Capítulo 13
ONDE OS ANJOS TEMEM ANDAR
OS DIAS QUE SE SEGUIRAM foram cheios de alegria e de
vitória. A primeira transformação que notei foi na minha conduta. Não andava
mais gingando. Ficava atento durante as orações, orando com a pessoa que
dirigia. Em lugar de bancar o “vivo”, comecei a demonstrar consideração pelos
outros, principalmente pela garota de lindos olhos negros que se sentava à
minha frente.
Descobri que o nome dela era Glória. No dia em que dei meu
testemunho diante da classe, ela encaminhou-se para mim e apertou-me a mão de
maneira digna, como uma dama: “Deus o abençoe, Nicky. Tenho orado por você.”
Tinha uma desconfiança de que ela provavelmente estivesse
orando para que eu “caísse morto”. Mas percebi que estava realmente feliz pelo
fato de Deus ter-me tocado. Seus olhos, profundos e negros, piscavam como as
estrelas à meia-noite e seu sorriso era lindo.
Na semana seguinte encontrei coragem suficiente para
convidá-la a ir comigo a uma campanha de evangelização, que estávamos
realizando em uma pequenina igreja perto da escola. Ela sorriu, e duas
covinhas apareceram, quando acenou afirmativamente.
No decorrer daquele ano fomos juntos a muitos cultos.
Embora estivéssemos sempre na companhia de outras pessoas, fiquei sabendo
muitas coisas a seu respeito. Nascera no Estado de Arizona. O pai era
italiano, e sua mãe mexicana. Tinham mudado para a Califórnia quando ela
estava com cinco anos, e seus pais abriram um bar em Oakland. Na última série
do ginásio, fora salva e decidira entrar na Escola Bíblica. Seu pastor, o Rev.
Sixto Sanchez, sugerira que ela escrevesse para o Instituto Bíblico. Eles a
aceitaram, e entrara na escola no outono daquele ano.
Perto do fim do ano escolar, senti que Glória estava
passando por algum profundo desassossego íntimo. O regime escolar era muito
pesado para ela. Nos últimos dias de aula, ela me disse que achava que não
agüentaria cursar outro ano, e que por isso não voltaria à escola depois das
férias. Fiquei desapontado, mas ela prometeu que me escreveria.
Passei aquele primeiro verão em Los Angeles. Alguns amigos
me levaram para lá e providenciaram um lugar para eu morar. Mas senti muito a
falta de Glória. Quando as aulas começaram, no outono, fiquei muito satisfeito
ao encontrar uma carta à minha espera. Ela cumprira a promessa.
Glória revelou-me, em parte, os motivos que a levaram a
deixar a escola. “Minhas experiências foram diferentes das suas, Nicky”,
escreveu ela. “Embora mamãe e papai trabalhem num bar, fui criada em uma
atmosfera moralmente boa. Quando fui salva, fui a extremos exagerados. Aprendi
que era pecado copiar os padrões do mundo. Desfiz-me de toda maquilagem,
deixei de usar maiô, e desisti até de enfeitar-me com jóias. Tudo em mim era
negativo. Quando fui para a escola, a situação piorou ainda mais. Estava a
ponto de sofrer um colapso mental. Queria contar isso a você, mas nunca tivemos
oportunidade de estar a sós. Espero que compreenda e continue orando por mim.
Mas eu não voltarei para a escola...”
O segundo ano na Escola Bíblica passou depressa. Minhas notas
melhoraram, e os outros alunos estavam começando a me aceitar como igual. Tive
várias oportunidades de pregar em trabalhos ao ar livre, e dar meu testemunho
em algumas igrejas vizinhas.
Em abril, recebi uma carta de Davi Wilkerson. Ele ainda estava
morando na Pensilvânia, mas queria que eu voltasse para Nova York naquele
verão, para trabalhar entre as quadrilhas do Brooklin. Planejara alugar um
apartamento na Av. Clinton, entre as ruas Fulton e Gates, e havia conseguido
que Thurman Faison e Luiz Delgado trabalhassem comigo, se eu fosse. O dinheiro
era pouco, mas teríamos moradia e pagariam sete dólares por semana a cada um de
nós.
Naquela noite, depois da hora de estudo, fui ao escritório
do diretor, e telefonei para Davi, a cobrar. O telefone tocou durante muito
tempo, e finalmente uma voz sonolenta atendeu. Ele resmungou que pagaria a
taxa.
