sábado, 24 de abril de 2021

Foge Nick Foge - 12 - Envolvido na escola



Capítulo 12

ENVOLVIDO NA ESCOLA

O INSTITUTO BÍBLICO DE LA PUENTE, Cali­fórnia, é acanhado e despretensioso. Está localizado em um pequeno trato de terra, bem perto da cidade. A maior parte dos setenta alunos matriculados na escola era de fala espanhola, e quase todos tinham origem modesta.
Steve Morales e eu chegamos de avião de Nova York. A escola era diferente — muito diferente de tudo o que eu já experimentara. Os regulamentos e horários eram muito rígidos. A escola era muito sistemática, e as aulas iam de terça a sábado. A maior parte dos alunos vivia em dormitórios do tipo alojamento militar.
Foram necessários vários meses para que eu me acostumasse com o Instituto. Eu sempre vivera sem freios, mas no Instituto tudo era regulado por um sino, desde a hora em que nos levantávamos, às seis da manhã, até o momento das luzes se apaga­rem, às nove e trinta da noite. De modo geral, não havia tempo disponível, e exigiam de nós que pas­sássemos mais de duas horas por dia em oração, além das seis horas de aula. Meu maior problema era não poder conversar com as garotas. Isto era estritamente proibido, e a única oportunidade em que podíamos conversar era em uns poucos momen­tos roubados antes e depois das aulas, ou enquanto estávamos lavando pratos, durante o cumprimento de nossa escala na cozinha.
Contudo, a filosofia da escola era ensinar disci­plina e obediência. Embora isso fosse muito difícil para mim, era justamente o tipo de treinamento de que eu precisava. Qualquer coisa menos severa me proporcionaria liberdade em excesso.
As refeições eram fartas, mas estavam longe de ser apetitosas. De manhã cedo, geralmente comíamos mingau com torradas, mas uma vez por semana tí­nhamos ovos. Porém essa dieta típica era parte de­finida do nosso treinamento, pois a maioria iria traba­lhar em regiões ou bairros pobres, ministrando a pes­soas de fala espanhola. Seríamos, então, forçados a viver em circunstâncias bem humildes.
Os professores foram muito pacientes comigo. Eu não sabia como agir, e me sentia terrivelmente in­seguro. Procurava compensar minhas falhas, agindo com esperteza e ostentação.
Lembro-me de certa manhã, durante o terceiro mês escolar, quando estávamos de pé enquanto o pro­fessor nos dirigia em uma longa oração no início da aula. Eu estivera espreitando, havia algumas semanas, aquela garota mexicana de cabelos negros, muito bo­nita e espiritual, que se assentava à minha frente, po­rém não conseguira chamar sua atenção. No meio da oração peguei a cadeira dela, afastando-a silencio­samente da carteira, pensando que assim ela iria sem dúvida ter sua atenção voltada para mim. Depois do “amém”, todos nos sentamos. Ela realmente me no­tou. Virou-se para trás, em sua posição deselegante no chão, e olhou para mim com olhos que despediam chispas de fogo. Quase morrendo de rir, estendi a mão para ajudá-la a levantar-se, porém ela me en­carou furiosa e pôs-se de pé sem minha ajuda. Não disse uma palavra e, de certa forma, a coisa perdeu mesmo a graça. Enquanto colocava a cadeira de vol­ta no lugar, ela bateu deliberadamente com a perna pontuda da mesma na minha canela. Penso que nunca sentira tanta dor em toda a minha vida. O sangue fugiu-me das faces, e pensei que ia desmaiar. Toda a classe caiu na risada. Finalmente recuperei o con­trole e olhei para ela. Ela devolveu-me o olhar com olhos que seriam capazes de fundir a blindagem de um tanque de guerra. Sorri debilmente, mas sentia o estômago embrulhado. Ela virou-se e sentou-se ri­gidamente na cadeira, olhando para o professor.
