Capítulo 15
PASSEIO AO INFERNO
EU PASSARA DOIS DIAS FORA da cidade, quando voltei, Glória
falou-me de Maria. Tinha vinte e oito anos. Fora recolhida da rua meio
congelada, com sintomas agudos de privação de heroína, e no limiar da morte.
Glória pediu-me que pensasse especialmente nela, ao pregar naquela noite, na
pequena capela.
Depois do culto, Glória levou Maria ao meu escritório. Ela
gaguejava o tempo todo, sofrendo ainda a privação da droga. “Esta noite”, disse
ela, “tive a estranha sensação de que desejava libertar-me desta vida inútil.
Enquanto você pregava, tive um estranho sentimento de que realmente desejava
morrer para esta vida miserável. Não obstante, pela primeira vez na vida, eu
quero viver. Não consigo entender isso.”
Expliquei-lhe que ela estava experimentando o que a Bíblia
chama “arrependimento”. “Maria, você não pode receber o amor de Deus, enquanto
não estiver disposta a morrer para você mesma. Diga-me, quer morrer para a sua
velha vida ? Quer que a velha vida de drogas e prostituição seja condenada à
morte, sepultada e esquecida para sempre?”
“Sim, sim, sim”, soluçou ela. “Estou disposta a fazer
qualquer coisa para escapar.”
“Está disposta a morrer para o “eu”?” perguntei.
“Sim”, respondeu ela, reprimindo as lágrimas, “até isso.”
“Então deixe-me falar-lhe a respeito de um amor tão
maravilhoso, tão lindo, tão esplêndido que pode mudar até mesmo uma pessoa como
você tornando-a pura e santa. Deixe-me falar-lhe de Jesus.”
Durante cerca de dez minutos, falei-lhe a respeito do
perfeito amor de Deus, que foi derramado sobre nós em Jesus Cristo.
Ela escondeu o rosto nas mãos e começou a chorar.
Aproximei-me dela e coloquei a mão no seu ombro. “Maria, vamos ficar de joelhos
e orar...” Antes que eu terminasse de falar, Maria caíra de joelhos no
assoalho. Senti que a represa se rebentara. Maria nascera de novo, para uma
nova vida em Jesus Cristo.
Um mês depois, ela entrou em meu escritório. A necessidade
que sentia da droga estava se tornando insuportável, e ela queria deixar o
Centro. Johnny, seu namorado, já se rendera à pressão da droga, abandonando o
Centro alguns dias antes, nas caladas da noite.
Levantei-me e fechei a porta. “Maria”, disse eu, “nada em
minha vida é tão importante como o seu futuro. Falemos a respeito do que
aconteceu em sua vida.”
Ela concordou. Remontamos à época em que Maria tinha
dezenove anos, e tirara o diploma do ginásio. Deixei-a falar. “Foi Johnny quem
me ensinou a fumar maconha. Minhas amigas haviam-me contado sua experiência com
a erva. Tinham dito que não havia problemas, contanto que não se lançasse mão
de coisa mais forte. Johnny parecia ter sempre um bom suprimento de “pacaus”, e
eu achava tudo muito divertido.”
Maria parou, como se lembrasse daqueles primeiros dias,
quando começara sua descida ao inferno, e pensei como sua atitude era típica
das dezenas de viciados que estavam se
apresentando no Centro.
Noventa por cento deles tinham começado com maconha e
depois tinham ido além, viciando-se em narcóticos. Percebi o que vinha a
seguir, mas senti que ela precisava desabafar. “Fale, Maria, qual era o efeito?”
Ela relaxou o corpo na cadeira, e começou a contar-me a história, com os olhos
semi-cerrados.
“Eu sentia que os problemas, literalmente, voavam para longe
de mim”, respondeu ela. “Certa vez, senti que eu mesma estava flutuando
quilômetros e quilômetros acima da terra. Então comecei a partir-me em
pedaços. Meus dedos soltaram-se das mãos e voaram para longe, no espaço. As
mãos saíram dos punhos. Os braços e pernas deixaram meu corpo. Parti-me em
milhões de pedaços que voaram, levados por uma brisa suave.”
Ela parou de novo, relembrando. “Mas a maconha não era
suficiente. O que ela fazia era apenas aguçar em mim um desejo de algo mais
forte. Eu estava mentalmente “fisgada”.