“Ei, Davi, sou eu, Nicky. Você já acabou de jantar?”
“Nicky, sabe que horas são?” “Claro, meu chapa, são dez da
noite.” “Nicky...” havia uma pontinha de
exasperação na voz, “podem ser dez horas na Califórnia, mas aqui é uma da
madrugada. Eu e Gwen estamos dormindo há duas horas. Agora você acordou o bebê
também.”
“Mas Davi, só queria dar-lhe as boas
novas.” Ouvi perfeitamente a criança berrando, como “fundo musical”. “O
que é tão bom que não pode esperar até de manhã, Nicky ?”
“Isto não pode esperar, Davi. Eu vou para Nova York
trabalhar com você neste verão. Deus me disse que quer que eu vá.”
“Isso é ótimo, Nicky. Estou vibrando, Gwen também, e o bebê
também. Vou mandar uma passagem de avião para você. Boa noite.”
Fiquei acordado a noite inteira, fazendo planos para a minha
volta a Nova York.
A viagem para a “minha cidade” ajudou-me a ver como eu tinha
mudado. Era como se toda a minha vida tivesse se tornado realmente viva. Quando
começamos a descer no aeroporto de Nova York, meu coração começou a bater mais
depressa ante as recordações, e o entusiasmo cresceu. Localizei a silhueta do
Edifício Empire State no horizonte, e depois, a ponte de Brooklin. Nunca percebera
como a cidade era tão compacta, nem como se espalhava por centenas de
quilômetros quadrados. Meu coração transbordava de amor e compaixão pelos
milhões de pessoas que estavam amarradas, ali em baixo, na selva de asfalto do
pecado e do desespero. Meus olhos ficaram rasos de água quando o avião fez um
círculo sobre a cidade. Estava triste e feliz — amedrontado e ansioso. Estava
em casa.
Davi foi me
buscar no aeroporto, e nós
nos abraçamos e choramos sem
acanhamento. Com o braço
rodeando meus ombros, levou-me até o carro, falando, cheio de entusiasmo, a
respeito do seu novo sonho.
Escutei, enquanto ele falava dos planos que tinha para o
futuro; do seu novo Centro — Desafio Jovem. Porém, ele percebeu que algo estava
me preocupando, e finalmente seu entusiasmo arrefeceu o suficiente para
perguntar-me o que era.
“Davi, você soube alguma coisa de Israel? Onde ele está? Se
está bem?”
Davi curvou a cabeça, e finalmente olhou para mim com um
olhar sombrio.
“Não, Nicky, nem tudo está bem. Não falei nada sobre isto em
minhas cartas, porque temia desanimá-lo. Acho que devo contar tudo agora, para
que comece a orar comigo nesse sentido.”
Ficamos algum tempo no carro abafado, no pátio de
estacionamento do aeroporto, enquanto Davi me contava a situação de Israel.
“Israel está na prisão, Nicky. Foi envolvido em um
assassinato, em dezembro, depois que você foi para a escola. Até agora, não
saiu da prisão.”
Meu coração acelerou-se. Senti um suor frio na palma das
mãos. Respirei fundo.
“Conte-me tudo o que sabe, Davi. Eu quero saber.”
“Quando tive notícias dele tudo estava terminado, e já
tinha sido levado para a penitenciária de Elmira. Fui até Nova York para
visitar a mãe de Israel. Ela chorou ao conversar comigo, e me contou que
houvera uma grande mudança na vida do filho depois que ele aceitara Cristo,
mas, depois do desengano, ele voltara para a quadrilha.”
“Que desengano?” perguntei.
“Você não sabe?”
“Você se refere ao fato de eu ter sido esfaqueado? Ele
disse que ia pegar o cara que fizera aquilo.”
“Não, foi algo mais profundo do que isso. A mãe dele contou
me que no dia em que você saiu do hospital,
o Sr. Delgado passou no apartamento pediu-lhe para
ir com você encontrar comigo em
Elmira, no dia seguinte. Israel ficou entusiasmado e disse que iria. Ela o
acordou na madrugada do dia seguinte às quatro horas, passou as roupas dele, e
arrumou a sua mala. Ele foi até a Av. Flatbush e esperou das seis até às nove
da manhã. De alguma forma, vocês se desencontraram. Ele voltou para o
apartamento, jogou a mala no chão, e disse à mãe que todos os crentes eram uma
cambada de trapaceiros. Naquela noite voltou para a gang.”
