sábado, 24 de abril de 2021

Foge Nick Foge - 11 - Saindo do deserto



Capítulo 11

SAINDO DO DESERTO

NO DIA SEGUINTE, bem cedo, eu já estava na rua procurando os rapazes que haviam ido à frente, na noite anterior. Disse-lhes que trouxessem as ar­mas e a munição, e se encontrassem comigo na Praça Washington. Íamos marchar para a delegacia de polícia.
Voltando ao meu quarto, pus o revólver no cin­to e, pegando minha Bíblia grande, voltei à Praça Washington para encontrar os outros.
Descendo pela Rua Fort Greene, quase dei de encontro com uma velha senhora italiana que já vira antes. No passado ela costumava atravessar a rua quando me via. Desta vez levantei meu grande livro preto que, em letras douradas, tinha as palavras “Bíblia  Sagrada”  na capa, e aproximei-me dela.
“Onde você roubou essa Bíblia ?” A velha arrega­lou os olhos.
“Não roubei. Ganhei de um pregador.” Dei uma risada.
Ela balançou a cabeça. “Não sabe que não deve mentir sobre as coisas sagradas ? Deus vai castigar você”.
“Não estou mentindo. Deus não vai me castigar, porque me perdoou. Estou indo para a delegacia, pa­ra entregar o meu revólver.”
Abri a camisa e mostrei a arma debaixo do cinto.
Seus olhos moveram-se do revólver para a Bíblia : “Aleluia!”, gritou ela, enquanto seu rosto se abria em um sorriso. Levantando os braços, gritou de novo: “Aleluia!”
Sorri e passei por ela, em direção à Praça Washington. Cerca de vinte e cinco Mau-Maus estavam ali. Israel organizou-os, e marchamos pela Rua St. Edward, até a Delegacia de Polícia na esquina da Rua Auburn.
Não pensamos no que a polícia poderia achar de nossa atitude. Vinte e cinco dos mais endurecidos membros de quadrilhas do Brooklin, marchando pelo meio da rua, carregando um arsenal de armas e mu­nições. Tenho agradecido a Deus muitas vezes pelo fato deles não nos terem visto antes de chegarmos à porta da delegacia. Se nos tivessem visto a um quarteirão de distância, teriam erguido barricadas às portas e provavelmente atirado em nós ainda de longe.
Quando entramos, o sargento levantou-se de um salto e procurou o revólver. “O que é que há, rapa­zes ? O que estão querendo agora?”
“Ei, calma, seu guarda”, disse Israel, “não que­remos encrenca. Viemos entregar nossas armas.”
“Entregar o quê?” disse o sargento. “Que negó­cio é esse afinal?” Virou-se e gritou por trás do om­bro: “Delegado, acho que é melhor o senhor vir aqui já.”
O delegado apareceu à porta : “O que é que esses rapazes estão fazendo aqui ?” perguntou ao sargento, “o que é que há?”
Israel virou-se para o delegado : “Nós todos de­mos o coração para Deus, e agora queremos dar nos­sos revólveres para a polícia.”
“É sim”, concordou um dos rapazes, “quem sa­be vão servir para vocês atirarem nos moleques mal­vados .”
Todos rimos, e o delegado virou-se para o sar­gento: “Será verdade? Então é melhor mandar al­guns guardas dar uma olhada lá fora. Pode ser uma emboscada, ou coisa parecida.”
Dei um passo à frente: “Ei, delegado olhe aqui.” Levantei a minha Bíblia. “O pregador nos deu estas bíblias ontem à noite, depois que todos nós entre­gamos o coração a Cristo. Não vamos mais ser mem­bros de quadrilhas. Agora, somos crentes.”
“Que pregador ?” perguntou o delegado.
“Ora, Davi Wilkerson. Aquele pregador magrinho que tem estado por aqui, conversando com os mem­bros das quadrilhas. Teve uma grande reunião na Arena St. Nicholas ontem à noite, e nós todos nos entregamos a Deus. Se não acredita na gente, tele­fona pra ele.”
O delegado olhou para o sargento: “Você tem o telefone do pregador ?”
“Sim, senhor; está hospedado em casa de uma tal Sra. Ortez.”
“Chame-o e diga-lhe para vir aqui o mais de­pressa possível. Pode ser que estejamos metidos em grande encrenca. Se isto foi algo inventado por ele, vou metê-lo na cadeia tão depressa que ele vai ficar tonto.”
O sargento fez a ligação, e entregou o fone para o delegado.
“Reverendo Wilkerson? É bom o senhor vir aqui agora mesmo. A sala está cheia de Mau-Maus, e eu não sei o que está acontecendo.” Houve uma pausa, e depois o delegado colocou o fone no gancho.
“Ele está a caminho. Mas antes de chegar quero suas armas — todas.”
“Claro, general”, disse Israel, “é para isso que estamos aqui.” Depois, virando-se para a turma, dis­se : “Vamos, turma. Tragam os revólveres e ponham no balcão. Deixem as balas também.”
Os policiais não podiam crer no que viam. A es­sa altura mais quatro guardas tinham chegado, e fi­caram ali com os olhos arregalados de incredulidade para o monte de pistolas, revólveres de fabricação caseira e espingardas pica-pau, que crescia mais e mais.
Quando terminamos, o delegado só balançou a cabeça. Virando-se para Israel, disse: “Pois bem suponhamos que agora você me conte a verdade so­bre o que está acontecendo.”
Israel relatou outra vez o que havia sucedido na Arena St. Nicholas. Disse-lhe que nós agora éramos crentes, e começaríamos uma vida diferente. Depois perguntou ao delegado se ele podia autografar a sua Bíblia.