“Foi Johnny quem me deu a primeira “picada”. Ele vinha
falando disso há semanas. Certa tarde, depois de ter chorado o dia inteiro,
parecia que tudo ia mal. Johnny chegou então com a agulha e a colher. Eu sabia
o que ele ia fazer, mas ele parecia tão certo de que aquilo me ajudaria, que
deixei-o prosseguir. Naquela época eu nada sabia a respeito do vício de
narcóticos, mas ele me garantiu que tudo iria sair bem. Amarrou um cinto em
torno do meu braço, bem apertado, pouco acima do cotovelo, até que a veia
saltou como um grande caroço, sob a minha pele. Esvaziou na colher o conteúdo
de um envelope, um pó branco e semelhante a açúcar. Adicionou água com um
conta-gotas, e em seguida acendeu um fósforo sob a colher, até o líquido ferver.
Outra vez, com o conta-gotas, sugou a heroína agora dissolvida. Depois, com
perícia, furou minha veia com a ponta da agulha hipodérmica. Então,
cuidadosamente, apertou o conta-gotas, fazendo gotejar o potente líquido na
parte mais larga da agulha hipodérmica. Deixando o conta-gotas de lado, moveu a
agulha para baixo e para cima, em meu braço, até o líquido desaparecer na veia.
Não senti nada quando ele tirou a agulha. Não sabia então, mas acabara de me
tornar uma viciada que injeta narcótico diretamente na veia, sendo esta a
forma mais terrível do vício.
“Johnny, não estou boa”, disse eu.
“Nada disso, você está bem, garota”, respondeu. “Descanse e
logo estará voando. Prometi, e nunca deixo de cumprir minhas promessas, não é
mesmo?”
“Mas eu não o ouvia mais. Comecei a ter ânsias, e antes que
pudesse mexer-me, vomitei no assoalho. Caí atravessada na cama, e comecei a
tremer e a suar. Johnny sentou-se ao meu lado e segurou minha mão. Logo relaxei
os músculos, e uma sensação quente, de fluidez, atravessou meu corpo. Tinha a
impressão de que me elevava em direção ao forro; acima de mim podia ver a
face sorridente de Johnny. Ele curvou-se sobre mim e murmurou: “Como é que está
indo, boneca ?”
“Delicioso”, murmurei. “Puxa, está ficando bom.” Eu começara
a minha incursão no inferno.
“Só recebi outra picada uma semana mais tarde. Desta vez,
quando Johnny fez a sugestão, concordei prontamente. A dose seguinte veio após
três dias. Depois disso, Johnny não precisava mais sugerir, eu é que pedia. Não
o sabia então, mas já estava viciada. .. “fisgada”.
“Na semana seguinte, quando Johnny chegou em casa, eu estava
começando a tremer. Pedi-lhe uma “picada”.
“Escute, boneca, eu gosto de você e tudo o mais, mas esta
droga custa dinheiro, você sabe.”
“Eu sei disso. Johnny, mas preciso de uma “picada .”
“Johnny sorriu: “Não tem, menina. Puxa, você está começando
a me custar caro.”
“Por favor, Johnny”, insisti com ele, “não brinque comigo.
Não percebe que eu preciso de uma “picada ?”
“Johnny dirigiu-se para a porta. “Hoje não. Esqueça. Eu não
tenho tempo nem dinheiro.”
“Johnny”, eu estava gritando. “Não me abandone. Pelo amor de
Deus, não saia!” Mas ele se fora, e ouvi a chave girar na fechadura.
“Tentei conter-me, mas nada pude fazer. Cheguei à janela, e
vi Johnny na esquina, conversando com duas garotas. Eu sabia quem eram.
Trabalhavam para Johnny. Ele se referia a elas como parte do seu “estábulo”.
Eram prostitutas que compravam a droga de que precisavam com o dinheiro que
ganhavam na profissão. Johnny fornecia a “mercadoria”, e elas passavam a droga
aos fregueses, mediante uma comissão.
“Fiquei olhando pela janela, e vi quando ele pôs a mão no
bolso do paletó e passou disfarçadamente, para uma das garotas, um pequeno
envelope branco. Eu sabia que era a droga. Ao ver Johnny desfazer-se da
preciosa heroína, não pude agüentar. Por que ele a dava para ela, e não me
deixava tomar uma “picada”? Deus, como eu precisava de uma!
