Capítulo 16
COM CRISTO NO HARLEM
DAVI VIAJAVA A MAIOR parte do tempo, recrutando obreiros
para trabalhar durante o verão, e levantando dinheiro para o Centro. À medida
que o tempo passava, ele tinha cada vez menos contato pessoal com os viciados,
e descobriu que estava fazendo o papel de administrador — papel esse que não
queria assumir, mas que lhe fora imposto pelas circunstâncias.
A maior parte do nosso trabalho era feito através dos
cultos ao ar livre, e de encontros casuais na rua. Quase todas as tardes
armávamos nossa plataforma e nosso serviço de alto-falantes em algum bairro
pobre da cidade.
Certa tarde, Mário e eu levamos um pequeno grupo em nossa
Kombi, até o coração do Harlem Espanhol. Distribuíamos folhetos, procurando reunir
uma multidão para um culto ao ar livre, mas estávamos tendo pouco
êxito.
Mário me disse: “Vou buscar gente.”
“Hoje não dá”, respondi. “Ninguém está interessado. Acho
que é melhor desarmar tudo e ir para casa.”
“Não”, disse Mário, “nós vamos conseguir gente para ouvir.
Você e os outros podem começar a colocar os alto-falantes nos lugares. Em menos
de uma hora vamos ter o maior culto ao ar livre.”
“Rapaz, como é que você pensa que vai realizar um culto, sem
gente? Hoje eles não estão mesmo interessados.”
“Não se preocupe. Deixe que eu resolvo isto”, disse Mário.
Rindo timidamente, ele saiu correndo rua abaixo e virou a
esquina.
Começamos a montar o equipamento. Era uma verdadeira
aventura de fé. Eu me sentia como Noé, construindo a arca no alto da montanha
seca. Mas continuamos a trabalhar, esperando que Deus providenciasse a chuva.
E ele providenciou. Quinze minutos depois havíamos
terminado, e eu estava de volta à esquina. distribuindo folhetos, quando vi um
enorme grupo de rapazes correndo pela rua, na minha direção. Estavam agitando
porretes e tacos de beisebol, e gritavam com todas as forças. Virei me e ia
voltar para a plataforma, quando vi novo grupo de rapazes vindo de outra
direção, gritando e agitando porretes. “Preciso cair fora daqui”, pensei, “esses
rapazes vão ter um “quebra-pau.” Mas era tarde demais! Fui rodeado pela turma
que gritava e dava cotoveladas. Fiquei
esperando pela briga.
De repente, vi Mário correndo por uma travessa que havia no
meio do quarteirão, gritando a plenos pulmões: “Ei turma, o chefe da terrível
quadrilha dos Mau-Maus, de Brooklin, vai falar dentro de quinze minutos. Venham
ouvi-lo. Venham ouvir o grande Nicky Cruz, o sujeito mais perigoso de Brooklin.
Venham preparados. Ele é um matador, e ainda é perigoso.”
Os rapazes derramavam-se dos apartamentos, descendo pelas
escadas de emergência, e correndo em minha direção. Enxameavam ao meu redor, e
gritavam: “Onde está o Nicky? Quero vê-lo. Onde está o chefe dos Mau-Maus?”
Mário chegou,
com um sorriso que ia até as orelhas. “Você viu? Eu disse
que conseguiria uma multidão.”
Olhamos ao nosso redor. Ele havia reunido uma turba de
tamanho respeitável. Devia haver uns trezentos rapazes rodeando-nos, no meio da
rua.
Balancei a cabeça. “Só espero que não sejamos todos mortos.
Puxa, esses rapazes parecem terríveis .”
Mário ainda estava rindo, ofegante, por causa da corrida. “Vamos,
pregador, sua congregação está esperando.”
O suor escorria-lhe pelo rosto, mas ele trepou até a
plataforma, agarrou o microfone e levantou a mão, pedindo silêncio. Os rapazes
ouviram-no falar, à semelhança de um camelô de feira, “enrolando” o auditório
antes de apresentar o show.
“Senhores e senhoras. Hoje é um grande dia. O chefe da
terrível e famosa quadrilha Mau-Mau vai falar a vocês... O homem mais perigoso
de Nova York. Ele é temido tanto por moços como por velhos. Só que agora não é
mais o chefe. É ex-chefe. Esta tarde vai contar-lhes porque não está mais na
gang, e porque está associado a Jesus. Apresento a vocês NICKY CRUZ, o
primeiro e único, ex-chefe dos Mau-Maus.”
