Capítulo 10
O ENCONTRO
ERA UMA TARDE QUENTE de sexta-feira, em julho de 1958.
Israel, Lídia e eu estávamos sentados na escada defronte ao meu apartamento,
quando alguns dos garotos vieram correndo rua abaixo.
“Ei, o que está acontecendo ?” gritei para eles.
“É um circo que está lá na escola”, respondeu um dos
meninos.
Acontecimentos extraordinários são raros em Brooklin. Esta é
uma das razões que temos para criar nossos próprios divertimentos, em forma de
lutas, narcóticos e sexo. Qualquer coisa era melhor do que ficar ali sentado.
Por isso, atravessamos o jardim em direção à escola da Rua St. Edward.
Quando chegamos, uma grande multidão se formara em frente
ao Posto Policial n°. 67. Abrimos caminho através do povo, derrubando ao chão
os meninos pequenos, para ver o que estava acontecendo.
Um homem se achava de pé sobre o hidrante, tocando “Avante,
Avante, ó Crentes” em um pistom. Ele ficou repetindo a mesma música,
vezes sem conta. Ao seu lado, de pé na calçada, estava outro homem.
O indivíduo mais magro, mais fraco e mais insignificante
que eu já vira. Sobre eles, presa a um mastro, drapejava uma bandeira
americana.
O pistonista finalmente parou, e a turba começou a gritar
para ele. Quase cem rapazes e moças se haviam reunido, bloqueando a rua e a
calçada.
O magrinho tinha uma banqueta de piano que trouxera da
escola. Subiu nela e abriu um livro preto. Começamos a gritar e a gracejar. Ele
ficou ali, com a cabeça curvada e vimos que estava com medo. A gritaria
tornou-se maior. A multidão era compacta.
De repente, percebi que tudo silenciara. Desviei a atenção
de Lídia e olhei para o homem de pé sobre o banquinho. Ele curvara a cabeça e
segurara o livro preto, aberto. Uma sensação de medo percorreu o meu corpo, a
mesma que costumava sentir quando, em casa, meu pai praticava a feitiçaria.
Tudo ficou estranhamente quieto; até os carros na Av. Park, a meio quarteirão
dali, pareciam não estar fazendo ruído algum. Era um silêncio esquisito.
Fiquei amedrontado.
O velho medo, que eu não sentira desde que me juntara aos
Mau-Maus, repentinamente me dominou. Era o medo que eu precisara combater no
tribunal, diante do juiz; era o medo que sentira na noite em que fora para
casa, depois da entrevista com o psicólogo do tribunal. Das outras vezes eu
pudera afastá-lo, ou fugir dele. Mas agora, ele se agarrava ao meu coração e ao
meu corpo, e eu podia senti-lo tomar posse da minha própria alma. Queria
escapar — mas todo mundo estava escutando — esperando.
De repente, o magricela levantou a cabeça e, numa voz tão
fraca que mal se podia ouvir, começou a ler no livro preto: “Porque Deus amou o
mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito para que todo o que nele crê
não pereça, mas tenha a vida eterna.”
Eu tremia de medo. Aquele sujeito devia ser uma espécie de
padre, ou feiticeiro, ou coisa parecida. Ele estava falando de amor. Eu
conhecia o “amor”. Era experiente nisso. Estendi a mão e belisquei a coxa de
Lídia. Ela olhou para mim : “Escute o que ele diz, Nicky.” Fechei a cara e
voltei os olhos de novo para o magricela. Ele estava falando a respeito de
pedirmos que acontecesse um milagre. Eu não sabia o que era um milagre, mas
todo mundo estava escutando, e eu não queria ser diferente.
O homem tinha parado de falar e estava ali de pé, esperando
alguma coisa acontecer. Disse a seguir que queria falar com os presidentes e
vice-presidentes das quadrilhas. Comecei a achar aquele homem perigoso. Ele
estava invadindo o nosso mundo e eu não queria que nenhum estranho se
intrometesse.
Ele continuou: “Se vocês são tão grandes e tão fortes, não
terão medo de vir aqui e apertar a mão de um pregador magricela, não é?”
Houve um movimento na multidão. Alguém gritou, lá de trás: “Ei
Buck, o que é que há, está com medo?” Referiam-se a Buck, o presidente dos
Chaplains, nossa quadrilha irmã.
Ouvi um bulício atrás, na multidão, e olhei: ali vinha Buck
ao lado de Stage e mais dois membros daquela gang de rapazes de cor.
Dirigiram-se para o pregador magrinho, que agora descera da banqueta e os
esperava.
Fiquei mais nervoso. Não estava gostando daquilo, de forma
alguma. Dei uma olhada ao meu redor, e parecia que todo mundo estava sorrindo e
abrindo caminho para Buck e Stage passarem.
Eles se cumprimentaram, e depois o pregador e o pistonista
levaram Buck, Stage e os outros dois rapazes para a entrada da escola. Ficaram
lá conversando; eu me afastei de Lídia, e me aproximei de Israel. “O que
estão fazendo ?” perguntei-lhe. Israel não respondeu. Tinha um ar estranho.
De repente, eu vi todos eles se ajoelhando ali mesmo, na
rua. Buck e Stage tinham tirado o chapéu e o seguravam, ajoelhados ali na
calçada.
Quando se levantaram, voltaram para o meio da multidão. Eu
gritei para Buck: “Ei,
Buck, você é crente agora?” Buck era um rapaz corpulento; tinha naquela época
uns oitenta quilos e cerca de 1,80m de altura. Virou-se e olhou para mim de uma
forma que eu nunca vira antes. Seu rosto estava sério, muito sério. Seu olhar
penetrou profundamente no meu, e compreendi o que queria dizer, embora não
entendesse o que lhe acontecera. Estava dizendo, com os olhos: “É melhor você
cair fora, Nicky; isto não é hora de piadas.”
Subitamente, alguém gritou para mim: “Ei, Nicky, será que
aqueles negrinhos vão deixar você pra trás? Está com medo de ir à frente,
também?”
Israel me cutucou e acenou com a cabeça em direção aos dois
homens. “Vamos, Nicky, vamos.” Vi que ele estava falando sério, e me afastei.
Havia algo de sinistro naquilo tudo... algo perigoso e enganador. Fazia-me
lembrar de algo de que eu tinha terror mortal.
A turba começou a vaiar e a gritar: “Ei, veja o nosso líder.
Ele está com medo do pregador magrinho.”
Israel puxou-me pelo paletó. “Vamos, Nicky.” Eu não tinha
escolha: fui à frente e me coloquei diante dos dois homens.
Israel deu a mão para eles. Eu ainda estava com medo,
retraído. O homem magrinho veio até mim e estendeu a mão. “Nicky, meu nome é
Davi Wilkerson. Sou um pregador da Pensilvânia.”
Olhei bem para ele e disse: “Vá pro inferno, pregador.”