“De repente, ouvi meus próprios gritos: “Johnny! Johnny!”
eu gritava da janela, com todas as forças dos pulmões. Ele olhou para cima, e
voltou para o apartamento. Quando entrou, eu estava atravessada na cama,
soluçando e tremendo. Havia perdido todo o autocontrole.
“Johnny fechou a porta. Sentei na cama e tentei falar, mas
antes que pudesse dizer qualquer coisa, ele avançou para mim e bateu-me na boca
com as costas da mão. “Que diabo está querendo?” gritou ele. “Quer que eu seja
preso, ou o quê ?”
“Johnny, por favor, ajude-me. Preciso de uma “picada”. Vi
você dar a droga para aquelas garotas. Por que não dá para mim? Por favor!” Eu
chegara a um estado de completo desespero. Estava tremendo e soluçando ao
mesmo tempo. Sentia o gosto do sangue que escorria pelo canto da boca, mas não
me importava. Tudo o que eu queria era a agulha. Johnny deu uma risada. “Escute,
garota, você é diferente daquelas cadelas que estão lá na rua. Você tem classe.
Mas esta droga não se consegue de graça. Custa, e muito. Aquelas garotas lá
embaixo trabalham para conseguir a delas. O que é que você está fazendo para
conseguir a sua, hein ?”
“Eu vou trabalhar, Johnny. Farei qualquer coisa. Tudo. Só
quero que você me dê aquela agulha.”
“Não sei não”, disse Johnny. “Você tem classe demais para
trabalhar na rua.”
“Johnny, farei qualquer coisa. Fale o que é.” Senti o
soalho subir ao meu encontro, quando joguei-me aos seus pés e abracei seus
joelhos para não cair com o rosto no chão.
“Você quer dizer que está disposta a trabalhar para mim na
rua?” Ele parou e depois continuou com entusiasmo. “Você pode, menina, eu sei
que você pode, se quiser. Rapaz, você pode passar por cima daquelas frangas,
de dez contra um. Os homens vão enxamear ao seu redor, e entre nós dois podemos
fazer muito dinheiro. Que tal? Eu teria muito dinheiro e poderia comprar para
você toda H (heroína) que quisesse e você nunca mais passaria por isto. Que
tal? É isso que você quer?”
“Sim, Johnny, sim, sim. Só quero que você me dê uma “picada.”
“Johnny aproximou-se do fogão, e acendeu uma boca. Tirou a
colher e colocou nela um pouquinho de pó branco. Adicionou água e segurou-a
sobre a chama. Enchendo a agulha, aproximou-se de mim, que estava agachada no
chão. “Puxa, menina, isto é o começo do céu para nós dois. Com você ao meu
lado, podemos alcançar a lua.” Senti a agulha penetrar na veia. A tremura parou
quase imediatamente — em questão de segundos. Johnny ajudou-me a levantar, e
levou-me para a cama, onde eu caí em profundo sono. Mas Johnny estava enganado.
Não era o começo do céu. Era o começo de um pesadelo horrível, que haveria de
durar oito longos anos. Não o céu — mas o inferno.
“O inferno é um abismo sem fundo, no qual a gente cai e
continua caindo, sem nunca chegar ao fundo. Não há ponto de parada nem
interrupção na queda no vício dos tóxicos. Esse, o caminho que eu começava a
trilhar.
“Johnny não poderia usar-me, se eu não fosse viciada. Quando
me tornei escrava das drogas, tornei-me também escrava dele. Tinha de fazer o
que ele quisesse... e ele queria que eu me prostituísse para dar-lhe dinheiro.
Ele me fornecia droga, mas eu via que a situação não era exatamente o céu que
ele prometera.
“Descobri logo que Johnny tinha outra mulher. Eu sabia que
ele não queria casar comigo, mas nunca imaginara que estivesse sustentando
outra. Soube disto de maneira crua.
“O movimento fora pequeno na noite anterior, e eu havia
levantado e descido à rua, naquela tarde, para fazer algumas compras. Gostava
de sair e esquecer-me do que eu era, imaginando ser igual às outras pessoas.
Estava na esquina das ruas Hicks e Atlantic, esperando o sinal abrir, quando
senti alguém agarrar-me o ombro, puxando-me com força, de forma que me fez dar
meia-volta. “Você é Maria, não é?” Era uma mulher morena de longos cabelos
negros que se espalhavam pelos ombros. Seus olhos despediam chispas de fogo.
