Capítulo 9
NA FOSSA
TRÊS DIAS ANTES DA Páscoa, eu e mais três de nosso grupo
estávamos na esquina das Ruas Auburn e St. Edward, defronte à Igreja St. Edward
e St. Michael. Sabíamos que os padres recebiam muito dinheiro durante as
missas especiais da semana santa, e estávamos planejando entrar na igreja.
Um policial saiu do Distrito, atravessou a rua e viu-nos
encostados na grade de ferro que rodeia a igreja. Aproximou-se de nós e disse: “Caiam
fora, seus porto-riquenhos porcos.” Ficamos ali, abraçando a grade,
contemplando-o com olhos inexpressivos .
O guarda repetiu: “Vagabundos, já disse que caiam fora!” Os
outros rapazes se espalharam mas eu não me movi. O guarda olhou-me fixamente: “Eu
disse mexa-se, vagabundo; então, vá circulando.” Levantou o cassetete, como se
fosse me bater.
Cuspi nele. Brandiu o cassetete em minha direção, mas eu me
baixei, e este foi atingir a grade. Investi contra o policial, e ele me agarrou
pelo pescoço. Era duas vezes maior do
que eu, mas eu o mataria, se pudesse. Procurei apanhar a faca, quando percebi
que ele abriu o coldre e estava tentando tirar o revólver, ao mesmo tempo que
gritava, pedindo socorro.
Afastei-me depressa e levantei as mãos. “Eu me entrego! Eu me
entrego!”
Vários policiais derramaram-se pela porta do Distrito, e
atravessaram a rua correndo. Agarraram-me e arrastaram-me para a Delegacia,
fazendo-me subir os degraus e entrar no prédio.
O guarda que lutara comigo bateu com força no meu rosto.
Senti na boca o sangue que saía dos lábios.
“Você é um valentão quando está armado, mas por dentro é um covarde
como todo o resto desses tiras sujos”,
disse eu.
Ele me bateu outra vez; fingi que desmaiava e caí no chão.
“Levante-se, porco imundo. Desta vez vamos ajustar as contas com você.”
Enquanto eles me arrastavam para outra sala, ouvi o sargento
escrevente murmurar : “Acho que esse cara é louco. Deve ficar preso até mofar,
antes que mate alguém.”
Eu já fora preso muitas vezes, mas eles nunca conseguiram me
segurar por muito tempo. Ninguém testemunhara contra mim, porque sabia que
quando eu saísse da cadeia haveria de matá-lo, ou os Mau-Maus matariam para
mim.
Dessa vez eles me levaram para o outro lado da cidade, e
colocaram-me em uma cela. O carcereiro deu-me um empurrão, quando entrei na
cela. Virei-me e arremeti contra ele dando socos. O homem puxou-me para o
corredor, e outro guarda me segurou, enquanto
ele me esmurrava à vontade.
“A única maneira de tratar esses p... é bater neles até
matá-los”, disse ele. “São uma súcia de porcos sujos e fedorentos. A cadeia
está cheia de negros, italianos e
porto-riquenhos. Você é
igualzinho ao resto, e se não entrar na linha, vai acabar desejando que estivesse morto.”
Empurraram-me de novo para a cela, e eu caí no chão duro,
dirigindo-lhes palavrões. “Está bom, vagabundo”, disse o carcereiro ao fechar a
porta da cela, “por que você não se levanta e briga conosco agora? Você não é
tão durão?” Mordi os lábios e não respondi, mas sabia que iria matá-lo
quando saísse.
No dia seguinte
o carcereiro voltou à minha cela. Quando abriu a porta,
joguei-me de novo contra ele, empurrando-o de volta para o corredor. Ele me
bateu na cabeça com o molho de chaves. Senti o sangue correr de um corte no
supercílio.
“Vamos, pode bater em mim”, gritei, “mas um dia vou à sua
casa e mato a sua mulher e seus filhos.
Espere para ver.”
Eu estava sendo acusado apenas de uma pequena contravenção,
por ter resistido à prisão e desobedecido à autoridade. Mas estava piorando a
minha própria situação. O carcereiro me deu um soco, jogando-me de costas no
chão da cela, e fechou a porta.
“Pois bem, cachorro, você pode apodrecer aí!” Meu julgamento
foi na semana seguinte. Fui algemado e marchei para o tribunal. Sentei-me em uma cadeira, e um policial
começou a ler as acusações.
