Capítulo 11
SAINDO DO DESERTO
NO DIA SEGUINTE, bem cedo, eu já estava na rua procurando os
rapazes que haviam ido à frente, na noite anterior. Disse-lhes que trouxessem
as armas e a munição, e se encontrassem comigo na Praça Washington. Íamos
marchar para a delegacia de polícia.
Voltando ao meu quarto, pus o revólver no cinto e, pegando
minha Bíblia grande, voltei à Praça Washington para encontrar os outros.
Descendo pela Rua Fort Greene, quase dei de encontro com uma
velha senhora italiana que já vira antes. No passado ela costumava atravessar a
rua quando me via. Desta vez levantei meu grande livro preto que, em letras
douradas, tinha as palavras “Bíblia
Sagrada” na capa, e aproximei-me
dela.
“Onde você roubou essa Bíblia ?” A velha arregalou os
olhos.
“Não roubei. Ganhei de um pregador.” Dei uma risada.
Ela balançou a cabeça. “Não sabe que não deve mentir sobre
as coisas sagradas ? Deus vai castigar você”.
“Não estou mentindo. Deus não vai me castigar, porque me
perdoou. Estou indo para a delegacia, para entregar o meu revólver.”
Abri a camisa e mostrei a arma debaixo do cinto.
Seus olhos moveram-se do revólver para a Bíblia : “Aleluia!”,
gritou ela, enquanto seu rosto se abria em um sorriso. Levantando os braços,
gritou de novo: “Aleluia!”
Sorri e passei por ela, em direção à Praça Washington. Cerca
de vinte e cinco Mau-Maus estavam ali. Israel organizou-os, e marchamos pela
Rua St. Edward, até a Delegacia de Polícia na esquina da Rua Auburn.
Não pensamos no que a polícia poderia achar de nossa
atitude. Vinte e cinco dos mais endurecidos membros de quadrilhas do Brooklin,
marchando pelo meio da rua, carregando um arsenal de armas e munições. Tenho
agradecido a Deus muitas vezes pelo fato deles não nos terem visto antes de
chegarmos à porta da delegacia. Se nos tivessem visto a um quarteirão de
distância, teriam erguido barricadas às portas e provavelmente atirado em nós
ainda de longe.
Quando entramos, o sargento levantou-se de um salto e
procurou o revólver. “O que é que há, rapazes ? O que estão querendo agora?”
“Ei, calma, seu guarda”, disse Israel, “não queremos
encrenca. Viemos entregar nossas armas.”
“Entregar o quê?” disse o sargento. “Que negócio é esse
afinal?” Virou-se e gritou por trás do ombro: “Delegado, acho que é melhor o
senhor vir aqui já.”
O delegado apareceu à porta : “O que é que esses
rapazes estão fazendo aqui ?” perguntou ao sargento, “o que é que há?”
Israel virou-se para o delegado : “Nós todos demos o
coração para Deus, e agora queremos dar nossos revólveres para a polícia.”
“É sim”, concordou um dos rapazes, “quem sabe vão servir
para vocês atirarem nos moleques malvados .”
Todos rimos, e o delegado virou-se para o sargento: “Será
verdade? Então é melhor mandar alguns guardas dar uma olhada lá fora. Pode ser
uma emboscada, ou coisa parecida.”
Dei um passo à frente: “Ei, delegado olhe aqui.” Levantei a
minha Bíblia. “O pregador nos deu estas bíblias ontem à noite, depois que todos
nós entregamos o coração a Cristo. Não vamos mais ser membros de quadrilhas.
Agora, somos crentes.”
“Que pregador ?” perguntou o delegado.
“Ora, Davi Wilkerson. Aquele pregador magrinho que tem estado
por aqui, conversando com os membros das quadrilhas. Teve uma grande reunião
na Arena St. Nicholas ontem à noite, e nós todos nos entregamos a Deus. Se não
acredita na gente, telefona pra ele.”
O delegado olhou para o sargento: “Você tem o telefone do
pregador ?”
“Sim, senhor; está hospedado em casa de uma tal Sra. Ortez.”
“Chame-o e diga-lhe para vir aqui o mais depressa possível.
Pode ser que estejamos metidos em grande encrenca. Se isto foi algo inventado
por ele, vou metê-lo na cadeia tão depressa que ele vai ficar tonto.”
O sargento fez a ligação, e entregou o fone para o delegado.
“Reverendo Wilkerson? É bom o senhor vir aqui agora mesmo. A
sala está cheia de Mau-Maus, e eu não sei o que está acontecendo.” Houve uma
pausa, e depois o delegado colocou o fone no gancho.
“Ele está a caminho. Mas antes de chegar quero suas armas —
todas.”
“Claro, general”, disse Israel, “é para isso que estamos
aqui.” Depois, virando-se para a turma, disse : “Vamos, turma. Tragam os
revólveres e ponham no balcão. Deixem as balas também.”
Os policiais não podiam crer no que viam. A essa altura
mais quatro guardas tinham chegado, e ficaram ali com os olhos arregalados de
incredulidade para o monte de pistolas, revólveres de fabricação caseira e
espingardas pica-pau, que crescia mais e mais.
Quando terminamos, o delegado só balançou a cabeça.
Virando-se para Israel, disse: “Pois bem suponhamos que agora você me conte a
verdade sobre o que está acontecendo.”
Israel relatou outra vez o que havia sucedido na Arena St.
Nicholas. Disse-lhe que nós agora éramos crentes, e começaríamos uma vida
diferente. Depois perguntou ao delegado se ele podia autografar a sua Bíblia.