“Você não gosta de mim, Nicky”, falou ele, “mas eu penso
diferente. Gosto de você. E não é só isto: vim para lhe falar sobre Jesus, que
também ama você.”
Eu me senti como um animal apanhado numa armadilha, prestes
a ser enjaulado. Atrás de mim estava a multidão. Na minha frente, a face
sorridente daquele homem franzino falando de amor. Ninguém me amava. Ninguém jamais me amara. Enquanto estava ali de pé, recordei
me daquela ocasião, tantos anos
antes, quando ouvira
minha mãe dizer com ódio: “Não gosto de você, Nicky.” Pensei: “Quando
nossa própria mãe não ama a gente, ninguém nos ama — nem pode amar.”
O pregador continuava ali de pé, sorrindo, com a mão
estendida. Eu sempre me orgulhara de não ter medo. Mas, estava com medo. Com
muito medo de que aquele homem fosse me pôr numa jaula. Ele ia roubar-me os
amigos. Ia transtornar tudo em minha vida, e por isso eu o odiava.
“Se chegar perto de mim, pregador, eu te mato”, disse eu,
retraindo-me, buscando a proteção do povo. Estava amedrontado e não sabia como
enfrentar a situação.
O pavor me dominava. Sentia-me quase em pânico. Rosnei algo
para ele e pus-me a andar através da multidão. “Este homem é comunista, turma”,
gritei. “Saiam daqui. Ele é comunista.”
Eu não sabia o que era um comunista, mas sabia que era algo
que todos deveriam combater. Eu estava fugindo, e bem sabia disso, mas é que
não conseguia enfrentar uma situação como aquela. Se ele tivesse me atacado com
uma faca, teria enfrentado. Se tivesse vindo rogando e suplicando, teria rido
dele, e lhe daria um soco nos dentes. Mas ele veio dizendo: “Gosto de você.” E
eu nunca tivera que enfrentar alguém que se aproximasse de mim com afeto.
Atravessei a multidão com a cabeça levantada e o peito
estufado. Cheguei até Lídia, agarrei-a pelo braço, e levei a comigo; começamos
a subir a Rua St. Edward, afastando-nos da escola.
Alguns rapazes nos seguiram. Descemos ao porão e liguei a
vitrola ao máximo. Estava tentando abafar o som daquelas palavras: “Jesus ama
você.” Por que um fato como aquele me deixara tão confuso? Dancei um pouco com
Lídia, bebi meia garrafa de vinho barato e fumei um maço de cigarros. Fumei
muito — acendendo um cigarro no toco do outro. Lídia percebeu que eu estava
nervoso. “Nicky, quem sabe você deveria conversar com o pregador. Ser cristão
pode não ser tão ruim como você pensa.” Olhei-a carrancudo: ela baixou a
cabeça.
Eu me sentia miserável. E com medo. De repente, houve uma
agitação na porta; levantei os olhos e vi o pregador magricela entrando. Ele
parecia completamente deslocado, ali naquele porão sujo, com o terno bonito,
camisa branca e gravata limpa. Perguntou a um dos rapazes : “Onde está o Nicky
?”
O rapaz apontou para o lugar onde eu me achava sentado com o
rosto escondido nas mãos, o cigarro pendente dos lábios.
Davi atravessou a sala como se o lugar lhe pertencesse.
Tinha um sorriso a iluminar-lhe a face. Estendeu a mão outra vez, dizendo: “Nicky,
eu apenas queria acertar a sua mão e...” Antes que pudesse terminar, dei-lhe
um tapa na cara — com toda força. Ele tentou forçar um sorriso, mas era evidente
que eu o impressionara. A seguir, porém, conseguiu controlar-se e outra vez o
medo brotou dentro de mim, a ponto de sentir o estômago embrulhado. Fiz a única
coisa que sabia fazer, para me vingar: cuspi nele.
“Nicky, cuspiram em Jesus também, e ele orou : “Pai,
perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.”
“Saia daqui! Vá pro inferno!” gritei, furioso, e empurrei-o
para a porta.
“Nicky, antes de sair, quero dizer só uma coisa: Jesus ama
você.”
“Caia fora, padre doido. Não sabe o que fala. Vou lhe dar
vinte e quatro horas para deixar meu território; depois, te mato.”
O Rev. Wilkerson retirou-se, ainda sorrindo. “Lembre-se,
Nicky, Jesus ama você.”
Era mais do que eu podia suportar. Peguei a garrafa de vinho
vazia que estava no chão e atirei-a no assoalho espatifando-a. Nunca me sentira
tão frustrado, tão desesperado, tão insatisfeito.
Saí porta afora, batendo os pés. O meu orgulho borbulhava
dentro de mim. Percebi que todos os outros rapazes sabiam que aquele sujeito
conseguira me impressionar. A única maneira que conhecia para enganá-los era
agir rudemente. Se desse demonstração das minhas verdadeiras emoções, mesmo por
um instante, sentia que perderia todo o respeito da quadrilha.
“Aquele macumbeiro estúpido, maluco”, disse eu; “se ele voltar
aqui, ponho fogo nele.” Bati a porta atrás de mim e permaneci na calçada,
olhando-o pelas costas, enquanto ele se retirava apressado. “Convencido”,
pensei. Apesar de tudo, lá no fundo eu sabia que havia algo de verdadeiro
naquele homem estranho.
Voltei-me, e andei na direção oposta. Parei no salão de
bilhar, comecei uma partida, tentando concentrar-me na ponta do meu taco.
Porém tudo o que eu conseguia ouvir em minha mente era a voz do pregador
magricela, e as palavras : “Jesus ama você.”
“Que me importa”, pensei; “ele não vai me assustar. Ninguém
me mete medo.”
Fiz as duas jogadas seguintes e atirei o taco na mesa. “Jesus
ama você”, as palavras ressoavam nos meus ouvidos. Disse aos rapazes que estava
doente e arrastei-me de volta ao meu apartamento.
Tinha medo de estar realmente doente. Nunca me recolhera tão
cedo. Eram vinte e duas e trinta e eu sempre esperava até três ou quatro horas
da madrugada para ir dormir. Fechei a porta e tranquei-a. Tremia ao
atravessar o quarto e ao acender o pequeno quebra-luz sobre a mesa, ao lado da
cama. Peguei meu revólver no guarda-roupa, coloquei duas balas no tambor, e
deixei-o também na mesa. Chutei fora os sapatos e troquei de roupa. Deixei o
maço de cigarros sobre a mesa, deitei, e fiquei olhando para o forro. Ouvia as
palavras de Davi Wilkerson repetindo-se sem cessar: “Jesus ama você, Nicky,
Jesus ama você.”
Levantei a mão, apaguei a luz e acendi um cigarro.
Novamente, fumei um cigarro atrás do outro. Não conseguia repousar. Virava-me
de um lado para outro. Não conseguia dormir. As horas passavam. Finalmente,
levantei-me, acendi a luz e olhei o relógio : cinco da madrugada. Eu me
revirara na cama a noite inteira.
