sábado, 24 de abril de 2021

Foge Nick Foge - 13 - Onde os anjos temem andar



Capítulo  13

ONDE OS ANJOS TEMEM ANDAR

OS DIAS QUE SE SEGUIRAM foram cheios de alegria e de vitória. A primeira transformação que notei foi na minha conduta. Não andava mais gin­gando. Ficava atento durante as orações, orando com a pessoa que dirigia. Em lugar de bancar o “vivo”, comecei a demonstrar consideração pelos ou­tros, principalmente pela garota de lindos olhos ne­gros que se sentava à minha frente.
Descobri que o nome dela era Glória. No dia em que dei meu testemunho diante da classe, ela en­caminhou-se para mim e apertou-me a mão de ma­neira digna, como uma dama: “Deus o abençoe, Nicky. Tenho orado por você.”
Tinha uma desconfiança de que ela provavel­mente estivesse orando para que eu “caísse morto”. Mas percebi que estava realmente feliz pelo fato de Deus ter-me tocado. Seus olhos, profundos e negros, piscavam como as estrelas à meia-noite e seu sorri­so era lindo.
Na semana seguinte encontrei coragem suficien­te para convidá-la a ir comigo a uma campanha de evangelização, que estávamos realizando em uma pe­quenina igreja perto da escola. Ela sorriu, e duas covinhas apareceram, quando acenou afirmativa­mente.
No decorrer daquele ano fomos juntos a mui­tos cultos. Embora estivéssemos sempre na compa­nhia de outras pessoas, fiquei sabendo muitas coi­sas a seu respeito. Nascera no Estado de Arizona. O pai era italiano, e sua mãe mexicana. Tinham mu­dado para a Califórnia quando ela estava com cin­co anos, e seus pais abriram um bar em Oakland. Na última série do ginásio, fora salva e decidira entrar na Escola Bíblica. Seu pastor, o Rev. Sixto Sanchez, sugerira que ela escrevesse para o Institu­to Bíblico. Eles a aceitaram, e entrara na escola no outono daquele ano.
Perto do fim do ano escolar, senti que Glória estava passando por algum profundo desassossego íntimo. O regime escolar era muito pesado para ela. Nos últimos dias de aula, ela me disse que achava que não agüentaria cursar outro ano, e que por isso não voltaria à escola depois das férias. Fiquei desa­pontado, mas ela prometeu que me escreveria.
Passei aquele primeiro verão em Los Angeles. Alguns amigos me levaram para lá e providencia­ram um lugar para eu morar. Mas senti muito a fal­ta de Glória. Quando as aulas começaram, no outono, fiquei muito satisfeito ao encontrar uma carta à minha espera. Ela cumprira a promessa.
Glória revelou-me, em parte, os motivos que a levaram a deixar a escola. “Minhas experiências fo­ram diferentes das suas, Nicky”, escreveu ela. “Em­bora mamãe e papai trabalhem num bar, fui criada em uma atmosfera moralmente boa. Quando fui sal­va, fui a extremos exagerados. Aprendi que era pe­cado copiar os padrões do mundo. Desfiz-me de to­da maquilagem, deixei de usar maiô, e desisti até de enfeitar-me com jóias. Tudo em mim era negativo. Quando fui para a escola, a situação piorou ainda mais. Estava a ponto de sofrer um colapso mental. Queria contar isso a você, mas nunca tivemos opor­tunidade de estar a sós. Espero que compreenda e continue orando por mim. Mas eu não voltarei pa­ra a escola...”
O segundo ano na Escola Bíblica passou depressa. Minhas notas melhoraram, e os outros alunos es­tavam começando a me aceitar como igual. Tive vá­rias oportunidades de pregar em trabalhos ao ar li­vre, e dar meu testemunho em algumas igrejas vizi­nhas.
Em abril, recebi uma carta de Davi Wilkerson. Ele ainda estava morando na Pensilvânia, mas que­ria que eu voltasse para Nova York naquele verão, para trabalhar entre as quadrilhas do Brooklin. Pla­nejara alugar um apartamento na Av. Clinton, entre as ruas Fulton e Gates, e havia conseguido que Thurman Faison e Luiz Delgado trabalhassem comi­go, se eu fosse. O dinheiro era pouco, mas teríamos moradia e pagariam sete dólares por semana a cada um de nós.
Naquela noite, depois da hora de estudo, fui ao escritório do diretor, e telefonei para Davi, a co­brar. O telefone tocou durante muito tempo, e final­mente uma voz sonolenta atendeu. Ele resmungou que pagaria a taxa.
