Capítulo 12
ENVOLVIDO NA ESCOLA
O INSTITUTO BÍBLICO DE LA PUENTE, Califórnia, é acanhado e
despretensioso. Está localizado em um pequeno trato de terra, bem perto da
cidade. A maior parte dos setenta alunos matriculados na escola era de fala
espanhola, e quase todos tinham origem modesta.
Steve Morales e eu chegamos de avião de Nova York. A escola
era diferente — muito diferente de tudo o que eu já experimentara. Os
regulamentos e horários eram muito rígidos. A escola era muito sistemática, e
as aulas iam de terça a sábado. A maior parte dos alunos vivia em dormitórios
do tipo alojamento militar.
Foram necessários vários meses para que eu me acostumasse
com o Instituto. Eu sempre vivera sem freios, mas no Instituto tudo era
regulado por um sino, desde a hora em que nos levantávamos, às seis da manhã,
até o momento das luzes se apagarem, às nove e trinta da noite. De modo geral,
não havia tempo disponível, e exigiam de nós que passássemos mais de duas
horas por dia em oração, além das seis horas de aula. Meu maior problema era
não poder conversar com as garotas. Isto era estritamente proibido, e a única
oportunidade em que podíamos conversar era em uns poucos momentos roubados
antes e depois das aulas, ou enquanto estávamos lavando pratos, durante o
cumprimento de nossa escala na cozinha.
Contudo, a filosofia da escola era ensinar disciplina e obediência.
Embora isso fosse muito difícil para mim, era justamente o tipo de treinamento
de que eu precisava. Qualquer coisa menos severa me proporcionaria liberdade em
excesso.
As refeições eram fartas, mas estavam longe de ser
apetitosas. De manhã cedo, geralmente comíamos mingau com torradas, mas uma vez
por semana tínhamos ovos. Porém essa dieta típica era parte definida do nosso
treinamento, pois a maioria iria trabalhar em regiões ou bairros pobres,
ministrando a pessoas de fala espanhola. Seríamos, então, forçados a viver em
circunstâncias bem humildes.
Os professores foram muito pacientes comigo. Eu não sabia
como agir, e me sentia terrivelmente inseguro. Procurava compensar minhas
falhas, agindo com esperteza e ostentação.
Lembro-me de certa manhã, durante o terceiro mês escolar,
quando estávamos de pé enquanto o professor nos dirigia em uma longa oração no
início da aula. Eu estivera espreitando, havia algumas semanas, aquela garota
mexicana de cabelos negros, muito bonita e espiritual, que se assentava à
minha frente, porém não conseguira chamar sua atenção. No meio da oração
peguei a cadeira dela, afastando-a silenciosamente da carteira, pensando que
assim ela iria sem dúvida ter sua atenção voltada para mim. Depois do “amém”,
todos nos sentamos. Ela realmente me notou. Virou-se para trás, em sua posição
deselegante no chão, e olhou para mim com olhos que despediam chispas de fogo.
Quase morrendo de rir, estendi a mão para ajudá-la a levantar-se, porém ela me
encarou furiosa e pôs-se de pé sem minha ajuda. Não disse uma palavra e, de
certa forma, a coisa perdeu mesmo a graça. Enquanto colocava a cadeira de volta
no lugar, ela bateu deliberadamente com a perna pontuda da mesma na minha
canela. Penso que nunca sentira tanta dor em toda a minha vida. O sangue
fugiu-me das faces, e pensei que ia desmaiar. Toda a classe caiu na risada.
Finalmente recuperei o controle e olhei para ela. Ela devolveu-me o olhar com
olhos que seriam capazes de fundir a blindagem de um tanque de guerra. Sorri
debilmente, mas sentia o estômago embrulhado. Ela virou-se e sentou-se rigidamente
na cadeira, olhando para o professor.
Este limpou a garganta, e disse: “Agora que terminamos a
devoção matinal, comecemos a aula. Sr. Cruz será o primeiro a ser argüido esta
manhã.”