O juiz, um homem de rosto severo, de cerca de cinqüenta
anos, que usava óculos sem aro, disse. “Espere um minuto: este rapaz já não
esteve no banco dos réus?”
“Sim, meritíssimo”,
respondeu o policial, “esta é a terceira vez que ele é trazido ao tribunal.
Além disto, ele tem vinte e uma prisões na sua folha corrida, e tem sido
acusado de tudo, desde roubo até assalto a mão armada e tentativa de homicídio.”
O juiz virou-se
e olhou para
mim: “Quantos anos você tem,
rapaz?”
Curvei-me na cadeira e fixei os olhos no chão.
“Levante-se quando eu falar com você!” explodiu o juiz.
Fiquei de pé e olhei
para ele
“Perguntei quantos anos você tem”, repetiu ele firmemente
“Dezoito”, respondi.
“Você tem dezoito anos e já foi preso vinte e uma vezes e já
compareceu ao banco dos réus três vezes.
Por que seus pais não vieram com você?”
“Eles estão em Porto
Rico”, respondi.
“Com quem você vive?”
“Com ninguém. Não preciso de ninguém. Vivo sozinho.”
“Há quanto tempo
vive sozinho?”
“Desde quando cheguei a Nova York, há três anos atrás.”
“Meritíssimo”, interrompeu o oficial de justiça, “ele não
presta. É o presidente dos Mau-Maus. É o centro de todos os problemas que temos
tido no conjunto habitacional. Nunca vimos um rapaz tão malvado e incorrigível
como este. É como um animal, e a única coisa que se pode fazer com um cachorro
louco é enjaulá-lo. Gostaria de recomendar, meritíssimo, que Vossa Exª. o
colocasse na prisão até que ele completasse vinte e um anos. Quem sabe se até
então poderíamos manter um pouco de ordem
em Fort Greene.”
O juiz virou-se e olhou para o oficial de justiça:
“Você diz que ele é como um animal, não é? Um cachorro
louco, não é assim ?”
“Exatamente, meritíssimo.
E se V. Exª.,
soltá-lo, ele matará alguém antes do escurecer.”
“Sim, creio que você
tem razão”, disse o juiz, olhando para mim outra vez “Mas penso que precisamos pelo menos tentar
descobrir o que é que
faz com que ele seja como um animal. Por
que é tão depravado? Por que odeia, rouba, briga e mata? Centenas de rapazes como ele passam pelos tribunais todos os dias, e creio
que o Estado, tem, por assim dizer, uma obrigação de tentar salvar alguns
destes rapazes. Não apenas trancá-los pelo resto de suas vidas. Creio que bem
no fundo do coração deste perverso “cachorro louco” há uma alma que pode ser
salva.”
Virou-se para o oficial de justiça: “Você
acha que devemos tentar ?”
“Não sei, meritíssimo”, disse o
policial. “Estes rapazes
mataram três policiais
nos últimos dois anos, e
tivemos quase cinqüenta
assassinatos naquele bairro,
desde que estou naquela ronda. Só compreendem a linguagem
da força. Estou certo de que. se V. Exª. soltá-lo, teremos de prendê-lo de novo Só que da próxima vez poderá ser por assassinato
.”
O juiz lançou os olhos à folha de papel que tinha à sua
frente.
“Cruz, não é? Venha aqui, Nicky Cruz, e fique de pé diante
da mesa.”
Levantei-me e fui até onde ele estava. Senti que meus
joelhos começavam a tremer.
O juiz debruçou-se sobre a mesa e olhou-me dentro dos olhos.
“Nicky, eu tenho um filho da sua idade.
Ele vai à escola, vive em uma boa casa, em um bairro agradável. Ele não se mete em barulho. Joga beisebol no time da escola e tem boas
notas. Não é um cachorro louco como você
A razão é que tem alguém que o ama.
Parece evidente que
ninguém ama você — e você também não ama a ninguém Não tem capacidade
para amar. Você está doente, Nicky, e eu quero saber o motivo. Quero saber o que
faz você odiar tanto. Você não
é normal como os outros rapazes.
O oficial tem razão. Você é um animal.