Isto pareceu-nos uma grande idéia, e nós todos
reunimo-nos em torno dele e dos guardas, pedindo-lhes que autografassem nossas
bíblias.
Naquele momento, Davi empurrou a porta. Deu uma olhada
rápida para nós e caminhou direto para o delegado. Este pediu que todos os
outros guardas entrassem na sala. “Reverendo”, disse ele, “quero apertar a sua
mão
Davi Wilkerson olhou em torno de si com um ar surpreso, mas
estendeu a mão que o delegado apertou firmemente.
Como é que o Senhor conseguiu isto ?” perguntou. Estes
rapazes declararam guerra contra nós, e só tem nos dado trabalho, durante anos.
Agora, sem ninguém esperar, entra toda esta tropa aqui, e o senhor sabe o que
eles queriam ?”
Davi sacudiu a cabeça em negativa.
“Queriam nosso autógrafo em suas bíblias.”
O Rev. Wilkerson estava sem fala “Vocês pediram aos policiais o quê ?”
gaguejou
Abri minha Bíblia e mostrei-lhe o autógrafo do delegado na folha de rosto.
“Bem, glória a Deus!” disse Davi. “Veja, delegado, Deus
está operando aqui em Fort Greene!”
Saímos todos para a rua e deixamos o homem sacudindo a
cabeça, estupefato, tendo uma pilha de armas amontoadas no balcão, diante dele.
Aglomeramo-nos ao redor do Rev. Wilkerson. Israel falou : “Ei,
Davi, passei a maior parte da noite lendo a Bíblia. Veja! Eu estou na Bíblia.
O meu nome está em toda parte. Viu ? Israel. Sou eu. Sou famoso.”
Várias semanas depois, o Rev. Arce, pastor de uma igreja
cujos cultos eram realizados em espanhol, chamada Iglesia de Dios Juan 3:16, veio ao meu apartamento.
Israel estava lá. Passamos muito tempo juntos, lendo a Bíblia e andando pelo
quarto, orando em voz alta. O Rev. Arce queria que fôssemos à sua igreja no dia
seguinte, para dar testemunho. Era um culto de quarta-feira à noite, e ele
prometeu passar em minha casa para apanhar-nos.
Foi o primeiro culto verdadeiro que assisti em uma igreja.
Cantamos durante quase uma hora. Israel e eu estávamos na plataforma, e o
templo se encontrava lotado. O Rev. Arce pregou um sermão mais ou menos longo,
e depois chamou-me para dar meu testemunho.
Depois que terminei de falar, sentei-me na primeira fileira
e ouvi Israel dar o dele.
Foi a primeira vez que o ouvi falar em público. Ele
levantou-se detrás do púlpito; seu rosto simpático irradiava o amor de Cristo.
Com voz suave começou a contar os acontecimentos que motivaram a sua
conversão. Embora tivéssemos passado juntos a maior parte das últimas semanas,
naquela noite eu observei nele uma profundidade de sentimentos e de expressão
que não vira antes. Suas palavras levaram-me de volta à Arena St. Nicholas,
quando ele tão prontamente atendera ao evangelho. Pensei na minha própria
atitude para com Davi. Tivera ódio dele — Deus sabe como eu o odiara! Como
pudera estar tão errado ? Tudo o que ele queria era deixar Deus me amar através
dele — mas, na minha ignorância, eu cuspira nele, xingara e desejara matá-lo.
A menção do nome de Davi, feita por Israel, trouxe-me de
novo para a realidade.
“Eu ainda estava testando a sinceridade do Rev. Wilkerson”,
dizia Israel, relatando seus sentimentos depois daquela primeira reunião ao ar
livre, em que ouvira Davi pregar.
“Certa tarde, ele veio à minha casa e pediu-me para
apresentá-lo a alguns dos líderes de outras gangs. Ele queria convidá-los para
as reuniões que estava realizando na Arena St. Nicholas.
“Começamos a andar juntos pelo bairro de Brooklin, e eu
mostrei-lhe Jo-Jo, que era presidente dos Dragons de Coney Island, uma das
maiores quadrilhas de rua da cidade de Nova York. Só indiquei-o. Não queria
que ele soubesse que eu o identificara para Davi pois os Dragons eram grandes
inimigos dos Mau-Maus.
“Disse a Davi que ia para casa. Quando ele se encaminhou
para Jo-Jo, escondi-me por trás da escadaria de um prédio de apartamentos,
para ouvir. Jo-Jo olhou bem para ele e depois cuspiu nos seus sapatos. Esse é o
maior sinal de desprezo que se pode demonstrar a um indivíduo. Jo-Jo não disse
palavra: só cuspiu nos sapatos de Davi. Depois, virou-se de costas para ele e
sentou-se nos degraus da escada.
“Jo-Jo não tinha casa. De fato, não possuía coisa alguma.
Dormia na praça durante o verão, e quando chovia ou fazia frio, dormia no
metrô. Jo-Jo era um rematado vagabundo. Roubava roupas das caixas grandes que
ficavam nas esquinas para as organizações beneficentes, e usava-as até que
ficavam em farrapos e, depois roubava mais.
“Naquele dia ele usava um par de alpargatas velhas e sujas,
com os dedões aparecendo, e grandes calças velhas amarfanhadas, que serviriam
bem para um gorducho.
“Estava certo de que se Davi Wilkerson fosse um impostor,
seria desmascarado em seu encontro com Jo-Jo. Jo-Jo era esperto, e descobriria
logo um impostor. Se ele não fosse sincero, Jo-Jo lhe daria uma facada.
