sábado, 24 de abril de 2021

Foge Nick Foge 16 - Com Cristo no Harlem



Capítulo 16

COM CRISTO NO HARLEM

DAVI VIAJAVA A MAIOR parte do tempo, recru­tando obreiros para trabalhar durante o verão, e levantando dinheiro para o Centro. À medida que o tempo passava, ele tinha cada vez menos contato pessoal com os viciados, e descobriu que estava fa­zendo o papel de administrador — papel esse que não queria assumir, mas que lhe fora imposto pelas circunstâncias.
A maior parte do nosso trabalho era feito atra­vés dos cultos ao ar livre, e de encontros casuais na rua. Quase todas as tardes armávamos nossa plataforma e nosso serviço de alto-falantes em algum bairro pobre da cidade.
Certa tarde, Mário e eu levamos um pequeno grupo em nossa Kombi, até o coração do Harlem Espanhol. Distribuíamos folhetos, procurando reu­nir uma multidão para um culto ao ar livre, mas estávamos  tendo pouco  êxito.
Mário me disse: “Vou buscar gente.”
“Hoje não dá”, respondi. “Ninguém está inte­ressado. Acho que é melhor desarmar tudo e ir para casa.”
“Não”, disse Mário, “nós vamos conseguir gente para ouvir. Você e os outros podem começar a colocar os alto-falantes nos lugares. Em menos de uma hora vamos ter o maior culto ao ar livre.”
“Rapaz, como é que você pensa que vai realizar um culto, sem gente? Hoje eles não estão mesmo interessados.”
“Não se preocupe. Deixe que eu resolvo isto”, disse Mário.
Rindo timidamente, ele saiu correndo rua abaixo e virou a esquina.
Começamos a montar o equipamento. Era uma verdadeira aventura de fé. Eu me sentia como Noé, construindo a arca no alto da montanha seca. Mas continuamos a trabalhar, esperando que Deus pro­videnciasse a chuva.
E ele providenciou. Quinze minutos depois ha­víamos terminado, e eu estava de volta à esquina. distribuindo folhetos, quando vi um enorme grupo de rapazes correndo pela rua, na minha direção. Estavam agitando porretes e tacos de beisebol, e gritavam com todas as forças. Virei me e ia voltar para a plataforma, quando vi novo grupo de rapa­zes vindo de outra direção, gritando e agitando por­retes. “Preciso cair fora daqui”, pensei, “esses ra­pazes vão ter um “quebra-pau.” Mas era tarde de­mais! Fui rodeado pela turma que gritava e dava cotoveladas.   Fiquei esperando pela briga.
De repente, vi Mário correndo por uma travessa que havia no meio do quarteirão, gritando a plenos pulmões: “Ei turma, o chefe da terrível quadrilha dos Mau-Maus, de Brooklin, vai falar dentro de quinze minutos. Venham ouvi-lo. Venham ouvir o grande Nicky Cruz, o sujeito mais perigoso de Brooklin. Venham preparados. Ele é um matador, e ainda é perigoso.”
Os rapazes derramavam-se dos apartamentos, descendo pelas escadas de emergência, e correndo em minha direção. Enxameavam ao meu redor, e gritavam: “Onde está o Nicky? Quero vê-lo. Onde está o chefe dos Mau-Maus?”
Mário   chegou, com  um sorriso   que ia até as orelhas. “Você viu? Eu disse que conseguiria uma multidão.”
Olhamos ao nosso redor. Ele havia reunido uma turba de tamanho respeitável. Devia haver uns trezentos rapazes rodeando-nos, no meio da rua.
Balancei a cabeça. “Só espero que não sejamos todos mortos. Puxa, esses rapazes parecem ter­ríveis .”
Mário ainda estava rindo, ofegante, por causa da corrida. “Vamos, pregador, sua congregação está esperando.”
O suor escorria-lhe pelo rosto, mas ele trepou até a plataforma, agarrou o microfone e levantou a mão, pedindo silêncio. Os rapazes ouviram-no falar, à semelhança de um camelô de feira, “enro­lando” o auditório antes de apresentar o show.
“Senhores e senhoras. Hoje é um grande dia. O chefe da terrível e famosa quadrilha Mau-Mau vai falar a vocês... O homem mais perigoso de Nova York. Ele é temido tanto por moços como por velhos. Só que agora não é mais o chefe. É ex-chefe. Esta tarde vai contar-lhes porque não está mais na gang, e porque está associado a Jesus. Apre­sento a vocês NICKY CRUZ, o primeiro e único, ex-chefe dos Mau-Maus.”