Vive como um animal e age como um animal. Devia tratá-lo como a um
animal, mas vou tentar descobrir porque você é tão anormal. Ficará sob a
custódia do psicólogo do tribunal, o Dr. John Goodman. Não estou qualificado
para decidir se você é ou não um psicopata.
Ele vai examiná-lo e dar a decisão final.”
Sacudi a cabeça. Eu não sabia se ele iria me soltar ou
deixar na cela, mas compreendi que ele não ia mandar-me para a cadeia, pelo
menos por enquanto.
“Mais uma coisa, Nicky”, disse o Juiz, “se você arranjar
novas encrencas, se eu tiver uma só queixa contra você, se fizer qualquer
coisa errada, saberei então que é completamente incapaz de seguir ordens, e
aceitar responsabilidades, e será imediatamente enviado para Elmira, para a
colônia agrícola . Compreendeu?”
“Sim, senhor”, respondi. E fiquei surpreso comigo mesmo.
Era a primeira vez que respondia a alguém dizendo “senhor”. Mas pareceu-me a
coisa mais correta a dizer naquele caso.
No dia seguinte, logo de manhã, o psicólogo do tribunal, Dr.
John Goodman, entrou em minha cela. Era um homenzarrão de cabelos prematuramente
grisalhos nas têmporas, e uma profunda cicatriz na face. O colarinho de sua
camisa estava gasto e os sapatos sem brilho.
“Fui encarregado de acompanhar o seu caso”, disse ele,
sentando-se no meu catre e cruzando as pernas. “Isto significa que teremos de
passar algum tempo juntos.”
“Está certo, grandão, seja como quiser.”
“Escute, vagabundo, converso com vinte sujeitos como você
todos os dias. Veja como fala comigo,
senão vai ser pior para você.”
Fiquei surpreendido com seus modos rudes, mas repliquei com
arrogância: “Quem sabe quer receber uma visita dos Mau-Maus uma noite destas?”
Antes que pudesse mover-me, o médico havia me agarrado pelo
colarinho, e quase me levantou do chão.
“Deixe-me dizer-lhe algo, espirro. Passei quatro anos nas
gangs e três nos Fuzileiros Navais, antes de ir para a Faculdade. Está vendo
esta cicatriz?” Ele virou a cabeça para que eu pudesse ver a profunda
cicatriz que ia da ponta do
seu queixo até o colarinho da
camisa. “Ganhei isto nas quadrilhas, mas não antes de ter matado seis outros
pulhas com um taco de beisebol. Agora, se quer bancar o valente, encontrou o homem certo.”
Ele me empurrou para trás. Tropecei no catre e caí sentado.
Cuspi no chão, mas não falei mais nada.
Sua voz voltou a um tom normal quando disse: “Amanhã de
manhã tenho de fazer uma viagem à montanha
Bear. Você pode ir comigo,
e então conversaremos.
No dia seguinte estive sob o exame informal do psicólogo.
Saímos da cidade e entramos no Estado de Nova York. Era a minha primeira viagem
fora da selva de asfalto, desde que chegara de Porto Rico, três anos antes.
Senti um certo entusiasmo, mas permaneci amuado e arrogante, quando me fazia
perguntas.
Depois de uma breve parada na clínica, levou-me ao jardim
zoológico, no parque público. Andamos pelo caminho que passava defronte às
jaulas. Parei e observei os animais selvagens andando para lá e para cá, detrás
das grades.
“Você gosta de
zoológicos, Nicky ?” perguntou ele.
“Detesto”, respondi, dando
as costas para
as jaulas e descendo caminho abaixo. “Ah, é? Por quê?”
“Odeio esses bichos fedorentos. Sempre andando para lá e
para cá. Sempre querendo sair.”
Sentamos em um banco do parque, e conversamos. O Dr. John
tirou alguns cadernos de uma pasta, e pediu-me para fazer alguns desenhos. Cavalos.
Vacas. Casas. Fiz uma casa com uma porta enorme na frente.
“Por que colocou uma porta tão grande na casa?” perguntou
ele.
“Para o estúpido psiquiatra poder entrar”, respondi .
“Não aceito isto.
Dê-me outra resposta.”
“Pois bem, para eu poder sair depressa no caso de alguém
estar atrás de mim.”
“Muita gente desenha portas para entrar.”
“Eu não. Estou querendo sair.”
“Agora desenhe uma árvore”, disse ele.