Levantei-me, vesti-me e guardei o revólver no guarda-roupa,
novamente. Peguei os cigarros, desci os dois lances de escadas e abri a porta
da frente do prédio de apartamentos. O céu tinha começado a ficar cinzento. À
distância, ouviam-se os sons da grande cidade, que bocejava e se espreguiçava,
voltando à vida.
Sentei-me nos degraus do prédio, com a cabeça nas mãos. “Jesus
ama você... Jesus ama você... Jesus ama você.”
Ouvi um carro parar em frente ao apartamento e a porta
bater. Senti o peso da mão de alguém em meu ombro. Levantei a cabeça e vi o
pregador franzino de pé, diante de mim. Estava ainda sorrindo, e disse: “Oi,
Nicky. Você se lembra do que lhe falei ontem à noite? Tive vontade de voltar e
dizer-lhe outra vez : Nicky, Jesus ama você.”
Fiquei em pé de um salto e fiz um movimento para atingi-lo.
Davi tinha certamente percebido, pois pulou para trás, para fora do meu
alcance. Fiquei rosnando como um animal pronto para o bote. Ele olhou-me bem
nos olhos, e disse: “Você pode me matar, Nicky. Você pode me cortar em mil
pedaços e jogá-los na rua. Mas, cada pedaço continuaria gritando: “Jesus ama
você”. Nunca poderá escapar disto.”
Eu tentei intimidá-lo com meu aspecto belicoso, mas ele
continuou falando: “Nicky, não tenho medo de você. Você fala grosso, mas por
dentro é exatamente igual a todos nós. Está com medo. Está cansado dos seus pecados.
Sente-se solitário. Mas Jesus ama você.”
Algo deu um estalo em mim: como é que ele sabia que eu me
sentia solitário? Eu não sabia do que ele falava quando mencionou pecado; tinha
medo de admitir meus temores. Mas, como ele sabia que eu me sentia solitário ?
A quadrilha estava sempre ao meu lado. Tinha tido todas as garotas que desejara.
As pessoas tinham medo de mim — ao me verem, elas desciam da calçada e andavam
pelo meio da rua. Eu era o chefe da gang. Como alguém podia saber que me sentia
isolado? Esta era, porém, a verdade. E aquele pregadorzinho sabia disso.
Tentei parecer esperto : “Você acha que vai me transformar
de um momento para outro?” disse eu, estalando dois dedos. “Você acha que vou
atendê-lo, vou pegar uma Bíblia e andar por aí pregando, e o povo vai começar a
dizer : Nicky Cruz — anjo — santo ?” Mas eu compreendi que ele estava decidido.
E que era sincero.
“Nicky, você não dormiu muito esta noite, não é ?” Fiquei de
novo admirado. Como é que ele sabia que eu não dormira ?
“Eu também não dormi muito esta noite, Nicky. Fiquei
acordado a maior parte da noite, orando por você. Antes disso, conversei com
alguns dos rapazes daqui. Eles me disseram que ninguém pode aproximar-se de
você. Todos têm medo de você. Olhe, Nicky, eu vim para dizer-lhe que alguém se
importa com você: Jesus. Ele ama você.” Olhou-me então bem firme nos olhos : “Um
dia, e não demora muito, Nicky, o Espírito de Deus começará a operar em você.
Um dia, Nicky, você vai deixar de fugir, e vai correr para ele.”
Eu não disse nada. Levantei-me, dei-lhe as costas e entrei
no prédio, fechando a porta atrás de mim. Subi a escada, entrei no meu
apartamento e sentei-me na cama. Olhando pela janela, vi que o carro dele se
fora. No leste, o céu estava começando a ficar rosado. Um enorme edifício, do
outro lado da rua, bloqueava a minha visão do horizonte. Porém, subitamente,
assim como sentimos a brisa marítima quando ainda estamos a muitos quilômetros
do mar, tive uma sensação de que havia, na vida, algo mais do que aquilo que eu
conhecia. Mais do que aqueles edifícios altíssimos, de concreto — aquelas
prisões de vidro e pedra.
Pensei nas palavras dele: “Um dia você vai parar de fugir e
correrá para ele.” Eu nem sabia quem era ele, mas, sentado ali na cama, olhando
para a rua cheia de lixo e ouvindo o ruído dos caminhões que desciam rangendo
e rugindo, pensei que ele devia ser algo semelhante à estrela matutina que
ainda brilhava no céu que se coloria com as primeiras tintas do arrebol.
Talvez... Algum dia...
Esse dia estava mais perto do que eu pensava.
Nos dias que se seguiram, eu não pude escapar a um encontro
com o homem que representava Deus. Era Israel que me atormentava constantemente.
Toda vez que nos encontrávamos, tinha de ouvir alguma coisa a respeito de Deus.
“Diacho, Israel, se você não pára de falar nesse negócio de
Deus, eu te mato.”
Mas Israel continuou falando sobre ele, e eu suspeitei que
estivesse se encontrando com Davi Wilkerson às escondidas. Eu não estava
gostando daquilo. Achava que aquele homem podia até mesmo destruir a nossa
quadrilha. Agora que Mannie se fora, só Israel ficara. E até ele parecia estar
se desviando para outra direção. As suas constantes referências a Davi
Wilkerson e o seu insistente desejo de me forçar a falar, levaram-me às raias
do desespero.
Não agüentava mais. Na véspera do dia da independência dos
Estados Unidos, quatro de julho, quando todas as quadrilhas deviam convergir
para o parque de Coney Island, Israel passou a noite comigo. Falou até tarde
da noite, procurando convencer-me a que não fosse a Coney Island na noite seguinte,
e em vez disso, que fosse conversar com Davi Wilkerson. Tapei os ouvidos,
procurando abafar a sua conversa incessante. Mais tarde, ele caiu no sono.
Deitei-me no leito, olhando para o forro, no escuro, quase consumido de medo.
Eu tinha de parar com aquilo. Tinha de fazer Israel calar. Não suportava mais
ouvir falar de Davi Wilkerson.
Tateando sob o colchão, encontrei o cabo de madeira do
furador de gelo que eu tinha escondido ali. Ouvia Israel ressonando
profundamente, na cama ao lado. Quanto mais pensava nele, me amolando a
respeito de Deus, mais furioso ficava.
Não agüentei mais. “Isto vai ensinar você a não me encher
mais”, gritei, enquanto arrancava o furador de gelo de sob o colchão e o
lançava em direção às costas de Israel.
O meu grito acordou-o e ele se levantou rapidamente,
exatamente na hora em que o furador de gelo penetrava profundamente no colchão,
atrás dele.
Arranquei-o, e tentei brandi-lo outra vez, gritando: “Eu
mandei você calar a boca e não falar mais sobre Deus. Por que você não se
calou? Por quê? Por quê ?”
Israel me agarrou e começamos a lutar corpo a corpo, caindo
no chão, enquanto eu o golpeava cegamente.