Olhei para ele com olhos fracos e inexpressivos. “Sr. Cruz!”
disse ele. “O senhor preparou a lição, não foi?” Tentei dizer algo, mas minha
perna doía tanto que não pude falar. “Sr. Cruz, sabe qual é o castigo para quem
não prepara a lição. Sei que tem grande dificuldade com a língua, e que ainda
não disciplinou a mente para pensar em termos acadêmicos. Todos estamos
tentando ser pacientes com o senhor, mas a menos que coopere, não tenho escolha
: preciso dar-lhe um zero, e reprová-lo nesta matéria. Vou perguntar-lhe mais
uma vez : preparou a lição?”
Sacudi a cabeça afirmativamente, e fiquei de pé. Minha mente
estava completamente vazia. Fui manquejando até a frente da sala de aula, e
olhei para a classe. Encarei a garota bonita de olhos negros. Ela sorriu
docemente, e abriu o seu caderno de forma que pude ver páginas e mais páginas
de notas escritas com uma belíssima caligrafia — a lição que eu deveria
apresentar. Olhei para o professor e disse debilmente : “Desculpe-me.” Corri
para fora da classe, em direção ao dormitório.
Eu me fizera de tolo. Pensara que podia ser “vivo” e todos
iriam rir, como faziam nas quadrilhas. Mas estas pessoas eram diferentes. Elas
me toleravam porque tinham dó de mim. Eu era um desajustado, um proscrito.
Sentei-me na cama e escrevi uma longa carta para Davi
Wilkerson. Disse-lhe que era duro viver ali, e que eu cometera um erro em ter
aceito sua oferta. Eu sentia decepcioná-lo, mas tinha medo que fosse deixá-lo
embaraçado, se continuasse na escola. Pedi-lhe para mandar-me uma passagem de
avião, para que pudesse voltar. Mandei a carta expressa, e enderecei-a à casa
de Davi na Pensilvânia.
A resposta dele chegou uma semana depois. Rasguei o
envelope ansiosamente, para encontrar um pequeno bilhete :
“Querido Nicky :
Fico satisfeito em saber que você está indo tão bem. Ame a
Deus e fuja de Satanás.
Pena que eu não tenha dinheiro em caixa, agora. Escreverei
mais tarde para você, quando conseguir algum dinheiro. Seu amigo, Davi.”
Fiquei doente, confuso e frustrado. Escrevi então uma carta
expressa ao Sr. Delgado. Eu sabia que ele tinha dinheiro, mas tive vergonha de
contar-lhe que estava passando por horas tão duras na escola. Disse-lhe que
minha família em Porto Rico precisava de dinheiro e eu tinha de ir para lá,
arrumar um emprego e ajudá-la. Fazia um ano que eu não tinha notícias de minha
família, mas parecia-me a única estória que eu podia contar, sem me complicar.
Uma semana depois, recebi uma carta expressa do Sr. Delgado
:
“Querido Nicky:
Fiquei satisfeito em receber notícias suas. Enviei dinheiro
para a sua família, para que você possa ficar na escola. Deus o abençoe.”
Naquela noite, fui conversar com o Diretor, o Sr. Lopez.
Contei-lhe os problemas que estava tendo. Estava me rebelando contra toda a
autoridade. No dia anterior, fora minha vez de lavar o auditório, e eu atirara
o esfregão no assoalho e dissera a eles que viera à Califórnia para estudar, e
não para trabalhar como um escravo. Eu ainda andava gingando. Sabia que não
devia pensar como o velho Nicky pensava — mas não conseguia. Quando os outros
rapazes do dormitório tentaram orar por mim, eu os empurrei e disse-lhes que
eram bons demais para mim. Eu era um trapaceiro. Um gangster. Eles todos eram
santos. Eles queriam orar por mim e impor as mãos sobre mim, mas eu me recusei
a permitir que se aproximassem. Chorei lágrimas amargas, sentado em seu
pequeno escritório, e clamei pedindo sua ajuda.