Desenhei uma árvore. Pensei, então, que não estava certo
ter uma árvore sem um passarinho, e por isso desenhei um no alto da árvore.
O Dr. Goodman olhou para o desenho e disse: “Você gosta de
pássaros, Nicky?”
“Detesto.”
“Você parece que tem ódio de tudo.”
“Sim. Pode ser que sim. Mas detesto pássaros mais do que
tudo.”
“Por quê ?” perguntou ele, “por que são livres ?”
Ouvi um trovão rolando surdamente no céu, à distância.
Aquele homem estava começando a me amedrontar com suas
perguntas. Peguei um lápis e fiz um buraco no lugar da figura do pássaro.
“Então esqueça o passarinho. Já está morto.”
“Você pensa que pode livrar-se de todas as coisas de que
tem medo, matando-as, não é?”
“Que diacho você pensa que é, seu charlatão estúpido?”
gritei.
“Pensa que pode me fazer desenhar uma figura estúpida,
fazer-me algumas perguntas bobas, e saber tudo a meu respeito? Eu não tenho
medo de ninguém. Todo mundo tem medo de mim. Pergunte aos Bishops, eles lhe
contarão. Não há nenhuma quadrilha de Nova York que queira encrenca com os
Mau-Maus. Eu não tenho medo de ninguém.” Minha voz se elevara febrilmente,
enquanto o enfrentava.
O Dr. John continuou escrevendo coisas em seu bloco.
“Sente-se, Nicky”, disse ele, levantando os olhos, “não precisa
tentar impressionar-me.”
“Escute, cara, para de encher, senão acabo com você “
O ribombar no horizonte tornou-se mais forte. Continuei de
pé à sua frente, tremendo. Dr. John olhou para cima e começou a dizer alguma
coisa, mas os pingos de chuva começaram a cair com força no caminho, ao nosso
lado. Ele sacudiu a cabeça: “É melhor irmos embora antes que fiquemos molhados”,
disse.
Fechamos as portas do carro exatamente no instante em que a
primeira pancada forte de chuva salpicava o pára-brisa. O Dr. John ficou
sentado silenciosamente durante muito tempo, antes de dar partida no carro e
sair para a estrada.
“Eu não sei, Nicky”, disse ele, “não sei mesmo.” A viagem de
volta foi horrível. A chuva bombardeava o carro sem compaixão. O Dr. John guiava
silenciosamente. Eu estava perdido em meus pensamentos. Odiava ter de voltar
para a cidade. A idéia de voltar para a cadeia me amedrontava. Era insuportável
ficar enjaulado como um animal selvagem
A chuva parou, mas o sol já se escondera quando passamos
pelas centenas de quarteirões de altos edifícios de apartamento encardidos. Eu
me sentia como se estivesse afundando em uma fossa. Gostaria de sair e correr.
Mas, em lugar de dirigir-se ao presídio, o Dr. John diminuiu a marcha e entrou
na Av. Lafayette, em direção ao conjunto habitacional de Fort Greene.
“Não vai me levar para a cadeia?” perguntei, confuso.
“Não. Tenho direito
de trancá-lo ou
soltá-lo. Não acho que a cadeia vai lhe trazer nenhum benefício .”
“Boa, meu chapa, agora você está na minha”, falei rindo.
“Não, você não compreende o que eu quero dizer. Acho que nada pode ajudá-lo!”
“Que é isso, doutor, acha que não há esperança?” gargalhei.
Ele estacionou o carro na esquina da Av Lafayette com Fort
Greene.
“Exatamente, Nicky. Tenho trabalhado com rapazes como você
durante anos. Eu vivi num gueto. Mas é a primeira vez que vejo alguém tão duro,
frio e selvagem como você. Não reagiu a nada que eu lhe disse. Odeia a tudo e a
todos, e tem medo de tudo que possa ameaçar a sua segurança.”
Abri a porta e saí: “Olhe, doutorzinho, pode ir para o
inferno. Não preciso de você nem de ninguém .”
“Nicky”, disse ele, quando eu comecei a afastar-me do carro,
“quero ser bem claro : você está condenado. Não tem esperança A menos que
mude, está numa estrada que o levará direto à cadeia, à cadeira elétrica, e ao inferno.”
“Acha ? Vejo você lá então”, disse eu. “Onde?” perguntou.