“Ele levantou os olhos para Davi e disse: “Vá embora, homem
rico. Você é um estranho aqui. Você chega a Nova York, falando bonito, dizendo
que Deus transforma as pessoas. Tem sapatos novos, bem engraxados, e calças
novas — e nós não temos nada. Minha velha me chutou para fora de casa, porque
tem dez crianças lá no nosso buraco, e neca de dinheiro. Te manca, cara, eu
conheço o seu tipo. Você está aqui visitando os guetos como aqueles caras ricos
que levam seus ônibus pelo bairro de Bowery. Pra fim de conversa, é melhor você
dar no pé antes que alguém enfie uma faca na sua barriga.”
“Eu percebi que alguma coisa estava apertando o coração de
Davi. Pode ser que ele soubesse que Jo-Jo falava a verdade. Mais tarde ele me
disse que foi por ter lembrado de algo que um certo General Booth dissera: “É
impossível aquecer o coração dos homens com o amor de Deus, quando seus pés
estão duros de frios.” Pode ser que eu não esteja citando textualmente suas
palavras, mas de qualquer forma Davi disse que isso passara pela sua mente. E
sabem o que ele fez ? Sentou-se naqueles degraus — bem ali na rua — tirou os
sapatos e entregou a Jo-Jo.
“Jo-Jo olhou espantado para Davi e disse: “Que está tentando
provar, pregador ? que tem coração, ou o quê ? Eu não vou calçar seus sapatos
fedidos.”
“Mas Davi respondeu-lhe à queima-roupa: “Meu chapa”, disse
ele, “você estava choramingando por causa de sapatos. Agora, calce, ou pare de
chorar.”
“Jo-Jo respondeu : “Mas eu nunca tive um sapato novo.”
“Davi apenas continuou dizendo: “Calce.”
“Jo-Jo calçou assim o sapato de Davi. Em seguida, este
começou a afastar-se em direção ao carro. Continuei escondido por trás dos
degraus, enquanto Jo-Jo corria atrás de Davi rua abaixo. O pobre Davi estava só
de meia, e teve de andar assim dois quarteirões para chegar ao carro, enquanto
todo mundo ria e caçoava dele. Foi aí que tive a certeza de que ele era
sincero.”
Israel parou um pouco, reprimindo as lágrimas. “Nada do que
Davi dissera até então me impressionara. Mas aquele homem não era um impostor:
ele vivia o que pregava. Percebi que não poderia resistir à espécie de poder
que podia levar um homem a um ato como aquele em favor de alguém como Jo-Jo.”
Depois do culto, atravessei vagarosamente a multidão, ainda emocionado com o
trabalho e com o poder da presença de Deus dentro de mim, enquanto falara.
Fiquei pensando que talvez ele quisesse que eu fosse pregador. Seria aquela a
sua forma de comunicar-se comigo? Não encontrei a resposta, mas senti que
precisava de tempo para pensar no assunto.
O pessoal ainda conversava no vestíbulo e na calçada, em
frente ao templo. Continuava recebendo cumprimentos ao sair pela porta central.
Naquele momento, dois carros do outro lado da rua ligaram os motores. Ouvi um
grito de mulher. Olhando naquela direção, vi canos de espingarda saindo pelas
janelas, e reconheci alguns dos Bishops. Eles começaram a atirar selvagemente
em minha direção, enquanto os carros arrancavam velozmente. Havia gente caindo
em frente à igreja, e outros correndo aterrorizados para dentro do templo,
procurando escapar à fuzilaria. Abaixei-me por trás de uma porta, enquanto
balas ricocheteavam na parede de pedra, ao meu lado. Os carros desapareceram na
noite.
Quando a confusão se dissipou, um senhor de idade encaminhou-se
para mim e rodeou-me os ombros com o braço : “Filho, não fique desanimado. O
próprio Jesus foi tentado no deserto, depois do seu batismo. Deve sentir-se
honrado pelo fato de Satanás ter marcado você para ser perseguido. Eu prevejo
que fará grandes coisas para Deus, se perseverar.” Deu-me umas palmadinhas no
ombro e desapareceu no meio da multidão.
Eu não sabia o que era “perseverar”, contudo queria fazer
grandes coisas para Deus. Mas não estava muito certo de ser uma honra o fato
de Satanás ter mandado os Bishops para me matar.
O ambiente parecia ter-se acalmado e saí de novo, iniciando
o longo caminho de volta para casa. O Rev. Arce levara Israel de carro para
casa, mas eu quis ir a pé. Precisava pensar. O Sr. Delgado, que estivera
trabalhando com Davi Wilkerson, convidara-me para ir à sua casa passar a noite
com ele. Era um homem amável, gentil, bem vestido. Pensei que ele devia ser
muito rico. Fiquei envergonhado dos meus maus modos, das roupas velhas, e
recusei o convite. Ele me deu uma nota
de um dólar, e me disse que se precisasse de dinheiro, bastava avisá-lo.
Agradeci e comecei a voltar para o apartamento. Ao
atravessar a Av. Vanderbilt, vi Loca diante do seu apartamento. “Ei, Nicky,
onde você tem estado todo esse tempo ? Disseram que saiu da quadrilha. É
verdade ?”
Disse-lhe que sim.
“Puxa, rapaz, você está fazendo falta. Já não é a mesma
coisa, sem você lá. Por que não volta ?”
De repente, alguém me abraçou por trás. Eu ri: “Puxa, vocês
querem mesmo que eu volte, hein?” pensando que fosse um dos nossos. O rosto de
Loca transfigurou-se, gelado de terror. Virei a cabeça depressa, e reconheci
Joe, um Apache a quem havíamos raptado e queimado.