Este limpou a garganta, e disse: “Agora que terminamos a devoção matinal, comecemos a aula. Sr. Cruz será o primeiro a ser argüido esta manhã.”
Olhei para ele com olhos fracos e inexpressivos. “Sr. Cruz!” disse ele. “O senhor preparou a lição, não foi?” Tentei dizer algo, mas minha perna doía tanto que não pude falar. “Sr. Cruz, sabe qual é o castigo para quem não prepara a lição. Sei que tem grande dificuldade com a língua, e que ainda não disciplinou a mente para pensar em termos aca­dêmicos. Todos estamos tentando ser pacientes com o senhor, mas a menos que coopere, não tenho esco­lha : preciso dar-lhe um zero, e reprová-lo nesta ma­téria. Vou perguntar-lhe mais uma vez : preparou a lição?”
Sacudi a cabeça afirmativamente, e fiquei de pé. Minha mente estava completamente vazia. Fui man­quejando até a frente da sala de aula, e olhei para a classe. Encarei a garota bonita de olhos negros. Ela sorriu docemente, e abriu o seu caderno de for­ma que pude ver páginas e mais páginas de notas escritas com uma belíssima caligrafia — a lição que eu deveria apresentar. Olhei para o professor e disse debilmente : “Desculpe-me.” Corri para fora da clas­se, em direção ao dormitório.
Eu me fizera de tolo. Pensara que podia ser “vivo” e todos iriam rir, como faziam nas quadrilhas. Mas estas pessoas eram diferentes. Elas me toleravam porque tinham dó de mim. Eu era um desajustado, um proscrito.
Sentei-me na cama e escrevi uma longa carta para Davi Wilkerson. Disse-lhe que era duro viver ali, e que eu cometera um erro em ter aceito sua oferta. Eu sentia decepcioná-lo, mas tinha medo que fosse deixá-lo embaraçado, se continuasse na escola. Pedi-lhe para mandar-me uma passagem de avião, para que pudesse voltar. Mandei a carta expressa, e enderecei-a à casa de Davi na Pensilvânia.
A resposta dele chegou uma semana depois. Ras­guei o envelope ansiosamente, para encontrar um pe­queno bilhete :

“Querido Nicky :
Fico satisfeito em saber que você está indo tão bem. Ame a Deus e fuja de Satanás.
Pena que eu não tenha dinheiro em caixa, agora. Escreverei mais tarde para você, quando conseguir algum dinheiro. Seu amigo, Davi.”

Fiquei doente, confuso e frustrado. Escrevi então uma carta expressa ao Sr. Delgado. Eu sabia que ele tinha dinheiro, mas tive vergonha de contar-lhe que estava passando por horas tão duras na escola. Disse-lhe que minha família em Porto Rico precisava de dinheiro e eu tinha de ir para lá, arrumar um emprego e ajudá-la. Fazia um ano que eu não tinha notícias de minha família, mas parecia-me a única estória que eu podia contar, sem me complicar.
Uma semana depois, recebi uma carta expressa do Sr. Delgado :

“Querido Nicky:
Fiquei satisfeito em receber notícias suas. Enviei dinheiro para a sua família, para que você possa fi­car na escola. Deus o abençoe.”

Naquela noite, fui conversar com o Diretor, o Sr. Lopez. Contei-lhe os problemas que estava tendo. Es­tava me rebelando contra toda a autoridade. No dia anterior, fora minha vez de lavar o auditório, e eu atirara o esfregão no assoalho e dissera a eles que viera à Califórnia para estudar, e não para trabalhar como um escravo. Eu ainda andava gingando. Sabia que não devia pensar como o velho Nicky pensava — mas não conseguia. Quando os outros rapazes do dor­mitório tentaram orar por mim, eu os empurrei e disse-lhes que eram bons demais para mim. Eu era um trapaceiro. Um gangster. Eles todos eram santos. Eles queriam orar por mim e impor as mãos sobre mim, mas eu me recusei a permitir que se aproxi­massem. Chorei lágrimas amargas, sentado em seu pequeno escritório, e clamei pedindo sua ajuda.