Senti lágrimas vindo aos meus olhos, quando me virei para
Davi. “Nós o procuramos. Procuramo-lo por toda parte. Eu queria parar e
procurar mais, mas o Sr. Delgado disse que precisávamos ir. Oh, Davi, se
soubéssemos! Se tivéssemos olhado um pouco mais detidamente, poderia ser que
ele agora estivesse na escola comigo.”
Davi assoou o nariz e prosseguiu: “Depois que voltou para a
quadrilha, ele e outros quatro atiraram em um rapaz da quadrilha dos Angels da
Rua Sul, defronte à Arcada Penny. Ele morreu imediatamente. Israel foi acusado
de assassinato em segundo grau, e sentenciado a cinco anos na penitenciária
do Estado. Está lá agora.”
Houve uma longa e sofrida pausa, e finalmente perguntei a
Davi se ele o tinha visto, ou tivera notícias dele desde que fora preso.
“Escrevi-lhe, mas vim a saber que ele não podia responder.
Só pode escrever para a família. Até os seus cursos por correspondência
precisam ser enviados através do capelão da prisão. Orei por ele todo o verão
seguinte, e finalmente empreendi uma viagem a Elmira, só para vê-lo. Estavam
preparando a sua transferência para a colônia penal agrícola de Comstock, e
permitiram que eu me entrevistasse com ele durante alguns minutos. Israel está
bem, penso eu, mas ainda tem mais de três anos para ficar atrás das grades.”
Ficamos ali, sentados em silêncio, durante longo tempo, e
finalmente eu disse: “Penso que devemos orar por ele.”
Davi curvou-se sobre o volante e começou a orar em voz alta.
Virei-me de costas, no assento, e ajoelhei-me no piso do carro, com os
cotovelos apoiados no banco. Passamos quase quinze minutos orando, ali no pátio
de estacionamento. Quando terminamos, Davi disse: “Fizemos tudo o que nos é
possível fazer por Israel, por enquanto, Nicky; mas há uma cidade cheia de
outros, iguaizinhos a ele, que nós ainda podemos salvar para Jesus Cristo. Você
está pronto para por mãos à obra?”
“Vamos”, disse eu. Mas eu sabia que minha obra jamais
estaria completa enquanto não pudesse libertar Israel. Davi deu partida no
carro, e enveredou pelo intenso tráfego de Nova York. Eu estava abrasado de
zelo pelo Senhor. “Quero visitar os membros da minha velha quadrilha, amanhã”,
disse como que desinteressadamente. “Quero falar-lhes de Jesus.”
Davi virou-se para mim, ao sair da preferencial e brecar
diante de um sinal vermelho, e disse: “Eu, se fosse você, avançaria devagar,
Nicky. Desde que você foi embora, muita coisa aconteceu. Você se lembra
quando se converteu? Quase mataram você. Eu teria muito cuidado. Há muito o que
fazer, sem se envolver tão cedo com os Mau-Maus. Só loucos entram onde os anjos
temem andar.”
O semáforo mudou de cor, e nós arrancamos, abrindo a curva,
para ultrapassar um ônibus. “Posso ser louco, Davi, mas desta vez sou louco
por amor de Jesus. Ele irá comigo e me protegerá. Os anjos podem ter medo de
entrar na zona dos Mau-Maus, mas eu vou com Jesus.”
Davi sorriu e balançou a cabeça como a concordar, enquanto
entrava na Av. Clinton. Freando diante de um edifício de apartamentos, ele
disse: “Ele é o seu guia, Nicky, não eu. Faça o que ele ordenar, e você só terá
vitória. Vamos, quero que conheça Thurman e Luís.”
O dia seguinte seria o grande dia. Passei a maior parte da
noite acordado, orando. De manhã, vesti o terno e pus uma gravata vistosa, com
minha Bíblia nova de capa de couro debaixo do braço, atravessei a cidade em
direção ao conjunto habitacional de Fort Greene. Ia ao encontro dos Mau-Maus.
A cidade não se modificara muito. Alguns dos prédios mais
antigos tinham sido condenados, e havia tapumes ao seu redor. Tudo o mais
permanecia como eu deixara, dois anos antes. Mas eu estava diferente.
Engordara e cortara o cabelo. Contudo, a diferença maior estava no íntimo. Eu
era um novo Nicky.