Estava gritando quando terminou. Pulei para a plataforma,
ficando por trás do microfone. Os garotos na multidão começaram a gritar e
bater palmas. Fiquei de pé na plataforma, sorrindo e acenando com a mão,
enquanto eles aplaudiam. Muitos deles me conheciam ou haviam lido a meu
respeito nos jornais. Cerca de duzentos adultos tinham-se reunido por trás da
multidão de adolescentes. Dois carros da polícia pararam, um de cada lado do
povo.
Levantei os braços. Os gritos, assobios e aplausos
diminuíram. Em um instante a turba estava silenciosa.
Senti-me fortemente ungido pelo Espírito Santo, quando
comecei a pregar. As palavras saíram livremente, sem dificuldade. “Eu era o
chefe dos Mau-Maus. Estou percebendo que vocês já ouviram falar de mim.” Outra
vez a multidão irrompeu em aplausos espontâneos. Levantei os braços, e pedi
silêncio. “Quero contar-lhes porque sou ex-chefe dos Mau-Maus. Sou ex-chefe
porque Jesus transformou meu coração! Um dia, em uma reunião de rua exatamente
igual a esta, ouvi um pregador falar de alguém que podia transformar minha
vida. Ele me disse que Jesus me amava. Eu não sabia quem era Jesus, e sabia que
ninguém me amava. Mas Davi Wilkerson disse que Jesus me amava. Agora a minha
vida está mudada. Eu me entreguei a Deus, e ele me deu uma nova vida. Eu era
igual a vocês: vivia correndo pelas ruas. Dormia nos telhados. Fui expulso da
escola por causa de briga. A polícia estava atrás de mim, e fui preso muitas
vezes, e muitas vezes dormi na cadeia. Eu estava com medo. Mas, então, Jesus
transformou minha vida. Ele me deu um alvo para o qual eu agora vivo. Ele me
deu esperança. Ele me deu um novo objetivo na vida. Eu não fumo mais maconha,
nem brigo, nem mato. Não fico mais acordado de noite, com medo. Não tenho mais
pesadelos. Agora as pessoas conversam comigo quando eu passo. A polícia me
respeita. Estou casado, e tenho uma filhinha. Porém, o que é mais importante de
tudo, sou feliz e não vivo mais fugindo de tudo e de todos.”
A multidão estava silenciosa e atenta. Terminei a mensagem e
fiz um apelo para os que queriam aceitar a Cristo.
Vinte e dois atenderam ao apelo, e ajoelharam-se defronte à
multidão, enquanto eu orava.
Terminei a oração, e levantei os olhos. Os policiais tinham
saído dos carros, e estavam de pé, com os quepes na mão, e as cabeças curvadas.
Virei o rosto para o céu. O sol
brilhava no Harlem...
O Harlem Espanhol tornou-se nosso lugar predileto para
cultos ao ar livre. Parecia que ali
éramos capazes de atrair multidões maiores, e a necessidade do evangelho era
mais aparente do que em qualquer outro lugar em que havíamos pregado. Eu não
me cansava de lembrar à nossa equipe que “onde abundou o pecado, superabundou a
graça”.
Glória teve dificuldades em aceitar o Harlem Espanhol. Ela
não conseguia acostumar-se com o cheiro. Procurava não agir de forma antipática,
mas algumas das feiras livres eram quase demais para o seu estômago. Até para
mim, era difícil acostumar-me com as moscas que enxameavam sobre a carne, as
frutas e vegetais.
Além disto, havia o cheiro dos viciados. Pareciam
desprender um mau cheiro. E quando agrupados, principalmente sob o calor do
verão, era quase insuportável ficar perto deles.
Aprendemos muito durante aqueles primeiros meses de pregação
nas ruas. Aprendemos que as pessoas que tinham mais êxito eram as que haviam
saído das ruas, e podiam apresentar um testemunho de primeira mão a respeito do
poder transformador de Jesus Cristo. Eu não tinha tanto êxito, ao pregar para
viciados em entorpecentes quanto os que tinham sido viciados. Descobrimos que
esses eram nossos melhores pregadores. Seus testemunhos, honestos e minuciosos,
causavam um impacto tremendo nos outros viciados. Começamos a levá-los conosco
sempre que íamos pregar nas ruas. Contudo, isto também trouxe problemas.