Ele me deitou de costas e caiu sobre mim, sentando-se sobre
o meu peito, segurando-me as mãos contra o assoalho, sobre a minha cabeça.
“Por que você não parou?” continuei gritando.
“O que é que há com você?” Israel gritava, tentando
manter-me seguro. “Você está louco. Sou eu. Seu amigo. O que há com você?”
Repentinamente, percebi que ele estava chorando, enquanto
gritava e lutava comigo. Lágrimas corriam pela sua face. “Nicky, Nicky. Pára.
Eu sou seu amigo. Não me obrigue a machucá-lo. Por favor, pára. Eu sou seu
amigo. Eu gosto de você.”
Ele havia dito aquilo! Aquelas palavras caíram sobre mim
como água gelada. Ele havia falado exatamente da maneira como Davi Wilkerson
fizera. Relaxei a pressão sobre o furador de gelo e ele arrancou-o da minha
mão. Eu nunca vira Israel chorar. Por que chorava agora?
Ficou com o furador de gelo suspenso sobre o meu rosto.
Agarrava-o com tanta força que os nós dos seus dedos surgiam brancos na
penumbra. Estava trêmulo pela tensão muscular. Por um momento pensei que ia
golpear-me na cabeça com o furador, mas depois atirou-o raivosamente para um
lado. Ainda estava chorando quando me soltou e jogou-se na cama.
Eu rolei no chão, frustrado, confuso e exausto. O que havia
de errado comigo ? Tentara matar o meu melhor amigo !
Fugi do quarto e subi os degraus que levavam ao telhado do
edifício. Lá fora estava escuro e abafado. Cruzei a laje dirigindo-me para o
lugar onde o velho Gonzales guardava as suas pombas em uma gaiola. Abri a
gaiola e peguei uma pomba. As outras esvoaçaram, debateram-se, e fugiram na
noite.
Segurei a pomba bem apertada contra o meu peito nu,
dirigi-me para perto do tubo de ar, e sentei-me.
Pássaros! Eu os odiava. Tão livres! Ó, Deus, como eu odiava
os que eram livres. Davi Wilkerson era livre. Israel aproximava-se da
liberdade. Eu estava sentindo isso. Aquele pássaro era livre, mas eu estava
preso na minha gaiola de ódios e temores.
Meus dedos se apertaram em torno da cabeça da pomba,
esticando-lhe o pescoço. “Não estou com medo.”
O pássaro deu um piado curto e abafado e senti seu corpo
tremer, quando os ossos do pescoço se separaram. “Veja, mãe,
eu não estou com medo.”
Perdi o controle. Torci-lhe o pescoço para diante e para
trás, até que senti a pele e os ossos se separarem; depois, com um forte
repelão, separei completamente a cabeça do corpo.
O sangue quente jorrou nas minhas mãos, pingou nos meus
joelhos e correu pela laje de concreto. Mirei a cabeça ensangüentada na minha
mão, e gritei: “Agora, você não está livre. Ninguém é livre.”
Atirando longe a cabeça da pomba, esmaguei contra a laje, o
corpo ainda trêmulo. Por fim, aquele passarinho danado estava morto; nunca
mais assombraria meus sonhos.
Fiquei no telhado, dormindo e acordando intermitentemente.
Cada vez que dormia, o pesadelo voltava, mais
horrível do que antes. Ao
amanhecer, voltei para meu quarto. Israel se fora.
Passei a maior parte do dia seguinte procurando-o.
Finalmente encontrei-o sentado sozinho no porão onde realizávamos as nossas “festinhas”.
Todos os outros rapazes haviam ido a Coney Island.
“Ei, cara, desculpe pelo que aconteceu ontem à noite”,
comecei.
“Esqueça”, respondeu Israel com um sorriso amarelo.
“Não, cara, eu sinto mesmo. Não costumo fazer isso. Acho que
alguma coisa está errada comigo.”
Israel levantou-se e fingiu dar-me um soco no queixo. “Certo,
meu chapa; somos iguais — malucos.”
Passei o resto da tarde com ele. Era a primeira vez em três
anos que eu não ia a Coney Island no dia quatro de julho.
Durante a segunda semana de julho de 1958, Israel me
procurou e falou a respeito da grande reunião que Davi Wilkerson iria realizar
na Arena St. Nicholas. De fato, ele viera conversar com Israel e convidar os
Mau-Maus para a reunião. Haveria um ônibus especial para nós, defronte ao Posto
Policial n.° 67, e teríamos assentos reservados nos primeiros bancos do
auditório. Israel dissera a Davi Wilkerson que levaria os Mau-Maus.
Meneei a cabeça e comecei a subir os degraus do prédio do
meu apartamento. Eu não queria nada com aquilo. Ondas de terror começaram a
rolar sobre mim, novamente, e senti-me tão sufocado que tinha dificuldade de
falar.
“Ei, cara”, chamou Israel quando voltei-me para sair, “você
não é covarde, é?”
Israel me atingira na única falha da minha armadura — meu
único ponto fraco. Voltei-me para ele: “Nicky não tem medo de ninguém... nem daquele
pregadorzinho... nem de você... nem mesmo de Deus.”
Israel ficou ali com um pequeno sorriso brincando no seu
rosto simpático. “Parece que você está com
medo de alguma coisa. Então,
por que não quer ir?”
Lembrei de Buck e Stage ajoelhados na calçada, diante da
escola. Tinha certeza de que se aquilo podia acontecer a eles... A única coisa
que eu sabia era fugir — continuar fugindo. Mas, correr agora, em face do
desafio de Israel, daria a impressão de que estava com medo. Com medo mesmo.
“A que horas chega o ônibus?” perguntei.
“Sete da noite”, respondeu Israel. “A reunião começa às sete
e trinta. Você vai ?”
“Claro, meu chapa ! Você pensa que sou covarde ? Vamos
levar a turma toda lá e pôr fogo naquela espelunca.”
Israel sorriu e desceu rua abaixo, gingando. Virei-me e
subi os degraus em direção ao meu apartamento, três andares acima. Sentia-me
doente.
Fechei a porta atrás de mim, e joguei-me de costas na cama.
Procurei um “pacau”. Quem sabe se a maconha ajudaria. Não tinha nenhum, por
isso fumei um cigarro comum.
Os pensamentos inundaram minha mente, como a água correndo
por uma comporta que transborda. Estava aterrorizado! O cigarro tremeu e as
cinzas caíram na minha camisa, indo parar sobre os lençóis sujos da cama.
Tinha medo de pegar aquele ônibus. Detestava a idéia de abandonar nossos domínios.
Só de pensar em sair dos acanhados limites do território com que estava
familiarizado, um terror desmedido nascia no meu coração. Tinha medo de me
encontrar em meio a uma grande multidão, de ser engolido por ela e me tornar
uma bolha — nada. Sabia que, na arena, teria de fazer algo para chamar a
atenção sobre mim.
