tão somente, conserve os olhos em Jesus. Não fique amargurado nem desa­nimado. Deus pôs a mão sobre você, e não vai aban­doná-lo agora. Lembre-se, Nicky, quando passamos pelo vale da sombra, ele está conosco."
Oramos e ela pediu que, se fosse da vontade de Deus que eu deixasse o Centro Desafio Jovem, que ele conservasse aquela nuvem de desânimo ao meu re­dor. Se quisesse que eu permanecesse, dissipasse a nuvem, para que eu me sentisse disposto a ficar em Nova York.
Voltei à cidade na manhã seguinte, grato pela amizade e confiança daquela senhora cristã, gentil e dinâmica.
Naquela noite, depois que o nenê dormiu, sen­tei à mesa da cozinha e conversei outra vez com Gló­ria. Eu queria mesmo sair. Começaríamos tudo de novo, talvez na Califórnia. Glória disse que me se­guiria onde quer que eu fosse. O seu grande amor e  sua confiança davam-me novas  forças.  Antes de ir para a cama, peguei um pedaço de papel e uma caneta, e escrevi meu pedido de demissão.
Foi um fim de semana horrível. Na segunda-feira cedo, quando Davi chegou ao Centro, estendi-lhe meu pedido de demissão, e esperei enquanto ele lia.
Ele baixou a cabeça.
“Fui eu quem falhei com você, Nicky?” perguntou suavemente. “Será que eu estava tão ocupado que não fiquei aqui o tempo suficiente, quando você pre­cisou de mim? Venha ao meu escritório; vamos con­versar .”
Segui-o silenciosamente pelo saguão, e entramos no escritório. Ele fechou a porta, e encarou-me com um semblante profundamente aflito.
“Nicky, não sei o que está por trás de tudo isto. Mas sei que, em grande parte, sou culpado. Todos os dias tenho me repreendido por não passar mais tempo com você. Vivo correndo, levantando dinhei­ro para o Centro. Não tenho tido tempo nem para a minha família. Sinto em meus ombros o pesado fardo da responsabilidade. Então, antes de conver­sarmos, quero pedir-lhe que me perdoe por ter fa­lhado com você.  Você me perdoa, Nicky?”
Baixei a cabeça, e meneei-a silenciosamente. Davi suspirou fundo, e caiu na cadeira.
“Vamos conversar, Nicky.”
“É tarde demais para conversar, Davi. Várias vezes procurei falar-lhe. Sinto que é isto que eu de­vo fazer.”
“Mas, por que, Nicky? O que causou esta deci­são repentina?”
“Não é repentina, Davi. Está sendo preparada há muito tempo.” Aí, então, abri o coração diante dele.
“Nicky”, disse Davi, com os olhos penetrantes fixos em mim, “todos nós passamos por esses perío­dos de depressão. Eu já decepcionei algumas pes­soas, e já fiquei decepcionado com outras. Pensei em desistir várias vezes. Freqüentemente, tenho me sentido como Elias, debaixo de um zimbro, gritando:
“Basta; toma agora, Senhor, a minha alma.” Contu­do, Nicky, você entrou em lugares onde os anjos te­meriam andar. Não consigo imaginá-lo fugindo des­tas pequenas derrotas.”
“Elas não são pequenas para mim, Davi. Já re­solvi.  Desculpe.”
No dia seguinte, Glória e Alicia embarcaram de avião para Oakland, e dois dias depois voei até Houston, para cumprir o meu último compromisso, pre­gando naquela cidade. Estávamos em agosto de 1964. Eu passara dois anos e nove meses no Centro De­safio Jovem.
Em Houston, fiquei meio envergonhado de con­tar que saíra do Centro. A minha pregação, porém, foi fria e ineficaz. Estava ansioso para seguir para a Califórnia e encontrar-me com Glória.
Enquanto voava através do país, apercebi-me de que não estava mais viajando por conta do ministé­rio. Havíamos economizado muito pouco, e as pas­sagens de avião e despesas de mudança iriam deixar-nos sem dinheiro. Fiquei assustado. Inseguro. Com medo.
Lembrei-me das vezes em que pessoas tinham tentado colocar dinheiro em minhas mãos, quando pregara em concentrações e conferências. Eu agra­decia, e mandava que fizessem um cheque em nome do Centro Desafio Jovem. Nada queria para mim. Toda a minha vida fora dedicada ao Centro. Pare­cia irônico que até mesmo em Houston eu tinha con­tinuado a dizer, aos que queriam contribuir, que fi­zessem os cheques em nome do Centro Desafio Jo­vem, sabendo que eu mal tinha dinheiro para viver, nos dias seguintes.