“Ei, Davi, sou eu, Nicky. Você já acabou de jan­tar?”
“Nicky, sabe que horas são?” “Claro, meu chapa, são dez da noite.” “Nicky...” havia uma pontinha  de exasperação na voz, “podem ser dez horas na Califórnia, mas aqui é uma da madrugada. Eu e Gwen estamos dormin­do há duas horas. Agora você acordou o bebê tam­bém.”
“Mas Davi,    queria dar-lhe  as boas  novas.” Ouvi perfeitamente a criança berrando, como “fundo musical”. “O que é tão bom que não pode esperar até de manhã, Nicky ?”
“Isto não pode esperar, Davi. Eu vou para No­va York trabalhar com você neste verão. Deus me disse que quer que eu vá.”
“Isso é ótimo, Nicky. Estou vibrando, Gwen também, e o bebê também. Vou mandar uma passa­gem de avião para você. Boa noite.”
Fiquei acordado a noite inteira, fazendo planos para a minha volta a Nova York.
A viagem para a “minha cidade” ajudou-me a ver como eu tinha mudado. Era como se toda a minha vida tivesse se tornado realmente viva. Quando começamos a descer no aeroporto de Nova York, meu coração começou a bater mais depressa ante as recordações, e o entusiasmo cresceu. Loca­lizei a silhueta do Edifício Empire State no hori­zonte, e depois, a ponte de Brooklin. Nunca perce­bera como a cidade era tão compacta, nem como se espalhava por centenas de quilômetros quadra­dos. Meu coração transbordava de amor e compai­xão pelos milhões de pessoas que estavam amarra­das, ali em baixo, na selva de asfalto do pecado e do desespero. Meus olhos ficaram rasos de água quan­do o avião fez um círculo sobre a cidade. Estava triste e feliz — amedrontado e ansioso. Estava em casa.
Davi  foi  me  buscar no aeroporto,  e  nós  nos abraçamos e choramos sem   acanhamento.   Com o braço rodeando meus ombros, levou-me até o car­ro, falando, cheio de entusiasmo, a respeito do seu novo sonho.
Escutei, enquanto ele falava dos planos que ti­nha para o futuro; do seu novo Centro — Desafio Jovem. Porém, ele percebeu que algo estava me preocupando, e finalmente seu entusiasmo arrefe­ceu o suficiente para perguntar-me o que era.
“Davi, você soube alguma coisa de Israel? Onde ele está? Se está bem?”
Davi curvou a cabeça, e finalmente olhou para mim com um olhar sombrio.
“Não, Nicky, nem tudo está bem. Não falei nada sobre isto em minhas cartas, porque temia desa­nimá-lo. Acho que devo contar tudo agora, para que comece a orar comigo nesse sentido.”
Ficamos algum tempo no carro abafado, no pátio de estacionamento do aeroporto, enquanto Davi me contava a situação de Israel.
“Israel está na prisão, Nicky. Foi envolvido em um assassinato, em dezembro, depois que você foi para a escola. Até agora, não saiu da prisão.”
Meu coração acelerou-se. Senti um suor frio na palma das mãos. Respirei fundo.
“Conte-me tudo o que sabe, Davi. Eu quero sa­ber.”
“Quando tive notícias dele tudo estava termi­nado, e já tinha sido levado para a penitenciária de Elmira. Fui até Nova York para visitar a mãe de Is­rael. Ela chorou ao conversar comigo, e me contou que houvera uma grande mudança na vida do filho depois que ele aceitara Cristo, mas, depois do de­sengano, ele voltara para a quadrilha.”
“Que desengano?” perguntei.
“Você não sabe?”
“Você se refere ao fato de eu ter sido esfaquea­do? Ele disse que ia pegar o cara que fizera aquilo.”
“Não, foi algo mais profundo do que isso. A mãe dele contou me que no dia em que você saiu do hospital,  o  Sr.  Delgado passou no  apartamento pediu-lhe  para  ir com você encontrar  comigo em Elmira, no dia seguinte. Israel ficou entusiasmado e disse que iria. Ela o acordou na madrugada do dia seguinte às quatro horas, passou as roupas dele, e arrumou a sua mala. Ele foi até a Av. Flatbush e esperou das seis até às nove da manhã. De alguma forma, vocês se desencontraram. Ele voltou para o apartamento, jogou a mala no chão, e disse à mãe que todos os crentes eram uma cambada de trapa­ceiros. Naquela noite voltou para a gang.”