Isto pareceu-nos uma grande idéia, e nós todos reunimo-nos em torno dele e dos guardas, pedindo-lhes que autografassem nossas bíblias.
Naquele momento, Davi empurrou a porta. Deu uma olhada rápida para nós e caminhou direto para o delegado. Este pediu que todos os outros guardas entrassem na sala. “Reverendo”, disse ele, “quero apertar a sua mão
Davi Wilkerson olhou em torno de si com um ar surpreso, mas estendeu a mão que o delegado apertou firmemente.
Como é que o Senhor conseguiu isto ?” pergun­tou. Estes rapazes declararam guerra contra nós, e só tem nos dado trabalho, durante anos. Agora, sem ninguém esperar, entra toda esta tropa aqui, e o se­nhor sabe o que eles queriam ?”
Davi sacudiu a cabeça em negativa.
“Queriam nosso autógrafo em suas bíblias.”
O Rev. Wilkerson estava sem fala  “Vocês pedi­ram aos policiais o quê ?” gaguejou
Abri minha Bíblia e mostrei-lhe o autógrafo  do delegado na folha de rosto.
“Bem, glória a Deus!” disse Davi. “Veja, delega­do, Deus está operando aqui em Fort Greene!”
Saímos todos para a rua e deixamos o homem sacudindo a cabeça, estupefato, tendo uma pilha de armas amontoadas no balcão, diante dele.
Aglomeramo-nos ao redor do Rev. Wilkerson. Israel falou : “Ei, Davi, passei a maior parte da noi­te lendo a Bíblia. Veja! Eu estou na Bíblia. O meu nome está em toda parte. Viu ? Israel. Sou eu. Sou famoso.”
Várias semanas depois, o Rev. Arce, pastor de uma igreja cujos cultos eram realizados em espanhol, chamada Iglesia de Dios Juan 3:16, veio ao meu apar­tamento. Israel estava lá. Passamos muito tempo juntos, lendo a Bíblia e andando pelo quarto, orando em voz alta. O Rev. Arce queria que fôssemos à sua igreja no dia seguinte, para dar testemunho. Era um culto de quarta-feira à noite, e ele prometeu passar em minha casa para apanhar-nos.
Foi o primeiro culto verdadeiro que assisti em uma igreja. Cantamos durante quase uma hora. Israel e eu estávamos na plataforma, e o templo se encon­trava lotado. O Rev. Arce pregou um sermão mais ou menos longo, e depois chamou-me para dar meu testemunho.
Depois que terminei de falar, sentei-me na pri­meira fileira e ouvi Israel dar o dele.
Foi a primeira vez que o ouvi falar em público. Ele levantou-se detrás do púlpito; seu rosto simpáti­co irradiava o amor de Cristo. Com voz suave co­meçou a contar os acontecimentos que motivaram a sua conversão. Embora tivéssemos passado juntos a maior parte das últimas semanas, naquela noite eu observei nele uma profundidade de sentimentos e de expressão que não vira antes. Suas palavras levaram-me de volta à Arena St. Nicholas, quando ele tão prontamente atendera ao evangelho. Pensei na minha própria atitude para com Davi. Tivera ódio dele — Deus sabe como eu o odiara! Como pudera estar tão errado ? Tudo o que ele queria era deixar Deus me amar através dele — mas, na minha ignorância, eu cuspira nele, xingara e desejara matá-lo.
A menção do nome de Davi, feita por Israel, trou­xe-me de novo para a realidade.
“Eu ainda estava testando a sinceridade do Rev. Wilkerson”, dizia Israel, relatando seus sentimentos depois daquela primeira reunião ao ar livre, em que ouvira Davi pregar.
“Certa tarde, ele veio à minha casa e pediu-me para apresentá-lo a alguns dos líderes de outras gangs. Ele queria convidá-los para as reuniões que estava realizando na Arena St. Nicholas.
“Começamos a andar juntos pelo bairro de Brooklin, e eu mostrei-lhe Jo-Jo, que era presidente dos Dragons de Coney Island, uma das maiores quadrilhas de rua da cidade de Nova York. Só indi­quei-o. Não queria que ele soubesse que eu o iden­tificara para Davi pois os Dragons eram grandes inimigos dos Mau-Maus.
“Disse a Davi que ia para casa. Quando ele se encaminhou para Jo-Jo, escondi-me por trás da esca­daria de um prédio de apartamentos, para ouvir. Jo-Jo olhou bem para ele e depois cuspiu nos seus sapatos. Esse é o maior sinal de desprezo que se pode de­monstrar a um indivíduo. Jo-Jo não disse palavra: só cuspiu nos sapatos de Davi. Depois, virou-se de cos­tas para ele e sentou-se nos degraus da escada.
“Jo-Jo não tinha casa. De fato, não possuía coisa alguma. Dormia na praça durante o verão, e quando chovia ou fazia frio, dormia no metrô. Jo-Jo era um rematado vagabundo. Roubava roupas das caixas grandes que ficavam nas esquinas para as organizações beneficentes, e usava-as até que ficavam em farrapos e, depois roubava mais.
“Naquele dia ele usava um par de alpargatas ve­lhas e sujas, com os dedões aparecendo, e grandes calças velhas amarfanhadas, que serviriam bem para um gorducho.
“Estava certo de que se Davi Wilkerson fosse um impostor, seria desmascarado em seu encontro com Jo-Jo. Jo-Jo era esperto, e descobriria logo um impostor. Se ele não fosse sincero, Jo-Jo lhe daria uma facada.