Muitas vezes, durante os cultos de pregação nas ruas, os
viciados que se aglomeravam procuravam tentar e provocar nossos auxiliares.
Acendiam um “pacau” em frente deles, e deliberadamente sopravam a fumaça em
seus rostos. Cheguei a ver um homem tirar uma agulha e um pacote de heroína, e
agitá-los na cara de um de nossos obreiros que se livrara das drogas, dizendo: “Ei,
menino, não sente falta disto? Rapaz, isto é que é vida. Precisa experimentar.”
A tentação era quase irresistível, mas aquelas vidas estavam
protegidas pelo escudo da força de Deus.
Descobri que Maria, particularmente, não tinha acanhamento
de levantar-se diante de um grupo dos seus antigos colegas, prostitutas e
viciados, e dar testemunho da graça de Deus. O seu testemunho simples levou,
várias vezes, os ouvintes até às lágrimas, quando falava de um Deus que é um
amigo íntimo e pessoal. Um Deus que, na pessoa do seu filho Jesus Cristo,
palmilhou as duras estradas da Palestina, tocando nos pecados do povo e
libertando-o deles. A maior parte daquela gente jamais soubera da existência de
um Deus assim. O Deus de quem ouviam falar, se é que conheciam algum, era um
juiz severo que abomina o pecado e fustiga as pessoas, colocando-as na linha,
como um policial. Ou, talvez, identificavam Deus com as igrejas frias e formais que
tiveram oportunidade de observar.
Certo dia, um ex-membro de quadrilha, um jovem de cor que
fora viciado em heroína, estava dando testemunho a respeito da sua infância.
Contou que fora obrigado a fugir de casa aos treze anos, porque o apartamento
era muito apertado. Falou dos diversos homens que viveram com sua mãe. Contou
como dormira nos telhados e no metrô. Afirmou que precisara surrupiar comida,
mendigar e roubar. Ele não tinha casa de espécie alguma, e usava os telhados ou
ruelas como latrina. Estava vivendo como um animal selvagem, na selva das ruas.
Enquanto falava, uma velha senhora, na extremidade da
multidão, começou a chorar. Seu choro tornou-se quase histérico, e eu rodeei o
povo para chegar até ela. Quando conseguiu dominar-se, ela me disse que aquele
rapaz poderia ser seu filho. Ela tivera cinco filhos que haviam abandonado o
lar, e viviam exatamente conforme a descrição dele, nas ruas da cidade. O seu
sentimento de culpa era maior do que podia suportar. Reunimo-nos ao seu redor,
e oramos a seu favor. Ela levou a cabeça para trás e olhou para os
céus, pedindo que Deus a perdoasse e protegesse seus filhos, onde quer que eles
estivessem. A pobre mulher encontrou paz junto a Deus naquela tarde, mas o dano
causado aos filhos já estava feito. Em milhares de outros casos, ocorria o
mesmo. Sentíamos como se estivéssemos procurando esvaziar o oceano com uma
colher de chá. Não obstante, sabíamos que Deus não esperava que ganhássemos o
mundo — apenas que testificássemos e fôssemos fiéis. E esse era o nosso alvo.
Na quinta-feira, tarde da noite, preparamos um culto ao ar
livre na esquina de uma escola, no Harlem Espanhol. O verão estava quente, e
uma grande multidão reuniu-se para ouvir os alegres corinhos em espanhol, e a
música evangélica de ritmo acelerado
que fluía de nossos
alto-falantes.
A multidão estava inquieta e nervosa. Quando a música chegou
a um ritmo mais acelerado, alguns de nossos rapazes e moças colocaram-se
defronte ao microfone e começaram a cantar, bater palmas, e marcar o ritmo. A
um lado, todavia, eu notei uma perturbação. Um grupo de “pequenos” estava dançando
ao som da música. Eram cerca de cinco ou seis “pequenos”, gingando em plena
rua, bamboleando as cadeiras e sapateando. Algumas pessoas tiveram sua atenção
desviada para eles e começaram a aplaudi-los, rindo e batendo palmas com eles,
acompanhando o ritmo. Deixei o lugar onde estava, e rodeei o povo, em direção
ao grupo. “Ei, meninos, por que vocês estão dançando aqui? Aqui é território
de Jesus!”
Um deles disse: “Aquele homem lá pagou para nós dançarmos.