Acima de tudo, porém, eu estava com medo do que vira diante
da escola, aquele dia. Tinha medo de que alguém ou alguma coisa maior e mais poderosa
do que eu me forçasse a cair de joelhos diante do povo e me fizesse chorar.
Tinha verdadeiro horror de
lágrimas. Elas simbolizavam
fraqueza, fracasso, estupidez e criancice. Eu nunca mais chorara depois
dos oito anos de idade. Algo fizera Israel chorar. Mas, eu — nunca.
Mas, se eu não fosse, seria chamado de covarde por Israel e
pelo resto da turma. Eu não tinha escolha.
Fazia muito calor naquela noite de julho, em que lotamos um
ônibus. Havia dois homens de terno e gravata, que deviam manter a ordem. Mas
nada conseguiram. O barulho no ônibus era ensurdecedor.
Eu me senti melhor por estar no meio da minha gang. Era a
solidão do meu quarto que me deprimia. No ônibus era diferente. Mais de
cinqüenta Mau-Maus estavam comprimidos dentro dele. Os monitores, aflitos,
tentaram manter a ordem, mas finalmente desistiram e nos deixaram à vontade. A
turma ficou se esmurrando, gritando palavrões, abrindo janelas, fumando,
bebendo vinho, puxando a campainha, e gritando para o ônibus partir.
Quando chegamos à Arena, abrimos a porta de emergência e
alguns chegaram mesmo a pular pelas janelas. Havia várias mocinhas na frente do
prédio, usando blusas justas e “shorts”. De todos os lados ouviam-se gritos
como : “Ei, boneca, me dá um pedaço? “Venha comigo, vamos fazer uma “festinha”
divertida”. Algumas das meninas juntaram-se a nós, quando entramos.
Israel e eu fomos à frente da tropa. Um porteiro tentou
fazer-nos parar na porta interior. Podíamos ver que, lá dentro, pessoas se
voltavam e olhavam para nós, quando irrompemos no saguão.
“Ei, cara, deixa a gente entrar!” disse Israel. “Nós somos a
gang. Os Mau-Maus. O próprio padre nos convidou. Tem lugar reservado para nós.”
Lá na frente, um membro dos Chaplains nos viu, levantou-se e
gritou : “Ei, Nicky, desce aqui, cara. Estes lugares são para vocês.”
Empurramos o indeciso e espantado porteiro para um lado, e entramos
empavonados na Arena.
Estávamos vestidos com os nossos uniformes de Mau-Mau.
Nenhum de nós tirou o chapéu preto. Desfilamos pelo corredor abaixo, batendo
forte no assoalho com nossas bengalas, gritando e assobiando para a multidão.
Olhando para o povo, pude ver membros de quadrilhas rivais.
Havia Bishops, GGI, bem como alguns Phantom Lords do parque da Av. Bedford. A
arena estava quase cheia e continha todos os ingredientes para um conflito em
grande escala. Afinal de contas, isso não seria mau.
O barulho era terrível. Sentamos e começamos a participar,
assobiando, gritando e batendo com as bengalas no chão.
Em um dos lados da plataforma, uma jovem começou a tocar o
órgão. Um jovem porto-riquenho levantou-se, deu um murro no peito com as duas
mãos, jogou a cabeça para trás e gritou : “Ó, Jesu-u-us ! Salve a minha alma
grande e encardida.” Caiu de novo na cadeira entre vaias e gargalhadas
estrondosas de todas as quadrilhas.
Vários rapazes e moças foram para perto do órgão e
começaram a requebrar. As meninas bamboleavam as cadeiras num ritmo duas vezes
mais rápido do que a música, e os rapazes gingavam ao redor delas. Aplausos e
gritos de aprovação saudaram a sua proeza. As coisas estavam começando a sair
dos limites.
De repente, uma jovem dirigiu-se ao centro do palco.
Colocou-se atrás do microfone, as mãos unidas diante de si, esperando o barulho
diminuir.
Aumentou. “Ei, boneca, requebra um pouco mais”, gritou
alguém. “Vamos marcar um encontro, querida ?” Um rapaz magro, que eu nunca
tinha visto, levantou-se, fechou os olhos, estendeu os braços, e disse, num
tom efeminado : “Mamãe!” A turba aumentou os aplausos e assobios.
A moça começou a cantar. Mesmo de nossa posição
privilegiada, na terceira fileira, era impossível ouvir a sua voz acima da
balbúrdia em que estava a multidão. Enquanto ela cantava, vários rapazes e
garotas levantaram-se de seus lugares e começaram a girar e a dançar. As
garotas, com “shorts” bem curtos, e os rapazes com jaquetas Mau Mau, sapatos
pontudos e chapéus de ponta, cobertos de fósforos e com uma estrela prateada na
frente.
A moça terminou o seu cântico e olhou nervosamente em
direção aos bastidores. Começamos a aclamar e aplaudir e pedir outra canção.
Contudo, ela saiu do palco e de repente o pregador magricela avançou para o
microfone.
Eu não o vira desde aquele encontro de madrugada, várias
semanas antes. Meu coração deu um salto e o terror voltou, como a inundá-lo.
Era como uma nuvem negra que penetrava em todos os recantos da minha
personalidade. Israel estava de pé. “Ei, Davi! Estou aqui. Veja, eu disse que
viria. E olhe quem está aqui”, disse ele, apontando para mim.
Eu sabia que tinha de fazer algo ou iria arrebentar de
medo. Fiquei de pé e gritei: “Ei, pregador, o que é que você vai fazer:
converter-nos, ou o quê ?”
Os Mau-Maus acompanharam em gargalhadas e eu me sentei de
novo, sentindo-me melhor. Eles ainda reconheciam a minha autoridade. Apesar de
sentir-me petrificado de terror e ter abdicado a presidência em favor de
Israel, ainda era o líder deles e ainda riam das minhas piadas. Estava de novo
no controle da situação.
O Rev. Wilkerson começou a falar: “Esta é a última noite de
nossa campanha para a mocidade de Nova York. Hoje vamos fazer uma coisa
diferente. Vou pedir aos meus amigos, os Mau-Maus, para tirarem a coleta.”
Irrompeu o pandemônio. Os membros de todas as quadrilhas
presentes no auditório conheciam a nossa reputação. Pedir aos Mau-Maus para
tirarem a coleta era como pedir que Jack, o Estripador, servisse de ama-seca. O
pessoal começou a rir e a gritar.
Mas eu estava de pé em um segundo. Estivera esperando uma
oportunidade para me mostrar, para chamar a atenção de todos sobre mim, de
maneira espetacular. Chegara a hora. Não podia imaginar que o pregador iria
chamar-nos, mas se ele queria, nós realmente o faríamos.
Indiquei outros cinco, inclusive Israel. “Você, você, você..
vamos.” Nós seis marchamos para a frente e nos alinhamos defronte ao palco.