“Ele levantou os olhos para Davi e disse: “Vá embora, homem rico. Você é um estranho aqui. Você chega a Nova York, falando bonito, dizendo que Deus transforma as pessoas. Tem sapatos novos, bem en­graxados, e calças novas — e nós não temos nada. Minha velha me chutou para fora de casa, porque tem dez crianças lá no nosso buraco, e neca de di­nheiro. Te manca, cara, eu conheço o seu tipo. Você está aqui visitando os guetos como aqueles caras ricos que levam seus ônibus pelo bairro de Bowery. Pra fim de conversa, é melhor você dar no pé antes que alguém enfie uma faca na sua barriga.”
“Eu percebi que alguma coisa estava apertando o coração de Davi. Pode ser que ele soubesse que Jo-Jo falava a verdade. Mais tarde ele me disse que foi por ter lembrado de algo que um certo General Booth dissera: “É impossível aquecer o coração dos homens com o amor de Deus, quando seus pés estão duros de frios.” Pode ser que eu não esteja citando textualmente suas palavras, mas de qualquer forma Davi disse que isso passara pela sua mente. E sabem o que ele fez ? Sentou-se naqueles degraus — bem ali na rua — tirou os sapatos e entregou a Jo-Jo.
“Jo-Jo olhou espantado para Davi e disse: “Que está tentando provar, pregador ? que tem coração, ou o quê ? Eu não vou calçar seus sapatos fedidos.”
“Mas Davi respondeu-lhe à queima-roupa: “Meu chapa”, disse ele, “você estava choramingando por causa de sapatos. Agora, calce, ou pare de chorar.”
“Jo-Jo respondeu : “Mas eu nunca tive um sapa­to novo.”
“Davi apenas continuou dizendo: “Calce.”
“Jo-Jo calçou assim o sapato de Davi. Em segui­da, este começou a afastar-se em direção ao carro. Continuei escondido por trás dos degraus, enquanto Jo-Jo corria atrás de Davi rua abaixo. O pobre Davi estava só de meia, e teve de andar assim dois quar­teirões para chegar ao carro, enquanto todo mundo ria e caçoava dele. Foi aí que tive a certeza de que ele era sincero.”
Israel parou um pouco, reprimindo as lágrimas. “Nada do que Davi dissera até então me impressio­nara. Mas aquele homem não era um impostor: ele vivia o que pregava. Percebi que não poderia resis­tir à espécie de poder que podia levar um homem a um ato como aquele em favor de alguém como Jo-Jo.” Depois do culto, atravessei vagarosamente a mul­tidão, ainda emocionado com o trabalho e com o poder da presença de Deus dentro de mim, enquanto falara. Fiquei pensando que talvez ele quisesse que eu fosse pregador. Seria aquela a sua forma de co­municar-se comigo? Não encontrei a resposta, mas senti que precisava de tempo para pensar no as­sunto.
O pessoal ainda conversava no vestíbulo e na calçada, em frente ao templo. Continuava recebendo cumprimentos ao sair pela porta central. Naquele mo­mento, dois carros do outro lado da rua ligaram os motores. Ouvi um grito de mulher. Olhando naquela direção, vi canos de espingarda saindo pelas janelas, e reconheci alguns dos Bishops. Eles começaram a atirar selvagemente em minha direção, enquanto os carros arrancavam velozmente. Havia gente cain­do em frente à igreja, e outros correndo aterroriza­dos para dentro do templo, procurando escapar à fuzilaria. Abaixei-me por trás de uma porta, enquan­to balas ricocheteavam na parede de pedra, ao meu lado. Os carros desapareceram na noite.
Quando a confusão se dissipou, um senhor de idade encaminhou-se para mim e rodeou-me os om­bros com o braço : “Filho, não fique desanimado. O próprio Jesus foi tentado no deserto, depois do seu batismo. Deve sentir-se honrado pelo fato de Satanás ter marcado você para ser perseguido. Eu prevejo que fará grandes coisas para Deus, se perseverar.” Deu-me umas palmadinhas no ombro e desapareceu no meio da multidão.
Eu não sabia o que era “perseverar”, contudo queria fazer grandes coisas para Deus. Mas não es­tava muito certo de ser uma honra o fato de Satanás ter mandado os Bishops para me matar.
O ambiente parecia ter-se acalmado e saí de no­vo, iniciando o longo caminho de volta para casa. O Rev. Arce levara Israel de carro para casa, mas eu quis ir a pé. Precisava pensar. O Sr. Delgado, que estivera trabalhando com Davi Wilkerson, con­vidara-me para ir à sua casa passar a noite com ele. Era um homem amável, gentil, bem vestido. Pensei que ele devia ser muito rico. Fiquei envergonhado dos meus maus modos, das roupas velhas, e recusei o convite. Ele me  deu uma nota de um dólar, e me disse que se precisasse de dinheiro, bastava avi­sá-lo.
Agradeci e comecei a voltar para o apartamento. Ao atravessar a Av. Vanderbilt, vi Loca diante do seu apartamento. “Ei, Nicky, onde você tem estado todo esse tempo ? Disseram que saiu da quadrilha. É verdade ?”
Disse-lhe que sim.
“Puxa, rapaz, você está fazendo falta. Já não é a mesma coisa, sem você lá. Por que não volta ?”
De repente, alguém me abraçou por trás. Eu ri: “Puxa, vocês querem mesmo que eu volte, hein?” pensando que fosse um dos nossos. O rosto de Loca transfigurou-se, gelado de terror. Virei a cabeça de­pressa, e reconheci Joe, um Apache a quem havía­mos raptado e queimado.