Estava lutando para me libertar quando vi a faca na mão
dele. Joe me segurou por trás passando a mão esquerda em volta do meu pescoço,
enquanto brandia a lâmina sobre o meu ombro, em direção ao coração. Levantei a
mão direita para frustrar o golpe daquela lâmina de vinte e quatro centímetros
e ela me feriu na mão, entre o anular e o mínimo, atravessando-me a mão e
esfolando um pouco o peito.
Girei sobre mim mesmo, e ele me golpeou de novo. “Desta vez
eu te mato”, uivou. “Pensa que pode fugir, ficando escondido detrás de uma
igreja, mas está muito enganado, meu velho. Vou fazer um favor para o mundo e
matar um covarde que virou honesto.”
Gritei para Loca: “Saia daqui! Este cara está louco!”
Ele avançou para mim e deu uma facada em direção ao meu
estômago, mas pulei para trás e arranquei a antena de um carro que estava
estacionado ali. Agora podíamos lutar de igual para igual. Nas minhas mãos, a
antena era uma arma tão mortífera quanto a peixeira dele.
Rodeei o rapaz, esgrimindo no ar com a vara de metal. Estava
agora de volta ao meu elemento. Senti-me confiante de que poderia matá-lo. Por
experiência, eu sabia qual seria o seu próximo movimento. Quando ele
arremetesse contra mim com a faca, daria um passo atrás, fazendo com que perdesse
o equilíbrio. Podia cegá-lo, girando o corpo e o braço e atingindo-o nos olhos,
e paralisá-lo ou matá-lo com um segundo golpe.
Segurei a antena com a mão esquerda, enquanto a direita,
que pingava sangue do ferimento que ele me fizera, conservava à minha frente
para me resguardar da faca.
“Vamos, menino”, cochichei, “tente mais uma vez. Só uma vez.
Será a última.”
Os olhos de Joe estavam apertados, cheios de ódio. Eu sabia
que teria de matá-lo, porque nada mais o faria parar.
Ele avançou para mim, e eu dei um passo atrás, e a faca
sibilou, quase tocando o meu estômago. Agora! Ele perdera o equilíbrio.
Levantei a antena como um chicote, para bater-lhe no rosto desprotegido.
Repentinamente, senti como se a mão de Deus tivesse agarrado
o meu braço. “Dê a outra face.” A voz era audível, e muito real. Olhei para
aquele Apache não como um inimigo, mas como uma pessoa. Senti pena dele, ali
no meio da noite, cuspindo palavrões, com o ódio gravado em seu rosto. Vi-me
no seu lugar, algumas semanas atrás, na rua escura, procurando matar um
inimigo.
Orei. Pela primeira vez na vida, orei por mim:
“Deus, ajuda-me.”
O Apache recuperou o equilíbrio e olhou para mim: “O que
você disse ?”
“Deus, ajuda-me”, eu repeti. Ele parou e arregalou os
olhos.
Loca correu, enfiando o gargalo quebrado de uma garrafa em
minha mão : “Corta a cara dele, Nicky.”
O rapaz começou a correr.
“Atira nele, Nicky, atira nele !”
Levantei o braço, mas em vez de atirar o caco de garrafa no
Apache que fugia, atirei-o contra a parede do prédio.
Depois, peguei um lenço e enrolei-o na mão que sangrava
muito. Ficou logo empapado de sangue e Loca subiu correndo ao seu quarto, e
trouxe uma toalha de banho para absorver o sangue. Ela quis me levar para casa,
mas eu disse que era capaz de ir sozinho, e fui embora.
Tinha medo de ir ao hospital, mas sabia que precisava de
ajuda. Já estava ficando fraco devido à perda de sangue. Precisava atravessar a
Praça Washington e a Praça Fulton, para chegar ao Hospital Cumberland. Achei
melhor ir antes que me esvaísse em sangue e morresse. De pé na esquina de De
Kalb, perto do Corpo de Bombeiros, eu esperava a luz do semáforo acender, mas
senti a cabeça tonta e resolvi atravessar a rua antes de desmaiar.
Cambaleei pelo meio do tráfego.
Então ouvi um grito, e um dos Mau-Maus veio correndo pela rua para me ajudar.
Era Tarzan, um rapagão que usava um
enorme chapéu mexicano. “Que
é isto,
Nicky, está querendo se matar?” Ele pensava que eu estava louco, porque
entregara o coração a Jesus.
“Rapaz, eu estou ferido. Muito ferido. Ajude-me a chegar à
casa de Israel, por favor.”
Tarzan foi comigo até o apartamento de Israel, e nós subimos
os cinco lances de escadas, até o quarto dele. Era meia-noite quando bati à
porta.
A mãe de Israel abriu e me convidou para entrar. Ela
percebeu que eu estava ferido. Israel saiu do outro quarto. Olhou para mim e
começou a rir. “Rapaz, o que aconteceu com você?”
“Fui esfaqueado por um Apache.”
“Puxa ! nunca pensei que isto pudesse te acontecer.”
A mãe de Israel nos interrompeu e insistiu para que eu fosse
para o hospital. Israel e Tarzan me ajudaram a descer as escadas, e me levaram
ao pronto-socorro do hospital vizinho. Tarzan concordou em pegar minha
carteira onde estava o dólar que eu ganhara, e ir contar ao meu irmão Frank o
que me acontecera. Israel esperou o médico examinar minha mão. Alguns tendões
tinham sido cortados, e eu ia precisar de anestesia. Israel estava sério
quando me levaram na maca. “Não se preocupe, meu chapa, nós vamos acertar o
cara que fez isto.”
Eu queria dizer-lhe que não precisávamos mais de vingança.
