sábado, 24 de abril de 2021

Foge Nick Foge - 15 - Passeio ao inferno



Capítulo 15

PASSEIO AO INFERNO

EU PASSARA DOIS DIAS FORA da cidade, quan­do voltei, Glória falou-me de Maria. Tinha vinte e oito anos. Fora recolhida da rua meio congelada, com sin­tomas agudos de privação de heroína, e no limiar da morte. Glória pediu-me que pensasse especialmente nela, ao pregar naquela noite, na pequena capela.
Depois do culto, Glória levou Maria ao meu es­critório. Ela gaguejava o tempo todo, sofrendo ainda a privação da droga. “Esta noite”, disse ela, “tive a estranha sensação de que desejava libertar-me desta vida inútil. Enquanto você pregava, tive um estra­nho sentimento de que realmente desejava morrer para esta vida miserável. Não obstante, pela primeira vez na vida, eu quero viver. Não consigo entender isso.”
Expliquei-lhe que ela estava experimentando o que a Bíblia chama “arrependimento”. “Maria, você não pode receber o amor de Deus, enquanto não esti­ver disposta a morrer para você mesma. Diga-me, quer morrer para a sua velha vida ? Quer que a velha vida de drogas e prostituição seja condenada à mor­te, sepultada e esquecida para sempre?”
“Sim, sim, sim”, soluçou ela. “Estou disposta a fazer qualquer coisa para escapar.”
“Está disposta a morrer para o “eu”?” perguntei.
“Sim”, respondeu ela, reprimindo as lágrimas, “até isso.”
“Então deixe-me falar-lhe a respeito de um amor tão maravilhoso, tão lindo, tão esplêndido que pode mudar até mesmo uma pessoa como você tornando-a pura e santa. Deixe-me falar-lhe de Jesus.”
Durante cerca de dez minutos, falei-lhe a respeito do perfeito amor de Deus, que foi derramado sobre nós em Jesus Cristo.
Ela escondeu o rosto nas mãos e começou a chorar. Aproximei-me dela e coloquei a mão no seu ombro. “Maria, vamos ficar de joelhos e orar...” Antes que eu terminasse de falar, Maria caíra de joe­lhos no assoalho. Senti que a represa se rebentara. Maria nascera de novo, para uma nova vida em Jesus Cristo.
Um mês depois, ela entrou em meu escritório. A necessidade que sentia da droga estava se tornan­do insuportável, e ela queria deixar o Centro. Johnny, seu namorado, já se rendera à pressão da droga, abandonando o Centro alguns dias antes, nas caladas da noite.
Levantei-me e fechei a porta. “Maria”, disse eu, “nada em minha vida é tão importante como o seu futuro. Falemos a respeito do que aconteceu em sua vida.”
Ela concordou. Remontamos à época em que Ma­ria tinha dezenove anos, e tirara o diploma do giná­sio. Deixei-a falar. “Foi Johnny quem me ensinou a fumar maconha. Minhas amigas haviam-me contado sua experiência com a erva. Tinham dito que não ha­via problemas, contanto que não se lançasse mão de coisa mais forte. Johnny parecia ter sempre um bom suprimento de “pacaus”, e eu achava tudo muito di­vertido.”
Maria parou, como se lembrasse daqueles primei­ros dias, quando começara sua descida ao inferno, e pensei como sua atitude era típica das dezenas de viciados que estavam se  apresentando no Centro.
Noventa por cento deles tinham começado com ma­conha e depois tinham ido além, viciando-se em nar­cóticos. Percebi o que vinha a seguir, mas senti que ela precisava desabafar. “Fale, Maria, qual era o efeito?” Ela relaxou o corpo na cadeira, e começou a contar-me a história, com os olhos semi-cerrados.
“Eu sentia que os problemas, literalmente, voavam para longe de mim”, respondeu ela. “Certa vez, senti que eu mesma estava flutuando quilômetros e quilô­metros acima da terra. Então comecei a partir-me em pedaços. Meus dedos soltaram-se das mãos e voa­ram para longe, no espaço. As mãos saíram dos pu­nhos. Os braços e pernas deixaram meu corpo. Parti-me em milhões de pedaços que voaram, levados por uma brisa suave.”