O Sr. Lopez era um homem pequeno, de pele bronzeada. Ouviu-me silenciosamente, meneou a ca­beça, e finalmente estendeu a mão, pegando sua ve­lha Bíblia que estava escondida debaixo de uma pi­lha enorme de provas não corrigidas.
“Nicky, você precisa de um relacionamento mais íntimo com o Espírito Santo. Você foi salvo e quer seguir a Jesus, mas jamais terá qualquer vitória real em sua vida, enquanto não receber o batismo do Espí­rito Santo.”
Fiquei ali sentado, ouvindo o Sr. Lopez ler, na Bíblia aberta, versículos que falam da maravilhosa vitória que eu poderia alcançar, se recebesse o Espí­rito de Deus.
“Em Atos 1”, disse ele, “os apóstolos estavam na mesma situação em que você está. Tinham sido sal­vos, porém, não tinham poder. Dependiam da presen­ça física da pessoa de Jesus Cristo para proporcio­nar-lhes poder. Enquanto estavam perto dele, sen­tiam poder. Quando, porém, foram separados dele perderam o poder. Só uma vez nos Evangelhos en­contramos o registro de Jesus curando alguém sem estar presente. Foi o caso do servo do centurião. Porém, mesmo nesse caso, o centurião precisou di­rigir-se a Jesus para exercer sua fé. Em Mateus re­gistra-se que Jesus comissionou os doze discípulos e deu-lhes poder sobre os espíritos imundos, para ex­pulsá-los, e para curar toda sorte de enfermidades. Mas, mesmo tendo recebido a ordem, eles não pos­suíam poder suficiente para continuar sozinhos. En­contra-se evidência disso no fim do mesmo livro, quando um homem levou seu filho para ser curado por Jesus, dizendo que o apresentara aos discípulos, e eles não tiveram poder para curá-lo.”
Ouvi atenciosamente, enquanto os dedos do di­retor moviam-se agilmente, demonstrando familiari­dade com a Bíblia, gasta pelo uso. “No Jardim do Getsêmani, Jesus afastou-se dos discípulos para orar. Mas logo que ele desapareceu de vista, eles perderam o poder. Jesus pedira que ficassem acordados e vi­giassem, mas eles caíram no sono.”
Pensei com meus botões : “É justamente isso que acontece comigo. Sei o que ele quer que eu faça, mas não tenho forças para fazê-lo. Eu o amo e que­ro servi-lo, mas não tenho poder.”
O diretor continuou falando, acariciando a Bíblia com as mãos, como se estivesse tocando a ponta dos dedos de um velho e querido amigo. Seus olhos bri­lhavam, úmidos, enquanto ele falava do seu precio­so Senhor: “Depois, você se lembra, naquela mesma noite quando Pedro estava ao lado de fora do palá­cio, no momento em que levaram o seu Senhor, ele perdeu o poder. Tornou-se um covarde espiritual. Na­quela noite, até mesmo uma criada pôs a descoberto sua mentira, fazendo com que Pedro blasfemasse con­tra o seu Salvador, e até negasse que o conhecia.”
Lopez respirou fundo, dando um suspiro, e gran­des lágrimas se formaram nos seus olhos, caindo nas páginas amareladas da Bíblia aberta: “Nicky, isto é muito semelhante a todos nós. Como é trágico! Como é terrivelmente trágico, que na sua hora de necessidade, ele teve de ficar sozinho! Aprouvesse a Deus que eu estivesse lá para ficar com ele... para morrer com ele. Mas assim mesmo, Nicky, tenho a impressão de que eu seria igual a Pedro, porque o Espírito Santo ainda não viera, e eu, dependendo das minhas próprias forças, teria também abando­nado meu Salvador.”
Parou de falar por um momento, pois sua voz ficou sufocada. Tirou o lenço do bolso e assoou rui­dosamente o nariz.