Estava lutando para me libertar quando vi a faca na mão dele. Joe me segurou por trás pas­sando a mão esquerda em volta do meu pescoço, enquanto brandia a lâmina sobre o meu ombro, em direção ao coração. Levantei a mão direita para frus­trar o golpe daquela lâmina de vinte e quatro centí­metros e ela me feriu na mão, entre o anular e o mínimo, atravessando-me a mão e esfolando um pou­co o peito.
Girei sobre mim mesmo, e ele me golpeou de novo. “Desta vez eu te mato”, uivou. “Pensa que po­de fugir, ficando escondido detrás de uma igreja, mas está muito enganado, meu velho. Vou fazer um favor para o mundo e matar um covarde que virou honesto.”
Gritei para Loca: “Saia daqui! Este cara está louco!”
Ele avançou para mim e deu uma facada em di­reção ao meu estômago, mas pulei para trás e ar­ranquei a antena de um carro que estava estaciona­do ali. Agora podíamos lutar de igual para igual. Nas minhas mãos, a antena era uma arma tão mor­tífera quanto a peixeira dele.
Rodeei o rapaz, esgrimindo no ar com a vara de metal. Estava agora de volta ao meu elemento. Senti-me confiante de que poderia matá-lo. Por ex­periência, eu sabia qual seria o seu próximo movi­mento. Quando ele arremetesse contra mim com a faca, daria um passo atrás, fazendo com que per­desse o equilíbrio. Podia cegá-lo, girando o corpo e o braço e atingindo-o nos olhos, e paralisá-lo ou matá-lo com um segundo golpe.
Segurei a antena com a mão esquerda, enquan­to a direita, que pingava sangue do ferimento que ele me fizera, conservava à minha frente para me resguardar da faca.
“Vamos, menino”, cochichei, “tente mais uma vez. Só uma vez. Será a última.”
Os olhos de Joe estavam apertados, cheios de ódio. Eu sabia que teria de matá-lo, porque nada mais o faria parar.
Ele avançou para mim, e eu dei um passo atrás, e a faca sibilou, quase tocando o meu estômago. Agora! Ele perdera o equilíbrio. Levantei a antena como um chicote, para bater-lhe no rosto despro­tegido.
Repentinamente, senti como se a mão de Deus tivesse agarrado o meu braço. “Dê a outra face.” A voz era audível, e muito real. Olhei para aquele Apa­che não como um inimigo, mas como uma pessoa. Senti pena dele, ali no meio da noite, cuspindo pa­lavrões, com o ódio gravado em seu rosto. Vi-me no seu lugar, algumas semanas atrás, na rua escu­ra, procurando matar um inimigo.
Orei. Pela primeira vez na vida, orei por mim:
“Deus, ajuda-me.”
O Apache recuperou o equilíbrio e olhou para mim: “O que você disse ?”
“Deus, ajuda-me”, eu repeti. Ele parou e arrega­lou os olhos.
Loca correu, enfiando o gargalo quebrado de uma garrafa em minha mão : “Corta a cara dele, Nicky.”
O rapaz começou a correr.
“Atira nele, Nicky, atira nele !”
Levantei o braço, mas em vez de atirar o caco de garrafa no Apache que fugia, atirei-o contra a parede do prédio.
Depois, peguei um lenço e enrolei-o na mão que sangrava muito. Ficou logo empapado de sangue e Loca subiu correndo ao seu quarto, e trouxe uma toalha de banho para absorver o sangue. Ela quis me levar para casa, mas eu disse que era capaz de ir sozinho, e fui embora.
Tinha medo de ir ao hospital, mas sabia que precisava de ajuda. Já estava ficando fraco devido à perda de sangue. Precisava atravessar a Praça Washington e a Praça Fulton, para chegar ao Hospi­tal Cumberland. Achei melhor ir antes que me es­vaísse em sangue e morresse. De pé na esquina de De Kalb, perto do Corpo de Bombeiros, eu esperava a luz do semáforo acender, mas senti a cabeça tonta e resolvi atravessar a rua antes de desmaiar.
Cambaleei pelo meio do tráfego. Então ouvi um grito, e um dos Mau-Maus veio correndo pela rua para me ajudar. Era Tarzan, um rapagão que usava um  enorme  chapéu mexicano. “Que é  isto,  Nicky, está querendo se matar?” Ele pensava que eu esta­va louco, porque entregara o coração a Jesus.
“Rapaz, eu estou ferido. Muito ferido. Ajude-me a chegar à casa de Israel, por favor.”
Tarzan foi comigo até o apartamento de Israel, e nós subimos os cinco lances de escadas, até o quar­to dele. Era meia-noite quando bati à porta.
A mãe de Israel abriu e me convidou para en­trar. Ela percebeu que eu estava ferido. Israel saiu do outro quarto. Olhou para mim e começou a rir. “Rapaz, o que aconteceu com você?”
“Fui esfaqueado por um Apache.”
“Puxa ! nunca pensei que isto pudesse te acon­tecer.”
A mãe de Israel nos interrompeu e insistiu para que eu fosse para o hospital. Israel e Tarzan me ajudaram a descer as escadas, e me levaram ao pron­to-socorro do hospital vizinho. Tarzan concordou em pegar minha carteira onde estava o dólar que eu ga­nhara, e ir contar ao meu irmão Frank o que me acon­tecera. Israel esperou o médico examinar minha mão. Alguns tendões tinham sido cortados, e eu ia pre­cisar de anestesia. Israel estava sério quando me le­varam na maca. “Não se preocupe, meu chapa, nós vamos acertar o cara que fez isto.”