Ela parou de novo, relembrando. “Mas a maco­nha não era suficiente. O que ela fazia era apenas aguçar em mim um desejo de algo mais forte. Eu estava mentalmente “fisgada”.
“Foi Johnny quem me deu a primeira “picada”. Ele vinha falando disso há semanas. Certa tarde, de­pois de ter chorado o dia inteiro, parecia que tudo ia mal. Johnny chegou então com a agulha e a colher. Eu sabia o que ele ia fazer, mas ele parecia tão certo de que aquilo me ajudaria, que deixei-o prosseguir. Naquela época eu nada sabia a respeito do vício de narcóticos, mas ele me garantiu que tudo iria sair bem. Amarrou um cinto em torno do meu braço, bem apertado, pouco acima do cotovelo, até que a veia saltou como um grande caroço, sob a minha pele. Esvaziou na colher o conteúdo de um envelope, um pó branco e semelhante a açúcar. Adicionou água com um conta-gotas, e em seguida acendeu um fósforo sob a colher, até o líquido ferver. Outra vez, com o conta-gotas, sugou a heroína agora dissolvida. Depois, com perícia, furou minha veia com a ponta da agulha hipodérmica. Então, cuidadosamente, aper­tou o conta-gotas, fazendo gotejar o potente líquido na parte mais larga da agulha hipodérmica. Deixando o conta-gotas de lado, moveu a agulha para baixo e para cima, em meu braço, até o líquido desaparecer na veia. Não senti nada quando ele tirou a agulha. Não sabia então, mas acabara de me tornar uma viciada que injeta narcótico diretamente na veia, sen­do esta a forma mais terrível do vício.
“Johnny, não estou boa”, disse eu.
“Nada disso, você está bem, garota”, respondeu. “Descanse e logo estará voando. Prometi, e nunca deixo de cumprir minhas promessas, não é mesmo?”
“Mas eu não o ouvia mais. Comecei a ter ânsias, e antes que pudesse mexer-me, vomitei no assoalho. Caí atravessada na cama, e comecei a tremer e a suar. Johnny sentou-se ao meu lado e segurou minha mão. Logo relaxei os músculos, e uma sensação quen­te, de fluidez, atravessou meu corpo. Tinha a im­pressão de que me elevava em direção ao forro; aci­ma de mim podia ver a face sorridente de Johnny. Ele curvou-se sobre mim e murmurou: “Como é que está indo, boneca ?”
“Delicioso”, murmurei. “Puxa, está ficando bom.” Eu começara a minha incursão no inferno.
“Só recebi outra picada uma semana mais tarde. Desta vez, quando Johnny fez a sugestão, concordei prontamente. A dose seguinte veio após três dias. Depois disso, Johnny não precisava mais sugerir, eu é que pedia. Não o sabia então, mas já estava vicia­da. .. “fisgada”.
“Na semana seguinte, quando Johnny chegou em casa, eu estava começando a tremer. Pedi-lhe uma “picada”.
“Escute, boneca, eu gosto de você e tudo o mais, mas esta droga custa dinheiro, você sabe.”
“Eu sei disso. Johnny, mas preciso de uma “pi­cada .”
“Johnny sorriu: “Não tem, menina. Puxa, você es­tá começando a me custar caro.”
“Por favor, Johnny”, insisti com ele, “não brin­que comigo. Não percebe que eu preciso de uma “pi­cada ?”
“Johnny dirigiu-se para a porta. “Hoje não. Es­queça. Eu não tenho tempo nem dinheiro.”
“Johnny”, eu estava gritando. “Não me abandone. Pelo amor de Deus, não saia!” Mas ele se fora, e ouvi a chave girar na fechadura.
“Tentei conter-me, mas nada pude fazer. Cheguei à janela, e vi Johnny na esquina, conversando com duas garotas. Eu sabia quem eram. Trabalhavam pa­ra Johnny. Ele se referia a elas como parte do seu “estábulo”. Eram prostitutas que compravam a dro­ga de que precisavam com o dinheiro que ganhavam na profissão. Johnny fornecia a “mercadoria”, e elas passavam a droga aos fregueses, mediante uma co­missão.
“Fiquei olhando pela janela, e vi quando ele pôs a mão no bolso do paletó e passou disfarçadamente, para uma das garotas, um pequeno envelope branco. Eu sabia que era a droga. Ao ver Johnny desfazer-se da preciosa heroína, não pude agüentar. Por que ele a dava para ela, e não me deixava tomar uma “pica­da”? Deus, como eu precisava de uma!