Estava gritando quando terminou. Pulei para a plataforma, ficando por trás do microfone. Os garotos na multidão começaram a gritar e bater palmas. Fiquei de pé na plataforma, sorrindo e acenando com a mão, enquanto eles aplaudiam. Muitos deles me conheciam ou haviam lido a meu respeito nos jornais. Cerca de duzentos adultos ti­nham-se reunido por trás da multidão de adoles­centes. Dois carros da polícia pararam, um de cada lado do povo.
Levantei os braços. Os gritos, assobios e aplau­sos diminuíram. Em um instante a turba estava silenciosa.
Senti-me fortemente ungido pelo Espírito Santo, quando comecei a pregar. As palavras saíram livre­mente, sem dificuldade. “Eu era o chefe dos Mau-Maus. Estou percebendo que vocês já ouviram falar de mim.” Outra vez a multidão irrompeu em aplau­sos espontâneos. Levantei os braços, e pedi silêncio. “Quero contar-lhes porque sou ex-chefe dos Mau-Maus. Sou ex-chefe porque Jesus transformou meu coração! Um dia, em uma reunião de rua exata­mente igual a esta, ouvi um pregador falar de alguém que podia transformar minha vida. Ele me disse que Jesus me amava. Eu não sabia quem era Jesus, e sabia que ninguém me amava. Mas Davi Wilkerson disse que Jesus me amava. Agora a minha vida está mudada. Eu me entreguei a Deus, e ele me deu uma nova vida. Eu era igual a vocês: vivia cor­rendo pelas ruas. Dormia nos telhados. Fui expulso da escola por causa de briga. A polícia estava atrás de mim, e fui preso muitas vezes, e muitas vezes dormi na cadeia. Eu estava com medo. Mas, então, Jesus transformou minha vida. Ele me deu um alvo para o qual eu agora vivo. Ele me deu esperança. Ele me deu um novo objetivo na vida. Eu não fumo mais maconha, nem brigo, nem mato. Não fico mais acordado de noite, com medo. Não tenho mais pesadelos. Agora as pessoas conversam comi­go quando eu passo. A polícia me respeita. Estou casado, e tenho uma filhinha. Porém, o que é mais importante de tudo, sou feliz e não vivo mais fu­gindo de tudo e de todos.”
A multidão estava silenciosa e atenta. Terminei a mensagem e fiz um apelo para os que queriam aceitar a Cristo.
Vinte e dois atenderam ao apelo, e ajoelharam-se defronte à multidão, enquanto eu orava.
Terminei a oração, e levantei os olhos. Os poli­ciais tinham saído dos carros, e estavam de pé, com os quepes na mão, e as cabeças curvadas. Virei o rosto para o céu.   O sol brilhava no Harlem...
O Harlem Espanhol tornou-se nosso lugar pre­dileto para cultos ao ar livre.  Parecia que ali éramos capazes de atrair multidões maiores, e a necessida­de do evangelho era mais aparente do que em qual­quer outro lugar em que havíamos pregado. Eu não me cansava de lembrar à nossa equipe que “onde abundou o pecado, superabundou a graça”.
Glória teve dificuldades em aceitar o Harlem Espanhol. Ela não conseguia acostumar-se com o cheiro. Procurava não agir de forma antipática, mas algumas das feiras livres eram quase demais para o seu estômago. Até para mim, era difícil acostu­mar-me com as moscas que enxameavam sobre a carne, as frutas e vegetais.
Além disto, havia o cheiro dos viciados. Pare­ciam desprender um mau cheiro. E quando agru­pados, principalmente sob o calor do verão, era quase insuportável ficar perto deles.
Aprendemos muito durante aqueles primeiros meses de pregação nas ruas. Aprendemos que as pessoas que tinham mais êxito eram as que haviam saído das ruas, e podiam apresentar um testemunho de primeira mão a respeito do poder transformador de Jesus Cristo. Eu não tinha tanto êxito, ao pregar para viciados em entorpecentes quanto os que tinham sido viciados. Descobrimos que esses eram nossos melhores pregadores. Seus testemunhos, honestos e minuciosos, causavam um impacto tremendo nos outros viciados. Começamos a levá-los conosco sempre que íamos pregar nas ruas. Contudo, isto também trouxe problemas.