Deus cuidaria disso. Mas a porta fechou se vagarosamente atrás de mim...
No dia seguinte, bem cedo, Israel estava no meu quarto de
hospital. Eu ainda estava meio tonto devido à anestesia, mas pude perceber que
estava diferente. Finalmente consegui abrir os olhos e vi que ele tinha rapado
completamente a cabeça.
“Ei, careca, o que é que há ?” murmurei. A velha expressão
voltara ao rosto de Israel.
“Caramba, primeiro eles quase nos furam como peneiras diante
da igreja, e agora esfaqueiam você. Esse negócio de Jesus não dá pé. Aquele
cara não podia fazer isso. Vou pegá-lo para você.”
Eu estava recuperando os sentidos, e levantei-me na cama. “Ei,
cara, você não pode fazer isso. Eu poderia tê-lo acertado sozinho, mas deixei-o
nas mãos de Deus. Se você voltar às ruas, nunca mais sairá. Lembre-se do que
Davi falou sobre lançar a mão ao arado... Meu chapa, fique comigo e esqueça a
briga.”
Lutei para ficar sentado, e notei que Lídia e Loreta tinham
entrado com Israel. Caí, porém, de costas na cama, pois ainda estava fraco com
a perda de sangue e a cirurgia. O meu braço inteiro estava em um só molde de
gesso, desde a ponta dos dedos até o cotovelo.
Loreta era uma bela italianinha de cabelos negros com quem
tivera vários encontros. Ela falou: “Nicky, Israel tem razão. Aqueles caras vão
entrar no hospital e matá-lo, se você não voltar para a quadrilha. Vamos fazer
como nos velhos tempos. Você fica bom e volta para os Mau-Maus. Estamos
esperando você.”
Virei e olhei para Lídia. “É isso que você acha também ?”
Ela baixou a cabeça. “Nicky, preciso te contar uma coisa.
Estou envergonhada. Devia ter falado há muito tempo. Já faz dois anos que sou
crente.”
“O quê ?” encarei-a incrédulo. “Você quer me dizer que
acreditava em Cristo todo este tempo e não me contou? Como é que pode ser
crente e fazer tudo que tem feito? Os cristãos não agem assim. Eles não se
envergonham de Jesus. Não, não creio em você.”
Lídia mordeu o lábio inferior, e lágrimas vieram aos seus
olhos, enquanto ela torcia o lençol com as mãos. “Estou envergonhada, Nicky. Eu
tinha medo de lhe falar de Cristo. Se falasse a verdade, você não me quereria
mais.”
Israel aproximou-se da cama. “Vamos, Nicky. Você está apenas
confuso. Vai sentir-se melhor mais tarde. Loreta e eu achamos que você deve
voltar para a quadrilha. Não sei o que Lídia acha. Mas pense nisso e não se
preocupe. Vou falar com alguns dos rapazes, e vamos pegar aquele cara que fez
isto com você.”
Dei-lhe as costas. Loreta chegou-se e beijou me na face.
Senti lágrimas em meu rosto, quando Lídia curvou-se e me beijou. “Sinto muito,
Nicky. Perdoe-me, por favor.”
Eu não disse nada. Ela me beijou outra vez e saiu depressa.
Ouvi a porta fechar-se atrás deles.
Depois que eles saíram, quase pude sentir a presença de
Satanás no quarto. Ele falara comigo por intermédio de Israel e Loreta. Estava
me preparando através da minha decepção com respeito a Lídia.
“Nicky”, cochichou ele, “você é um bobo. Eles têm razão.
Volte para a gang. Recorde dos bons tempos. Lembre-se da satisfação de
vingar-se. Lembre como era doce estar nos braços de uma garota bonita. Você
traiu sua quadrilha, Nicky, mas ainda não é tarde demais para voltar.”
Enquanto me tentava, a enfermeira entrou com a bandeja do
jantar. Ouvi-o ainda a segredar : “Ontem à noite foi a primeira vez na vida em
que você não revidou. Covarde! O grande
e bravo Nicky Cruz chorando na Arena St. Nicholas, correndo de um Apache e
deixando-o escapar. Mulherzinha. Santinho Medroso.”
“Sr. Cruz?” Era a enfermeira falando, ao aproximar-se do
meu leito. “Se virar para cá, eu arrumarei a sua bandeja.”
Dei um pulo na cama, e bati na bandeja, jogando-a no chão: “Vá
para o inferno !”
Quis dizer mais alguma coisa, porém não saiu nada. Todos os
antigos palavrões tinham desaparecido. Naquele instante, não fui nem capaz de
lembrá-los. Fiquei ali sentado com a boca aberta, e de repente lágrimas
começaram a correr dos meus olhos, descendo ao longo do rosto como dois
regatos. “Desculpe”, solucei. “Por favor, chame um ministro Chame o Rev.
Arce.”
Silenciosamente, a enfermeira apanhou os pratos do chão, e
bateu de leve no meu ombro: “Vou chamá-lo agora mesmo. Deite e descanse.”
Deitei a cabeça no travesseiro, ainda soluçando. Em pouco
tempo o Rev. Arce chegou e orou em meu favor. Enquanto ele orava, eu me senti
libertado do espírito que se apossara de mim. Disse-me que pediria ao Sr.
Delgado para me visitar, na manhã seguinte, e ele providenciaria para que eu
tivesse os cuidados necessários.
Naquela noite, depois que a enfermeira me ajudou a trocar o
paletó do pijama, ajoelhei-me ao lado do leito do hospital. De tarde eles
haviam colocado um outro paciente na cama ao lado da minha, mas pensei que ele
estivesse dormindo. Comecei a orar em voz alta, o único jeito que eu sabia.