Eu queria dizer-lhe que não precisávamos mais de vingança. Deus cuidaria disso. Mas a porta fe­chou se vagarosamente atrás de mim...
No dia seguinte, bem cedo, Israel estava no meu quarto de hospital. Eu ainda estava meio tonto de­vido à anestesia, mas pude perceber que estava dife­rente. Finalmente consegui abrir os olhos e vi que ele tinha rapado completamente a cabeça.
“Ei, careca, o que é que há ?” murmurei. A ve­lha expressão voltara ao rosto de Israel.
“Caramba, primeiro eles quase nos furam como peneiras diante da igreja, e agora esfaqueiam você. Esse negócio de Jesus não dá pé. Aquele cara não podia fazer isso. Vou pegá-lo para você.”
Eu estava recuperando os sentidos, e levantei-me na cama. “Ei, cara, você não pode fazer isso. Eu poderia tê-lo acertado sozinho, mas deixei-o nas mãos de Deus. Se você voltar às ruas, nunca mais sairá. Lembre-se do que Davi falou sobre lançar a mão ao arado... Meu chapa, fique comigo e esqueça a briga.”
Lutei para ficar sentado, e notei que Lídia e Lo­reta tinham entrado com Israel. Caí, porém, de cos­tas na cama, pois ainda estava fraco com a perda de sangue e a cirurgia. O meu braço inteiro estava em um só molde de gesso, desde a ponta dos dedos até o cotovelo.
Loreta era uma bela italianinha de cabelos negros com quem tivera vários encontros. Ela falou: “Nicky, Israel tem razão. Aqueles caras vão entrar no hospi­tal e matá-lo, se você não voltar para a quadrilha. Vamos fazer como nos velhos tempos. Você fica bom e volta para os Mau-Maus. Estamos esperando você.”
Virei e olhei para Lídia. “É isso que você acha também ?”
Ela baixou a cabeça. “Nicky, preciso te contar uma coisa. Estou envergonhada. Devia ter falado há muito tempo. Já faz dois anos que sou crente.”
“O quê ?” encarei-a incrédulo. “Você quer me dizer que acreditava em Cristo todo este tempo e não me contou? Como é que pode ser crente e fazer tudo que tem feito? Os cristãos não agem assim. Eles não se envergonham de Jesus. Não, não creio em você.”
Lídia mordeu o lábio inferior, e lágrimas vieram aos seus olhos, enquanto ela torcia o lençol com as mãos. “Estou envergonhada, Nicky. Eu tinha medo de lhe falar de Cristo. Se falasse a verdade, você não me quereria mais.”
Israel aproximou-se da cama. “Vamos, Nicky. Você está apenas confuso. Vai sentir-se melhor mais tarde. Loreta e eu achamos que você deve voltar para a quadrilha. Não sei o que Lídia acha. Mas pense nisso e não se preocupe. Vou falar com alguns dos rapazes, e vamos pegar aquele cara que fez isto com você.”
Dei-lhe as costas. Loreta chegou-se e beijou me na face. Senti lágrimas em meu rosto, quando Lídia curvou-se e me beijou. “Sinto muito, Nicky. Perdoe-me, por favor.”
Eu não disse nada. Ela me beijou outra vez e saiu depressa. Ouvi a porta fechar-se atrás deles.
Depois que eles saíram, quase pude sentir a pre­sença de Satanás no quarto. Ele falara comigo por intermédio de Israel e Loreta. Estava me preparando através   da  minha decepção com respeito a Lídia.
“Nicky”, cochichou ele, “você é um bobo. Eles têm ra­zão. Volte para a gang. Recorde dos bons tempos. Lembre-se da satisfação de vingar-se. Lembre como era doce estar nos braços de uma garota bonita. Você traiu sua quadrilha, Nicky, mas ainda não é tarde demais para voltar.”
Enquanto me tentava, a enfermeira entrou com a bandeja do jantar. Ouvi-o ainda a segredar : “Ontem à noite foi a primeira vez na vida em que você não revidou.   Covarde! O grande e bravo Nicky Cruz chorando na Arena St. Nicholas, correndo de um Apache e deixando-o escapar. Mulherzinha. Santinho Medroso.”
“Sr. Cruz?” Era a enfermeira falando, ao apro­ximar-se do meu leito. “Se virar para cá, eu arruma­rei a sua bandeja.”
Dei um pulo na cama, e bati na bandeja, jogando-a no chão: “Vá para o inferno !”
Quis dizer mais alguma coisa, porém não saiu nada. Todos os antigos palavrões tinham desapareci­do. Naquele instante, não fui nem capaz de lembrá-los. Fiquei ali sentado com a boca aberta, e de repen­te lágrimas começaram a correr dos meus olhos, descendo ao longo do rosto como dois regatos. “Des­culpe”, solucei. “Por favor, chame um ministro Cha­me o Rev. Arce.”
Silenciosamente, a enfermeira apanhou os pra­tos do chão, e bateu de leve no meu ombro: “Vou chamá-lo agora mesmo. Deite e descanse.”
Deitei a cabeça no travesseiro, ainda soluçando. Em pouco tempo o Rev. Arce chegou e orou em meu favor. Enquanto ele orava, eu me senti libertado do espírito que se apossara de mim. Disse-me que pe­diria ao Sr. Delgado para me visitar, na manhã seguinte, e ele providenciaria para que eu tivesse os cuidados necessários.