Senti lágrimas vindo aos meus olhos, quando me virei para Davi. “Nós o procuramos. Procura­mo-lo por toda parte. Eu queria parar e procurar mais, mas o Sr. Delgado disse que precisávamos ir. Oh, Davi, se soubéssemos! Se tivéssemos olhado um pouco mais detidamente, poderia ser que ele agora estivesse  na escola comigo.”
Davi assoou o nariz e prosseguiu: “Depois que voltou para a quadrilha, ele e outros quatro atira­ram em um rapaz da quadrilha dos Angels da Rua Sul, defronte à Arcada Penny. Ele morreu imedia­tamente. Israel foi acusado de assassinato em se­gundo grau, e sentenciado a cinco anos na peniten­ciária do Estado. Está lá agora.”
Houve uma longa e sofrida pausa, e finalmente perguntei a Davi se ele o tinha visto, ou tivera notí­cias dele desde que fora preso.
“Escrevi-lhe, mas vim a saber que ele não podia responder. Só pode escrever para a família. Até os seus cursos por correspondência precisam ser en­viados através do capelão da prisão. Orei por ele todo o verão seguinte, e finalmente empreendi uma viagem a Elmira, só para vê-lo. Estavam preparan­do a sua transferência para a colônia penal agrí­cola de Comstock, e permitiram que eu me entre­vistasse com ele durante alguns minutos. Israel está bem, penso eu, mas ainda tem mais de três anos para ficar atrás das grades.”
Ficamos ali, sentados em silêncio, durante longo tempo, e finalmente eu disse: “Penso que deve­mos orar por ele.”
Davi curvou-se sobre o volante e começou a orar em voz alta. Virei-me de costas, no assento, e ajoelhei-me no piso do carro, com os cotovelos apoiados no banco. Passamos quase quinze minutos orando, ali no pátio de estacionamento. Quando ter­minamos, Davi disse: “Fizemos tudo o que nos é possível fazer por Israel, por enquanto, Nicky; mas há uma cidade cheia de outros, iguaizinhos a ele, que nós ainda podemos salvar para Jesus Cristo. Você está pronto para por mãos à obra?”
“Vamos”, disse eu. Mas eu sabia que minha obra jamais estaria completa enquanto não pudes­se libertar Israel. Davi deu partida no carro, e enve­redou pelo intenso tráfego de Nova York. Eu estava abrasado de zelo pelo Senhor. “Quero visitar os membros da minha velha quadrilha, amanhã”, dis­se como que desinteressadamente. “Quero falar-lhes de Jesus.”
Davi virou-se para mim, ao sair da preferencial e brecar diante de um sinal vermelho, e disse: “Eu, se fosse você, avançaria devagar, Nicky. Desde que você foi embora, muita coisa aconteceu. Você se lembra quando se converteu? Quase mataram você. Eu teria muito cuidado. Há muito o que fazer, sem se envolver tão cedo com os Mau-Maus. Só loucos entram onde os anjos temem andar.”
O semáforo mudou de cor, e nós arrancamos, abrindo a curva, para ultrapassar um ônibus. “Pos­so ser louco, Davi, mas desta vez sou louco por amor de Jesus. Ele irá comigo e me protegerá. Os anjos podem ter medo de entrar na zona dos Mau-Maus, mas eu vou com Jesus.”
Davi sorriu e balançou a cabeça como a concor­dar, enquanto entrava na Av. Clinton. Freando dian­te de um edifício de apartamentos, ele disse: “Ele é o seu guia, Nicky, não eu. Faça o que ele ordenar, e você só terá vitória. Vamos, quero que conheça Thurman e Luís.”
O dia seguinte seria o grande dia. Passei a maior parte da noite acordado, orando. De manhã, vesti o terno e pus uma gravata vistosa, com minha Bí­blia nova de capa de couro debaixo do braço, atra­vessei a cidade em direção ao conjunto habitacional de Fort Greene. Ia ao encontro dos Mau-Maus.
A cidade não se modificara muito. Alguns dos prédios mais antigos tinham sido condenados, e ha­via tapumes ao seu redor. Tudo o mais permanecia como eu deixara, dois anos antes. Mas eu estava di­ferente. Engordara e cortara o cabelo. Contudo, a diferença maior estava no íntimo. Eu era um novo Nicky.