Muitas vezes, durante os cultos de pregação nas ruas, os viciados que se aglomeravam procuravam tentar e provocar nossos auxiliares. Acendiam um “pacau” em frente deles, e deliberadamente sopra­vam a fumaça em seus rostos. Cheguei a ver um homem tirar uma agulha e um pacote de heroína, e agitá-los na cara de um de nossos obreiros que se livrara das drogas, dizendo: “Ei, menino, não sente falta disto? Rapaz, isto é que é vida. Precisa expe­rimentar.” A tentação era quase  irresistível,  mas aquelas vidas   estavam  protegidas  pelo  escudo da força de Deus.
Descobri que Maria, particularmente, não tinha acanhamento de levantar-se diante de um grupo dos seus antigos colegas, prostitutas e viciados, e dar testemunho da graça de Deus. O seu testemunho simples levou, várias vezes, os ouvintes até às lá­grimas, quando falava de um Deus que é um amigo íntimo e pessoal. Um Deus que, na pessoa do seu filho Jesus Cristo, palmilhou as duras estradas da Palestina, tocando nos pecados do povo e libertando-o deles. A maior parte daquela gente jamais soubera da existência de um Deus assim. O Deus de quem ouviam falar, se é que conheciam algum, era um juiz severo que abomina o pecado e fustiga as pessoas, colocando-as na linha, como um policial. Ou, talvez, identificavam Deus com as igrejas frias e  formais que  tiveram oportunidade  de  observar.
Certo dia, um ex-membro de quadrilha, um jovem de cor que fora viciado em heroína, estava dando testemunho a respeito da sua infância. Con­tou que fora obrigado a fugir de casa aos treze anos, porque o apartamento era muito apertado. Falou dos diversos homens que viveram com sua mãe. Contou como dormira nos telhados e no metrô. Afirmou que precisara surrupiar comida, mendigar e roubar. Ele não tinha casa de espécie alguma, e usava os telhados ou ruelas como latrina. Estava vivendo como um animal selvagem, na selva das ruas.
Enquanto falava, uma velha senhora, na extre­midade da multidão, começou a chorar. Seu choro tornou-se quase histérico, e eu rodeei o povo para chegar até ela. Quando conseguiu dominar-se, ela me disse que aquele rapaz poderia ser seu filho. Ela tivera cinco filhos que haviam abandonado o lar, e viviam exatamente conforme a descrição dele, nas ruas da cidade. O seu sentimento de culpa era maior do que podia suportar. Reunimo-nos ao seu redor, e oramos a seu favor.    Ela  levou a cabeça para trás e olhou para os céus, pedindo que Deus a perdoasse e protegesse seus filhos, onde quer que eles estivessem. A pobre mulher encontrou paz junto a Deus naquela tarde, mas o dano causado aos filhos já estava feito. Em milhares de outros casos, ocorria o mesmo. Sentíamos como se esti­véssemos procurando esvaziar o oceano com uma colher de chá. Não obstante, sabíamos que Deus não esperava que ganhássemos o mundo — apenas que testificássemos e fôssemos fiéis. E esse era o nosso alvo.
Na quinta-feira, tarde da noite, preparamos um culto ao ar livre na esquina de uma escola, no Harlem Espanhol. O verão estava quente, e uma grande multidão reuniu-se para ouvir os alegres corinhos em espanhol, e a música evangélica de ritmo acele­rado  que fluía de nossos  alto-falantes.
A multidão estava inquieta e nervosa. Quando a música chegou a um ritmo mais acelerado, alguns de nossos rapazes e moças colocaram-se defronte ao microfone e começaram a cantar, bater palmas, e marcar o ritmo. A um lado, todavia, eu notei uma perturbação. Um grupo de “pequenos” estava dan­çando ao som da música. Eram cerca de cinco ou seis “pequenos”, gingando em plena rua, bamboleando as cadeiras e sapateando. Algumas pessoas tiveram sua atenção desviada para eles e começa­ram a aplaudi-los, rindo e batendo palmas com eles, acompanhando o ritmo. Deixei o lugar onde esta­va, e rodeei o povo, em direção ao grupo. “Ei, me­ninos, por que vocês estão dançando aqui? Aqui é território de Jesus!”