Quando atravessei a Praça Washington, meu coração começou a
bater mais depressa. Comecei a procurar os Mau-Maus; contudo, pela primeira
vez, estava preocupado a respeito da maneira como saudá-los — e o que eles
diriam, quando me vissem. Como eu me apresentaria? Não estava com medo, só
queria ter sabedoria para manejar a situação para a glória de Deus.
Quando saí da praça, vi uma turma de Mau-Maus encostada na
parede de um edifício. As palavras de Davi relampejaram pela minha mente: “Só
loucos entram onde os anjos temem andar”, mas eu murmurei uma oração em voz
alta, pedindo que o Espírito Santo fosse comigo, e encaminhei-me para a “tropa”
de desocupados.
Havia cerca de treze rapazes naquela turma. Reconheci Willie
Cortez, e dando-lhe um tapinha nas costas, disse: “Ei, Willie, meu chapa...”
Cortez voltou-se e arregalou os olhos: “Não me diga que você
é o Nicky?”
“Sim, meu chapa, sou o Nicky.” “Puxa, você parece um santo,
ou coisa parecida.” “Conversa, rapaz.
Acabo de
chegar da Califórnia. As coisas
estão indo bem para mim. Sou crente e estou estudando.”
Ele agarrou meus ombros com ambas as mãos e fez-me
girar várias vezes, olhando para
minhas roupas e meu aspecto. “Puxa, Nicky, não acredito. Não posso acreditar.”
Depois, virando-se para os outros membros da gang, que
estavam olhando curiosamente, disse. “Ei, rapazes, tirem o chapéu. Este é o
Nicky. Ele foi nosso presidente. Era um cara bem bom de briga e fez história
com os Mau-Maus. Era o mais durão de todos.”
Os rapazes tiraram os chapéus, respeitosos. Willie Cortez
era o único do grupo a quem eu conhecia. Quase todos os rapazes eram mais
novos, muito mais novos, mas todos ficaram impressionados. Tinham ouvido falar
de mim, e aglomeraram-se ao nosso redor, estendendo a mão.
Coloquei o braço ao redor do ombro de Willie e sorri para
ele. “Olha, Willie, vamos dar uma volta pela praça. Quero conversar com você.”
Afastamo-nos do grupo e entramos na Praça Washington. Willie
andava vagarosamente ao meu lado, com as mãos nos bolsos, arrastando os pés no
cimento. Quebrei o silêncio: “Willie, quero contar a você o que Cristo fez em
minha vida.”
Ele não levantou a cabeça, mas continuou andando enquanto
eu falava. Contei-lhe como eu me sentira quando era membro da quadrilha, dois
anos antes, e como eu entregara o coração a Cristo. Contei-lhe a maneira como
Deus me guiara para fora do deserto de concreto, para um lugar onde agora eu
era um ser humano útil.
Willie interrompeu-me, e eu percebi que a sua voz tremia: “Ei,
Nicky, pára com isso, te manca! Você me faz sentir mal. Quando fala, alguma
coisa mexe aqui dentro do meu peito. Você está diferente. Não é mais o mesmo
velho Nicky. Você me dá medo.”
“Tem razão, Willie, alguma coisa me transformou. O sangue
de Cristo transformou-me e lavou-me; agora, estou limpo. Sou um homem
diferente. Não tenho mais medo. Não tenho mais ódio. Agora eu amo as pessoas.
Amo você, Willie. E quero dizer-lhe que Jesus te ama.”
Chegamos a um banco,
e fiz sinal para Willie sentar. Ele sentou-se e olhou-me, dizendo: “Nicky, fala
mais de Deus.” Pela primeira vez na minha vida percebi como era importante
falar de Cristo para os meus amigos. Percebi a solidão na sua face, a
ignorância — o medo. Ele era exatamente como eu fora dois anos antes. Mas
agora eu queria mostrar-lhe como escapar. Sentei ao lado dele, e abri a Bíblia
nas passagens marcadas com lápis vermelho. Li as passagens bíblicas referentes
ao pecado do homem. Quando li : “Pois o salário do pecado é a morte”, Willie
olhou para mim com medo estampado no rosto.
“O que quer dizer, Nicky? Se eu sou pecador, e Deus vai me
matar porque pequei, o que posso fazer? Quero dizer, puxa, preciso fazer
alguma coisa. Que devo fazer?” Seus olhos mostravam grande excitação, e ele
ficou de pé, de um salto.