O Sr. Lopez era um homem pequeno, de pele bronzeada.
Ouviu-me silenciosamente, meneou a cabeça, e finalmente estendeu a mão,
pegando sua velha Bíblia que estava escondida debaixo de uma pilha enorme de
provas não corrigidas.
“Nicky, você precisa de um relacionamento mais íntimo com o
Espírito Santo. Você foi salvo e quer seguir a Jesus, mas jamais terá qualquer
vitória real em sua vida, enquanto não receber o batismo do Espírito Santo.”
Fiquei ali sentado, ouvindo o Sr. Lopez ler, na Bíblia
aberta, versículos que falam da maravilhosa vitória que eu poderia alcançar, se
recebesse o Espírito de Deus.
“Em Atos 1”, disse ele, “os apóstolos estavam na mesma
situação em que você está. Tinham sido salvos, porém, não tinham poder.
Dependiam da presença física da pessoa de Jesus Cristo para proporcionar-lhes
poder. Enquanto estavam perto dele, sentiam poder. Quando, porém, foram
separados dele perderam o poder. Só uma vez nos Evangelhos encontramos o
registro de Jesus curando alguém sem estar presente. Foi o caso do servo do
centurião. Porém, mesmo nesse caso, o centurião precisou dirigir-se a Jesus
para exercer sua fé. Em Mateus registra-se que Jesus comissionou os doze
discípulos e deu-lhes poder sobre os espíritos imundos, para expulsá-los, e
para curar toda sorte de enfermidades. Mas, mesmo tendo recebido a ordem, eles
não possuíam poder suficiente para continuar sozinhos. Encontra-se evidência
disso no fim do mesmo livro, quando um homem levou seu filho para ser curado
por Jesus, dizendo que o apresentara aos discípulos, e eles não tiveram poder
para curá-lo.”
Ouvi atenciosamente, enquanto os dedos do diretor moviam-se
agilmente, demonstrando familiaridade com a Bíblia, gasta pelo uso. “No Jardim
do Getsêmani, Jesus afastou-se dos discípulos para orar. Mas logo que ele
desapareceu de vista, eles perderam o poder. Jesus pedira que ficassem
acordados e vigiassem, mas eles caíram no sono.”
Pensei com meus botões : “É justamente isso que acontece
comigo. Sei o que ele quer que eu faça, mas não tenho forças para fazê-lo. Eu o
amo e quero servi-lo, mas não tenho poder.”
O diretor continuou falando, acariciando a Bíblia com as
mãos, como se estivesse tocando a ponta dos dedos de um velho e querido amigo.
Seus olhos brilhavam, úmidos, enquanto ele falava do seu precioso Senhor: “Depois,
você se lembra, naquela mesma noite quando Pedro estava ao lado de fora do palácio,
no momento em que levaram o seu Senhor, ele perdeu o poder. Tornou-se um
covarde espiritual. Naquela noite, até mesmo uma criada pôs a descoberto sua
mentira, fazendo com que Pedro blasfemasse contra o seu Salvador, e até
negasse que o conhecia.”
Lopez respirou fundo, dando um suspiro, e grandes lágrimas
se formaram nos seus olhos, caindo nas páginas amareladas da Bíblia aberta: “Nicky,
isto é muito semelhante a todos nós. Como é trágico! Como é terrivelmente
trágico, que na sua hora de necessidade, ele teve de ficar sozinho! Aprouvesse
a Deus que eu estivesse lá para ficar com ele... para morrer com ele. Mas assim
mesmo, Nicky, tenho a impressão de que eu seria igual a Pedro, porque o
Espírito Santo ainda não viera, e eu, dependendo das minhas próprias forças,
teria também abandonado meu Salvador.”
Parou de falar por um momento, pois sua voz ficou sufocada.
Tirou o lenço do bolso e assoou ruidosamente o nariz.
Reabriu a Bíblia em Atos, e continuou: “Nicky, lembra-se do
que aconteceu depois da crucificação ?”