Reabriu a Bíblia em Atos, e continuou: “Nicky, lembra-se do que aconteceu depois da crucificação ?”
Meneei a cabeça. Eu conhecia muito pouco a Bí­blia.
“Todos os discípulos desistiram. Foi isto que aconteceu. Eles disseram que tudo estava terminado, e iam voltar aos seus barcos de pesca. O único poder que eles tinham era o que fluía da presença física de Jesus, em quem vivia o Espírito Santo. Mas, depois que ressuscitou, Jesus lhes recomendou que voltas­sem a Jerusalém e esperassem até receberem novo poder... o prometido poder do Espírito Santo.
“A última promessa feita por Jesus aos seus se­guidores, foi a de que eles receberiam poder. Veja aqui em Atos 1:8.” Ele estendeu a Bíblia por sobre a escrivaninha, para que pudéssemos ler juntos: “Mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito San­to, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judéia, e Samaria, e até aos confins da terra.”
“Veja, Nicky, isto não é uma ordem para sair pelo mundo dando testemunho. É uma promessa de que receberíamos poder. E quando os apóstolos re­ceberam poder, não puderam deixar de ser testemu­nhas. Receberam poder por ocasião do batismo do Espírito Santo. O Espírito voltara dos céus de ma­neira poderosa e magnificente, enchendo cada um da­queles apóstolos com o mesmo poder possuído por Jesus.”
Eu me remexi na cadeira: “Se ele já enviou o seu Espírito”, disse eu, “por que não o enviou a mim ?”
“Mas ele enviou”, respondeu o diretor, que se pôs outra vez de pé, e começou a andar para cá e para lá, ao lado de sua pequena escrivaninha; “ele enviou! Só que você ainda não o recebeu.”
“Enviar. Receber. Qual é a diferença ?”
“O Espírito de Deus está em você, Nicky. Ele en­trou em sua vida naquela noite, na Arena St. Nicho­las. Ninguém pode dizer: “Senhor Jesus!” senão pelo Espírito Santo. Foi o Espírito quem o convenceu dos seus pecados. Foi o Espírito quem lhe deu o poder para aceitar a Jesus como seu Senhor. Foi o Espírito quem abriu as portas para que você entrasse nesta escola. Mas você ainda não deixou que ele o possuísse completamente.”
“Como é que eu faço, então?” perguntei since­ramente. “Tenho tentado purificar minha vida, livrar-me de todos os meus pecados. Tenho jejuado e orado, mas nada aconteceu.”
“Você nada faz, Nicky. Você simplesmente o re­cebe.” Sacudi a cabeça. Ainda estava confuso.
O Sr. Lopez pegou a Bíblia de novo e encontrou com facilidade o livro de Atos. “Vou contar-lhe a his­tória de um homem chamado Saulo. Estava a caminho de Damasco para um grande “quebra-pau”, mas foi derrubado pelo Espírito de Cristo, na estrada. Três dias depois ele foi batizado no Espírito e começou a pregar. Desta vez o poder veio através da imposição de mãos.”
“É esta a maneira pela qual eu posso recebê-lo ?” perguntei. “Alguém irá impor as mãos sobre mim e serei batizado com o Espírito Santo?”
“Pode ser que seja dessa maneira”, respondeu o Sr. Lopez. “Ou você pode recebê-lo quando estiver sozinho. Mas, uma vez que isto aconteça, a sua vida jamais será a mesma.”