Veja, ele nos deu dez centavos.” Apontaram para um moço magro, de cerca de
vinte e oito anos de idade, que estava na extremidade da multidão. Dirigi-me a
ele para conversar. Ele viu que eu me aproximava e começou a saracotear, no
ritmo da música.
Procurei falar com ele, mas continuou dançando, sapateando, e sacudindo as
cadeiras, dizendo: “Meu chapa,
isso é música pra frente, cha-cha-cha.”
Girava em torno de si mesmo, e batia com as mãos nos
quadris. Cantava sacudindo as cadeiras e a cabeça como um louco: “Bi-bop,
cha-cha-cha... dum-di-dum-dum... dança, meu chapa, dança.”
Finalmente consegui sua atenção: “Ei, cara, quero
perguntar-lhe uma coisa.”
Ele continuou da mesma forma, dançando no ritmo da música: “Sim,
paizinho, o que é que você quer? O que é que você quer?... Bi-bop,
di-dum-dum... o que é que você quer?”
Eu disse: “Você deu dinheiro àqueles garotos para que eles
dançassem e atrapalhassem nossa reunião?” Minha paciência estava começando a
acabar.
Girando ainda, respondeu: “É isso mesmo, meu chapa; você
está falando com o cara certo. Sou o homem... da-da-di-da...” Dava estalos com
a língua e sapateava, levantando os pés à sua frente, enquanto girava.
Pensei que ele estivesse louco. “Por quê?” gritei-lhe. “O que há de errado com você, afinal?”
“Porque não gostamos de vocês. Não gostamos de crentes. Não.
Não. Não. Não gostamos de crentes.
Da-da-dum-di-dum.”
Perdi a calma. “Pois bem, seu”, disse, cerrando os punhos e
avançando para ele, “vamos continuar este culto, e você vai calar a boca, ou
então eu vou lhe dar uma surra, e você vai ficar quieto a força.”
Ele viu que eu falava sério, mas seu orgulho não lhe
permitia acabar com a brincadeira imediatamente. Pôs a mão na boca fingindo
surpresa, e arregalou os olhos, fingindo terror. Mas parou de dançar e calou-se.
Voltei ao microfone e preguei naquela tarde a respeito das
minhas experiências de adolescente em Nova York. Testifiquei a respeito da
sujeira, da pobreza, da vergonha e do pecado que existiram em minha vida. Em seguida, preguei sobre a culpa dos pais
que permitem que seus filhos cresçam em tal pecado. Roguei-lhes que dessem um
bom exemplo para os filhos.
Enquanto eu falava, alguns tiraram o chapéu. Este é um dos
melhores sinais de reverência e respeito. Notei lágrimas nos olhos de muitas
pessoas, e vi alguns lenços aparecerem. Percebi que o Espírito e o poder de
Cristo estavam operando de maneira especial, mas não previ o impacto que ele
produziria alguns momentos depois.
Enquanto pregava, notei um velho, claramente embriagado,
chorando no meio de todo aquele povo. Uma mocinha, que estava na frente,
escondeu a face nas mãos e ajoelhou-se na rua, com os joelhos nus sobre o
pavimento duro e sujo. Uma de nossas auxiliares deixou o grupo e ajoelhou-se ao
lado da menina, orando com ela. Quanto a mim, continuei a pregar.
Era evidente que o poder do Espírito de Deus estava naquela
reunião. Quando terminei a pregação e fiz o apelo, notei um viciado em
narcóticos, na extremidade da multidão, em grande agonia espiritual . Ele enfiou
a mão no bolso da camisa, tirou vários pacotinhos, e atirou-os na rua, aos seus
pés. Começou a gritar, sapateando nos pequenos envelopes brancos. “Maldito, pó
imundo. Você arruinou a minha vida. Levou minha esposa embora. Matou meus
filhos. Mandou minha alma para o inferno. Maldito! Maldito!”
Caiu de joelhos no chão, chorando e balançando-se para a
frente e para trás, com o rosto nas mãos. Um de nossos obreiros correu para o
lado dele. Dois dos nossos ex-viciados rodearam-no, um com a mão sobre a sua
cabeça, e o outro ajoelhado, todos orando em voz alta enquanto ele gritava pedindo
perdão.
Oito ou nove viciados em entorpecentes vieram à frente e
ajoelharam-se na rua, diante do microfone. Fui de um para o outro impondo as
mãos em suas cabeças e orando por eles, completamente esquecido do barulho do
trânsito intenso e dos olhares dos transeuntes curiosos.