Antes que eu pudesse responder, ela disse: “Sim, é você. Já te conheço. É você
que anda atrás do meu homem. Vou ensiná-la, cadela imunda.”
“Procurei afastar-me, mas ela deu-me um tapa no rosto. O
sinal se abrira, e o povo passava apressado ao nosso redor, mas eu não estava
para ser empurrada por ninguém, daquela forma. Estendi a mão, puxei-a pelo
cabelo, e empurrei-a para trás com a outra mão.
“Ela começou a gritar como uma louca. “Cadela suja. Dormindo
com o meu homem. Vou matar você.” Estava como louca. Tentou acertar-me com a
bolsa, mas eu me abaixei. Empurrei-a com o corpo, e ela caiu de costas, contra
o gradil, na entrada da estação do metrô. Ouvi quando respirou fundo no momento
em que bateu a espinha no duro cano de ferro.
“Peguei sua cabeça e empurrei-a para trás, contra o cano, em
direção aos degraus negros que levavam à estação do metrô. Eu estava tentando
enterrar as unhas nos seus olhos, onde tinha certeza de que iria feri-la. De
repente, ela enterrou os dentes na minha mão. Senti a carne rasgar-se, quando
arranquei a mão de sua boca, gritando de dor.
“Quando me afastei, alguém me agarrou e a multidão me
separou dela. O homem que me agarrara fez-me dar meia volta e me atirou na rua,
onde tropecei e caí. A multidão ainda estava aglomerada em torno da outra
mulher. Atravessei a rua depressa, e continuei correndo pela calçada, do outro
lado.
“Não olhei para trás, mas corri para meu apartamento. Ali
lavei a mão e pedi à vizinha para me fazer um curativo. Naquela noite voltei
para a rua... Nunca mais vi aquela mulher.
“Eu não sentia mais nenhuma obrigação para com Johnny.
Descobri que podia conseguir “picadas” com muitos outros homens, cada um dos
quais ficaria contente se eu trabalhasse para ele. Isto tornou-se um longo
pesadelo. Passei a viver com um homem após outro. Todos eram viciados em
entorpecentes. Eu vendia meu corpo; eles roubavam.
“Comecei a trabalhar em sociedade com algumas das outras
mulheres. Nós alugávamos um quarto para a noite. Saíamos para a rua e
esperávamos. Alguns homens eram fregueses regulares, mas na maior parte eram
inteiramente estranhos. Negros, italianos, orientais, porto-riquenhos,
brancos... o dinheiro deles tinha uma só cor.
“Era o inferno: quando conseguia dormir durante o dia,
acordava gritando, aterrorizada com sonhos terríveis. Estava aprisionada em meu
próprio corpo, e era a minha própria carcereira. Não havia fuga daquele temor,
daquela imundície, e do horror daquele pecado.
“Os homens das ruas não eram os únicos que me davam
problemas. Eu também estava em constante dificuldades com a polícia. Fui presa
onze vezes, durante os oito anos do meu vício. A sentença mais comprida foi de
seis meses. Fui presa a propósito de tudo: roubo em lojas, vício de
entorpecentes, furto de pequenas quantias, vagabundagem, e também,
prostituição.
“Eu odiava cadeia. Da primeira vez, chorei muito. Prometi a
mim mesma que nunca mais faria algo que me levasse a ser presa de novo. Mas
quatro meses depois, estava de volta. Voltei dez vezes.
“Os policiais estavam constantemente me assediando. Um
guarda vinha de dois em dois dias, quando eu estava na rua, procurando fazer
com que me entregasse a ele. Mas eu sabia que não lucraria nem um tostão com
aquilo, por isso nunca cedi.
“Mas a heroína estava me destruindo. Lembro-me da primeira
vez em que tomei uma dose exagerada. Eu ainda estava trabalhando, e voltara
para a casa de minha mãe. Abandonara Johnny. Mamãe estava trabalhando em uma
fábrica, e eu em um escritório. Eu disse a mamãe que precisava de algumas
roupas novas para trabalhar, e implorei tanto que levei a a fazer um empréstimo
no banco.