Meneei a cabeça. Eu conhecia muito pouco a Bíblia.
“Todos os discípulos desistiram. Foi isto que aconteceu.
Eles disseram que tudo estava terminado, e iam voltar aos seus barcos de pesca.
O único poder que eles tinham era o que fluía da presença física de Jesus, em
quem vivia o Espírito Santo. Mas, depois que ressuscitou, Jesus lhes recomendou
que voltassem a Jerusalém e esperassem até receberem novo poder... o prometido
poder do Espírito Santo.
“A última promessa feita por Jesus aos seus seguidores, foi
a de que eles receberiam poder. Veja aqui em Atos 1:8.” Ele estendeu a Bíblia
por sobre a escrivaninha, para que pudéssemos ler juntos: “Mas recebereis
poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto
em Jerusalém como em toda a Judéia, e Samaria, e até aos confins da terra.”
“Veja, Nicky, isto não é uma ordem para sair pelo mundo
dando testemunho. É uma promessa de que receberíamos poder. E quando os
apóstolos receberam poder, não puderam deixar de ser testemunhas. Receberam
poder por ocasião do batismo do Espírito Santo. O Espírito voltara dos céus de
maneira poderosa e magnificente, enchendo cada um daqueles apóstolos com o
mesmo poder possuído por Jesus.”
Eu me remexi na cadeira: “Se ele já enviou o seu Espírito”,
disse eu, “por que não o enviou a mim ?”
“Mas ele enviou”, respondeu o diretor, que se pôs outra vez
de pé, e começou a andar para cá e para lá, ao lado de sua pequena
escrivaninha; “ele enviou! Só que você ainda não o recebeu.”
“Enviar. Receber. Qual é a diferença ?”
“O Espírito de Deus está em você, Nicky. Ele entrou em sua
vida naquela noite, na Arena St. Nicholas. Ninguém pode dizer: “Senhor Jesus!”
senão pelo Espírito Santo. Foi o Espírito quem o convenceu dos seus pecados.
Foi o Espírito quem lhe deu o poder para aceitar a Jesus como seu Senhor. Foi o
Espírito quem abriu as portas para que você entrasse nesta escola. Mas você
ainda não deixou que ele o possuísse completamente.”
“Como é que eu faço, então?” perguntei sinceramente. “Tenho
tentado purificar minha vida, livrar-me de todos os meus pecados. Tenho jejuado
e orado, mas nada aconteceu.”
“Você nada faz, Nicky. Você simplesmente o recebe.” Sacudi
a cabeça. Ainda estava confuso.
O Sr. Lopez pegou a Bíblia de novo e encontrou com
facilidade o livro de Atos. “Vou contar-lhe a história de um homem chamado
Saulo. Estava a caminho de Damasco para um grande “quebra-pau”, mas foi
derrubado pelo Espírito de Cristo, na estrada. Três dias depois ele foi
batizado no Espírito e começou a pregar. Desta vez o poder veio através da
imposição de mãos.”
“É esta a maneira pela qual eu posso recebê-lo ?” perguntei.
“Alguém irá impor as mãos sobre mim e serei batizado com o Espírito Santo?”
“Pode ser que seja dessa maneira”, respondeu o Sr. Lopez. “Ou
você pode recebê-lo quando estiver sozinho. Mas, uma vez que isto aconteça, a
sua vida jamais será a mesma.”
Ele parou, e depois, olhando-me bem no fundo dos olhos,
disse: “O mundo precisa de sua voz, Nicky. Há centenas de milhares de jovens
pelos Estados Unidos que ainda vivem onde você viveu — e da mesma forma como
você viveu. Estão presos nos laços do medo, do ódio e do pecado. Necessitam de
uma voz profética poderosa que se levante nas favelas e nos guetos, e
indique-lhes Cristo, que é a única saída para as suas misérias. Eles não vão
ouvir os eloqüentes oradores dos púlpitos modernos. Nem dar atenção aos
professores de seminários e institutos bíblicos. Nem atender aos visitadores sociais.