Ele parou, e depois, olhando-me bem no fundo dos olhos, disse: “O mundo precisa de sua voz, Nicky. Há centenas de milhares de jovens pelos Estados Unidos que ainda vivem onde você viveu — e da mesma forma como você viveu. Estão presos nos laços do medo, do ódio e do pecado. Necessitam de uma voz profética poderosa que se levante nas fa­velas e nos guetos, e indique-lhes Cristo, que é a única saída para as suas misérias. Eles não vão ouvir os eloqüentes oradores dos púlpitos modernos. Nem dar atenção aos professores de seminários e institutos bíblicos. Nem atender aos visitadores so­ciais. Não darão crédito aos evangelistas profissio­nais.  Não vão às grandes igrejas, e mesmo que o fizessem, não seriam bem recebidos. Eles precisam de um profeta saído de suas próprias fileiras, Nicky. E desde este momento, vou começar a orar para que seja você esse profeta. Você fala a linguagem deles. Viveu onde eles vivem. É como eles. Você odiou como eles odeiam. Teve medo como eles têm. Agora Deus tocou sua vida e o chamou para fora da sarjeta, a fim de que possa chamar outros para segui­rem o caminho da cruz.”
Houve um longo período de silêncio sagrado. Ouvi-o dizer: “Nicky, quer que eu ore para que você receba o Espírito Santo?”
Pensei bastante, e depois respondi: “Não. Acho que isto é algo que devo receber sozinho. Se tenho que me manter por mim mesmo, devo recebê-lo sozi­nho. Creio que ele virá quando chegar a hora... porque eu já estou preparado.”
O diretor olhou para mim e sorriu: “Você é prudente, Nicky. Suas palavras só poderiam ter vin­do do Espírito de Deus. Muito breve sua vida vai mudar completamente. Orarei por você, enquanto você ora por si próprio.”
Olhei rapidamente para o relógio de parede. Eu passara quatro horas com ele. Eram duas da ma­drugada.
As cinco noites seguintes foram passadas em oração agonizante, na capela. Meus dias eram cheios de atividade estudantil, mas à noite eu me dirigia para a capela, a fim de suplicar a Deus para que me batizasse no seu Santo Espírito. Eu não sabia orar, exceto em voz alta. Comecei assim a orar em voz cada vez mais alta. Eu me ajoelhava diante do al­tar, e clamava a Deus: “Batiza-me, batiza-me, batiza-me!” Mas, nada acontecia. Era como se o salão fos­se uma caixa hermeticamente fechada, o que impe­dia minha voz de subir até os céus. Noite após noite eu ia à capela, ajoelhava, dava socos no gradil do altar, e gritava: “Batiza-me, ó Deus, por favor, bati­za-me, para que eu tenha o poder de Jesus.” Tentei mesmo pronunciar palavras em uma língua desconhe­cida, mas não saiu nada.
Na sexta-feira à noite, depois de uma semana de quatro a cinco horas de oração infrutífera por noite, eu estava a ponto de estourar sob a tensão emocio­nal. Saí da capela, bem tarde, e estava atravessando vagarosamente o pátio, quando ouvi alguém gritando atrás do prédio onde ficavam as salas de aula. Corri para o lado de onde ouvira o barulho e dei de frente com Roberto, ex viciado em drogas: “O que foi, Ro­berto ? O que foi?”
Ele levantou os braços e gritou: “Glória a Deus! Glória a Deus ! Glória a Deus !”
“O que aconteceu ? Por que você está tão alegre ?”
“Eu fui batizado no Espírito. Agora mesmo, há poucos minutos, eu estava orando e Deus tocou mi­nha vida e encheu-me de alegria e felicidade. Não posso parar. Preciso ir. Preciso contar ao mundo in­teiro. Glória a Deus, Nicky, glória ao seu maravilho­so nome!” Ele saiu correndo pelo pátio, pulando e gritando: “Aleluia! Glória a Deus!”
“Ei, espere um minuto”, saí gritando atrás dele. “Roberto ! Roberto ! Onde você recebeu o batismo? Onde você estava quando isso aconteceu ?”
Ele virou-se, e quase sem fôlego, apontou para o prédio da escola. “Na classe. Na sala grande. Eu estava na frente, de joelhos, e ele me encheu de fogo. Aleluia! Glória a Deus!”
Não esperei para escutar mais. Saí correndo lou­camente pelo pátio, em direção à classe. Se ele to­cara Roberto, podia ser que ainda estivesse lá e me tocasse também. Deslizei pela porta do edifício e corri saguão a dentro, até o salão. Freando à porta, espiei. Tudo estava escuro e silencioso.