Quando atravessei a Praça Washington, meu co­ração começou a bater mais depressa. Comecei a procurar os Mau-Maus; contudo, pela primeira vez, estava preocupado a respeito da maneira como saudá-los — e o que eles diriam, quando me vissem. Como eu me apresentaria? Não estava com medo, só queria ter sabedoria para manejar a situação pa­ra a glória de Deus.
Quando saí da praça, vi uma turma de Mau-Maus encostada na parede de um edifício. As pala­vras de Davi relampejaram pela minha mente: “Só loucos entram onde os anjos temem andar”, mas eu murmurei uma oração em voz alta, pedindo que o Espírito Santo fosse comigo, e encaminhei-me pa­ra a “tropa” de desocupados.
Havia cerca de treze rapazes naquela turma. Reconheci Willie Cortez, e dando-lhe um tapinha nas costas, disse: “Ei, Willie, meu chapa...”
Cortez voltou-se e arregalou os olhos: “Não me diga que você é o Nicky?”
“Sim, meu chapa, sou o Nicky.” “Puxa, você parece um santo, ou coisa parecida.” “Conversa,  rapaz. Acabo  de  chegar da   Califór­nia. As coisas estão indo bem para mim. Sou crente e estou estudando.”
Ele agarrou meus ombros com ambas as mãos e   fez-me   girar várias vezes,  olhando para minhas roupas e meu aspecto. “Puxa, Nicky, não acredito. Não posso acreditar.”
Depois, virando-se para os outros membros da gang, que estavam olhando curiosamente, disse. “Ei, rapazes, tirem o chapéu. Este é o Nicky. Ele foi nosso presidente. Era um cara bem bom de briga e fez história com os Mau-Maus. Era o mais durão de todos.”
Os rapazes tiraram os chapéus, respeitosos. Wil­lie Cortez era o único do grupo a quem eu conhecia. Quase todos os rapazes eram mais novos, muito mais novos, mas todos ficaram impressionados. Ti­nham ouvido falar de mim, e aglomeraram-se ao nosso redor, estendendo a mão.
Coloquei o braço ao redor do ombro de Willie e sorri para ele. “Olha, Willie, vamos dar uma volta pela praça. Quero conversar com você.”
Afastamo-nos do grupo e entramos na Praça Washington. Willie andava vagarosamente ao meu la­do, com as mãos nos bolsos, arrastando os pés no cimento. Quebrei o silêncio: “Willie, quero contar a você o que Cristo fez em minha vida.”
Ele não levantou a cabeça, mas continuou an­dando enquanto eu falava. Contei-lhe como eu me sentira quando era membro da quadrilha, dois anos antes, e como eu entregara o coração a Cristo. Con­tei-lhe a maneira como Deus me guiara para fora do deserto de concreto, para um lugar onde agora eu era um ser humano útil.
Willie interrompeu-me, e eu percebi que a sua voz tremia: “Ei, Nicky, pára com isso, te manca! Você me faz sentir mal. Quando fala, alguma coisa mexe aqui dentro do meu peito. Você está diferen­te. Não é mais o mesmo velho Nicky. Você me dá medo.”
“Tem razão, Willie, alguma coisa me transfor­mou. O sangue de Cristo transformou-me e lavou-me; agora, estou limpo. Sou um homem diferente. Não tenho mais medo. Não tenho mais ódio. Agora eu amo as pessoas. Amo você, Willie. E quero dizer-lhe que Jesus te ama.”
Chegamos  a um banco, e fiz sinal para Willie sentar. Ele sentou-se e olhou-me, dizendo: “Nicky, fala mais de Deus.” Pela primeira vez na minha vida percebi como era importante falar de Cristo para os meus amigos. Percebi a solidão na sua face, a ignorância — o me­do. Ele era exatamente como eu fora dois anos an­tes. Mas agora eu queria mostrar-lhe como escapar. Sentei ao lado dele, e abri a Bíblia nas passa­gens marcadas com lápis vermelho. Li as passagens bíblicas referentes ao pecado do homem. Quando li : “Pois o salário do pecado é a morte”, Willie olhou para mim com medo estampado no rosto.
“O que quer dizer, Nicky? Se eu sou pecador, e Deus vai me matar porque pequei, o que posso fa­zer? Quero dizer, puxa, preciso fazer alguma coisa. Que devo fazer?” Seus olhos mostravam grande excitação, e ele ficou de pé, de um salto.