“No inferno, meu chapa”, respondi, dando uma risada.
Ele sacudiu a cabeça e arrancou, perdendo-se em meio à noite
escura. Tentei continuar rindo, mas o som morreu na minha garganta.
Fiquei parado na esquina com as mãos nos bolsos da capa.
Eram sete horas da noite, e as ruas estavam cheias de incontáveis rostos,
pessoas de passos apressados.. andando, andando, andando... Eu me senti como
uma folha no mar da humanidade, sendo levado para todas as direções pelas minhas
próprias paixões insensatas. Olhei para o povo. Todo mundo se movia. Alguns
estavam correndo. Estávamos em maio, mas o vento era frio. O vento fustigou
minhas pernas e esfriou-me por dentro.
As palavras do psicólogo continuaram soando em minha mente
como um disco enguiçado: “O seu único caminho é a cadeia, a cadeira elétrica, e
o inferno.”
Eu jamais havia olhado para mim mesmo, antes. Seriamente,
não. Gostava de olhar para mim mesmo no espelho. Sempre fora um rapaz asseado,
o que é um pouco incomum para a maioria dos porto-riquenhos do meu bairro.
Diferentemente de quase todos os rapazes da quadrilha, eu me orgulhava da
forma como me vestia. Gostava de usar gravatas e camisas coloridas. Sempre
procurava conservar as calças bem passadas, e usava montes de loção no rosto.
Não fumava muito, para evitar o mau hálito produzido pelo cigarro.
Senti-me, porém, sujo por dentro, repentinamente. O Nicky
que eu via no espelho não era o verdadeiro Nicky. E o Nicky que eu estava
vendo agora era sujo... imundo... perdido.
Da vitrola automática no bar do Papa John ouvia-se o som
gritante de um disco de música popular. O trânsito na rua era intenso: um
carro encostado no pára-choque do outro. As buzinas tocavam, apitos silvavam,
pessoas gritavam. Olhei para os seus rostos inexpressivos e anônimos. Ninguém
sorria. Todos pareciam apressados. Alguns mendigos estavam embriagados. Na
frente do bar, a maioria dos sujeitos estava maconhada. Aquele era o verdadeiro
Brooklin. Aquele o verdadeiro Nicky...
Comecei a subir a rua em direção ao meu quarto na Fort
Greene. Folhas de jornal levadas pelo vento agarravam-se à cerca de ferro e às
grades de aço diante das lojas. Havia garrafas quebradas e latas de cerveja
vazias ao longo da calçada. O cheiro de comida sebosa descia até a rua, e eu
me senti nauseado. A calçada tremia debaixo dos meus pés, quando os trens
passavam matraqueando rumo às trevas desconhecidas.
Encontrei-me com um trapo de velha. Eu disse “velha”, mas
pelas costas não se podia dizer a sua idade. Ela era baixa, mais baixinha do
que eu. Tinha um lenço preto enrolado na cabeça, bem apertado. Seu cabelo
amarelo-avermelhado, tingido repetidas vezes, aparecia nas beiradas. Vestia
uma velha jaqueta de lã de marinheiro, seis números maior que o tamanho certo.
Suas pernas magras, envoltas em calças negras, pareciam palitos abaixo do
casaco. Calçava sapatos de homem, sem meias.
Odiei-a. Ela simbolizava toda a sujeira e imundície da
minha vida. Procurei a faca no bolso. Desta vez eu não estava brincando.
Fiquei imaginando com que força precisaria golpeá-la para que a lâmina
atravessasse o casaco grosso e atingisse suas costas. Imaginar que o sangue
gotejaria da barra do casaco e se empoçaria na rua, deu-me uma sensação
pegajosa de calor.
Naquele momento um cachorrinho veio correndo rua abaixo em
nossa direção, e desviou-se dela. Ela virou-se e olhou para ele com olhos
vazios e mortiços. Reconheci-a como uma das prostitutas decadentes que viviam
no meu quarteirão. Pela sua aparência, pelos olhos semicerrados, inexpressivos,
percebi que estava “baratinada”.
Soltei a faca, voltando a pensar em mim mesmo, e comecei a
ultrapassá-la. Ao fazê-lo, vi seus olhos vazios observando um balão vermelho
vivo, levado pelo vento para o meio da rua.