Um deles disse: “Aquele homem lá pagou para nós dançarmos. Veja, ele nos deu dez centavos.” Apontaram para um moço magro, de cerca de vinte e oito anos de idade, que estava na extremidade da multidão. Dirigi-me a ele para conversar. Ele viu que eu me aproximava e começou a saracotear, no ritmo da música.
Procurei falar com ele, mas continuou  dançando, sapateando, e sacudindo   as   cadeiras,   dizendo: “Meu chapa, isso é música pra frente, cha-cha-cha.”
Girava em torno de si mesmo, e batia com as mãos nos quadris. Cantava sacudindo as cadeiras e a cabeça como um louco: “Bi-bop, cha-cha-cha... dum-di-dum-dum... dança, meu chapa, dança.”
Finalmente consegui sua atenção: “Ei, cara, quero perguntar-lhe  uma  coisa.”
Ele continuou da mesma forma, dançando no ritmo da música: “Sim, paizinho, o que é que você quer? O que é que você quer?... Bi-bop, di-dum-dum... o que é que você quer?”
Eu disse: “Você deu dinheiro àqueles garotos para que eles dançassem e atrapalhassem nossa reunião?” Minha paciência estava começando a acabar.
Girando ainda, respondeu: “É isso mesmo, meu chapa; você está falando com o cara certo. Sou o homem... da-da-di-da...” Dava estalos com a língua e sapateava, levantando os pés à sua frente, en­quanto girava.
Pensei que ele estivesse louco. “Por quê?” gritei-lhe.   “O que há de errado com você, afinal?”
“Porque não gostamos de vocês. Não gostamos de crentes. Não. Não. Não. Não gostamos de crentes.   Da-da-dum-di-dum.”
Perdi a calma. “Pois bem, seu”, disse, cerrando os punhos e avançando para ele, “vamos continuar este culto, e você vai calar a boca, ou então eu vou lhe dar uma surra, e você vai ficar quieto a força.”
Ele viu que eu falava sério, mas seu orgulho não lhe permitia acabar com a brincadeira imedia­tamente. Pôs a mão na boca fingindo surpresa, e arregalou os olhos, fingindo terror. Mas parou de dançar e  calou-se.
Voltei ao microfone e preguei naquela tarde a respeito das minhas experiências de adolescente em Nova York. Testifiquei a respeito da sujeira, da pobreza, da vergonha e do pecado que existiram em minha vida.   Em seguida, preguei sobre a culpa dos pais que permitem que seus filhos cresçam em tal pecado. Roguei-lhes que dessem um bom exemplo para os filhos.
Enquanto eu falava, alguns tiraram o chapéu. Este é um dos melhores sinais de reverência e res­peito. Notei lágrimas nos olhos de muitas pessoas, e vi alguns lenços aparecerem. Percebi que o Espí­rito e o poder de Cristo estavam operando de ma­neira especial, mas não previ o impacto que ele pro­duziria alguns momentos depois.
Enquanto pregava, notei um velho, claramente embriagado, chorando no meio de todo aquele povo. Uma mocinha, que estava na frente, escondeu a face nas mãos e ajoelhou-se na rua, com os joelhos nus sobre o pavimento duro e sujo. Uma de nossas auxiliares deixou o grupo e ajoelhou-se ao lado da menina, orando com ela. Quanto a mim, continuei a pregar.
Era evidente que o poder do Espírito de Deus estava naquela reunião. Quando terminei a prega­ção e fiz o apelo, notei um viciado em narcóticos, na extremidade da multidão, em grande agonia es­piritual . Ele enfiou a mão no bolso da camisa, tirou vários pacotinhos, e atirou-os na rua, aos seus pés. Começou a gritar, sapateando nos pequenos envelo­pes brancos. “Maldito, pó imundo. Você arruinou a minha vida. Levou minha esposa embora. Matou meus filhos. Mandou minha alma para o inferno. Maldito! Maldito!”
Caiu de joelhos no chão, chorando e balan­çando-se para a frente e para trás, com o rosto nas mãos. Um de nossos obreiros correu para o lado dele. Dois dos nossos ex-viciados rodearam-no, um com a mão sobre a sua cabeça, e o outro ajoelhado, todos orando em voz alta enquanto ele gritava pe­dindo perdão.
Oito ou nove viciados em entorpecentes vieram à frente e ajoelharam-se na rua, diante do microfo­ne. Fui de um para o outro impondo as mãos em suas cabeças e orando por eles, completamente esquecido do barulho do trânsito intenso e dos olha­res dos transeuntes curiosos.