“Sente-se, Willie, ainda não acabei. Vou contar o resto da história. Deus ama você. Ele não quer que vá para o inferno. Ele o ama tanto que mandou seu único Filho para pagar o preço de seus peca­dos. Ele enviou Jesus para morrer em seu lugar, pa­ra que você não precise morrer, mas possa ter vida eterna. E se você aceitá-lo, se você confessá-lo, ele salvará você.”
Willie deixou-se cair no banco, com um ar de desespero no rosto. Fiquei olhando para ele, com os olhos cheios de lágrimas. Fechei os olhos com força e comecei a orar, mas as lágrimas conseguiram pas­sar por entre as pálpebras cerradas, e correram pe­las minhas faces. Quando abri os olhos, Willie tam­bém estava chorando.
“Willie, sabe o que significa arrepender-se?” Ele fez que não.
“Significa mudar de direção. Dar marcha-ré. Se você não se importa, quero que faça uma coisa.
Pode ferir o seu orgulho, mas eu vou orar por você. Você quer ajoelhar-se?”
Eu não tinha idéia de como ele iria reagir. Ha­via gente andando para lá e para cá, na calçada, bem defronte ao banco em que estávamos sentados, mas Willie acenou afirmativamente, e sem hesita­ção, ajoelhou-se na calçada. Olhando para cima, ele disse: “Nicky, se Deus pôde mudar você, pode me transformar também. Você ora por mim agora?”
Coloquei as mãos sobre a cabeça de Willie e co­mecei a orar. Senti seu corpo estremecer sob mi­nhas mãos, e ouvi seus soluços. Ele pôs-se a orar. Estávamos ambos orando em voz alta — muito alta. Através de uma cortina de lágrimas, clamei: “Se­nhor! Toca em Willie! Toca em meu amigo. Sal­va-o. Faz com que ele seja um líder para levar outros a ti.”
Willie orava em voz alta e torturada: “Jesus... Jesus... Ajuda-me! Ajuda-me!” Estava ofegante, en­quanto chorava e gritava: “Oh, Jesus, ajuda-me!”
Ficamos no jardim o resto da tarde. Ao crepús­culo, Willie voltou ao seu apartamento, prometendo trazer o resto da gang à minha casa, na noite se­guinte. Fiquei ali de pé vendo-o afastar-se, até su­mir-se ao longe. Mesmo olhando por trás, podia­-se notar a diferença. Algo fluíra através de mim e alcançara Willie Cortez. Acho que não andei até a Av. Clinton, naquela tarde... flutuei... louvando a Deus a cada vez que respirava. Lembrei-me da vez em que correra pelo grande pasto, defronte à nossa casa em Porto Rico, batendo os braços e tentando voar como um passarinho. Ali em Nova York, na­quela noite, levantei a cabeça e respirei fundo. Fi­nalmente estava voando.
Passei o resto do verão com a gang, pregando ao ar livre e realizando trabalho pessoal. Jejuava reli­giosamente, ficando sem comida das seis horas da manhã de quarta-feira até seis da manhã de quinta-feira. Descobri que quando jejuava e passava algum tempo em oração, aconteciam coisas em minha vi- da. Também escrevi várias vezes para Glória, e ul­timamente suas cartas estavam ganhando um tom amigo e amável, como se ela estivesse gostando de me escrever. Os seus planos para o ano seguinte eram ainda indefinidos, e eu orei muito por ela.
Duas semanas antes de voltar à escola, um ne­gociante cristão, que fazia parte da junta de conse­lheiros de Davi, chegou com um cheque. Disse-me que queriam dar-me alguma coisa extra pelo traba­lho que eu realizara, e sugeriam que eu usasse o cheque para comprar uma passagem de avião até Porto Rico, a fim de visitar meus pais, antes de vol­tar à escola. Foi imensa a minha emoção.
Cheguei a San Juan numa segunda-feira, à tardinha, e tomei um ônibus para Las Piedras.