“De repente, ouvi meus próprios gritos: “John­ny! Johnny!” eu gritava da janela, com todas as for­ças dos pulmões. Ele olhou para cima, e voltou para o apartamento. Quando entrou, eu estava atravessada na cama, soluçando e tremendo. Havia perdido todo o autocontrole.
“Johnny fechou a porta. Sentei na cama e tentei falar, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, ele avançou para mim e bateu-me na boca com as costas da mão. “Que diabo está querendo?” gritou ele. “Quer que eu seja preso, ou o quê ?”
“Johnny, por favor, ajude-me. Preciso de uma “pi­cada”. Vi você dar a droga para aquelas garotas. Por que não dá para mim? Por favor!” Eu chegara a um estado de completo desespero. Estava tremendo e so­luçando ao mesmo tempo. Sentia o gosto do sangue que escorria pelo canto da boca, mas não me impor­tava. Tudo o que eu queria era a agulha. Johnny deu uma risada. “Escute, garota, você é diferente daquelas cadelas que estão lá na rua. Você tem classe. Mas esta droga não se consegue de graça. Custa, e muito. Aquelas garotas lá embaixo trabalham para conse­guir a delas. O que é que você está fazendo para conseguir a sua, hein ?”
“Eu vou trabalhar, Johnny. Farei qualquer coisa. Tudo. Só quero que você me dê aquela agulha.”
“Não sei não”, disse Johnny. “Você tem classe demais para trabalhar na rua.”
“Johnny, farei qualquer coisa. Fale o que é.” Sen­ti o soalho subir ao meu encontro, quando joguei-me aos seus pés e abracei seus joelhos para não cair com o rosto no chão.
“Você quer dizer que está disposta a trabalhar para mim na rua?” Ele parou e depois continuou com entusiasmo. “Você pode, menina, eu sei que você po­de, se quiser. Rapaz, você pode passar por cima da­quelas frangas, de dez contra um. Os homens vão enxamear ao seu redor, e entre nós dois podemos fazer muito dinheiro. Que tal? Eu teria muito dinheiro e poderia comprar para você toda H (heroína) que qui­sesse e você nunca mais passaria por isto. Que tal? É isso que você quer?”
“Sim, Johnny, sim, sim. Só quero que você me dê uma “picada.”
“Johnny aproximou-se do fogão, e acendeu uma boca. Tirou a colher e colocou nela um pouquinho de pó branco. Adicionou água e segurou-a sobre a cha­ma. Enchendo a agulha, aproximou-se de mim, que estava agachada no chão. “Puxa, menina, isto é o co­meço do céu para nós dois. Com você ao meu lado, podemos alcançar a lua.” Senti a agulha penetrar na veia. A tremura parou quase imediatamente — em questão de segundos. Johnny ajudou-me a levantar, e levou-me para a cama, onde eu caí em profundo sono. Mas Johnny estava enganado. Não era o come­ço do céu. Era o começo de um pesadelo horrível, que haveria de durar oito longos anos. Não o céu — mas o inferno.
“O inferno é um abismo sem fundo, no qual a gente cai e continua caindo, sem nunca chegar ao fundo. Não há ponto de parada nem interrupção na queda no vício dos tóxicos. Esse, o caminho que eu começava a trilhar.
“Johnny não poderia usar-me, se eu não fosse viciada. Quando me tornei escrava das drogas, tornei-me também escrava dele. Tinha de fazer o que ele quisesse... e ele queria que eu me prostituísse para dar-lhe dinheiro. Ele me fornecia droga, mas eu via que a situação não era exatamente o céu que ele pro­metera.
“Descobri logo que Johnny tinha outra mulher. Eu sabia que ele não queria casar comigo, mas nunca imaginara que estivesse sustentando outra. Soube disto de maneira crua.
“O movimento fora pequeno na noite anterior, e eu havia levantado e descido à rua, naquela tarde, pa­ra fazer algumas compras. Gostava de sair e esque­cer-me do que eu era, imaginando ser igual às outras pessoas. Estava na esquina das ruas Hicks e Atlantic, esperando o sinal abrir, quando senti alguém agarrar-me o ombro, puxando-me com força, de forma que me fez dar meia-volta. “Você é Maria, não é?” Era uma mulher morena de longos cabelos negros que se espalhavam pelos ombros. Seus olhos despediam chispas de fogo. Antes que eu pudesse responder, ela disse: “Sim, é você. Já te conheço. É você que anda atrás do meu homem. Vou ensiná-la, cadela imunda.”