Ninguém me dissera que se pode orar “em pensamento”. Sabia apenas que tinha de
orar a Deus, e a única maneira de fazê-lo era falando com ele — em voz alta.
Comecei assim a orar.
Pedi a Deus que perdoasse o rapaz que havia me esfaqueado, e
que o protegesse de todo mal, até que ele pudesse aceitar a Jesus. Pedi a Deus
que me perdoasse pela maneira como eu tratara Lídia, e por ter dado aquele tapa
na bandeja, derrubando-a das mãos da enfermeira. Eu lhe disse que iria onde
quer que desejasse e faria o que ele quisesse. Lembrei a Deus que eu não estava
com medo de morrer, mas pedi que me deixasse viver o bastante para um dia falar
a mamãe e a papai a respeito de Jesus.
Fiquei de joelhos muito tempo, antes de jogar-me na cama e
cair no sono.
Na manhã seguinte, estava me vestindo para deixar o
hospital, quando o homem da cama ao lado falou baixinho, fazendo me sinal para
chegar perto dele. Era um velho que tinha um tubo na garganta. Tremia, estava
muito pálido e a sua voz era um murmúrio.
“Eu estava acordado ontem à noite”, cochichou ele.
Fiquei um pouco envergonhado e dei um sorriso tolo. “Muito
obrigado”, disse ele, “muito obrigado pela sua oração.”
“Mas eu não estava orando pelo senhor”, confessei. “Pensei
que o senhor estivesse dormindo. Eu estava orando por mim mesmo.”
O ancião estendeu o braço e agarrou a minha mão sã, com seus
dedos frios e úmidos. O aperto era muito fraco, mas pude sentir que ele estava
apertando com energia.
“Oh, não, você está enganado. Você estava orando por mim. E
eu também orei. Pela primeira vez em muitos, muitos anos, eu orei. Eu também
orei. Eu também desejo fazer o que Jesus quer que eu faça. Muito obrigado.”
Grandes lágrimas rolaram pelas suas faces, vincadas de
profundas rugas, enquanto ele falava. Eu disse: “Deus o abençoe, meu amigo”, e
saí. Eu nunca tentara ajudar ninguém, em minha vida. E nem sabia como o
fizera, naquele dia. Mas sentia de forma confortadora e forte que o Espírito de
Deus operara por meu intermédio. Estava satisfeito.
O Sr. Delgado estava me esperando no saguão. Pagou a minha
conta, e levou-me para o seu carro. “Telefonei para Davi Wilkerson ontem à
noite”, disse ele. “Está em Elmira realizando uma série de reuniões. Ele quer
que eu leve você e Israel para lá, amanhã “
“Davi mencionou isso a última vez em que nos encontramos”,
disse eu, “mas Israel voltou para a quadrilha. Acho que ele não vai.”
“Vou encontrar-me com ele hoje à noite. Mas hoje quero que
você fique na minha casa, onde estará em segurança. Vamos sair amanhã bem cedo
para Elmira.”
Parecia uma ironia o fato de eu estar indo para Elmira para
avistar-me com Davi. Era para lá que a polícia queria me mandar, mas por uma
razão diferente. Passei o resto do dia orando por Israel, para que ele não
voltasse para a quadrilha, mas resolvesse ir comigo para Elmira.
Na manhã seguinte, levantamo-nos bem cedo e atravessamos a
cidade de carro, em direção ao Brooklin e ao Conjunto Habitacional Fort Greene.
O Sr. Delgado disse que Israel concordara em ir conosco, e deveria encontrar-se
conosco na esquina das ruas Myrtle e De Kalb às sete da manhã. Quando ali
chegamos, Israel não estava. Comecei a sentir um frio na boca do estômago.
Demos a volta no quarteirão, mas não o vimos. O Sr. Delgado disse que tínhamos
pressa; não obstante, passamos pelo seu apartamento, na Rua St. Edward,
defronte ao 67.° Distrito, para ver se podíamos encontrá-lo. Passamos lá, mas
não vimos sinal dele. O Sr. Delgado ficou olhando para o relógio, e finalmente
disse que tínhamos de ir embora.
“Será que não podemos dar só mais uma volta no quarteirão?”
disse eu; “pode ser que o encontremos desta vez.?
“Olhe, Nicky”, respondeu, “eu sei que você gosta de Israel e
está com medo que ele volte para a quadrilha. Mas ele precisa aprender a
arranjar-se sozinho. Disse que nos encontraria às sete horas, e não está aqui.
Vamos dar mais uma volta no quarteirão, mas são seis horas de viagem até
Elmira, e Davi está nos esperando às duas da tarde.”
Fizemos a volta do quarteirão mais uma vez, e depois fomos
para o Bronx, para pegar Jeff Morales. Jeff era um rapaz porto-riquenho que
queria entrar para o ministério da Palavra de Deus. Davi pedira ao Sr. Delgado
que o levasse para servir-me de intérprete quando falasse na igreja.
Quando saímos da cidade, tive uma sensação de alívio.
Recostei-me no banco e suspirei. O peso fora retirado. Mas no meu coração havia
uma profunda tristeza porque estávamos deixando Israel para trás, e eu tinha um
pressentimento de algo ameaçador, envolvendo condenação e desespero, em relação ao futuro dele. Eu
não sabia naquela época, mas... seis anos se passariam antes que nos
encontrássemos de novo.