“Sente-se, Willie, ainda não acabei. Vou contar o resto da
história. Deus ama você. Ele não quer que vá para o inferno. Ele o ama tanto
que mandou seu único Filho para pagar o preço de seus pecados. Ele enviou
Jesus para morrer em seu lugar, para que você não precise morrer, mas possa
ter vida eterna. E se você aceitá-lo, se você confessá-lo, ele salvará você.”
Willie deixou-se cair no banco, com um ar de desespero no
rosto. Fiquei olhando para ele, com os olhos cheios de lágrimas. Fechei os
olhos com força e comecei a orar, mas as lágrimas conseguiram passar por entre
as pálpebras cerradas, e correram pelas minhas faces. Quando abri os olhos,
Willie também estava chorando.
“Willie, sabe o que significa arrepender-se?” Ele fez que
não.
“Significa mudar de direção. Dar marcha-ré. Se você não se
importa, quero que faça uma coisa.
Pode ferir o seu orgulho, mas eu vou orar por você. Você
quer ajoelhar-se?”
Eu não tinha idéia de como ele iria reagir. Havia gente
andando para lá e para cá, na calçada, bem defronte ao banco em que estávamos
sentados, mas Willie acenou afirmativamente, e sem hesitação, ajoelhou-se na
calçada. Olhando para cima, ele disse: “Nicky, se Deus pôde mudar você, pode me
transformar também. Você ora por mim agora?”
Coloquei as mãos sobre a cabeça de Willie e comecei a orar.
Senti seu corpo estremecer sob minhas mãos, e ouvi seus soluços. Ele pôs-se a
orar. Estávamos ambos orando em voz alta — muito alta. Através de uma cortina
de lágrimas, clamei: “Senhor! Toca em Willie! Toca em meu amigo. Salva-o. Faz
com que ele seja um líder para levar outros a ti.”
Willie orava em voz alta e torturada: “Jesus... Jesus...
Ajuda-me! Ajuda-me!” Estava ofegante, enquanto chorava e gritava: “Oh, Jesus,
ajuda-me!”
Ficamos no jardim o resto da tarde. Ao crepúsculo, Willie
voltou ao seu apartamento, prometendo trazer o resto da gang à minha casa, na
noite seguinte. Fiquei ali de pé vendo-o afastar-se, até sumir-se ao longe.
Mesmo olhando por trás, podia-se notar a diferença. Algo fluíra através de mim
e alcançara Willie Cortez. Acho que não andei até a Av. Clinton, naquela
tarde... flutuei... louvando a Deus a cada vez que respirava. Lembrei-me da vez
em que correra pelo grande pasto, defronte à nossa casa em Porto Rico, batendo
os braços e tentando voar como um passarinho. Ali em Nova York, naquela noite,
levantei a cabeça e respirei fundo. Finalmente estava voando.
Passei o resto do verão com a gang, pregando ao ar livre e
realizando trabalho pessoal. Jejuava religiosamente, ficando sem comida das
seis horas da manhã de quarta-feira até seis da manhã de quinta-feira. Descobri
que quando jejuava e passava algum tempo em oração, aconteciam coisas em minha
vi- da. Também escrevi várias vezes para Glória, e ultimamente suas cartas estavam
ganhando um tom amigo e amável, como se ela estivesse gostando de me escrever.
Os seus planos para o ano seguinte eram ainda indefinidos, e eu orei muito por
ela.
Duas semanas antes de voltar à escola, um negociante
cristão, que fazia parte da junta de conselheiros de Davi, chegou com um
cheque. Disse-me que queriam dar-me alguma coisa extra pelo trabalho que eu
realizara, e sugeriam que eu usasse o cheque para comprar uma passagem de avião
até Porto Rico, a fim de visitar meus pais, antes de voltar à escola. Foi
imensa a minha emoção.
Cheguei a San Juan numa segunda-feira, à tardinha, e tomei
um ônibus para Las Piedras.
Já estava quase escuro, quando desci do ônibus e comecei a
atravessar a cidadezinha, em direção à conhecida trilha que serpeava pela
colina gramada, subindo até a casinha branca de madeira, no topo do outeiro.
Cem mil recordações inundaram meu coração e minha mente. Alguém gritou: “É
Nicky. É Nicky Cruz”, e vi um
homem correndo à minha frente, colina acima, para contar a
papai e mamãe que eu estava chegando. Alguns segundos depois a porta abriu-se
de um golpe, e quatro dos meninos mais novos saíram voando colina abaixo. Fazia
cinco anos que não os via, mas eu reconheci meus irmãos. Atrás deles, com a
saia voando ao vento, vinha minha mãe. Deixei cair a mala, e corri para encontrá-los.