“Procurei afastar-me, mas ela deu-me um tapa no rosto. O sinal se abrira, e o povo passava apressado ao nosso redor, mas eu não estava para ser empurra­da por ninguém, daquela forma. Estendi a mão, pu­xei-a pelo cabelo, e empurrei-a para trás com a outra mão.
“Ela começou a gritar como uma louca. “Cadela suja. Dormindo com o meu homem. Vou matar você.” Estava como louca. Tentou acertar-me com a bolsa, mas eu me abaixei. Empurrei-a com o corpo, e ela caiu de costas, contra o gradil, na entrada da estação do metrô. Ouvi quando respirou fundo no momento em que bateu a espinha no duro cano de ferro.
“Peguei sua cabeça e empurrei-a para trás, contra o cano, em direção aos degraus negros que levavam à estação do metrô. Eu estava tentando enterrar as unhas nos seus olhos, onde tinha certeza de que iria feri-la. De repente, ela enterrou os dentes na minha mão. Senti a carne rasgar-se, quando arranquei a mão de sua boca, gritando de dor.
“Quando me afastei, alguém me agarrou e a mul­tidão me separou dela. O homem que me agarrara fez-me dar meia volta e me atirou na rua, onde trope­cei e caí. A multidão ainda estava aglomerada em tor­no da outra mulher. Atravessei a rua depressa, e con­tinuei correndo pela calçada, do outro lado.
“Não olhei para trás, mas corri para meu aparta­mento. Ali lavei a mão e pedi à vizinha para me fazer um curativo. Naquela noite voltei para a rua... Nun­ca mais vi aquela mulher.
“Eu não sentia mais nenhuma obrigação para com Johnny. Descobri que podia conseguir “picadas” com muitos outros homens, cada um dos quais fica­ria contente se eu trabalhasse para ele. Isto tornou-se um longo pesadelo. Passei a viver com um homem após outro. Todos eram viciados em entorpecentes. Eu vendia meu corpo; eles roubavam.
“Comecei a trabalhar em sociedade com algumas das outras mulheres. Nós alugávamos um quarto pa­ra a noite. Saíamos para a rua e esperávamos. Alguns homens eram fregueses regulares, mas na maior par­te eram inteiramente estranhos. Negros, italianos, orientais, porto-riquenhos, brancos... o dinheiro de­les tinha uma só cor.
“Era o inferno: quando conseguia dormir duran­te o dia, acordava gritando, aterrorizada com sonhos terríveis. Estava aprisionada em meu próprio corpo, e era a minha própria carcereira. Não havia fuga da­quele temor, daquela imundície, e do horror daquele pecado.
“Os homens das ruas não eram os únicos que me davam problemas. Eu também estava em constante dificuldades com a polícia. Fui presa onze vezes, du­rante os oito anos do meu vício. A sentença mais comprida foi de seis meses. Fui presa a propósito de tudo: roubo em lojas, vício de entorpecentes, furto de pequenas quantias, vagabundagem, e também, prostituição.
“Eu odiava cadeia. Da primeira vez, chorei muito. Prometi a mim mesma que nunca mais faria algo que me levasse a ser presa de novo. Mas quatro meses depois, estava de volta. Voltei dez vezes.
“Os policiais estavam constantemente me assedi­ando. Um guarda vinha de dois em dois dias, quando eu estava na rua, procurando fazer com que me en­tregasse a ele. Mas eu sabia que não lucraria nem um tostão com aquilo, por isso nunca cedi.
“Mas a heroína estava me destruindo. Lembro-me da primeira vez em que tomei uma dose exage­rada. Eu ainda estava trabalhando, e voltara para a casa de minha mãe. Abandonara Johnny. Mamãe es­tava trabalhando em uma fábrica, e eu em um es­critório. Eu disse a mamãe que precisava de algumas roupas novas para trabalhar, e implorei tanto que levei a a fazer um empréstimo no banco.