Naquela noite Davi apresentou-me ao povo de Elmira e dei o
meu testemunho. Davi me pedira para começar desde o princípio, e contar a minha
história exatamente como acontecera. Fui obscuro nos detalhes, e não pude
lembrar-me de muita coisa. Compreendi logo que Deus não apenas tirara de mim
muitos dos antigos desejos, mas também apagara muitas daquelas recordações da
minha mente. Contei, porém, a história da melhor maneira que pude. Muitas
vezes adiantei-me ao meu intérprete, e Jeff tinha de dizer: “Calma, Nicky, espere por mim.”
O povo riu e chorou, e quando foi feito o apelo, muitos
aproximaram-se do altar para dar seu coração a Cristo. A sensação de que Deus
estava me chamando para um ministério especial ficou ainda mais forte, quando
vi que Deus estava operando através da minha vida.
No dia seguinte tive oportunidade de conversar com Davi por
muito tempo. Ele me perguntou se eu estava mesmo decidido a ingressar no
ministério. Respondi que não sabia direito o que era isso, e nem podia falar um
inglês inteligível, mas sentia que Deus esperava algo de mim, e estava me
guiando nesse sentido. Davi disse que faria tudo o que lhe fosse possível para
me arranjar uma escola.
Escola! Há três anos que eu não ia à escola, desde que fora
expulso. “Davi, não posso voltar para a escola. O diretor disse que se eu voltar,
ele me entrega à polícia.” Davi riu.
“Não é aquela escola, Nicky. É uma Escola Bíblica. Você
gostaria de ir para a Califórnia?”
“Para onde ?”
“Califórnia, na costa ocidental.”
“É perto de Brooklin?” perguntei. Davi caiu na gargalhada
“Oh, não, Nicky. Estou vendo que o Senhor vai ter de operar
muito em você. E eu sei que ele é suficientemente poderoso para fazê-lo. Espere
para ver grandes coisas acontecerão através do seu ministério. Estou certo
disso.”
Sacudi a cabeça. Tinha medo dos guardas de Brooklin. Se
precisava ir para a escola, fazia votos fervorosos para que fosse em algum
lugar fora da cidade de Nova York.
Davi quis que eu ficasse em Elmira, enquanto ele escrevia
para a Escola Bíblica. Mais tarde, fiquei sabendo que ela ficava em La Puente,
Califórnia, perto de Los Angeles. O curso bíblico era para moças e rapazes que
desejavam preparar-se para o ministério e não tinham possibilidades
financeiras de ir para a faculdade; o curso durava três anos. É claro que eu
não terminara o ginásio, mas Davi escreveu uma carta expressa pedindo-lhes que
me aceitassem assim mesmo. Ele disse que eu não estava escondendo nada a
respeito da minha vida pregressa, mas falava de meus sonhos e ambições, e pedia
que fizessem uma experiência comigo, embora eu tivesse me tornado cristão há
poucas semanas.
As coisas em Elmira não estavam correndo muito bem, nesse
meio tempo. Alguém espalhou o boato que eu ainda era chefe da gang e que estava
procurando formar uma quadrilha ali. Davi ficou aborrecido, e percebeu que aquilo
podia significar distúrbio. Eu passava a noite com Davi, mas tinha medo de que
passassem a criticá-lo. Concordamos em orar a respeito do problema.
Naquela noite Davi falou-me sobre o batismo no Espírito
Santo. Ouvi-o atentamente, mas não entendi o que ele estava querendo me
ensinar. Ele leu passagens das Escrituras nos livros de Atos, I Coríntios e Efésios.
Explicou que depois que uma pessoa é salva, Deus deseja transmitir-lhe o seu
poder. Explicou a conversão de Saulo em Atos 9; três dias depois de sua
conversão, Saulo foi batizado com o Espírito Santo, recebendo um novo poder.
“É disso que você precisa, Nicky”, disse Davi. “Deus deseja
dar-lhe poder, e dons especiais.”
“Que espécie de dons você quer dizer ?” perguntei-lhe.
Ele abriu a Bíblia em I Coríntios 12:8-10 e explicou a respeito dos nove dons do
Espírito.
“São dados aos que são batizados no Espírito Santo. Pode
ser que você não receba todos, mas receberá alguns. Nós, pentecostais, cremos
que todos os que são batizados no Espírito têm dom de línguas.”
“Você quer dizer que eu serei capaz de falar em inglês mesmo
sem estudar?” perguntei, estupefato.
Davi ia continuar falando, porém fechou a Bíblia : “O Senhor
disse aos apóstolos para “esperar”, e então receberiam poder. Não quero ser
apressado a esse respeito, com você, Nicky. Vamos esperar no Senhor, e ele vai
batizá-lo, quando estiver preparado para isso. Por enquanto, temos um problema
nas mãos, e precisamos orar para resolvê-lo.”
Ele desligou a luz e eu disse: “Se ele me der outra língua espero
que seja italiano. Eu conheço a garota italiana mais bacana que existe, e estou
certo de que...” Fui interrompido pelo travesseiro de Davi que sibilou através
do quarto e amassou-se contra o meu rosto.
“Durma, Nicky. Já é quase dia, e metade da cidade pensa que
você ainda é um chefe de quadrilha. Se ele lhe der outra língua, é melhor que
seja algo que este povo possa entender, quando você lhes disser que não é, na
verdade, um assassino.”
Na manhã seguinte, Davi parecia preocupado quando voltou da
reunião matutina.
“A situação não está boa, Nicky. Vamos precisar tirar você
daqui antes de cair a noite, e eu não sei para onde pode ir, a menos que seja
de volta para Nova York.”
“Você acha que o Senhor ouviu nossas orações ontem à noite ?”
perguntei.
“É claro que sim. É por isto que eu oro: porque creio que
ele me ouve.” Davi olhou-me surpreso.