Colidimos em uma agitação de exclamações felizes, lágrimas
e abraços apertados. Os meninos treparam às minhas costas,
derrubando-me por terra em uma luta animada. Mamãe pôs-se de joelhos, abraçando-me
o pescoço, e sufocando-me de beijos. Recuperando a calma, vi que dois dos
meninos mais novos tinham corrido para apanhar a minha mala e traziam-na trilha
acima. Olhei para a casa, e ali de pé, alta e importante, estava a figura
poderosa e solitária de papai, olhando em minha direção. Dirigi-me
vagarosamente para ele, que permanecia imóvel, ereto,
observando-me. Pus-me então a correr, e ele começou a descer vagarosamente os
degraus para me encontrar. Afinal, irrompeu também numa corrida, e me
encontrou na frente da casa. Apertando-me nos braços peludos, levantou-me do
chão e apertou-me contra o peito amplo. “Bem-vindo, à sua casa, passarinho,
bem-vindo.”
Frank escrevera a mamãe e papai, dizendo que minha vida
mudara, e que eu estava estudando, na Califórnia. Espalhara-se a notícia de que
me tornara crente, e muitos dos membros das igrejas em Las Piedras foram à
nossa casa, à noite, para me ver. Disseram que outros queriam ver-me, mas
ficaram com medo de ir à “casa do feiticeiro”. Criam que papai podia falar com
os mortos, e na sua superstição tinham medo de se aproximar. Contudo, queriam
ter um culto na casa de um dos crentes e pediram-me para pregar e dar meu
testemunho. Disse-lhes que dirigiria o culto, mas teria que ser em minha casa.
Olharam uns para os outros, e o dirigente do grupo disse: “Mas, Nicky, muitos
dos nossos irmãos têm medo dos demônios. Têm medo de seu pai.”
Disse-lhes que iria ajeitar as coisas, e que na noite
seguinte teríamos um grande culto cristão em minha casa.
Mais tarde, naquela mesma noite, quando papai ouviu o que
tínhamos planejado, objetou violentamente. “Não permito isso. Não haverá culto
cristão nesta casa. Essa gente vai arruinar meus negócios. Se tivermos um culto
aqui, os outros nunca mais virão... estarei arruinado como espírita. Proíbo
isso.”
“Você não é capaz de ver como o Senhor transformou o seu
filho? Tem de haver algo nisso. A última vez em que o viu, ele era como um
animal. Agora é um pregador, um ministro cristão. Nós teremos o culto e você assistirá”,
argumentou mamãe.
Raramente mamãe discutia com papai, mas quando isto
acontecia, sempre saía vencendo. Desta vez, também foi assim. Na noite seguinte
a casa ficou lotada de gente da vila, bem como de vários pregadores de cidades
vizinhas. O calor era escaldante. Fiquei de pé, na frente da sala, e dei o meu
testemunho. Entrei em muitos detalhes, contando o domínio que Satanás exercera
sobre mim, e como eu fora liberto das suas garras pelo poder de Cristo. O povo
manifestava audivelmente seu agrado, enquanto eu pregava, murmurando
aprovação, e algumas vezes gritando e batendo palmas de júbilo, enquanto eu
descrevia os vários acontecimentos que cercaram a minha salvação.
Ao fim do culto, pedi a todos que curvassem a cabeça. Então,
convidando os que quisessem aceitar a Cristo como salvador pessoal que dessem
um passo à frente e se ajoelhassem, fechei os olhos e comecei a orar
silenciosamente.
Houve um movimento na multidão. Senti que algumas pessoas
estavam se aproximando. Ouvi-as chorar, enquanto se ajoelhavam à minha frente.
Mantive minha posição, com os olhos fechados e o rosto voltado para o céu.
Podia sentir a transpiração descendo pelo meu rosto, correndo pelas minhas
costas e gotejando pelas minhas pernas. Eu estava todo suado, devido ao calor
que se gerara em mim, enquanto pregava, mas sentia que Deus estava operando, e
continuei a orar.
Ouvi então uma mulher que ajoelhada diante de mim, começou a
orar. Reconheci sua voz, e abri os olhos incredulamente. Não pude conter minha
alegria: ali, ajoelhada à minha frente, com o rosto enterrado na saia, estava
minha mãe e também dois de meus irmãos menores. Caí de joelhos diante dela, e
rodeei-a com os braços.