Não darão crédito aos evangelistas profissionais. Não vão às grandes igrejas, e mesmo que o
fizessem, não seriam bem recebidos. Eles precisam de um profeta saído de suas
próprias fileiras, Nicky. E desde este momento, vou começar a orar para que
seja você esse profeta. Você fala a linguagem deles. Viveu onde eles vivem. É
como eles. Você odiou como eles odeiam. Teve medo como eles têm. Agora Deus
tocou sua vida e o chamou para fora da sarjeta, a fim de que possa chamar
outros para seguirem o caminho da cruz.”
Houve um longo período de silêncio sagrado. Ouvi-o dizer: “Nicky,
quer que eu ore para que você receba o Espírito Santo?”
Pensei bastante, e depois respondi: “Não. Acho que isto é
algo que devo receber sozinho. Se tenho que me manter por mim mesmo, devo
recebê-lo sozinho. Creio que ele virá quando chegar a hora... porque eu já
estou preparado.”
O diretor olhou para mim e sorriu: “Você é prudente, Nicky.
Suas palavras só poderiam ter vindo do Espírito de Deus. Muito breve sua vida
vai mudar completamente. Orarei por você, enquanto você ora por si próprio.”
Olhei rapidamente para o relógio de parede. Eu passara
quatro horas com ele. Eram duas da madrugada.
As cinco noites seguintes foram passadas em oração
agonizante, na capela. Meus dias eram cheios de atividade estudantil, mas à
noite eu me dirigia para a capela, a fim de suplicar a Deus para que me
batizasse no seu Santo Espírito. Eu não sabia orar, exceto em voz alta. Comecei
assim a orar em voz cada vez mais alta. Eu me ajoelhava diante do altar, e
clamava a Deus: “Batiza-me, batiza-me, batiza-me!” Mas, nada acontecia. Era
como se o salão fosse uma caixa hermeticamente fechada, o que impedia minha
voz de subir até os céus. Noite após noite eu ia à capela, ajoelhava, dava
socos no gradil do altar, e gritava: “Batiza-me, ó Deus, por favor, batiza-me,
para que eu tenha o poder de Jesus.” Tentei mesmo pronunciar palavras em uma
língua desconhecida, mas não saiu nada.
Na sexta-feira à noite, depois de uma semana de quatro a
cinco horas de oração infrutífera por noite, eu estava a ponto de estourar sob
a tensão emocional. Saí da capela, bem tarde, e estava atravessando
vagarosamente o pátio, quando ouvi alguém gritando atrás do prédio onde ficavam
as salas de aula. Corri para o lado de onde ouvira o barulho e dei de frente
com Roberto, ex viciado em drogas: “O que foi, Roberto ? O que foi?”
Ele levantou os braços e gritou: “Glória a Deus! Glória a
Deus ! Glória a Deus !”
“O que aconteceu ? Por que você está tão alegre ?”
“Eu fui batizado no Espírito. Agora mesmo, há poucos
minutos, eu estava orando e Deus tocou minha vida e encheu-me de alegria e
felicidade. Não posso parar. Preciso ir. Preciso contar ao mundo inteiro.
Glória a Deus, Nicky, glória ao seu maravilhoso nome!” Ele saiu correndo pelo
pátio, pulando e gritando: “Aleluia! Glória a Deus!”
“Ei, espere um minuto”, saí gritando atrás dele. “Roberto !
Roberto ! Onde você recebeu o batismo? Onde você estava quando isso aconteceu ?”
Ele virou-se, e quase sem fôlego, apontou para o prédio da
escola. “Na classe. Na sala grande. Eu estava na frente, de joelhos, e ele me encheu
de fogo. Aleluia! Glória a Deus!”
Não esperei para escutar mais. Saí correndo loucamente pelo
pátio, em direção à classe. Se ele tocara Roberto, podia ser que ainda
estivesse lá e me tocasse também. Deslizei pela porta do edifício e corri
saguão a dentro, até o salão. Freando à porta, espiei. Tudo estava escuro e
silencioso.