Entrei devagar na sala vazia e escura, e tateei por entre as carteiras, até chegar à frente. Ajoelhei ao lado da carteira onde a garota bonita de olhos negros se estendera tão sem cerimônia no chão, quando afastei a cadeira. Não tive tempo para re­constituir o acontecimento em minha mente;  coloquei-me de mãos postas, na posição tradicional de prece, e ergui o rosto.
Em alta voz, gritei então: “Deus, sou eu, Nicky! Eu também estou aqui. Batiza-me!” Esperei ansio­samente. Nada aconteceu.
Talvez eu esteja falando com a pessoa errada, pensei. Vou tentar outra vez. “Jesus”, gritei com todas as forças dos pulmões, “sou eu, Nicky Cruz, aqui na sala de aulas, em La Puente. Estou esperan­do para ser batizado no teu Espírito. Permite que eu receba o batismo.” A ansiedade era tão grande que eu quase me sentia suspenso no ar. Minha boca estava aberta, pronta para falar em línguas. Minhas pernas estavam tensas debaixo de mim, prontas para pular e correr como Roberto. Nada, porém, aconte­ceu. Nada. Silêncio. O assoalho tornou-se duro, e meus joelhos começaram a doer. Levantei-me vaga­rosamente e saí desanimado, atravessei o pátio es­curo e fui para o dormitório.
O ar recendia com o perfume dos jasmins que desabrochavam durante a noite. A grama estava úmi­da debaixo dos meus pés, regada pelo orvalho da madrugada. Nos arbustos, ouvi o canto solitário de um curiango, e algures, à distância, ouvi o resfolegar grave e plangente de uma locomotiva diesel, puxan­do vagarosamente os vagões carregados, ladeira aci­ma. A lua escondeu-se por trás de uma nuvem es­cura semelhante a uma dama sedutora, esgueirou-se para dentro do seu apartamento e fechou a porta. O perfume dos jasmins flutuava no ar frio da noite, e as lâmpadas dos postes piscavam quando o vento agi­tava os ramos das palmeiras diante dos raios da sua luz. Eu estava sozinho no paraíso de Deus.
Entrei silenciosamente no dormitório, e encami­nhei-me, guiado pela força do hábito, para meu be­liche na penumbra. Deitei-me de costas na cama, com as mãos cruzadas sob a cabeça, de olhos ar­regalados na escuridão. Eu podia ouvir o ressonar suave dos outros rapazes. “Deus!” solucei. E senti lágrimas escaldantes me subirem aos olhos e cor­rerem para dentro de minhas orelhas, e sobre o travesseiro. “Faz uma semana que eu estou pedindo, e tu não me atendeste. Eu não presto. Já sei porque não pude receber-te: é porque eu não sou digno. Eu ajo como um imbecil em relação às outras pes­soas. Nem sei como segurar o garfo e a faca. Não sei ler direito, nem raciocinar com ligeireza suficien­te para assimilar os ensinamentos. Tudo o que sei é da gang. Estou tão deslocado aqui, e sou tão sujo e pecador... Eu quero ser bom. Mas não posso ser bom sem o teu Espírito. Não obstante, tu não o dás porque eu não sou bastante digno.”
A imagem do meu velho quarto, na Rua Fort Greene, 54, atravessou-me a mente como um relâmpago, e eu comecei a tremer incontrolavelmente. “Eu não quero voltar, meu Deus, mas o que acontece é que não consigo me ajustar aqui. Todos estes rapazes e estas moças são tão espirituais e santos, e eu tão impuro e pecador... reconheço que estou fora do meu lugar. Vou voltar amanhã.” Virei-me de lado, e caí num sono agitado.
Depois da aula, no dia seguinte, voltei ao dor­mitório para arrumar minhas malas. Tinha resolvido sair furtivamente da escola, e empreender a longa jornada de volta para casa — pedindo carona. Não adiantava ficar ali.