“Cheguei cedo do serviço, naquela tarde, e tirei o dinheiro
da escrivaninha. Desci para o Harlem, onde morava o traficante, comprei a
heroína e coloquei-a dentro do soutien. Andei mais uns dois quarteirões, e
cheguei a um porão onde viviam alguns viciados, meus conhecidos. Eu estava
desesperada, trêmula. Esquentei a droga em uma tampinha de garrafa, enchi a
agulha, e mergulhei-a na veia. Percebi logo que alguma coisa estava errada.
Fiquei tonta e desmaiei. Posso lembrar-me de que alguém me tocou, tentando
fazer-me ficar de pé. Penso que eles ficaram com medo quando não reagi. Alguém
rasgou meu soutien, roubou o resto de H, e depois jogou-me para fora do porão,
deixando-me caída na calçada.
“Quando acordei, estava no Hospital Bellevue. A polícia me
encontrara, levando-me para o hospital. Eu fora roubada. Todo o dinheiro
desaparecera. Três guardas rodeavam minha cama, todos fazendo perguntas ao
mesmo tempo. Disse-lhes que estivera bebendo, e que alguém pusera algo na
minha bebida. Mas eles sabiam. Fizeram o médico marcar “DE” na minha ficha,
indicando “dose exagerada”. Foi a primeira de uma série de três.
“A última quase me matou.
“Estivera bebendo no quarto. A combinação de vinho barato e
de dose exagerada de heroína, fez-me desmaiar.
“Fiquei inconsciente na cama, e o cigarro caiu em meu
cabelo. Posso lembrar a sensação estranha que tive. Sonhei que a mão de Deus
estendeu-se e sacudiu-me ... e continuou a sacudir-me... Lembro-me que disse: “Te
manca, Deus, me deixa sozinha. Pára de me sacudir.” Mas as sacudidelas não pararam.
E eu acordei.
“Eu sabia que alguma coisa estava errada, porém não percebi
nada. Senti o odor de algo podre — um cheiro de carne queimada. Tentei
levantar-me, mas caí no soalho. Rastejando até o espelho, consegui levantar-me
e olhei. O rosto que vi não era o meu. Eu estava careca. Todo o cabelo fora
queimado. Meu rosto era uma massa de bolhas e carne crestada. Minhas orelhas
tinham sido quase completamente queimadas, e delas subia uma espiral de
fumaça, como que de uma torrada queimada. As duas mãos estavam queimadas e
empoladas, por ter tentado apagar o fogo com elas, inconscientemente.
“Comecei a gritar. Um homem que morava do outro lado do
corredor, ouviu meus gritos histéricos, e sabendo que eu era viciada em drogas,
veio e começou a esmurrar a porta.
“Cambaleei até a porta e agarrei o trinco, procurando
abri-la, mas a carne das palmas de minhas mãos grudou no metal, quando tentei
virar a maça-neta. A carne de minhas
mãos desprendeu-se, e não pude abrir.
“Não sei como, ele conseguiu abrir a porta pelo lado de
fora. Queria levar-me para o hospital, mas eu recusei. Caí sem forças na cama,
e pedi que me levasse ao apartamento de minha amiga, Inez. Ele me levou, e eu
passei a noite lá.
“As queimaduras, porém, eram de segundo e terceiro grau, e a
dor tornou-se insuportável. Eu tinha medo do hospital. Já estivera lá
anteriormente. Como estava “fisgada”, sabia que se fosse para o hospital,
teria de deixar o vício, “na marra”. Eu achava que não agüentaria, e estava com
medo de morrer.
“Mas, no dia seguinte, Inez forçou-me a ir para o hospital.
Ela não teve de insistir muito. Eu sabia que morreria, se não fosse. Piquei lá
um mês e meio, até as queimaduras sararem.
“Quando saí do hospital, voltei para as ruas. Tomei a minha
primeira “picada” quarenta e cinco minutos depois de ter saído do hospital e
naquela noite eu estava de volta ao trottoir. Só que agora tudo estava mais
difícil, devido às cicatrizes e queimaduras. Ninguém me queria. Minhas roupas
estavam cobertas de queimaduras de cigarro e manchas de café. Meu corpo vivia
sujo e cheirava mal. Algumas vezes eu andava pela rua vomitando. O vício estava
me pondo louca.
“Um rapaz espanhol chamado René costumava conversar comigo
nas ruas. Ele fora traficante, mas esteve no Centro Desafio Jovem, e abandonara
o vício. Tornara se crente, e durante os últimos meses vinha insistindo comigo
para que eu viesse aqui e também abandonasse a droga.