Um balão. Meu primeiro instinto foi correr para o meio da
rua e pisá-lo. Que ódio senti dele. Era livre.
Repentinamente, uma grande onda de compaixão me dominou.
Identifiquei-me com aquela estúpida bola flutuante. É estranho que a primeira
vez em que tive piedade em toda a minha vida, foi por um objeto inanimado sendo
levado pelo vento, sem destino.
Assim, em vez de descer até o meio da rua e estourá-lo,
ultrapassei a mulher e apertei o passo para acompanhar o balão que voava e
saltava pela rua suja.
Parecia estranhamente deslocado naquele lugar imundo. Ao seu
redor havia papéis e lixo também soprados pelo vento frio. Na calçada viam-se
garrafas de vinho quebradas e latas de cerveja amassadas. De ambos os lados da
rua ficavam as paredes de concreto e pedras negras, desbotadas, da prisão
inescapável onde eu morava. E ali, no meio de tudo aquilo, estava uma bola
vermelha, livre, sendo levada pelas forças invisíveis do vento.
O que havia naquele estúpido balão que me interessava?
Apertei ainda mais o passo para acompanhá-lo. Surpreendi-me desejando que o
balão não batesse em um pedaço de vidro e estourasse, embora soubesse que ele
não duraria muito. Era muito delicado. Muito limpo; tenro e puro demais para
continuar a existir no meio daquele inferno.
Prendia a respiração cada vez que ele saltava no asfalto,
esperando o estouro final e inevitável, mas continuou seu trajeto saltitante
pelo meio da rua. Fiquei pensando: “Pode ser que ele consiga. Pode ser que
chegue até o fim do quarteirão, e seja levado pelo vento, para a praça, livre.
Afinal de contas, é possível que ele tenha chance de sobreviver .”
Eu estava quase rezando para que tal acontecesse. Porém, a
depressão voltou quando pensei na praça. Aquela praça mal-cheirosa e estúpida.
O que acontecerá se ele chegar ao jardim? E depois? Não há nada para ele ali.
Será atirado, pelo vento, contra a cerca enferrujada e explodirá. Ou mesmo que
consiga passar por cima da cerca e entre no gramado, cairá em cima de algum
espinho na grama ou nos arbustos, e lá se vai...
“Ou então”, pensei com meus botões, “mesmo que alguém o
pegue, vai levá-lo para o seu imundo apartamento, onde ficará aprisionado para
o resto da vida. Não há esperança. Não há esperança para ele — nem para mim.”
Subitamente, sem aviso prévio, um carro da polícia surgiu
na esquina. Antes que eu pudesse interromper minha cadeia de pensamentos, ele
estava em cima do balão. Ouvi um pequeno estouro, quando o carro, sem
compaixão, esmagou-o contra o chão. O carro sumiu — desceu a rua e virou a
esquina. Nem percebeu o que acontecera, e mesmo que soubesse, não se
importaria. Mas eu quis correr atrás do carro e gritar: “Meganhas imundos, não
enxergam?” Queria matá-los por me terem esmagado no meio da rua.
Senti um desânimo mortal. Parei no meio-fio e olhei para a
rua escura, porém não havia sinal do balão. Seus restos se misturaram com o
lixo e o cascalho, no meio da rua, e se identificaram com toda a sujeira de Brooklin.
Voltei e sentei-me na escada. A velha meretriz desaparecera
nas trevas. O vento ainda assobiava e os papéis e o lixo continuaram sendo
soprados rua abaixo, e atirados contra a cerca que rodeava a praça. Outro metrô
matraqueou debaixo da terra, e retumbou nas trevas. Eu estava com medo. Eu,
Nicky. Estava com medo. Estava tremendo, não de frio, mas por dentro. Coloquei
a cabeça entre as mãos, e pensei: “Não adianta. Estou condenado. É exatamente
como o Dr. John disse. Não há esperança para o Nicky; seu destino é a cadeia,
a cadeira elétrica e o inferno.”
Depois daquilo nada mais me importava. Devolvi a presidência
da quadrilha a Israel. Estava na fossa; não podia descer mais fundo. Não havia
mais esperança. Eu podia muito bem fazer como todos os outros no gueto, e
recorrer à agulha. Estava cansado de fugir. O que o juiz dissera que me faltava?
Amor! Mas onde poderia encontrar amor dentro da fossa?