Naquela noite, depois que a enfermeira me aju­dou a trocar o paletó do pijama, ajoelhei-me ao lado do leito do hospital. De tarde eles haviam colocado um outro paciente na cama ao lado da minha, mas pen­sei que ele estivesse dormindo. Comecei a orar em voz alta, o único jeito que eu sabia. Ninguém me dissera que se pode orar “em pensamento”. Sabia apenas que tinha de orar a Deus, e a única maneira de fazê-lo era falando com ele — em voz alta. Come­cei assim a orar.
Pedi a Deus que perdoasse o rapaz que havia me esfaqueado, e que o protegesse de todo mal, até que ele pudesse aceitar a Jesus. Pedi a Deus que me perdoasse pela maneira como eu tratara Lídia, e por ter dado aquele tapa na bandeja, derrubando-a das mãos da enfermeira. Eu lhe disse que iria onde quer que desejasse e faria o que ele quisesse. Lembrei a Deus que eu não estava com medo de morrer, mas pedi que me deixasse viver o bastante para um dia falar a mamãe e a papai a respeito de Jesus.
Fiquei de joelhos muito tempo, antes de jogar-me na cama e cair no sono.
Na manhã seguinte, estava me vestindo para deixar o hospital, quando o homem da cama ao lado falou baixinho, fazendo me sinal para chegar perto dele. Era um velho que tinha um tubo na gargan­ta. Tremia, estava muito pálido e a sua voz era um murmúrio.
“Eu estava acordado ontem à noite”, cochichou ele.
Fiquei um pouco envergonhado e dei um sorriso tolo. “Muito obrigado”, disse ele, “muito obrigado pela sua oração.”
“Mas eu não estava orando pelo senhor”, con­fessei. “Pensei que o senhor estivesse dormindo. Eu estava orando por mim mesmo.”
O ancião estendeu o braço e agarrou a minha mão sã, com seus dedos frios e úmidos. O aperto era muito fraco, mas pude sentir que ele estava aper­tando com energia.
“Oh, não, você está enganado. Você estava oran­do por mim. E eu também orei. Pela primeira vez em muitos, muitos anos, eu orei. Eu também orei. Eu também desejo fazer o que Jesus quer que eu faça. Muito obrigado.”
Grandes lágrimas rolaram pelas suas faces, vin­cadas de profundas rugas, enquanto ele falava. Eu disse: “Deus o abençoe, meu amigo”, e saí. Eu nunca tentara ajudar ninguém, em minha vida. E nem sa­bia como o fizera, naquele dia. Mas sentia de forma confortadora e forte que o Espírito de Deus operara por meu intermédio. Estava satisfeito.
O Sr. Delgado estava me esperando no saguão. Pagou a minha conta, e levou-me para o seu carro. “Telefonei para Davi Wilkerson ontem à noite”, disse ele. “Está em Elmira realizando uma série de reuniões. Ele quer que eu leve você e Israel para lá, amanhã “
“Davi mencionou isso a última vez em que nos encontramos”, disse eu, “mas Israel voltou para a quadrilha. Acho que ele não vai.”
“Vou encontrar-me com ele hoje à noite. Mas hoje quero que você fique na minha casa, onde es­tará em segurança. Vamos sair amanhã bem cedo para Elmira.”
Parecia uma ironia o fato de eu estar indo para Elmira para avistar-me com Davi. Era para lá que a polícia queria me mandar, mas por uma razão di­ferente. Passei o resto do dia orando por Israel, para que ele não voltasse para a quadrilha, mas resolves­se ir comigo para Elmira.
Na manhã seguinte, levantamo-nos bem cedo e atravessamos a cidade de carro, em direção ao Brooklin e ao Conjunto Habitacional Fort Greene. O Sr. Delgado disse que Israel concordara em ir conosco, e deveria encontrar-se conosco na esquina das ruas Myrtle e De Kalb às sete da manhã. Quan­do ali chegamos, Israel não estava. Comecei a sentir um frio na boca do estômago. Demos a volta no quarteirão, mas não o vimos. O Sr. Delgado disse que tínhamos pressa; não obstante, passamos pelo seu apartamento, na Rua St. Edward, defronte ao 67.° Distrito, para ver se podíamos encontrá-lo. Pas­samos lá, mas não vimos sinal dele. O Sr. Delgado ficou olhando para o relógio, e finalmente disse que tínhamos de ir embora.
“Será que não podemos dar só mais uma volta no quarteirão?” disse eu; “pode ser que o encontre­mos desta vez.?
“Olhe, Nicky”, respondeu, “eu sei que você gosta de Israel e está com medo que ele volte para a qua­drilha. Mas ele precisa aprender a arranjar-se sozi­nho. Disse que nos encontraria às sete horas, e não está aqui. Vamos dar mais uma volta no quarteirão, mas são seis horas de viagem até Elmira, e Davi está nos esperando às duas da tarde.”
Fizemos a volta do quarteirão mais uma vez, e depois fomos para o Bronx, para pegar Jeff Morales. Jeff era um rapaz porto-riquenho que queria entrar para o ministério da Palavra de Deus. Davi pedira ao Sr. Delgado que o levasse para servir-me de in­térprete quando falasse na igreja.
Quando saímos da cidade, tive uma sensação de alívio. Recostei-me no banco e suspirei. O peso fora retirado. Mas no meu coração havia uma profunda tristeza porque estávamos deixando Israel para trás, e eu tinha um pressentimento de algo ameaçador, envolvendo condenação  e desespero, em relação ao futuro dele. Eu não sabia naquela época, mas... seis anos se passariam antes que nos encontrássemos de novo.