Depois do culto, demos uma palavra em particular a cada um
dos que haviam aceitado a Cristo, e falamos a respeito do Centro. Nós os
convidamos para morar conosco, enquanto se livravam do vício. Sempre havia
alguns que se dispunham a nos seguir imediatamente. Outros hesitavam e
recusavam-se. Outros apareciam dentro de uma semana ou mais, e pediam para
serem admitidos.
Quando a multidão se dissolveu, reunimos nosso equipamento e
começamos a guardá-lo na Kombi. Um dos meninos que estivera dançando na rua, começou
a puxar a manga do meu paletó. Perguntei-lhe o que queria, e ele disse que o “dançador”
queria falar comigo. Perguntei-lhe onde estava o homem, e ele apontou para um
beco escuro, do outro lado da rua.
A noite já caíra, e eu não sentia vontade de entrar num beco
escuro onde se escondia um louco. Disse ao garoto para avisar ao homem que eu
teria prazer em conversar com ele — ali, debaixo das luzes da rua.
O garoto saiu correndo, e voltou dentro de instantes. Já
havíamos quase terminado de desmontar nosso equipamento. Ele balançou a cabeça
e disse que o homem precisava conversar comigo, mas estava muito envergonhado
para encontrar-me no claro.
Comecei a dizer ao garoto: “Nada feito”, mas,
repentinamente, lembrei-me de Davi Wilkerson procurando-me no porão onde eu
fora esconder-me, depois do primeiro culto ao ar livre. Lembrei-me de como ele
entrou sem medo e disse: “Nicky, Jesus ama você”. Aquela coragem e compaixão me
levaram a aceitar a Cristo como meu salvador.
Assim, olhando para o céu escuro, disse ao Senhor que, se
ele queria que eu fosse conversar com aquele “dançador” selvagem, faria a sua
vontade. Mas ia no seu Espírito, e não em minha própria força e poder, e estava
esperando que ele fosse adiante de mim — principalmente por ser naquela ruela
escura.
Atravessei a rua e parei na entrada do beco. Era como a
entrada de um túmulo. Murmurei uma oração: “Senhor, espero que tenhas entrado
aqui antes de mim”, e entrei. Apalpando as paredes de alvenaria, mergulhei na
escuridão.
Ouvi então o som amortecido de alguém soluçando. Avancei, e
na penumbra pude ver o homem agachado no meio de algumas latas de lixo malcheirosas.
Tinha a cabeça entre as pernas e o seu corpo era sacudido por soluços
convulsivos. Aproximei-me e ajoelhei-me a seu lado. O cheiro rançoso das latas
de lixo era insuportável. Mas havia ali um ser humano em desespero, e o desejo
de ajudá-lo foi maior do que a podridão reinante no beco.
“Ajude-me. Por favor,
ajude me”, soluçava ele. “Li a
seu respeito no jornal. Ouvi falar que
você se converteu e foi para a Escola Bíblica. Por favor, ajude-me.”
Não podia crer que aquele era o mesmo homem que apenas
alguns minutos antes estava dançando e cantando na rua, procurando atrapalhar
nossa reunião. “Será que Deus me perdoa? Diga-me, será que eu me distanciei
demais dele? Será que ele me perdoa?
Por favor, ajude-me.”
Disse-lhe que Deus o perdoaria. Eu sabia. Ele havia me
perdoado. Fiz algumas perguntas a respeito de sua vida. Contou-me sua
história, enquanto permanecia ajoelhado ali, em meio à sujeira do beco.
Há muito tempo atrás, ele sentira que Deus o estava chamando
para o ministério. Deixara o emprego e se matriculara em uma escola bíblica
para estudar, preparando se para o serviço do Senhor. Voltando a Nova York,
porém, encontrou uma mulher que o seduziu, afastando-o de sua esposa.
Esta, com seus dois
filhos, implorou-lhe que não os abandonasse. Lembrou-lhe os votos feitos
a Deus, e os votos do casamento, mas ele estava possesso de um demônio: deixou
a esposa e foi morar com a outra mulher. Dois meses depois esta o deixou
dizendo que estava cansada dele e que sua companhia já não lhe agradava. Ficou
desesperado, e caiu no vício, fumando maconha e tomando “bolinhas”.