Depois do culto, demos uma palavra em parti­cular a cada um dos que haviam aceitado a Cristo, e falamos a respeito do Centro. Nós os convidamos para morar conosco, enquanto se livravam do vício. Sempre havia alguns que se dispunham a nos seguir imediatamente. Outros hesitavam e recusavam-se. Outros apareciam dentro de uma semana ou mais, e pediam para serem admitidos.
Quando a multidão se dissolveu, reunimos nosso equipamento e começamos a guardá-lo na Kombi. Um dos meninos que estivera dançando na rua, co­meçou a puxar a manga do meu paletó. Perguntei-lhe o que queria, e ele disse que o “dançador” queria falar comigo. Perguntei-lhe onde estava o homem, e ele apontou para um beco escuro, do outro lado da rua.
A noite já caíra, e eu não sentia vontade de entrar num beco escuro onde se escondia um louco. Disse ao garoto para avisar ao homem que eu teria prazer em conversar com ele — ali, debaixo das luzes da rua.
O garoto saiu correndo, e voltou dentro de ins­tantes. Já havíamos quase terminado de desmontar nosso equipamento. Ele balançou a cabeça e disse que o homem precisava conversar comigo, mas es­tava muito envergonhado para encontrar-me no claro.
Comecei a dizer ao garoto: “Nada feito”, mas, repentinamente, lembrei-me de Davi Wilkerson procurando-me no porão onde eu fora esconder-me, depois do primeiro culto ao ar livre. Lembrei-me de como ele entrou sem medo e disse: “Nicky, Jesus ama você”. Aquela coragem e compaixão me leva­ram a aceitar a Cristo como meu salvador.
Assim, olhando para o céu escuro, disse ao Se­nhor que, se ele queria que eu fosse conversar com aquele “dançador” selvagem, faria a sua vontade. Mas ia no seu Espírito, e não em minha própria força e poder, e estava esperando que ele fosse adiante de mim — principalmente por ser naquela ruela escura.
Atravessei a rua e parei na entrada do beco. Era como a entrada de um túmulo. Murmurei uma oração: “Senhor, espero que tenhas entrado aqui antes de mim”, e entrei. Apalpando as paredes de alvenaria, mergulhei na escuridão.
Ouvi então o som amortecido de alguém solu­çando. Avancei, e na penumbra pude ver o homem agachado no meio de algumas latas de lixo mal­cheirosas. Tinha a cabeça entre as pernas e o seu corpo era sacudido por soluços convulsivos. Apro­ximei-me e ajoelhei-me a seu lado. O cheiro rançoso das latas de lixo era insuportável. Mas havia ali um ser humano em desespero, e o desejo de ajudá-lo foi maior do que a podridão reinante no beco.
“Ajude-me. Por favor,  ajude me”, soluçava  ele. “Li a seu respeito no jornal.   Ouvi falar que você se converteu e foi para a Escola Bíblica. Por favor, ajude-me.”
Não podia crer que aquele era o mesmo homem que apenas alguns minutos antes estava dançando e cantando na rua, procurando atrapalhar nossa reunião. “Será que Deus me perdoa? Diga-me, será que eu me distanciei demais dele? Será que ele me perdoa?   Por favor, ajude-me.”
Disse-lhe que Deus o perdoaria. Eu sabia. Ele havia me perdoado. Fiz algumas perguntas a res­peito de sua vida. Contou-me sua história, enquan­to permanecia ajoelhado ali, em meio à sujeira do beco.
Há muito tempo atrás, ele sentira que Deus o estava chamando para o ministério. Deixara o em­prego e se matriculara em uma escola bíblica para estudar, preparando se para o serviço do Senhor. Voltando a Nova York, porém, encontrou uma mulher que o seduziu, afastando-o de sua esposa. Esta,   com   seus dois   filhos, implorou-lhe que não os abandonasse. Lembrou-lhe os votos feitos a Deus, e os votos do casamento, mas ele estava possesso de um demônio: deixou a esposa e foi morar com a outra mulher. Dois meses depois esta o deixou dizendo que estava cansada dele e que sua compa­nhia já não lhe agradava. Ficou desesperado, e caiu no vício, fumando maconha e tomando “bolinhas”. Perguntei-lhe que tipo de comprimido estava to­mando, e respondeu que eram “bombitas”, nembies, tuinal e seconal (barbitúricos). Sentia que estava ficando louco. “Eu estava tentando afastar você”, gemeu ele. “Foi por isto que agi daquela forma no meio da rua. Estava com medo. Medo de Deus e medo de enfrentá-lo. Quero voltar para Deus. Quero voltar para minha esposa e meus filhos, mas não sei como. Você pode orar por mim?” Levan­tou a cabeça, e vi seus olhos cheios de angústia e culpa, pedindo ajuda.