Naquela noite Davi apresentou-me ao povo de Elmira e dei o meu testemunho. Davi me pedira para começar desde o princípio, e contar a minha histó­ria exatamente como acontecera. Fui obscuro nos de­talhes, e não pude lembrar-me de muita coisa. Com­preendi logo que Deus não apenas tirara de mim muitos dos antigos desejos, mas também apagara muitas daquelas recordações da minha mente. Contei, porém, a história da melhor maneira que pude. Mui­tas vezes adiantei-me ao meu intérprete, e Jeff tinha de dizer:  “Calma, Nicky, espere por mim.”
O povo riu e chorou, e quando foi feito o apelo, muitos aproximaram-se do altar para dar seu coração a Cristo. A sensação de que Deus estava me chaman­do para um ministério especial ficou ainda mais for­te, quando vi que Deus estava operando através da minha vida.
No dia seguinte tive oportunidade de conversar com Davi por muito tempo. Ele me perguntou se eu estava mesmo decidido a ingressar no ministério. Respondi que não sabia direito o que era isso, e nem podia falar um inglês inteligível, mas sentia que Deus esperava algo de mim, e estava me guiando nesse sentido. Davi disse que faria tudo o que lhe fosse possível para me arranjar uma escola.
Escola! Há três anos que eu não ia à escola, des­de que fora expulso. “Davi, não posso voltar para a escola. O diretor disse que se eu voltar, ele me entre­ga à polícia.” Davi riu.
“Não é aquela escola, Nicky. É uma Escola Bíbli­ca. Você gostaria de ir para a Califórnia?”
“Para onde ?”
“Califórnia, na costa ocidental.”
“É perto de Brooklin?” perguntei. Davi caiu na gargalhada
“Oh, não, Nicky. Estou vendo que o Senhor vai ter de operar muito em você. E eu sei que ele é suficientemente poderoso para fazê-lo. Espere para ver grandes coisas acontecerão através do seu ministé­rio. Estou certo disso.”
Sacudi a cabeça. Tinha medo dos guardas de Brooklin. Se precisava ir para a escola, fazia votos fervorosos para que fosse em algum lugar fora da cidade de Nova York.
Davi quis que eu ficasse em Elmira, enquanto ele escrevia para a Escola Bíblica. Mais tarde, fiquei sabendo que ela ficava em La Puente, Califórnia, perto de Los Angeles. O curso bíblico era para moças e rapazes que desejavam preparar-se para o ministé­rio e não tinham possibilidades financeiras de ir para a faculdade; o curso durava três anos. É claro que eu não terminara o ginásio, mas Davi escreveu uma carta expressa pedindo-lhes que me aceitassem as­sim mesmo. Ele disse que eu não estava escondendo nada a respeito da minha vida pregressa, mas falava de meus sonhos e ambições, e pedia que fizessem uma experiência comigo, embora eu tivesse me tornado cristão há poucas semanas.
As coisas em Elmira não estavam correndo muito bem, nesse meio tempo. Alguém espalhou o boato que eu ainda era chefe da gang e que estava procurando formar uma quadrilha ali. Davi ficou aborrecido, e percebeu que aquilo podia significar distúrbio. Eu passava a noite com Davi, mas tinha medo de que passassem a criticá-lo. Concordamos em orar a res­peito do problema.
Naquela noite Davi falou-me sobre o batismo no Espírito Santo. Ouvi-o atentamente, mas não entendi o que ele estava querendo me ensinar. Ele leu pas­sagens das Escrituras nos livros de Atos, I Coríntios e Efésios. Explicou que depois que uma pessoa é sal­va, Deus deseja transmitir-lhe o seu poder. Explicou a conversão de Saulo em Atos 9; três dias depois de sua conversão, Saulo foi batizado com o Espírito Santo, recebendo um novo poder.
“É disso que você precisa, Nicky”, disse Davi. “Deus deseja dar-lhe poder, e dons especiais.”
“Que espécie de dons você quer dizer ?” pergun­tei-lhe.
Ele abriu a Bíblia em I Coríntios 12:8-10 e explicou a respeito dos nove dons do Espírito.
“São dados aos que são batizados no Espírito San­to. Pode ser que você não receba todos, mas rece­berá alguns. Nós, pentecostais, cremos que todos os que são batizados no Espírito têm dom de línguas.”
“Você quer dizer que eu serei capaz de falar em inglês mesmo sem estudar?” perguntei, estupefato.
Davi ia continuar falando, porém fechou a Bíblia : “O Senhor disse aos apóstolos para “esperar”, e en­tão receberiam poder. Não quero ser apressado a esse respeito, com você, Nicky. Vamos esperar no Senhor, e ele vai batizá-lo, quando estiver preparado para isso. Por enquanto, temos um problema nas mãos, e precisamos orar para resolvê-lo.”
Ele desligou a luz e eu disse: “Se ele me der outra língua espero que seja italiano. Eu conheço a garota italiana mais bacana que existe, e estou certo de que...” Fui interrompido pelo travesseiro de Davi que sibilou através do quarto e amassou-se contra o meu rosto.
“Durma, Nicky. Já é quase dia, e metade da ci­dade pensa que você ainda é um chefe de quadrilha. Se ele lhe der outra língua, é melhor que seja algo que este povo possa entender, quando você lhes dis­ser que não é, na verdade, um assassino.”
Na manhã seguinte, Davi parecia preocupado quando voltou da reunião matutina.
“A situação não está boa, Nicky. Vamos precisar tirar você daqui antes de cair a noite, e eu não sei para onde pode ir, a menos que seja de volta para Nova York.”
“Você acha que o Senhor ouviu nossas orações ontem à noite ?” perguntei.
“É claro que sim. É por isto que eu oro: porque creio que ele me ouve.” Davi olhou-me surpreso.