Naquela noite, sentado no meu beliche, os meus pensamentos foram interrompidos por um dos alunos externos.
“Ah, Nicky! É você mesmo que eu queria en­contrar.”
Pensei com meus botões: “É você mesmo que eu não queria encontrar.”
“Nicky”, continuou ele num tom alegre, “vamos realizar um estudo bíblico e um culto na pequena igreja do Boulevard Guava. Eu quero que você vá comigo.”
Sacudi a cabeça: “Hoje não, Gene. Estou cansado, e tenho muito o que estudar. Convide um dos outros rapazes.”
“Mas não há nenhum outro rapaz por aqui”, disse ele enquanto me dava um tapinha nas costas, “e além disso, o Espírito Santo me mandou procurar você.”
“Hummm, o Espírito, é? Bem, o Espírito me mandou ficar aqui e descansar um pouco, pois eu tenho estado muito ocupado falando com ele a se­mana inteira. Agora, raspe-se e deixe-me descansar.” Deitei e dei-lhe as costas.
“Não sairei daqui se você não for comigo”, dis­se ele teimosamente. Sentou-se aos pés de minha ca­ma, e cruzou as pernas.
Fiquei exasperado. O rapaz estava louco. Será que não percebia que eu não queria ir ?
“Tá bom”, suspirei, “vou com você. Mas, não se surpreenda se eu cochilar no culto.”
“Vamos”, disse Gene alegremente, puxando-me pelo braço. “Estamos atrasados, e tenho de pregar.”
Eu concordara em ir porque decidira sair de man­sinho depois do culto, e arranjar uma carona para a cidade. Meti no bolso às pressas a escova de den­tes e alguns outros pertences e resolvi deixar o resto da bagagem. Afinal de contas, não valia muita coisa.
Chegamos à pequena capela mais ou menos às sete e trinta da noite. Era feita de adobe, rebocada por dentro. Os toscos bancos de madeira estavam cheios de mexicanos simples e sinceros. “Pelo menos estou em boa companhia”, pensei. “Até mesmo esta gente é melhor do que eu. Pelo menos estão aqui por­que querem. Eu estou aqui porque fui forçado a vir.”
Gene pregou cerca de quinze minutos, e depois fez o apelo. Eu estava sentado no último banco, ao lado de um homem de cabelos grisalhos que recendia fortemente a sujeira e suor. Suas roupas esta­vam sujas, como se ele tivesse vindo diretamente do campo sem ter tomado banho. Enquanto Gene orava, meu vizinho  de banco começou  a chorar:  “Jesus, Jesus, Jesus”, murmurava ele sem parar. “Obrigado, Jesus. Oh, obrigado, Jesus.”
Algo moveu se dentro de mim. Era como se al­guém tivesse aberto uma torneira, um pouquinho só, a princípio; e que, depois, começasse a jorrar. “Obri­gado, Jesus”, orava o velho granjeiro ao meu lado, “obrigado.”
“Oh, Deus!” solucei, “Oh, Jesus, Jesus.” Cerrei os dentes, e tentei segurar a avalanche, mas as com­portas não agüentaram, e eu me vi correndo cor­redor abaixo, em direção ao altar, tropeçando e cam­baleando, até que caí de encontro ao gradil de ma­deira bruta, chorando incontrolavelmente.
Senti as mãos de Gene sobre mim. “Nicky.” Eu quase não ouvia a sua voz, por causa de meus solu­ços. “Nicky, Deus não ia deixar você fugir esta noite. O seu Espírito veio a mim há uma hora atrás, e mandou que fosse ao dormitório, para buscar e tra­zer você a este culto. Eu sabia que você planejava fugir. Ele enviou-me para impedi-lo.”
Como ele sabia ? Ninguém sabia! Ninguém, exce­to Deus.