Já estava quase escuro, quando desci do ônibus e comecei a atravessar a cidadezinha, em direção à conhecida trilha que serpeava pela colina gramada, subindo até a casinha branca de madeira, no topo do outeiro. Cem mil recordações inundaram meu co­ração e minha mente. Alguém gritou: “É Nicky. É Nicky Cruz”,  e vi  um  homem  correndo  à minha frente, colina acima, para contar a papai e mamãe que eu estava chegando. Alguns segundos depois a porta abriu-se de um golpe, e quatro dos meninos mais novos saíram voando colina abaixo. Fazia cin­co anos que não os via, mas eu reconheci meus ir­mãos. Atrás deles, com a saia voando ao vento, vinha minha mãe. Deixei cair a mala, e corri para encon­trá-los. Colidimos em uma agitação de exclamações felizes,  lágrimas  e abraços  apertados. Os  meninos treparam às minhas costas, derrubando-me por ter­ra em uma luta animada. Mamãe pôs-se de joelhos, abraçando-me o pescoço, e sufocando-me de beijos. Recuperando a calma, vi que dois dos meninos mais novos tinham corrido para apanhar a minha mala e traziam-na trilha acima. Olhei para a casa, e ali de pé, alta e importante, estava a figura podero­sa e solitária de papai, olhando em minha direção. Dirigi-me vagarosamente  para  ele, que permanecia imóvel, ereto, observando-me. Pus-me então a cor­rer, e ele começou a descer vagarosamente os de­graus para me encontrar. Afinal, irrompeu também numa corrida, e me encontrou na frente da casa. Apertando-me nos braços peludos, levantou-me do chão e apertou-me contra o peito amplo. “Bem-vin­do, à sua casa, passarinho, bem-vindo.”
Frank escrevera a mamãe e papai, dizendo que minha vida mudara, e que eu estava estudando, na Califórnia. Espalhara-se a notícia de que me torna­ra crente, e muitos dos membros das igrejas em Las Piedras foram à nossa casa, à noite, para me ver. Disseram que outros queriam ver-me, mas ficaram com medo de ir à “casa do feiticeiro”. Criam que papai podia falar com os mortos, e na sua supersti­ção tinham medo de se aproximar. Contudo, que­riam ter um culto na casa de um dos crentes e pedi­ram-me para pregar e dar meu testemunho. Disse-lhes que dirigiria o culto, mas teria que ser em mi­nha casa. Olharam uns para os outros, e o dirigente do grupo disse: “Mas, Nicky, muitos dos nossos irmãos têm medo dos demônios. Têm medo de seu pai.”
Disse-lhes que iria ajeitar as coisas, e que na noite seguinte teríamos um grande culto cristão em minha casa.
Mais tarde, naquela mesma noite, quando papai ouviu o que tínhamos planejado, objetou violenta­mente. “Não permito isso. Não haverá culto cristão nesta casa. Essa gente vai arruinar meus negócios. Se tivermos um culto aqui, os outros nunca mais vi­rão... estarei arruinado como espírita. Proíbo isso.”
“Você não é capaz de ver como o Senhor trans­formou o seu filho? Tem de haver algo nisso. A úl­tima vez em que o viu, ele era como um animal. Agora é um pregador, um ministro cristão. Nós te­remos o culto e você assistirá”, argumentou mamãe.
Raramente mamãe discutia com papai, mas quando isto acontecia, sempre saía vencendo. Desta vez, também foi assim. Na noite seguinte a casa ficou lotada de gente da vila, bem como de vários pregadores de cidades vizinhas. O calor era escal­dante. Fiquei de pé, na frente da sala, e dei o meu testemunho. Entrei em muitos detalhes, contando o domínio que Satanás exercera sobre mim, e como eu fora liberto das suas garras pelo poder de Cristo. O povo manifestava audivelmente seu agra­do, enquanto eu pregava, murmurando aprovação, e algumas vezes gritando e batendo palmas de júbilo, enquanto eu descrevia os vários acontecimentos que cercaram a minha salvação.
Ao fim do culto, pedi a todos que curvassem a cabeça. Então, convidando os que quisessem aceitar a Cristo como salvador pessoal que dessem um pas­so à frente e se ajoelhassem, fechei os olhos e co­mecei a orar silenciosamente.
Houve um movimento na multidão. Senti que algumas pessoas estavam se aproximando. Ouvi-as chorar, enquanto se ajoelhavam à minha frente. Mantive minha posição, com os olhos fechados e o rosto voltado para o céu. Podia sentir a transpiração descendo pelo meu rosto, correndo pelas mi­nhas costas e gotejando pelas minhas pernas. Eu estava todo suado, devido ao calor que se gerara em mim, enquanto pregava, mas sentia que Deus estava operando, e continuei a orar.
Ouvi então uma mulher que ajoelhada diante de mim, começou a orar. Reconheci sua voz, e abri os olhos incredulamente. Não pude conter minha ale­gria: ali, ajoelhada à minha frente, com o rosto en­terrado na saia, estava minha mãe e também dois de meus irmãos menores. Caí de joelhos diante dela, e rodeei-a com os braços.