Atrás de nós o auditório ficou em silêncio — silêncio mortal.
Davi Wilkerson curvou-se e entregou a cada um de nós uma
grande caixa de papelão. “Agora”, disse, “quero que vocês se enfileirem aqui
diante da plataforma. O órgão vai tocar e vou pedir ao povo para vir à frente
e dar a sua oferta. Quando terminar, quero que vocês dêem a volta por aquela
cortina e subam ao palco. Eu esperarei até que tragam a coleta.”
Era bom demais para ser verdade. Ninguém duvidava do que
iríamos fazer. Qualquer sujeito que não aproveitasse uma situação daquelas
seria um bobo.
A coleta foi grande. Os corredores estavam cheios de gente
que se dirigia à frente. Muitos dos adultos deram notas grandes e outros deram
cheques. Se nós íamos receber a oferta, eu resolvi que ela deveria ser bem boa.
Alguns dos membros das quadrilhas vieram à frente, requebrando e dançando pelo
corredor. Alguns não pretendiam por dinheiro na caixa, mas tirar. Quando isto
acontecia, eu punha a mão no bolso como se fosse agarrar uma faca e dizia: “Ei,
espere um minuto, meu chapa. Você se esqueceu de pôr alguma coisa.”
Eles começavam a rir, até perceberem que eu falava sério. “Rapaz,
o padre disse : dê! Você vai dar, ou preciso fazer com que os rapazes o tirem
de você ?”
Quase todos fizeram alguma contribuição.
Quando todos tinham vindo à frente, acenei com a cabeça e
nós marchamos pelo lado direito do auditório, atravessando a cortina que
cobria a parede. Bem sobre as nossas cabeças estava um letreiro enorme, em
letras vermelhas, escrito : “SAÍDA” Podia ser visto por todos, e tão logo
desaparecemos por detrás das cortinas, as gargalhadas começaram. No começo eram
apenas risinhos reprimidos. Pouco a pouco, começamos a ouvi-los aumentarem num
crescendo, até que todo o auditório estava contorcendo-se de rir do pobre
pregador que fora logrado pelos Mau-Maus.
Reunimo-nos em círculo, atrás da cortina. Os rapazes
olharam para mim com grande expectativa, esperando que eu lhes dissesse o que
fazer. Eu podia dizê-lo com os olhos. Estavam esperando um sinal. um piscar de
olhos em direção à saída, o que significaria : “Vamos correr. Vamos pegar este
dinheiro e desaparecer daqui.”
Todavia, algo dentro de mim estava me arrastando em outra
direção. O pregador me escolhera e demonstrara confiança na minha pessoa. Eu
podia fazer o que a turba esperava de mim, ou o que ele esperava que eu
fizesse. A confiança do pregador acendeu uma faísca em meu íntimo. Em vez de
piscar os olhos em direção da porta de saída, sacudi a cabeça: “Não. Venham”,
disse eu. “Vamos levar este saque para o magricela.”
Os rapazes quase não acreditavam, mas tinham de fazer o que
eu lhes ordenava. Havia dois rapazes na minha frente, quando começamos a subir
os degraus por trás da plataforma. Um deles tirou uma nota de vinte da caixa e
meteu-a no bolso da jaqueta.
“Ei, você! Que diacho pensa que está fazendo ? Devolva esse
dinheiro. Pertence ao padre.”
Eles olharam para
mim, incrédulos.
“Ei, Nicky, não fique nervoso. Veja que monte. Ninguém vai
ficar sabendo... Vamos! Há bastante para todos nós e para ele também.”
Meti a mão no bolso e num movimento rápido saquei a minha
faca. Brandindo a lâmina aberta, disse: “Meu chapa, isto vai ser seu
cemitério, se você não devolver a gaita.”
Não houve mais discussão. Ele devolveu humildemente, à
caixa, a nota roubada.
“Espera um minuto; ainda não terminou”, disse eu. “Quanto
dinheiro você tem no bolso, meninão?”
“Ora, Nicky, puxa vida”, gaguejou ele. “Este dinheiro é
meu. Minha mãe me deu para comprar uma calça.”
“Quanto?” perguntei de novo, apontando a ponta brilhante da
faca para o seu pomo de Adão.
Ele ficou vermelho, enfiou a mão no bolso e tirou duas
notas de dez e uma de cinco. Eu disse: “Na caixa.”
“Meu chapa, você está louco, ou o quê? Minha velha vai me
pelar vivo, se eu perder este dinheiro.” Ele estava quase chorando.
“Bem, eu vou lhe dizer uma coisa, meninão: eu vou te pelar
vivo agora mesmo, se você não obedecer. Na caixa !”
Ele olhou para mim outra vez, com incredulidade. O punhal
convenceu-o de que falava sério. Amassou as notas e atirou-as na caixa.
“Agora vamos”, disse eu.
Marchamos em fila para o palco. Um grupo de rapazes começou
a vaiar. Pensavam que nós iríamos enganar o pregador e estavam decepcionados
porque não tínhamos fugido com o dinheiro, como teriam feito. Porém, tive a
sensação agradável de saber que fizera uma coisa certa. Uma coisa honrada. Pela
primeira vez em toda a minha vida, agira corretamente porque quisera. A
sensação era deliciosa.
“Aqui, pregador!” disse eu, “isto é seu.” Estava nervoso,
ali na frente da multidão. Quando estendi a ele o dinheiro, o auditório ficou
silencioso outra vez.
Davi Wilkerson pegou as caixas de nossas mãos e me olhou bem
nos olhos. “Obrigado, Nicky. Eu sabia que podia contar com você.” Viramos e,
em fila, voltamos para nossos lugares. O auditório estava tão quieto que se
poderia ouvir um alfinete cair. O Rev. Wilkerson começou a pregar.
Falou durante cerca de quinze minutos. Todo mundo estava em
silêncio, mas eu não ouvi palavra. Fiquei lembrando a sensação agradável que
tivera quando lhe entregara o dinheiro. Interiormente, eu me reprovava por não
ter caído fora com a grana. Mas algo adquirira vida dentro de mim e eu sentia
que aquilo crescia. Era uma sensação de bondade — de nobreza — de justiça.
Sentimentos que eu jamais experimentara.
Fui interrompido na minha sucessão de pensamentos por uma
desordem atrás de mim. Davi chegara a um ponto do sermão em que dizia que devemos
amar uns aos outros. Ele estava dizendo que os porto-riquenhos devem amar os
italianos, os italianos devem amar os negros, os negros devem amar os brancos,
e todos devemos amar-nos uns aos outros.
Augie levantou-se por trás de mim : “Ei, pregador, você é
maluco, ou coisa parecida. Você quer que eu ame esses gringos? Está louco! Olhe
aqui.” Levantou a camisa e mostrou uma grande cicatriz vermelha no seu lado. “Há
dois meses um daqueles guinéus sujos me deu um tiro. Você acha que posso
esquecer disto ? Eu vou matar aquele... se eu o encontrar outra vez.”