Entrei devagar na sala vazia e escura, e tateei por entre as
carteiras, até chegar à frente. Ajoelhei ao lado da carteira onde a garota
bonita de olhos negros se estendera tão sem cerimônia no chão, quando afastei a
cadeira. Não tive tempo para reconstituir o acontecimento em minha mente; coloquei-me de mãos postas, na posição
tradicional de prece, e ergui o rosto.
Em alta voz, gritei então: “Deus, sou eu, Nicky! Eu também
estou aqui. Batiza-me!” Esperei ansiosamente. Nada aconteceu.
Talvez eu esteja falando com a pessoa errada, pensei. Vou
tentar outra vez. “Jesus”, gritei com todas as forças dos pulmões, “sou eu,
Nicky Cruz, aqui na sala de aulas, em La Puente. Estou esperando para ser
batizado no teu Espírito. Permite que eu receba o batismo.” A ansiedade era tão
grande que eu quase me sentia suspenso no ar. Minha boca estava aberta, pronta
para falar em línguas. Minhas pernas estavam tensas debaixo de mim, prontas
para pular e correr como Roberto. Nada, porém, aconteceu. Nada. Silêncio. O
assoalho tornou-se duro, e meus joelhos começaram a doer. Levantei-me vagarosamente
e saí desanimado, atravessei o pátio escuro e fui para o dormitório.
O ar recendia com o perfume dos jasmins que desabrochavam
durante a noite. A grama estava úmida debaixo dos meus pés, regada pelo
orvalho da madrugada. Nos arbustos, ouvi o canto solitário de um curiango, e
algures, à distância, ouvi o resfolegar grave e plangente de uma locomotiva
diesel, puxando vagarosamente os vagões carregados, ladeira acima. A
lua escondeu-se por trás de uma nuvem escura semelhante a uma dama sedutora,
esgueirou-se para dentro do seu apartamento e fechou a porta. O perfume dos
jasmins flutuava no ar frio da noite, e as lâmpadas dos postes piscavam quando
o vento agitava os ramos das palmeiras diante dos raios da sua luz. Eu estava
sozinho no paraíso de Deus.
Entrei silenciosamente no dormitório, e encaminhei-me,
guiado pela força do hábito, para meu beliche na penumbra. Deitei-me de costas
na cama, com as mãos cruzadas sob a cabeça, de olhos arregalados na escuridão.
Eu podia ouvir o ressonar suave dos outros rapazes. “Deus!” solucei. E senti
lágrimas escaldantes me subirem aos olhos e correrem para dentro de minhas
orelhas, e sobre o travesseiro. “Faz uma semana que eu estou pedindo, e tu não
me atendeste. Eu não presto. Já sei porque não pude receber-te: é porque eu não
sou digno. Eu ajo como um imbecil em relação às outras pessoas. Nem sei como
segurar o garfo e a faca. Não sei ler direito, nem raciocinar com ligeireza
suficiente para assimilar os ensinamentos. Tudo o que sei é da gang. Estou tão
deslocado aqui, e sou tão sujo e pecador... Eu quero ser bom. Mas não posso ser
bom sem o teu Espírito. Não obstante, tu não o dás porque eu não sou bastante
digno.”
A imagem do meu velho quarto, na Rua Fort Greene, 54,
atravessou-me a mente como um relâmpago, e eu comecei a tremer
incontrolavelmente. “Eu não quero voltar, meu Deus, mas o que acontece é que
não consigo me ajustar aqui. Todos estes rapazes e estas moças são tão
espirituais e santos, e eu tão impuro e pecador... reconheço que estou fora do
meu lugar. Vou voltar amanhã.” Virei-me de lado, e caí num sono agitado.
Depois da aula, no dia seguinte, voltei ao dormitório para
arrumar minhas malas. Tinha resolvido sair furtivamente da escola, e empreender
a longa jornada de volta para casa — pedindo carona. Não adiantava ficar ali.