Perguntei-lhe que tipo de comprimido estava tomando, e respondeu que eram “bombitas”,
nembies, tuinal e seconal (barbitúricos). Sentia que estava ficando louco. “Eu
estava tentando afastar você”, gemeu ele. “Foi por isto que agi daquela forma
no meio da rua. Estava com medo. Medo de Deus e medo de enfrentá-lo. Quero
voltar para Deus. Quero voltar para minha esposa e meus filhos, mas não sei
como. Você pode orar por mim?” Levantou a cabeça, e vi seus olhos cheios de
angústia e culpa, pedindo ajuda.
Ajudei-o a
levantar-se e saímos do beco, atravessamos a rua e entramos na Kombi. Éramos seis. Ele sentou-se no banco do meio,
com a cabeça encostada nas costas do banco à sua frente. Começamos a orar por ele, todos em voz
alta. Ele também começou a orar. De repente, percebi que estava citando
versículos da Bíblia. Do fundo da sua memória,
e do seu treinamento no Instituto
Bíblico, estavam-se derramando as palavras do Salmo 51 — o salmo que o Rei Davi
pronunciou depois de ter cometido adultério com Bate-Seba, enviando o marido
dela para a frente de batalha. Jamais
sentira o poder de Deus tão próximo de mim, como quando aquele ex-ministro,
que se tinha tornado servo de Satanás, recebeu o Espírito de
Cristo e repetiu chorando a sua confissão, pedindo perdão nas palavras das
Santas Escrituras:
“Compadece-te de mim, ó Deus, segundo a tua
benignidade; e, segundo a multidão das tuas misericórdias, apaga as minhas
transgressões .
Lava-me completamente da minha iniqüidade, e
purifica-me do meu pecado.
Pois eu conheço as minhas transgressões, e o meu
pecado está sempre diante de mim.
Pequei contra ti, contra ti somente, e fiz o que
é mal perante os teus olhos, de maneira que serás tido por justo no teu falar,
e puro no teu julgar.
Eu nasci na iniqüidade, e em pecado me concebeu
minha mãe.
Eis que te comprazes na verdade no íntimo, e no
recôndito me fazes conhecer a sabedoria.
Purifica-me com hissopo, e ficarei limpo;
lava-me, e ficarei mais alvo que
a neve.
Faze-me ouvir júbilo e alegria, para que exultem
os ossos que esmagaste.
Esconde o teu rosto dos meus pecados, e apaga
todas as minhas iniqüidades.
Cria em mim, ó Deus, um coração puro, renova
dentro de mim um espírito inabalável.
Não me repulses da tua presença, nem me retires o
teu Santo Espírito.
Restitui-me a alegria da tua salvação, e
sustenta-me com um espírito voluntário.
Então ensinarei aos transgressores os teus
caminhos, e os pecadores se converterão a ti.
Livra-me dos crimes de sangue, ó Deus, Deus da
minha salvação, e a minha língua exaltará a tua justiça.”
Ele terminou a oração. A Kombi estava em silêncio. Então
Glória levantou a voz — bela, suave — terminando as palavras do salmo:
“Sacrifícios agradáveis a Deus são o espírito quebrantado;
coração compungido e contrito não o desprezarás, ó Deus.”
Levantamo-nos todos. Ele enxugou o rosto com o lenço, e
assoou o nariz. Nós outros também estávamos fungando e limpando os olhos.
Virou-se então para mim: “Dei meu último centavo para
aqueles meninos malucos dançarem na rua. Será que você pode me dar vinte
centavos para eu telefonar para minha esposa e pegar o metrô? Vou para casa.”
Tínhamos estabelecido a praxe de nunca dar dinheiro a
viciados em narcóticos ou bêbedos. Sabíamos que quase sem exceção, o dinheiro
seria gasto em entorpecentes ou bebida. Mas aquela era uma exceção. Enfiei a
mão no bolso e tirei o meu último dólar. Ele pegou a nota, e atirou-se ao meu
pescoço, com o rosto ainda molhado de lágrimas. Depois, aproximou-se de cada
um dos outros e também abraçou-os.
“Terão notícias minhas”, disse ele, “eu voltarei.”
E voltou mesmo. Dois dias depois. Levou sua esposa e os dois
filhos ao Centro, para que os conhecêssemos. Sua fisionomia estava radiante;
tinha um brilho que jamais poderia ser produzido por drogas ou
comprimidos. Era a luz do Senhor.