Glória foi encontrar-se comigo no aeroporto. Ela alugara um apartamento pequeno. Estávamos “que­brados” e deprimidos. Eu dera a Deus quase seis anos da minha vida, e sentia que ele me voltara as costas. Pretendia desistir, deixar o ministério, e co­meçar da estaca zero, em alguma outra atividade. O sol mergulhou no Oceano Pacífico, e todo meu mun­do afundou na escuridão.
Não sabia para onde me voltar. Percebi que es­tava me afastando de tudo. Não queria ir à igreja com Glória, preferindo ficar sentado em casa, olhan­do para as paredes. Glória tentou orar comigo, mas eu me sentia desanimado e afastava-a de mim, di­zendo que ela podia orar, mas, quanto a mim, sentia-me vazio.
Dentro de algumas semanas, espalhou-se a notí­cia de minha volta à Califórnia. Começaram a che­gar convites para falar nas igrejas. Logo me cansei de dizer “não” e de inventar desculpas. Finalmente, disse a Glória para não atender mais interurbanos, e não responder às cartas.
Nossa situação financeira era, porém, desespera­dora. Havíamos gastado todas as economias, e Glória não conseguira achar emprego.
Como último recurso, aceitei um convite para pregar em uma cruzada para jovens. Estava espiri­tualmente frio. Pela primeira vez na vida, subi ao púlpito sem orar. Sentado na plataforma, admirei minha própria dureza e frieza. Fiquei chocado com a minha atitude mercenária. Não obstante, estava desesperado. Se Deus me deixara cair, como eu sen­tia que ele o fizera, em Nova York, então não me sentia obrigado a buscar a sua bênção para pregar. Se me pagassem, eu aceitaria. Era simplesmente isso.
O Senhor, todavia, não considerava as coisas as­sim tão simples. Ele tinha planos muito mais eleva­dos para mim, mais do que apenas receber um cheque como pagamento pela pregação. Pregar Cristo é coi­sa sagrada — e ele prometeu: “Minha palavra... não voltará para mim vazia.”
Quando fiz o apelo, algo aconteceu. Primeiro, um jovem saiu do meio da multidão e aproximou-se, ajoelhando-se diante do altar. Depois, outro veio do canto mais afastado do auditório. Outros ainda vie­ram à frente, e os corredores ficaram cheios de jo­vens dirigindo-se ao altar, ajoelhando-se defronte do gradil e entregando suas vidas a Cristo. Tão grande era o número de jovens ali na frente, que muitos precisaram ficar de pé, atrás dos que se ajoelharam diante do gradil superlotado. No fundo da igreja, vi gente caindo de joelhos e clamando a Deus. Outros continuavam se apresentando. Nunca estivera em um culto em que o Espírito de Deus caísse sobre a con­gregação com tanto poder.
O Senhor procurava dizer-me algo, não baixinho, sussurrando, mas com voz trovejante. Dizia-me que ainda estava no seu trono, relembrando-me que, em­bora eu o decepcionasse, ele não me decepcionava. Estava me dizendo, em termos inconfundíveis, que não terminara sua obra em minha vida... e que ain­da queria usar-me, embora eu não estivesse disposto a ser usado.
Senti os joelhos tremerem, e tentei segurar-me no púlpito. De repente, meus olhos encheram-se de lágrimas e eu, o pregador da noite, caí para a fren­te, de joelhos diante do gradil. Ali, com o coração cheio de arrependimento, derramei a alma perante o meu Deus, numa nova dedicação a ele.
Depois do culto, Glória e eu entramos no carro que estava estacionado no pátio da igreja. Havíamos planejado sair para lanchar e depois dar um passeio de carro. Em vez disso, concordamos em ir para ca­sa.
Quando entramos, caí de joelhos. Glória ajoe­lhou-se ao meu lado, e nós dois choramos e clama­mos a Deus. E eu sabia. Sabia que havia mais ain­da. Sabia que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus. Abri os olhos, e através das lágrimas, vi que ele estava ao meu lado. Podia sentir a sua presença. Quase podia ouvir as palavras: Sim, “ainda que eu ande pelo vale da sombra da mor­te, não temerei mal nenhum, porque tu estás comi­go: a tua vara e o teu cajado me consolam...” Salmo 23.
Havíamos atravessado o vale da sombra da mor> te, mas a sua graça nos guiara, e agora a luz do sol já coroava o pico das montanhas distantes, anuncian­do o alvorecer de um novo dia.