Naquela noite, sentado no meu beliche, os meus pensamentos
foram interrompidos por um dos alunos externos.
“Ah, Nicky! É você mesmo que eu queria encontrar.”
Pensei com meus botões: “É você mesmo que eu não queria
encontrar.”
“Nicky”, continuou ele num tom alegre, “vamos realizar um
estudo bíblico e um culto na pequena igreja do Boulevard Guava. Eu quero que
você vá comigo.”
Sacudi a cabeça: “Hoje não, Gene. Estou cansado, e tenho
muito o que estudar. Convide um dos outros rapazes.”
“Mas não há nenhum outro rapaz por aqui”, disse ele enquanto
me dava um tapinha nas costas, “e além disso, o Espírito Santo me mandou
procurar você.”
“Hummm, o Espírito, é? Bem, o Espírito me mandou ficar aqui
e descansar um pouco, pois eu tenho estado muito ocupado falando com ele a semana
inteira. Agora, raspe-se e deixe-me descansar.” Deitei e dei-lhe as costas.
“Não sairei daqui se você não for comigo”, disse ele
teimosamente. Sentou-se aos
pés de minha cama, e cruzou as pernas.
Fiquei exasperado. O rapaz estava louco. Será que não
percebia que eu não queria ir ?
“Tá bom”, suspirei, “vou com você. Mas, não se surpreenda se
eu cochilar no culto.”
“Vamos”, disse Gene alegremente, puxando-me pelo braço. “Estamos
atrasados, e tenho de pregar.”
Eu concordara em ir porque decidira sair de mansinho depois
do culto, e arranjar uma carona para a cidade. Meti no bolso às pressas a
escova de dentes e alguns outros pertences e resolvi deixar o resto da
bagagem. Afinal de contas, não valia muita coisa.
Chegamos à pequena capela mais ou menos às sete e trinta da
noite. Era feita de adobe, rebocada por dentro. Os toscos bancos de madeira
estavam cheios de mexicanos simples e sinceros. “Pelo menos estou em boa
companhia”, pensei. “Até mesmo esta gente é melhor do que eu. Pelo menos estão
aqui porque querem. Eu estou aqui porque fui forçado a vir.”
Gene pregou cerca de quinze minutos, e depois fez o apelo.
Eu estava sentado no último banco, ao lado de um homem de cabelos grisalhos que
recendia fortemente a sujeira e suor. Suas roupas estavam sujas, como se ele
tivesse vindo diretamente do campo sem ter tomado banho. Enquanto Gene orava,
meu vizinho de banco começou a chorar:
“Jesus, Jesus, Jesus”, murmurava ele sem parar. “Obrigado, Jesus. Oh,
obrigado, Jesus.”
Algo moveu se dentro de mim. Era como se alguém tivesse
aberto uma torneira, um pouquinho só, a princípio; e que, depois, começasse a
jorrar. “Obrigado, Jesus”, orava o velho granjeiro ao meu lado, “obrigado.”
“Oh, Deus!” solucei, “Oh, Jesus, Jesus.” Cerrei os dentes, e
tentei segurar a avalanche, mas as comportas não agüentaram, e eu me vi
correndo corredor abaixo, em direção ao altar, tropeçando e cambaleando, até
que caí de encontro ao gradil de madeira bruta, chorando incontrolavelmente.
Senti as mãos de Gene sobre mim. “Nicky.” Eu quase não ouvia
a sua voz, por causa de meus soluços. “Nicky, Deus não ia deixar você fugir
esta noite. O seu Espírito veio a mim há uma hora atrás, e mandou que fosse ao
dormitório, para buscar e trazer você a este culto. Eu sabia que você
planejava fugir. Ele enviou-me para impedi-lo.”
Como ele sabia ? Ninguém sabia! Ninguém, exceto Deus.