“Oh, Nicky, meu filho, meu filho, eu também creio nele.
Quero que ele seja o Senhor de minha vida. Não suporto mais ouvir falar de
demônios e espíritos maus, e quero este Jesus como meu Salvador.” Ela começou
então a orar. Ouvi a mesma voz que um dia me mandara para o quarto, e depois
para o porão, com gritos histéricos de: “Eu odeio você...” clamando agora a
Deus, pedindo salvação, e grandes soluços sacudiram meu corpo, enquanto ela
orava pedindo perdão: “Por misericórdia, Deus querido, perdoa-me por ter
falhado em relação ao meu filho. Perdoa-me por tê-lo afastado do lar. Perdoa
meus pecados, e por não ter crido em ti. Agora eu creio. Creio em ti. Salva-me,
ó Deus, salva-me.”
Abri os braços e cingi os meus dois irmãos mais novos, um de
quinze e outro de dezesseis anos, e todos nos aconchegamos, orando e louvando a
Deus.
Mais tarde, levantei-me e olhei para a multidão. Muitos
outros tinham vindo e estavam ajoelhados no chão, orando e chorando. Fui de um
para outro, impondo as mãos sobre as suas cabeças, e orando por eles.
Finalmente, parei e olhei para o fundo da sala. Ali, encostado à parede, via-se
a figura solitária de papai, levantando-se ereta sobre as cabeças curvadas.
Nossos olhos se cruzaram em um longo olhar, e o seu queixo estremeceu
visivelmente. Seus olhos encheram-se de lágrimas — mas ele virou-se e deixou
repentinamente a sala.
Papai jamais declarou abertamente sua fé. Mas sua vida
abrandou-se desde então. Depois daquela noite, não houve mais nenhuma sessão
espírita na casa da família Cruz. Voltei a Nova York dois dias depois, e um dos
pastores porto-riquenhos batizou minha mãe e meus dois irmãos nas águas, na
semana seguinte.
Eu tinha menos de uma semana disponível em Nova York, antes
de viajar para a Califórnia, para fazer meu último ano na escola. Na noite
anterior à minha viagem houve uma grande concentração da mocidade na Igreja de
Deus João 3:16. Fizemos um grande esforço para levar os Mau-Maus a assistir.
Fizera amizade com Steve, seu novo presidente, e ele disse que se eu fosse
estar presente, levaria com certeza a gang ao culto.
No vestíbulo, antes
do culto começar, eu examinava os velhos orifícios feitos pelas
balas de dois anos antes, quando os
Mau-Maus começaram a chegar. Mais de oitenta e cinco deles apareceram. A pequena
igreja ficou completamente lotada. Quando entraram, gritei-lhes: “Ei, meus
chapas, aqui é território de Deus. Tirem o chapéu.” Eles obedeceram de boa
vontade. Um rapaz estava no canto do vestíbulo, com uma das garotas. Gritou: “Ei,
Nicky, posso abraçar minha garota aqui?”
Respondi: “Sim, meu chapa, vai em frente, mas nada de beijar
nem de bolinação.” O resto da quadrilha caiu na gargalhada e entrou no
auditório.
No fim do culto, o pastor pediu-me para dar meu testemunho.
Virei-me e olhei para os rapazes. Sabia que iria embora para a Califórnia no
dia seguinte, e um calafrio subiu pela minha espinha. Alguns daqueles rapazes
estariam mortos ou presos, quando eu voltasse. Preguei. Preguei como um moribundo
a moribundos. Esqueci-me de restringir as emoções, e derramei o coração. Já
estávamos na igreja havia duas horas, e eu preguei mais quarenta e cinco
minutos. Ninguém se movia. Quando terminei lágrimas corriam pela minha face, e
eu apelei a eles para entregarem a vida a Deus. Treze rapazes foram à frente,
e ajoelharam-se diante do altar. Se Israel estivesse ali...
Um dos rapazes que se apresentou era meu velho amigo,
Hector Furacão. Lembrei-me da época em que o fizera passar pela cerimônia da
iniciação, para entrar na quadrilha, e da vez em que havíamos tido uma “briga
leal” e ele fugira ao ver que eu ia matá-lo por ter roubado meu despertador. Furacão
estava agora ajoelhado diante do altar.
Depois do culto, fui andando com ele até Fort Greene.
Furacão era o conselheiro de guerra dos Mau-Maus. Visto que fora por meu
intermédio que entrara na gang, sentia muita responsabilidade por ele. Perguntei-lhe
onde vivia.