“Oh, Nicky, meu filho, meu filho, eu também creio nele. Quero que ele seja o Senhor de minha vida. Não suporto mais ouvir falar de demônios e espíritos maus, e quero este Jesus como meu Salva­dor.” Ela começou então a orar. Ouvi a mesma voz que um dia me mandara para o quarto, e depois para o porão, com gritos histéricos de: “Eu odeio você...” clamando agora a Deus, pedindo salvação, e grandes soluços sacudiram meu corpo, enquanto ela orava pedindo perdão: “Por misericórdia, Deus querido, perdoa-me por ter falhado em relação ao meu filho. Perdoa-me por tê-lo afastado do lar. Per­doa meus pecados, e por não ter crido em ti. Agora eu creio. Creio em ti. Salva-me, ó Deus, salva-me.”
Abri os braços e cingi os meus dois irmãos mais novos, um de quinze e outro de dezesseis anos, e todos nos aconchegamos, orando e louvando a Deus.
Mais tarde, levantei-me e olhei para a multidão. Muitos outros tinham vindo e estavam ajoelhados no chão, orando e chorando. Fui de um para outro, impondo as mãos sobre as suas cabeças, e orando por eles. Finalmente, parei e olhei para o fundo da sala. Ali, encostado à parede, via-se a figura solitária de papai, levantando-se ereta sobre as cabeças cur­vadas. Nossos olhos se cruzaram em um longo olhar, e o seu queixo estremeceu visivelmente. Seus olhos encheram-se de lágrimas — mas ele virou-se e deixou repentinamente a sala.
Papai jamais declarou abertamente sua fé. Mas sua vida abrandou-se desde então. Depois daquela noite, não houve mais nenhuma sessão espírita na casa da família Cruz. Voltei a Nova York dois dias depois, e um dos pastores porto-riquenhos batizou minha mãe e meus dois irmãos nas águas, na sema­na seguinte.
Eu tinha menos de uma semana disponível em Nova York, antes de viajar para a Califórnia, para fazer meu último ano na escola. Na noite anterior à minha viagem houve uma grande concentração da mocidade na Igreja de Deus João 3:16. Fizemos um grande esforço para levar os Mau-Maus a assistir. Fizera amizade com Steve, seu novo presidente, e ele disse que se eu fosse estar presente, levaria com certeza a gang ao culto.
No  vestíbulo,  antes  do  culto começar, eu  examinava os velhos orifícios feitos pelas balas de dois anos  antes, quando os Mau-Maus começaram a che­gar. Mais de oitenta e cinco deles apareceram. A pe­quena igreja ficou completamente lotada. Quando entraram, gritei-lhes: “Ei, meus chapas, aqui é ter­ritório de Deus. Tirem o chapéu.” Eles obedeceram de boa vontade. Um rapaz estava no canto do vestíbulo, com uma das garotas. Gritou: “Ei, Nicky, posso abraçar minha garota aqui?”
Respondi: “Sim, meu chapa, vai em frente, mas nada de beijar nem de bolinação.” O resto da qua­drilha caiu na gargalhada e entrou no auditório.
No fim do culto, o pastor pediu-me para dar meu testemunho. Virei-me e olhei para os rapazes. Sabia que iria embora para a Califórnia no dia se­guinte, e um calafrio subiu pela minha espinha. Al­guns daqueles rapazes estariam mortos ou presos, quando eu voltasse. Preguei. Preguei como um mo­ribundo a moribundos. Esqueci-me de restringir as emoções, e derramei o coração. Já estávamos na igreja havia duas horas, e eu preguei mais quarenta e cinco minutos. Ninguém se movia. Quando termi­nei lágrimas corriam pela minha face, e eu apelei a eles para entregarem a vida a Deus. Treze rapa­zes foram à frente, e ajoelharam-se diante do altar. Se Israel estivesse ali...
Um dos rapazes que se apresentou era meu ve­lho amigo, Hector Furacão. Lembrei-me da época em que o fizera passar pela cerimônia da iniciação, para entrar na quadrilha, e da vez em que havía­mos tido uma “briga leal” e ele fugira ao ver que eu ia matá-lo por ter roubado meu despertador. Fu­racão estava agora ajoelhado diante do altar.
Depois do culto, fui andando com ele até Fort Greene. Furacão era o conselheiro de guerra dos Mau-Maus. Visto que fora por meu intermédio que entrara na gang, sentia muita responsabilidade por ele. Perguntei-lhe onde vivia.