“Deus me enviou a você, Nicky. Todos os rapazes e
professores estão orando por você, na escola. Sentimos a mão de Deus sobre você
de maneira maravilhosa. Sentimos que ele está para encaminhá-lo a um grande e
precioso ministério. Nós gostamos de você. Nós amamos você. Amamos você.”
As lágrimas corriam como regatos. Eu queria falar, mas não
consegui dizer nada. Percebi que ele deu a volta pelo gradil tosco, sem
pintura, pôs o braço ao redor dos meus ombros, e ajoelhou-se ao meu lado. “Posso
orar por você, Nicky ? Posso orar para que Cristo o batize no seu Santo
Espírito ?”
Tentei responder, mas o choro aumentou. Acenei
afirmativamente com a cabeça, resmunguei qualquer coisa que ele interpretou
como sendo uma resposta afirmativa.
Eu não tive
consciência da sua oração,
nem prestei atenção nela. Nem sei se ele orou ou não. De repente, abri a
boca, e dela saíram os mais belos sons que eu já ouvi. Senti uma grande purificação
interior, como se o meu corpo estivesse sendo limpo, desde a sola dos pés até o
alto da cabeça. A linguagem com que eu estava louvando a Deus não era inglês
nem espanhol. Era uma língua desconhecida. Eu não tinha idéia do que estava
falando, mas sabia que era louvor ao Deus Santíssimo, em palavras que, por mim
mesmo, jamais seria capaz de formar.
O correr do tempo perdeu qualquer significado, e a dureza
das tábuas em que eu estava ajoelhado não fez diferença. Eu estava louvando a
Deus da maneira que sempre desejara, e nunca mais ia parar.
Pareceu-me que se haviam passado apenas alguns momentos,
quando senti Gene me sacudir pelo ombro: “Nicky, está na hora de ir. Precisamos
voltar para a escola.”
“Não, está muito bom aqui”, ouvi-me dizer, “deixe-me ficar
aqui para sempre.”
“Nicky”, ele insistiu, “precisamos ir. Você pode continuar
quando voltarmos, mas agora precisamos ir embora.”
Levantei os olhos. A igreja estava vazia; só nós dois
estávamos ali. “Ei, onde está o pessoal?”
“Rapaz, são onze horas da noite. Faz uma hora que todos
saíram.”
“Quer dizer que estive orando duas horas?” Não podia
acreditar.
“Obrigado, Jesus, obrigado!” gritei, enquanto corríamos para
o carro.
Gene deixou-me defronte ao dormitório, e foi embora. Corri
para dentro e acendi a luz. Comecei a cantar com todas as forças: “Santo,
Santo, Santo, Deus onipotente!”
“Ei, que barulho é esse ? O que é que deu em você?”
começaram a gritar. “Apague essa luz. Que loucura é essa? Apague a luz!”
“Calma”, gritei. “Hoje estou celebrando. Vocês não sabem o
que me aconteceu, mas eu sei, e quero cantar... Glória, glória, aleluia!...”
Uma fuzilaria de travesseiros me atingiu, vindo de todos os cantos do quarto. “Apague
a luz!” Mas eu sabia que uma luz se acendera em minha alma, que jamais haveria
de apagar-se. Brilharia para sempre.
Naquela noite, sonhei de novo — pela primeira vez desde que
fora salvo. No sonho, eu estava no alto da colina, perto de Las Piedras, em
Porto Rico, onde eu subira muitas vezes em meus pesadelos. Olhando para o
céu, vi a forma de um pássaro. Mesmo dormindo, comecei a tremer, e tentei levantar-me.
“Oh, Deus, não permita que isso comece de novo. Por misericórdia!” Mas o
pássaro chegava cada vez mais perto. Só que desta vez não era o passarinho
sem pernas — era uma pomba. Encolhi-me de terror, pensando que ela iria
bicar-me, e bater com as asas no meu rosto. Mas não — nada disso aconteceu.
Era uma pomba mansa e meiga. Ela foi descendo... descendo... e pousou
mansamente sobre a minha cabeça. O sonho se desfez, e eu caí num sono profundo,
calmo, delicioso.