“Ah, é ?” um rapaz dentre os italianos levantou-se de um
salto e abriu a camisa. “Está vendo isto ?” Apontou uma cicatriz de faca que
dava uma volta no seu ombro e descia pelo peito. “Um negro me cortou com uma
navalha. Sim, eu vou amá-los — com um pau de fogo.”
Um negrinho levantou-se, lá no fundo, e, com veneno na voz,
gritou: “Ei, guinéu, você quer experimentar agora?”
De uma hora para outra, a sala estava carregada de ódio. Um
rapaz negro, dos Chaplains, levantou-se derrubando cadeiras. Tentava abrir
caminho para o lugar onde se achavam os Phantom Lords. Senti que um tumulto generalizado
estava se formando.
Um fotógrafo desceu pelo corredor com a máquina
fotográfica. Parando na frente, virou-se e começou a tirar fotos.
Israel dirigiu-se rapidamente a três dos rapazes que estavam
na ponta da fileir : “Agarrem-no !” Eles levantaram-se e entraram em luta
corpo-a-corpo com o fotógrafo. Um dos rapazes conseguiu arrancar-lhe a máquina
das mãos e atirou-a no assoalho. Quando o fotógrafo se curvou para apanhá-la,
um rapaz do outro lado chutou-a corredor abaixo, até a frente do salão. O
fotógrafo arrastou-se de gatinhas atrás dela. No momento em que estendeu uma
das mãos para apanhá-la, outro rapaz chutou a para longe dele, em direção à
parede, do outro lado. O fotógrafo já estava de pé, correndo atrás da máquina,
mas antes que pudesse alcançá-la, outro rapaz chutou-a com força: ela deslizou
pelo chão e foi espatifar-se na parede de concreto — quebrada e inútil.
Todos estávamos de pé. O auditório fervia de ódio. Eu
procurava um meio de sair para o corredor. Um “quebra-pau” em grande escala
estava se formando.
De repente, senti uma necessidade imperiosa de olhar para
Davi Wilkerson. Ele estava de pé no palco, muito calmo. A cabeça curvada. As
mãos cruzadas diante do peito. Eu podia ver seus lábios se movendo. Sabia que
orava.
Algo apertou o meu coração. Parei e olhei para mim mesmo. Ao
meu redor, a baderna continuava, mas eu estava olhando para dentro. Ali estava
aquele homem franzino, corajoso, no meio de todo aquele perigo. De onde ele
recebia esse poder? Por que não tinha medo, como todos nós ? Senti-me envergonhado.
Culpado.
A única coisa que eu sabia acerca de Deus era o que
aprendera ao observar aquele homem. Pensei em minha única experiência anterior
a respeito de Deus. Quando eu era criança, meus pais haviam me levado à igreja.
Estava cheia de gente. O padre mastigou algumas palavras e o povo respondeu
cantando. Foi uma hora horrível. Nada parecia aplicar-se a mim. Nunca mais
voltei.
Caí sentado na minha cadeira. Ao redor, o pandemônio
continuava. Israel levantou-se e olhou para trás. Começou a gritar: “Ei! Calma!
Vamos ouvir o que o pregador tem a dizer.”
Os Mau-Maus se sentaram. Israel continuou gritando, pedindo
silêncio. O barulho arrefeceu. Como um nevoeiro vindo do mar, o silêncio
invadiu o auditório, da frente para o fundo, e depois as galerias. Outra vez
um silêncio mortal dominou o salão.
Alguma coisa estava acontecendo comigo. Estava recordando...
Recordei a minha infância — o ódio que dedicava à minha mãe. Recordei os
primeiros dias em Nova York, quando corria como um animal selvagem libertado de
uma jaula. Foi como se estivesse em um cinema e as minhas ações fossem passando
diante dos meus olhos. Vi as garotas... o desejo... o sexo. Vi as facadas... a
dor... o ódio. Era quase insuportável. Estava completamente insensível ao que
se passava ao meu redor. A única coisa que conseguia era recordar... Quanto
mais eu recordava, maior era o sentimento de culpa e vergonha. Tinha medo de
abrir os olhos, temendo que alguém pudesse olhar dentro deles e ver o que eu
estava vendo. Era repulsivo.
Davi Wilkerson falava outra vez. Disse algo sobre
arrependimento de pecados. Eu me achava sob a influência de um poder um milhão
de vezes mais forte do que qualquer droga. Não era responsável por meus
movimentos, minhas ações ou palavras. Era como se tivesse sido apanhado por uma
correnteza selvagem, em um rio turbulento. Não tinha forças para resistir. Não
compreendia o que estava acontecendo dentro de mim. Só sabia que o medo desaparecera.
Ao meu lado, ouvi Israel assoando o nariz. Atrás de mim,
ouvi gente chorando. Algo estava varrendo aquela arena lotada, como o vento que
balança as copas das árvores. Até as cortinas, dos lados do auditório,
começaram a mover-se e a farfalhar como se animadas por um sopro misterioso.
Davi Wilkerson dizia: “Ele está aqui! Ele está nesta sala.
Ele veio especialmente para vocês. Se querem que suas vidas sejam
transformadas, este é o momento exato.” Exclamou então com autoridade : “Levantem
se ! Os que desejam receber Jesus Cristo e ser transformados — levantem-se!
Venham à frente!”
Percebi que Israel ficou de pé. “Rapazes, eu estou indo.
Quem vai comigo ?”
Eu estava de pé. Virei-me para a minha quadrilha e acenei
com o braço : “Vamos.” Houve um movimento espontâneo: levantaram-se e foram à
frente. Mais de vinte e cinco dos Mau-Maus atenderam ao apelo. Atrás de nós,
cerca de trinta rapazes de outras quadrilhas seguiram o nosso exemplo.
Reunimo-nos de pé diante do palco, olhando para Davi, lá em
cima. Ele terminou a reunião e convidou-nos para segui-lo para as salas do
fundo, onde receberíamos conselhos.
Israel ia à minha frente, com a cabeça curvada, o lenço no
rosto. Atravessamos a porta e encontramo-nos em um vestíbulo que levava aos
camarins.
Vários membros da minha quadrilha estavam ali no vestíbulo,
dando risadinhas: “Ei, Nicky, o que é que há, cara, você virou crente ?”
Levantei a cabeça, na hora em que uma das meninas dirigiu-se a nós. Ela
levantou a blusa e mostrou-nos o seio nu. “Se você for lá, meu bem, pode dizer
adeus para isto aqui.”
Compreendo agora que elas estavam com ciúme. Sentiam que
íamos repartir nosso amor com Deus e queriam que o déssemos só a elas. Era tudo
o que sabiam acerca do amor. Era tudo o que eu também conhecia do amor. Mas,
naquela hora, aquilo não me atraiu. Empurrei-a para longe, cuspindo no chão, e
disse: “Você me enoja.” Nada mais importava naquele momento, exceto o fato de
que eu desejava ser seguidor de Jesus Cristo — fosse ele quem fosse.