Ajudei-o  a levantar-se e saímos do beco, atra­vessamos a rua e entramos na Kombi.  Éramos seis. Ele sentou-se no banco do meio, com a cabeça en­costada nas costas do banco à sua frente.   Come­çamos a orar por ele, todos em voz alta.   Ele tam­bém começou a orar.  De repente, percebi que estava citando versículos da Bíblia. Do fundo da sua me­mória,  e do  seu treinamento no Instituto Bíblico, estavam-se derramando as palavras do Salmo 51 — o salmo que o Rei Davi pronunciou depois de ter cometido adultério com Bate-Seba, enviando o ma­rido dela para a frente de batalha.   Jamais sentira o poder de Deus tão próximo de mim, como quando aquele ex-ministro, que  se tinha tornado  servo de Satanás, recebeu o Espírito de Cristo e repetiu cho­rando a sua confissão, pedindo perdão nas palavras das Santas Escrituras:
“Compadece-te de mim, ó Deus, segundo a tua benignidade; e, segundo a multidão das tuas misericórdias, apaga as minhas trans­gressões .
Lava-me completamente da minha iniqüi­dade, e purifica-me do meu pecado.
Pois eu conheço as minhas transgressões, e o meu pecado está sempre diante de mim.
Pequei contra ti, contra ti somente, e fiz o que é mal perante os teus olhos, de maneira que serás tido por justo no teu falar, e puro no teu julgar.
Eu nasci na iniqüidade, e em pecado me concebeu minha mãe.
Eis que te comprazes na verdade no ínti­mo, e no recôndito me fazes conhecer a sa­bedoria.
Purifica-me com hissopo, e ficarei limpo; lava-me, e  ficarei mais  alvo que  a neve.
Faze-me ouvir júbilo e alegria, para que exultem os ossos que esmagaste.
Esconde o teu rosto dos meus pecados, e apaga todas as minhas iniqüidades.
Cria em mim, ó Deus, um coração puro, renova dentro de mim um espírito inabalável.
Não me repulses da tua presença, nem me retires o teu Santo Espírito.
Restitui-me a alegria da tua salvação, e sustenta-me com um espírito voluntário.
Então ensinarei aos transgressores os teus caminhos, e os pecadores se converterão a ti.
Livra-me dos crimes de sangue, ó Deus, Deus da minha salvação, e a minha língua exaltará a tua justiça.”

Ele terminou a oração. A Kombi estava em silêncio. Então Glória levantou a voz — bela, suave — terminando as palavras do salmo:

“Sacrifícios agradáveis a Deus são o espírito quebrantado; cora­ção compungido e contrito não o desprezarás, ó Deus.”

Levantamo-nos todos. Ele enxugou o rosto com o lenço, e assoou o nariz. Nós outros também está­vamos fungando e limpando os olhos.
Virou-se então para mim: “Dei meu último cen­tavo para aqueles meninos malucos dançarem na rua. Será que você pode me dar vinte centavos para eu telefonar para minha esposa e pegar o me­trô?   Vou para casa.”
Tínhamos estabelecido a praxe de nunca dar di­nheiro a viciados em narcóticos ou bêbedos. Sabía­mos que quase sem exceção, o dinheiro seria gasto em entorpecentes ou bebida. Mas aquela era uma exceção. Enfiei a mão no bolso e tirei o meu último dólar. Ele pegou a nota, e atirou-se ao meu pes­coço, com o rosto ainda molhado de lágrimas. Depois, aproximou-se de cada um dos outros e tam­bém abraçou-os.
“Terão notícias minhas”, disse ele, “eu voltarei.”
E voltou mesmo. Dois dias depois. Levou sua esposa e os dois filhos ao Centro, para que os co­nhecêssemos. Sua fisionomia estava radiante; tinha um brilho que jamais poderia ser produzido por drogas ou comprimidos.   Era a luz do Senhor.