“Cheguei cedo do serviço, naquela tarde, e tirei o dinheiro da escrivaninha. Desci para o Harlem, onde morava o traficante, comprei a heroína e coloquei-a dentro do soutien. Andei mais uns dois quarteirões, e cheguei a um porão onde viviam alguns viciados, meus conhecidos. Eu estava desesperada, trêmula. Es­quentei a droga em uma tampinha de garrafa, enchi a agulha, e mergulhei-a na veia. Percebi logo que al­guma coisa estava errada. Fiquei tonta e desmaiei. Posso lembrar-me de que alguém me tocou, tentan­do fazer-me ficar de pé. Penso que eles ficaram com medo quando não reagi. Alguém rasgou meu soutien, roubou o resto de H, e depois jogou-me para fora do porão, deixando-me caída na calçada.
“Quando acordei, estava no Hospital Bellevue. A polícia me encontrara, levando-me para o hospital. Eu fora roubada. Todo o dinheiro desaparecera. Três guardas rodeavam minha cama, todos fazendo per­guntas ao mesmo tempo. Disse-lhes que estivera be­bendo, e que alguém pusera algo na minha bebida. Mas eles sabiam. Fizeram o médico marcar “DE” na minha ficha, indicando “dose exagerada”. Foi a pri­meira de uma série de três.
“A última quase me matou.
“Estivera bebendo no quarto. A combinação de vinho barato e de dose exagerada de heroína, fez-me desmaiar.
“Fiquei inconsciente na cama, e o cigarro caiu em meu cabelo. Posso lembrar a sensação estranha que tive. Sonhei que a mão de Deus estendeu-se e sa­cudiu-me ... e continuou a sacudir-me... Lembro-me que disse: “Te manca, Deus, me deixa sozinha. Pára de me sacudir.” Mas as sacudidelas não para­ram. E eu acordei.
“Eu sabia que alguma coisa estava errada, porém não percebi nada. Senti o odor de algo podre — um cheiro de carne queimada. Tentei levantar-me, mas caí no soalho. Rastejando até o espelho, consegui le­vantar-me e olhei. O rosto que vi não era o meu. Eu estava careca. Todo o cabelo fora queimado. Meu rosto era uma massa de bolhas e carne crestada. Mi­nhas orelhas tinham sido quase completamente quei­madas, e delas subia uma espiral de fumaça, como que de uma torrada queimada. As duas mãos esta­vam queimadas e empoladas, por ter tentado apagar o fogo com elas, inconscientemente.
“Comecei a gritar. Um homem que morava do outro lado do corredor, ouviu meus gritos histéricos, e sabendo que eu era viciada em drogas, veio e começou a esmurrar a porta.
“Cambaleei até a porta e agarrei o trinco, pro­curando abri-la, mas a carne das palmas de minhas mãos grudou no metal, quando tentei virar a maça-neta.   A carne de minhas mãos desprendeu-se, e não pude abrir.
“Não sei como, ele conseguiu abrir a porta pelo lado de fora. Queria levar-me para o hospital, mas eu recusei. Caí sem forças na cama, e pedi que me levasse ao apartamento de minha amiga, Inez. Ele me levou, e eu passei a noite lá.
“As queimaduras, porém, eram de segundo e terceiro grau, e a dor tornou-se insuportável. Eu tinha medo do hospital. Já estivera lá anteriormen­te. Como estava “fisgada”, sabia que se fosse para o hospital, teria de deixar o vício, “na marra”. Eu achava que não agüentaria, e estava com medo de morrer.
“Mas, no dia seguinte, Inez forçou-me a ir para o hospital. Ela não teve de insistir muito. Eu sabia que morreria, se não fosse. Piquei lá um mês e meio, até as queimaduras sararem.
“Quando saí do hospital, voltei para as ruas. Tomei a minha primeira “picada” quarenta e cinco minutos depois de ter saído do hospital e naquela noite eu estava de volta ao trottoir. Só que agora tudo estava mais difícil, devido às cicatrizes e quei­maduras. Ninguém me queria. Minhas roupas es­tavam cobertas de queimaduras de cigarro e man­chas de café. Meu corpo vivia sujo e cheirava mal. Algumas vezes eu andava pela rua vomitando. O vício estava me pondo louca.
“Um rapaz espanhol chamado René costumava conversar comigo nas ruas. Ele fora traficante, mas esteve no Centro Desafio Jovem, e abandonara o vício. Tornara se crente, e durante os últimos meses vinha insistindo comigo para que eu viesse aqui e também abandonasse a droga.