“Você orou para que Deus tomasse conta de mim?”
“Você sabe que sim.”
“Então, por que está tão preocupado ?”
Davi levantou-se e encarou-me durante um minuto: “Vamos
tomar café, estamos atrasados. Estou com fome, e você?”
Naquele dia, às duas horas da tarde, tocou o telefone no
quarto do motel. Era o pastor da igreja onde Davi estava pregando. Havia uma
senhora no seu escritório que queria falar conosco. Davi disse que sairíamos
imediatamente.
Entramos e o pastor apresentou-nos à Sra. Johnson que
viajara trezentos quilômetros, de sua casa, no norte do Estado de Nova York.
Tinha setenta e dois anos, e disse que na noite anterior o Espírito Santo lhe
falara. Lera as notícias a meu respeito nos jornais, e afirmou que o Espírito
Santo a avisara de que eu estava em dificuldades, e que deveria ir ao meu
encontro.
Olhei para Davi: grandes lágrimas corriam pela sua face. “O
seu nome pode ser Sra. Johnson, mas eu penso que realmente é Sra. Ananias”,
disse ele.
“Não compreendo”, disse. Olhou com estranheza para Davi.
“Ele está se referindo ao Ananias mencionado em Atos 9, a
quem o Espírito Santo tocou e enviou para auxiliar Paulo”, interrompeu o
pastor.
“Só sei que o Senhor me dirigiu para vir buscar este rapaz e
levá-lo para casa”, disse sorrindo a Sra. Johnson.
Davi mandou que me preparasse para voltar com ela. Disse
também que deveria ter uma resposta de La Puente dentro de poucos dias, e me
avisaria o mais depressa possível. Eu não queria ir, mas depois de saber o que
acontecera na noite anterior, e vendo o que estava acontecendo, fiquei com medo
e atendi.
Duas semanas mais tarde recebi um telefonema de Davi. Estava
exultante. Os diretores do Instituto Bíblico tinham respondido. Estavam tão
intrigados a respeito da perspectiva da minha ida, que concordaram em
dispensar todos os requisitos e aceitar-me como aluno. Ele mandou que eu
tomasse um ônibus de volta a Nova York, pois sairia para a Califórnia no dia
seguinte.
Desta vez não senti medo durante a viagem para Nova York.
Lembrei-me da viagem com o Dr. John, e da terrível depressão que senti, da
sensação de estar voltando a cair na fossa. A fossa, porém, desaparecera.
Desta vez eu estava saindo do deserto.
Eu teria de esperar cinco horas na estação rodoviária,
antes que Davi fosse encontrar comigo. Concordara em esperar na própria
rodoviária, para evitar problemas. Contudo, os problemas tinham um meio de me
achar. Vieram na forma de dez Viceroys que formaram um círculo silencioso ao
meu redor, enquanto me achava sentado, lendo uma revista.
“Ei, olha o menino bonito”, disse um deles, fazendo
referência ao meu terno e gravata. “Ei, almofadinha, você está fora do seu
território. Não sabe que isto é domínio dos Viceroys?”
“Ei, turma, sabem quem é este? É aquele Mau-Mau simplório
que virou pregador”, disse de repente um dos rapazes.
Outro aproximou-se de mim e espetou o dedo no meu rosto: “Ei,
pregador, posso encostar em você ? Pode ser que a sua santidade pegue em mim.”
Dei um tapa na sua mão: “Você quer morrer?” rosnei, o velho
Nicky ressuscitando. “Ponha outra vez a mão em mim, e você é um homem morto.”
“Puxa”, pulou para trás, fingindo surpresa. “Vejam só. Ele
parece pregador, mas fala como um...” e usou um palavrão.
Antes que pudesse mexer-se, levantei-me de um salto e
mergulhei o punho no seu estômago. Quando se dobrou com o golpe, golpeei-o na
nuca, com o punho fechado, fazendo-o cair inconsciente por terra. Os outros
rapazes estavam surpresos demais para se moverem. As pessoas que estavam na
estação rodoviária começaram a se espalhar, e a se esconder por trás dos
bancos. Afastei-me em direção à porta.
“Vocês aí, tentem qualquer coisa, e mato vocês. Vou atrás
dos Mau-Maus depois volto para matar todos os Viceroys.
Viram que eu falava sério e sabiam que os Mau-Maus eram duas
vezes mais depravados e mais fortes do que eles. Olharam uns para os outros e
se afastaram em direção à outra porta, arrastando o companheiro meio desmaiado.
“Eu volto”, gritei. “É melhor vocês se mandarem, porque se
estiverem aqui quando eu voltar, já sabem que vão morrer.”
Corri porta a fora, em direção a uma entrada do metrô que
havia ali perto. Mas, no caminho, passei por uma igreja de pessoas de origem
espanhola. Algo em mim fez com que eu diminuísse o passo, e voltasse. Subi
vagarosamente os degraus e entrei no edifício aberto. Quem sabe era melhor que
eu orasse antes, pensei. Iria depois buscar os Mau-Maus.
Uma vez, porém, dentro da igreja, esqueci os Mau-Maus — e os
Viceroys. Comecei a pensar em Jesus, e na nova vida que me esperava no futuro.
Ajoelhei-me ao pé do altar e os minutos se passaram como segundos, até que
finalmente senti um tapinha no ombro. Olhei. Era Davi Wilkerson.
“Quando não encontrei você na estação rodoviária, imaginei que
estivesse aqui”, disse ele.
“Naturalmente”, respondi. “Onde você acha que eu estaria: de
volta à gang?” Ele deu uma risada, e saímos em direção ao carro dele.