Um homem falou a respeito da vida cristã. E, então, Davi
Wilkerson entrou: “O.K., rapazes”, disse, “ajoelhem aqui no chão.”
Pensei que ele estava louco. Eu nunca me ajoelhara diante
de ninguém. Mas uma força invisível me pressionou. Senti meus joelhos dobrarem.
Não consegui permanecer em pé. Foi como se uma gigantesca mão estivesse me
empurrando para baixo, até meus joelhos tocarem o solo.
O contato com o chão duro me trouxe de volta à realidade.
Era verão. Era época dos “quebra-paus”. Abri os olhos e pensei: “O que você
está fazendo aqui?” Israel estava ao meu lado, chorando alto. No meio de toda
aquela tensão, comecei a rir.
“Ei, Israel, você está me enchendo com esse choro.” Israel
olhou para cima e sorriu entre lágrimas. Mas, quando olhamos um para o outro,
eu tive uma estranha sensação. Senti lágrimas encherem os meus olhos, e dali a
pouco elas transbordaram pelos cantos dos olhos e desceram pelas minhas faces.
Eu estava chorando... Pela primeira vez, desde que chorara à vontade no porão
da casa em Porto Rico, eu estava chorando.
Israel e eu estávamos de joelhos, lado a lado, com lágrimas
correndo pela face, mas rindo ao mesmo tempo. Era um sentimento estranho,
indescritível.
Lágrimas e risos... Eu me sentia feliz, mas chorava. Algo
estava acontecendo em minha vida, sobre o qual eu absolutamente não tinha
controle... e aquilo me trazia felicidade.
De repente, senti a mão de Davi Wilkerson sobre a minha
cabeça. Ele orava por mim. As lágrimas correram mais livremente quando baixei
a cabeça, e a vergonha, o arrependimento, e a maravilhosa alegria da salvação
misturaram-se em minha alma.
“Continue, Nicky”, disse ele. “Continue chorando. Derrame a
sua alma diante de Deus. Clame a ele.” Abri a boca, mas as palavras que saíram
não eram minhas. “Ó Deus, se você me ama, vem para a minha vida. Estou cansado
de fugir. Vem transformar minha vida. Por favor, transforma-me.”
Foi só isso. Mas senti-me envolvido e levado para o céu.
Maconha ! Sexo ! Sangue! Todas as emoções sádicas e imorais
de um milhão de vidas juntas não podiam igualar-se ao que eu sentia. Fui
literalmente batizado com amor.
Depois que a crise emocional passou, Davi Wilkerson
mencionou alguns versículos da Escritura para nós: “Se alguém está em Cristo, é
nova criatura: as coisas antigas já passaram: eis que se fizeram novas.” (II Cor. 5:17.)
Era isto mesmo. Pela primeira vez na vida eu compreendia. Eu
fora renovado. Eu era Nicky, mas não era mais Nicky. A velha vida havia
desaparecido. Era como se eu tivesse morrido para a velha vida — mas estava
vivo, em uma vida nova.
Felicidade. Alegria. Gozo. Alívio. Liberdade. Maravilhosa,
maravilhosa liberdade.
Eu parara de fugir.
Todos os meus temores tinham findado. Toda a minha ansiedade
terminara. Todo o meu ódio se fora. Eu amava a Deus... a Jesus Cristo... e a
todas as pessoas ao meu redor. Amava até a mim mesmo. O ódio que sentira por
mim mesmo transformara-se em amor. De repente, compreendi que a razão pela qual
eu procedera de forma tão mesquinha em relação à minha pessoa, era porque eu
realmente não amava a mim mesmo como Deus queria que amasse.
Israel e eu nos abraçamos. Lágrimas nos corriam pelo rosto,
molhando a camisa um do outro. Eu o amava. Ele era meu irmão.
Davi Wilkerson saíra, mas já estava de volta à sala. Eu o
amava também. Aquele pregador franzino e sorridente em quem eu cuspira semanas
atrás — eu o amava.
“Nicky, Israel”, disse ele, “quero dar uma Bíblia a vocês.
Tenho bíblias para todos os outros Maus também. Venham comigo.”
Nós o seguimos até outra sala. Ali, em caixas que estavam no
chão, havia exemplares do livro preto. Ele se curvou, pegou alguns novos
testamentos, tamanho de bolso, e começou a nos dar. “Ei, Davi”, perguntei, “e
aqueles livros grandes? Nós poderíamos ganhar dos grandes ? Queremos que todo
mundo saiba que agora somos cristãos “
Davi pareceu surpreso. Os “livros grandes” eram exatamente
isso. Eram bíblias enormes, de púlpito. Mas, os rapazes queriam aquelas e ele
estava disposto a dá-las.
“Menino”, disse Israel rindo para mim, “que tal ? Uma Bíblia
de dez quilos!” Eu também achava, mas o peso dela era pequeno em comparação com
o peso tirado do meu coração naquela noite, quando o pecado fora removido e o
amor inundara.
Tarde da noite, subi os degraus para o meu quarto, como uma
nova pessoa. Eram pouco mais de onze horas, o que para mim era cedo, mas eu
estava ansioso para voltar ao meu quarto. Não havia mais necessidade de
correr. As ruas não tinham mais atrativo para mim. Não sentia mais necessidade
de ser reconhecido como chefe de gang. Não tinha mais medo da noite.
Entrei, dirigi-me ao guarda-roupa, tirei o blusão Mau-Mau e
os sapatos pontudos e coloquei-os em uma sacola. “Nunca mais”, pensei. “Não vou
precisar mais disso.” Estendi a mão para a prateleira e tirei o revólver. Por
força do hábito, comecei a por as balas no tambor, para dormir com o revólver
no criado-mudo. Porém, de repente, lembrei. Jesus me ama. Ele me protegerá.
Tirei as balas, coloquei-as de volta na caixinha e devolvi o revólver à
prateleira. De manhã, iria entregá-lo à polícia.
Passei pelo espelho. Não podia crer nos meus olhos. Havia
uma luz radiosa em minha face, que jamais vira. Sorri para mim mesmo. “Ei,
Nicky, veja como você é simpático. Pena que tenha de desistir de todas as
garotas, agora que é tão simpático.” Dei uma gargalhada, diante da ironia de
tudo aquilo. Mas estava feliz. O peso dos temores se fora. Podia rir.
Ajoelhei-me ao lado da cama, e joguei a cabeça para trás. “Jesus...”
não pude dizer mais nada. “Jesus...” Finalmente vieram as palavras. “Obrigado,
Jesus... obrigado.”
Naquela noite, pela primeira vez, ao que me lembrava, pus a
cabeça no travesseiro e dormi maravilhosamente durante nove horas. Nada de
rolar na cama. Nenhum medo de ruídos fora do quarto. Os pesadelos tinham
terminado.