“Estou morando em um apartamento abando­nado.”
“Rapaz, por que não está morando mais com sua família?” perguntei.
“Eles me chutaram. Ficaram com vergonha de mim. Você se lembra? eu fui um dos rapazes que foram à frente naquela noite na Arena St. Nicholas, com você e Israel. Várias semanas depois, convidei minha família para ir à igreja comigo, e todos os meus familiares foram convertidos. Tornamo-nos ativos na igreja, e eu estava trabalhando com a mocidade. Abandonara a gang, e tudo o mais, como vo­cê e Israel. A igreja, porém, era muito exigente. Eu queria arranjar festinhas para a mocidade, mas eles não aceitavam. Finalmente fiquei desanimado e des­viei .”
Era a mesma velha história. Ele se encontrara mais tarde com os Mau-Maus, e eles o convidaram a voltar para a quadrilha, da mesma forma como haviam tentado comigo. Disseram que os crentes eram “quadrados”, vagabundos, afeminados, e que a gang era o único grupo que tinha a verdadeira so­lução para os problemas da vida. Na verdade, eles o “evangelizaram”, fazendo com que voltasse à qua­drilha.
Seguiu-se uma série de prisões. Seus pais ten­taram conversar com ele, mas ele teimou e final­mente ficaram tão exasperados a ponto de dizer que teria de sair de casa, se não concordasse com as regras familiares. Preferiu sair, e desde então morava em um velho edifício condenado.
“Algumas vezes passo fome”, disse ele, “mas prefiro morrer de fome do que pedir alguma coisa ao meu velho. Ele é “quadrado” mesmo. Tudo o que pensa é em ir à igreja e ler a Bíblia. Eu costumava ser assim, mas agora estou de volta ao meu ambi­ente — os Mau-Maus.”
Chegamos ao edifício onde ele morava. Todas as janelas estavam cobertas por tapumes, e ele me contou que havia um lugar, nos fundos, onde con­seguira forçar um dos tapumes e esgueirar-se para dentro. Dormia sobre um acolchoado estendido no chão.
“Furacão, como é que você apareceu esta noi­te?” perguntei, referindo-me ao fato dele ter atendi­do ao apelo para salvação.
“Fui à frente porque, bem dentro de mim, eu desejo ser correto, Nicky. Quero seguir a Deus. Mas não consigo encontrar a solução certa. Cada vez que me volto para ele, e depois desvio, as coisas ficam piores. Gostaria que você voltasse para a gang, Nic­ky. Quem sabe se eu voltaria para Cristo, se você estivesse aqui.”
Sentamo-nos na guia da calçada e conversamos madrugada a dentro. Ouvi o relógio da torre dar quatro horas. “Furacão, sinto o Espírito de Deus dizendo-me para falar isto a você. O relógio acaba de dar quatro horas. É tarde. Mas se você der o cora­ção a Jesus, ele o levará de volta. É tarde, mas não tarde demais. Você sente a sua culpa, mas Deus o perdoará. Você não quer entregar-se a Jesus agora?”
Hector escondeu o rosto nas mãos e começou a chorar. Mas continuou a sacudir a cabeça e a dizer: “Não posso. Não posso. Quero fazer isso. Mas sei que se fizer, volto para a quadrilha amanhã mesmo. Não posso. Não posso mesmo.”
“Hector, você não viverá nem mais um ano se não se render a Cristo agora. Você estará morto, neste mesmo dia do ano que vem. Eles vão matar você.” Meu coração transbordava com palavras que não eram minhas, enquanto eu profetizava para ele.
Hector apenas balançou a cabeça. “Se aconte­cer, aconteceu, Nicky, e eu não posso fazer nada.”
Estávamos sentados no meio-fio da Av. Lafayette. Perguntei-lhe se podia orar por ele. Ele encolheu os ombros. “Não vai adiantar nada, Nicky, eu sei disso.”
Levantei-me, coloquei as mãos sobre a sua ca­beça, e orei para que Deus abrandasse o seu cora­ção, para que ele pudesse voltar a Cristo. Quando terminei, apertei-lhe a mão: “Furacão, espero vê-lo quando voltar. Mas sinto profundamente que, a me­nos que você volte para Cristo, nunca mais o verei.” Na tarde seguinte, viajei para a Califórnia. Na­quela época, não sabia quão exatamente a minha profecia viria a ser cumprida.