“Deus me enviou a você, Nicky. Todos os rapa­zes e professores estão orando por você, na escola. Sentimos a mão de Deus sobre você de maneira ma­ravilhosa. Sentimos que ele está para encaminhá-lo a um grande e precioso ministério. Nós gostamos de você. Nós amamos você. Amamos você.”
As lágrimas corriam como regatos. Eu queria falar, mas não consegui dizer nada. Percebi que ele deu a volta pelo gradil tosco, sem pintura, pôs o braço ao redor dos meus ombros, e ajoelhou-se ao meu lado. “Posso orar por você, Nicky ? Posso orar para que Cristo o batize no seu Santo Espírito ?”
Tentei responder, mas o choro aumentou. Ace­nei afirmativamente com a cabeça, resmunguei qualquer coisa que ele interpretou como sendo uma resposta afirmativa.
Eu   não   tive  consciência   da sua  oração,  nem prestei atenção nela. Nem sei se ele orou ou não. De repente, abri a boca, e dela saíram os mais belos sons que eu já ouvi. Senti uma grande puri­ficação interior, como se o meu corpo estivesse sendo limpo, desde a sola dos pés até o alto da cabeça. A linguagem com que eu estava louvando a Deus não era inglês nem espanhol. Era uma lín­gua desconhecida. Eu não tinha idéia do que esta­va falando, mas sabia que era louvor ao Deus San­tíssimo, em palavras que, por mim mesmo, jamais seria capaz de formar.
O correr do tempo perdeu qualquer significado, e a dureza das tábuas em que eu estava ajoelhado não fez diferença. Eu estava louvando a Deus da maneira que sempre desejara, e nunca mais ia pa­rar.
Pareceu-me que se haviam passado apenas al­guns momentos, quando senti Gene me sacudir pelo ombro: “Nicky, está na hora de ir. Precisamos vol­tar para a escola.”
“Não, está muito bom aqui”, ouvi-me dizer, “deixe-me ficar aqui para sempre.”
“Nicky”, ele insistiu, “precisamos ir. Você pode continuar quando voltarmos, mas agora precisamos ir embora.”
Levantei os olhos. A igreja estava vazia; só nós dois estávamos ali. “Ei, onde está o pessoal?”
“Rapaz, são onze horas da noite. Faz uma hora que todos saíram.”
“Quer dizer que estive orando duas horas?” Não podia acreditar.
“Obrigado, Jesus, obrigado!” gritei, enquanto corríamos para o carro.
Gene deixou-me defronte ao dormitório, e foi embora. Corri para dentro e acendi a luz. Comecei a cantar com todas as forças: “Santo, Santo, Santo, Deus onipotente!”
“Ei, que barulho é esse ? O que é que deu em você?” começaram a gritar. “Apague essa luz. Que loucura é essa? Apague a luz!”
“Calma”, gritei. “Hoje estou celebrando. Vocês não sabem o que me aconteceu, mas eu sei, e que­ro cantar... Glória, glória, aleluia!...” Uma fuzi­laria de travesseiros me atingiu, vindo de todos os cantos do quarto. “Apague a luz!” Mas eu sabia que uma luz se acendera em minha alma, que jamais haveria de apagar-se. Brilharia para sempre.
Naquela noite, sonhei de novo — pela primeira vez desde que fora salvo. No sonho, eu estava no alto da colina, perto de Las Piedras, em Porto Ri­co, onde eu subira muitas vezes em meus pesade­los. Olhando para o céu, vi a forma de um pássaro. Mesmo dormindo, comecei a tremer, e tentei levan­tar-me. “Oh, Deus, não permita que isso comece de novo. Por misericórdia!” Mas o pássaro chegava ca­da vez mais perto. Só que desta vez não era o passari­nho sem pernas — era uma pomba. Encolhi-me de terror, pensando que ela iria bicar-me, e bater com as asas no meu rosto. Mas não — nada disso acon­teceu. Era uma pomba mansa e meiga. Ela foi des­cendo... descendo... e pousou mansamente sobre a minha cabeça. O sonho se desfez, e eu caí num sono profundo, calmo, delicioso.