“Estou morando em um apartamento abandonado.”
“Rapaz, por que não está morando mais com sua família?”
perguntei.
“Eles me chutaram. Ficaram com vergonha de mim. Você se
lembra? eu fui um dos rapazes que foram à frente naquela noite na Arena St.
Nicholas, com você e Israel. Várias semanas depois, convidei minha família para
ir à igreja comigo, e todos os meus familiares foram convertidos. Tornamo-nos
ativos na igreja, e eu estava trabalhando com a mocidade. Abandonara a gang, e
tudo o mais, como você e Israel. A igreja, porém, era muito exigente. Eu
queria arranjar festinhas para a mocidade, mas eles não aceitavam. Finalmente
fiquei desanimado e desviei .”
Era a mesma velha história. Ele se encontrara mais tarde com
os Mau-Maus, e eles o convidaram a voltar para a quadrilha, da mesma forma como
haviam tentado comigo. Disseram que os crentes eram “quadrados”, vagabundos,
afeminados, e que a gang era o único grupo que tinha a verdadeira solução para
os problemas da vida. Na verdade, eles o “evangelizaram”, fazendo com que
voltasse à quadrilha.
Seguiu-se uma série de prisões. Seus pais tentaram
conversar com ele, mas ele teimou e finalmente ficaram tão exasperados a ponto
de dizer que teria de sair de casa, se não concordasse com as regras
familiares. Preferiu sair, e desde então morava em um velho edifício condenado.
“Algumas vezes passo fome”, disse ele, “mas prefiro morrer
de fome do que pedir alguma coisa ao meu velho. Ele é “quadrado” mesmo. Tudo o
que pensa é em ir à igreja e ler a Bíblia. Eu costumava ser assim, mas agora
estou de volta ao meu ambiente — os Mau-Maus.”
Chegamos ao edifício onde ele morava. Todas as janelas
estavam cobertas por tapumes, e ele me contou que havia um lugar, nos fundos,
onde conseguira forçar um dos tapumes e esgueirar-se para dentro. Dormia sobre
um acolchoado estendido no chão.
“Furacão, como é que você apareceu esta noite?” perguntei,
referindo-me ao fato dele ter atendido ao apelo para salvação.
“Fui à frente porque, bem dentro de mim, eu desejo ser
correto, Nicky. Quero seguir a Deus. Mas não consigo encontrar a solução certa.
Cada vez que me volto para ele, e depois desvio, as coisas ficam piores.
Gostaria que você voltasse para a gang, Nicky. Quem sabe se eu voltaria para
Cristo, se você estivesse aqui.”
Sentamo-nos na guia da calçada e conversamos madrugada a
dentro. Ouvi o relógio da torre dar quatro horas. “Furacão, sinto o Espírito de
Deus dizendo-me para falar isto a você. O relógio acaba de dar quatro horas. É
tarde. Mas se você der o coração a Jesus, ele o levará de volta. É tarde, mas
não tarde demais. Você sente a sua culpa, mas Deus o perdoará. Você não quer
entregar-se a Jesus agora?”
Hector escondeu o rosto nas mãos e começou a chorar. Mas
continuou a sacudir a cabeça e a dizer: “Não posso. Não posso. Quero fazer
isso. Mas sei que se fizer, volto para a quadrilha amanhã mesmo. Não posso. Não
posso mesmo.”
“Hector, você não viverá nem mais um ano se não se render a
Cristo agora. Você estará morto, neste mesmo dia do ano que vem. Eles vão matar
você.” Meu coração transbordava com palavras que não eram minhas, enquanto eu
profetizava para ele.
Hector apenas balançou a cabeça. “Se acontecer, aconteceu,
Nicky, e eu não posso fazer nada.”
Estávamos sentados no meio-fio da Av. Lafayette. Perguntei-lhe
se podia orar por ele. Ele encolheu os ombros. “Não vai adiantar nada, Nicky,
eu sei disso.”
Levantei-me, coloquei as mãos sobre a sua cabeça, e orei
para que Deus abrandasse o seu coração, para que ele pudesse voltar a Cristo.
Quando terminei, apertei-lhe a mão: “Furacão, espero vê-lo quando voltar. Mas
sinto profundamente que, a menos que você volte para Cristo, nunca mais o
verei.” Na tarde seguinte, viajei para a Califórnia. Naquela época, não sabia
quão exatamente a minha profecia viria a ser cumprida.