“Certa noite fria de março, eu estava precisando desesperadamente de uma “picada”. Desci pela rua cambaleando, virei a esquina próxima ao n.° 416 da Av. Clinton, e caí sem forças na escadaria.
“Mário estava na portaria naquela noite. Ele chamou Glória. Ela me levantou suavemente, e eu me apoiei nela.   Entramos pela  porta lateral,  ao  lado da mesa e passamos para a capela.
“Ajoelhe-se, Maria”, disse ela, “ajoelhe-se e ore.” Eu me sentia entorpecida, e julguei estar morrendo. Pensei: se é necessário isto para permanecer viva, vou fazê-lo. Ajoelhei-me no chão, atrás de um dos bancos, mas antes que pudesse curvar a cabeça, co­mecei a vomitar. Vomitei em minha blusa e no chão. Comecei a chorar e a tremer, e caí amontoa­da no chão, com as duas mãos à minha frente, sobre meu  próprio  vômito.
“Levantei os olhos. As outras moças que esta­vam na capela me rodearam. Reconheci algumas que eu ficara conhecendo na cadeia, mas estavam diferentes. Pareciam anjos flutuando no ar entre as cadeiras e mesas, descendo vagarosamente sobre mim. Estavam sorrindo. Havia um brilho em suas faces. Seus olhos refulgiam, não devido à maco­nha ou H, mas devido a uma luz interior que res­plandecia sobre mim.
“Sentia-me em pouco tonta, e parecia que minha cabeça girava como um pião.
“Glória ali estava, ao meu lado; percebi que ela estava ajoelhada no meu vômito. Virei a cabeça e tentei chorar, mas só consegui vomitar.
“As moças reuniram-se ao meu redor, e ouvi-as orar. Glória levantou-se e senti suas mãos sobre minha cabeça. Um poder eletrizante, espiritual, atravessou-me o corpo, quase erguendo-me do solo, fluindo de suas mãos delicadas para o meu corpo queimado.
“Ouvi música. Algumas moças estavam cantan­do.   Estremeci e vomitei de novo.
“Por favor, será que posso ir para a cama?” ga­guejei.
“Senti mãos fortes sob meus braços, quando uma das moças me levantou e quase me carregou escada acima. Ouvi o ruído de água corrente, e senti que estavam tirando minha roupa. Eu estava doente demais para me importar.   Pensei que iam me afogar. Pensei que talvez fossem um grupo de lunáticos e pretendiam matar-me. Mas eu não es­tava ligando.
“Elas me colocaram carinhosamente sob o chu­veiro, e me lavaram. Foi a primeira vez em vários meses que tomei um banho inteiro, e valeu a pena. Ajudaram a enxugar-me, vestiram uma combinação, e depois, levaram-me para uma cama em um grande quarto cheio de outras camas.
“Dê-me um cigarro”, pedi a uma das moças.
“Nós não fumamos aqui, Maria. Mas tome uma bala. Prove. Penso que ajudará você”, disse Glória. Elas se revezaram, massageando minhas costas. Cada vez que eu pedia um cigarro, Glória punha outra bala em minha boca.
“Ficaram ao meu lado durante dois dias e duas noites. À noite, eu acordava tremendo e via Glória ali, ao lado de minha cama, lendo a Bíblia ou orando em voz alta.   Não fiquei sozinha nem um instante.
“Foi na terceira noite que Glória me convidou: “Maria, quero que você desça para o culto na cape­la.” Eu estava fraca. Muito fraca. Mas desci para a capela, e sentei-me bem atrás.
“Naquela noite você pregou. Foi nessa noite que eu entrei neste escritório, ajoelhei-me aqui e abri meu coração para o Senhor.”
Maria parou de falar. Sua cabeça curvara-se para a frente e tinha os olhos pregados na Bíblia que estava sobre a minha escrivaninha.
“Maria”, murmurei suavemente, “o Senhor ouviu seu clamor?”
Ela olhou para mim: “Sim, Nicky. Nunca du­videi disto. Mas quando a necessidade da droga se torna forte demais, tenho vontade de ceder.” Uma lágrima correu-lhe pela face. “Continue orando por mim.   Com  a ajuda   de Deus, vou vencer agora.”