“Você orou para que Deus tomasse conta de mim?”
“Você sabe que sim.”
“Então, por que está tão preocupado ?”
Davi levantou-se e encarou-me durante um mi­nuto: “Vamos tomar café, estamos atrasados. Estou com fome, e você?”
Naquele dia, às duas horas da tarde, tocou o telefone no quarto do motel. Era o pastor da igreja onde Davi estava pregando. Havia uma senhora no seu escritório que queria falar conosco. Davi disse que sairíamos imediatamente.
Entramos e o pastor apresentou-nos à Sra. Johnson que viajara trezentos quilômetros, de sua casa, no norte do Estado de Nova York. Tinha se­tenta e dois anos, e disse que na noite anterior o Es­pírito Santo lhe falara. Lera as notícias a meu res­peito nos jornais, e afirmou que o Espírito Santo a avisara de que eu estava em dificuldades, e que de­veria ir ao meu encontro.
Olhei para Davi: grandes lágrimas corriam pela sua face. “O seu nome pode ser Sra. Johnson, mas eu penso que realmente é Sra. Ananias”, disse ele.
“Não compreendo”, disse. Olhou com estranheza para Davi.
“Ele está se referindo ao Ananias mencionado em Atos 9, a quem o Espírito Santo tocou e enviou para auxiliar Paulo”, interrompeu o pastor.
“Só sei que o Senhor me dirigiu para vir buscar este rapaz e levá-lo para casa”, disse sorrindo a Sra. Johnson.
Davi mandou que me preparasse para voltar com ela. Disse também que deveria ter uma resposta de La Puente dentro de poucos dias, e me avisaria o mais depressa possível. Eu não queria ir, mas de­pois de saber o que acontecera na noite anterior, e vendo o que estava acontecendo, fiquei com medo e atendi.
Duas semanas mais tarde recebi um telefonema de Davi. Estava exultante. Os diretores do Instituto Bíblico tinham respondido. Estavam tão intrigados a respeito da perspectiva da minha ida, que concorda­ram em dispensar todos os requisitos e aceitar-me como aluno. Ele mandou que eu tomasse um ônibus de volta a Nova York, pois sairia para a Califórnia no dia seguinte.
Desta vez não senti medo durante a viagem para Nova York. Lembrei-me da viagem com o Dr. John, e da terrível depressão que senti, da sensação de estar voltando a cair na fossa. A fossa, porém, desa­parecera. Desta vez eu estava saindo do deserto.
Eu teria de esperar cinco horas na estação ro­doviária, antes que Davi fosse encontrar comigo. Concordara em esperar na própria rodoviária, para evitar problemas. Contudo, os problemas tinham um meio de me achar. Vieram na forma de dez Vice­roys que formaram um círculo silencioso ao meu redor, enquanto me achava sentado, lendo uma re­vista.
“Ei, olha o menino bonito”, disse um deles, fa­zendo referência ao meu terno e gravata. “Ei, almo­fadinha, você está fora do seu território. Não sabe que isto é domínio dos Viceroys?”
“Ei, turma, sabem quem é este? É aquele Mau-Mau simplório que virou pregador”, disse de repente um dos rapazes.
Outro aproximou-se de mim e espetou o dedo no meu rosto: “Ei, pregador, posso encostar em você ? Pode ser que a sua santidade pegue em mim.”
Dei um tapa na sua mão: “Você quer morrer?” rosnei, o velho Nicky ressuscitando. “Ponha outra vez a mão em mim, e você é um homem morto.”
“Puxa”, pulou para trás, fingindo surpresa. “Ve­jam só. Ele parece pregador, mas fala como um...” e usou um palavrão.
Antes que pudesse mexer-se, levantei-me de um salto e mergulhei o punho no seu estômago. Quando se dobrou com o golpe, golpeei-o na nuca, com o punho fechado, fazendo-o cair inconsciente por ter­ra. Os outros rapazes estavam surpresos demais para se moverem. As pessoas que estavam na estação ro­doviária começaram a se espalhar, e a se esconder por trás dos bancos. Afastei-me em direção à porta.
“Vocês aí, tentem qualquer coisa, e mato vocês. Vou atrás dos Mau-Maus depois volto para matar todos os Viceroys.
Viram que eu falava sério e sabiam que os Mau-Maus eram duas vezes mais depravados e mais for­tes do que eles. Olharam uns para os outros e se afastaram em direção à outra porta, arrastando o companheiro meio desmaiado.
“Eu volto”, gritei. “É melhor vocês se manda­rem, porque se estiverem aqui quando eu voltar, já sabem que vão morrer.”
Corri porta a fora, em direção a uma entrada do metrô que havia ali perto. Mas, no caminho, passei por uma igreja de pessoas de origem espanhola. Algo em mim fez com que eu diminuísse o passo, e voltas­se. Subi vagarosamente os degraus e entrei no edifí­cio aberto. Quem sabe era melhor que eu orasse antes, pensei. Iria depois buscar os Mau-Maus.
Uma vez, porém, dentro da igreja, esqueci os Mau-Maus — e os Viceroys. Comecei a pensar em Jesus, e na nova vida que me esperava no futuro. Ajoelhei-me ao pé do altar e os minutos se passaram como segundos, até que finalmente senti um tapinha no ombro. Olhei. Era Davi Wilkerson.
“Quando não encontrei você na estação rodoviá­ria, imaginei que estivesse aqui”, disse ele.
“Naturalmente”, respondi. “Onde você acha que eu estaria: de volta à gang?” Ele deu uma risada, e saímos em direção ao carro dele.