“Certa noite fria de março, eu estava precisando
desesperadamente de uma “picada”. Desci pela rua cambaleando, virei a esquina
próxima ao n.° 416 da Av. Clinton, e caí sem forças na escadaria.
“Mário estava na portaria naquela noite. Ele chamou Glória.
Ela me levantou suavemente, e eu me apoiei nela. Entramos pela porta lateral, ao
lado da mesa e passamos para a capela.
“Ajoelhe-se, Maria”, disse ela, “ajoelhe-se e ore.” Eu me
sentia entorpecida, e julguei estar morrendo. Pensei: se é necessário isto para
permanecer viva, vou fazê-lo. Ajoelhei-me no chão, atrás de um dos bancos, mas
antes que pudesse curvar a cabeça, comecei a vomitar. Vomitei em minha blusa e
no chão. Comecei a chorar e a tremer, e caí amontoada no chão, com as duas
mãos à minha frente, sobre meu
próprio vômito.
“Levantei os olhos. As outras moças que estavam na capela
me rodearam. Reconheci algumas que eu ficara conhecendo na cadeia, mas estavam
diferentes. Pareciam anjos flutuando no ar entre as cadeiras e mesas, descendo
vagarosamente sobre mim. Estavam sorrindo. Havia um brilho em suas faces. Seus
olhos refulgiam, não devido à maconha ou H, mas devido a uma luz interior que
resplandecia sobre mim.
“Sentia-me em pouco tonta, e parecia que minha cabeça girava
como um pião.
“Glória ali estava, ao meu lado; percebi que ela estava
ajoelhada no meu vômito. Virei a cabeça e tentei chorar, mas só consegui
vomitar.
“As moças reuniram-se ao meu redor, e ouvi-as orar. Glória
levantou-se e senti suas mãos sobre minha cabeça. Um poder eletrizante,
espiritual, atravessou-me o corpo, quase erguendo-me do solo, fluindo de suas
mãos delicadas para o meu corpo queimado.
“Ouvi música. Algumas moças estavam cantando. Estremeci e vomitei de novo.
“Por favor, será que posso ir para a cama?” gaguejei.
“Senti mãos fortes sob meus braços, quando uma das moças me
levantou e quase me carregou escada acima. Ouvi o ruído de água corrente, e
senti que estavam tirando minha roupa. Eu estava doente demais para me
importar. Pensei que iam me afogar.
Pensei que talvez fossem um grupo de lunáticos e pretendiam matar-me. Mas eu
não estava ligando.
“Elas me colocaram carinhosamente sob o chuveiro, e me
lavaram. Foi a primeira vez em vários meses que tomei um banho inteiro, e valeu
a pena. Ajudaram a enxugar-me, vestiram uma combinação, e depois, levaram-me
para uma cama em um grande quarto cheio de outras camas.
“Dê-me um cigarro”, pedi a uma das moças.
“Nós não fumamos aqui, Maria. Mas tome uma bala. Prove.
Penso que ajudará você”, disse Glória. Elas se revezaram, massageando minhas
costas. Cada vez que eu pedia um cigarro, Glória punha outra bala em minha
boca.
“Ficaram ao meu lado durante dois dias e duas noites. À
noite, eu acordava tremendo e via Glória ali, ao lado de minha cama, lendo a
Bíblia ou orando em voz alta. Não
fiquei sozinha nem um instante.
“Foi na terceira noite que Glória me convidou: “Maria, quero
que você desça para o culto na capela.” Eu estava fraca. Muito fraca. Mas
desci para a capela, e sentei-me bem atrás.
“Naquela noite você pregou. Foi nessa noite que eu entrei
neste escritório, ajoelhei-me aqui e abri meu coração para o Senhor.”
Maria parou de falar. Sua cabeça curvara-se para a frente e
tinha os olhos pregados na Bíblia que estava sobre a minha escrivaninha.
“Maria”, murmurei suavemente, “o Senhor ouviu seu clamor?”
Ela olhou para mim: “Sim, Nicky. Nunca duvidei disto. Mas
quando a necessidade da droga se torna forte demais, tenho vontade de ceder.”
Uma lágrima correu-lhe pela face. “Continue orando por mim. Com a
ajuda de Deus, vou vencer agora.”