sábado, 24 de abril de 2021

Foge Nick Foge - 09 - Na fossa



Capítulo 9

NA FOSSA

TRÊS DIAS ANTES DA Páscoa, eu e mais três de nosso grupo estávamos na esquina das Ruas Auburn e St. Edward, defronte à Igreja St. Edward e St. Michael. Sabíamos que os padres re­cebiam muito dinheiro durante as missas especiais da semana santa, e estávamos planejando entrar na igreja.
Um policial saiu do Distrito, atravessou a rua e viu-nos encostados na grade de ferro que rodeia a igreja. Aproximou-se de nós e disse: “Caiam fo­ra, seus porto-riquenhos porcos.” Ficamos ali, abra­çando a grade, contemplando-o com olhos inexpres­sivos .
O guarda repetiu: “Vagabundos, já disse que caiam fora!” Os outros rapazes se espalharam mas eu não me movi. O guarda olhou-me fixamente: “Eu disse mexa-se, vagabundo; então, vá circulan­do.” Levantou o cassetete, como se fosse me bater.
Cuspi nele. Brandiu o cassetete em minha dire­ção, mas eu me baixei, e este foi atingir a grade. Investi contra o policial, e ele me agarrou pelo pes­coço.  Era duas vezes maior do que eu, mas eu o mataria, se pudesse. Procurei apanhar a faca, quan­do percebi que ele abriu o coldre e estava tentando tirar o revólver, ao mesmo tempo que gritava, pe­dindo  socorro.
Afastei-me depressa e levantei as mãos. “Eu me entrego!   Eu  me entrego!”
Vários policiais derramaram-se pela porta do Distrito, e atravessaram a rua correndo. Agarra­ram-me e arrastaram-me para a Delegacia, fazendo-me subir os degraus e entrar no prédio.
O guarda que lutara comigo bateu com força no meu rosto. Senti na boca o sangue que saía dos lábios.
“Você é um valentão quando está armado, mas por dentro é um covarde como todo o resto des­ses  tiras sujos”, disse  eu.
Ele me bateu outra vez; fingi que desmaiava e caí  no chão.
“Levante-se, porco imundo. Desta vez vamos ajus­tar  as contas com você.”
Enquanto eles me arrastavam para outra sala, ouvi o sargento escrevente murmurar : “Acho que esse cara é louco. Deve ficar preso até mofar, antes que mate alguém.”
Eu já fora preso muitas vezes, mas eles nunca conseguiram me segurar por muito tempo. Nin­guém testemunhara contra mim, porque sabia que quando eu saísse da cadeia haveria de matá-lo, ou os Mau-Maus matariam para mim.
Dessa vez eles me levaram para o outro lado da cidade, e colocaram-me em uma cela. O carce­reiro deu-me um empurrão, quando entrei na cela. Virei-me e arremeti contra ele dando socos. O ho­mem puxou-me para o corredor, e outro guarda me segurou, enquanto   ele   me esmurrava  à vontade.
“A única maneira de tratar esses p... é bater neles até matá-los”, disse ele. “São uma súcia de porcos sujos e fedorentos. A cadeia está cheia de negros, italianos e  porto-riquenhos.  Você é igualzinho ao resto, e se não entrar na linha, vai acabar desejando que  estivesse morto.”
Empurraram-me de novo para a cela, e eu caí no chão duro, dirigindo-lhes palavrões. “Está bom, vagabundo”, disse o carcereiro ao fechar a porta da cela, “por que você não se levanta e briga co­nosco agora? Você não é tão durão?” Mordi os lá­bios e não respondi, mas sabia que iria matá-lo quando  saísse.
No dia seguinte   o   carcereiro  voltou à minha cela. Quando abriu a porta, joguei-me de novo con­tra ele, empurrando-o de volta para o corredor. Ele me bateu na cabeça com o molho de chaves. Senti o sangue correr de um corte no supercílio.
“Vamos, pode bater em mim”, gritei, “mas um dia vou à sua casa e mato a sua mulher e seus fi­lhos.  Espere para ver.”
Eu estava sendo acusado apenas de uma pe­quena contravenção, por ter resistido à prisão e de­sobedecido à autoridade. Mas estava piorando a minha própria situação. O carcereiro me deu um soco, jogando-me de costas no chão da cela, e fe­chou a porta.
“Pois bem, cachorro, você pode apodrecer aí!” Meu julgamento foi na semana seguinte. Fui al­gemado e marchei para o tribunal.   Sentei-me em uma cadeira, e um policial começou a ler as acusa­ções.
O juiz, um homem de rosto severo, de cerca de cinqüenta anos, que usava óculos sem aro, disse. “Espere um minuto: este rapaz já não esteve no ban­co dos réus?”
“Sim,  meritíssimo”, respondeu o policial, “esta é a terceira vez que ele é trazido ao tribunal. Além disto, ele tem vinte e uma prisões na sua folha cor­rida, e tem sido acusado de tudo, desde roubo até assalto a mão armada e tentativa de homicídio.”
O juiz virou-se  e  olhou  para  mim:   “Quantos anos você tem, rapaz?”
Curvei-me na cadeira e fixei os olhos no chão.
“Levante-se quando eu falar com você!” explo­diu o juiz.
Fiquei  de pé e olhei para ele
“Perguntei quantos anos você tem”, repetiu ele firmemente
“Dezoito”,  respondi.
“Você tem dezoito anos e já foi preso vinte e uma vezes e já compareceu ao banco dos réus três vezes.   Por que seus pais não vieram com você?”
“Eles estão em  Porto Rico”, respondi.
“Com quem você vive?”
“Com ninguém. Não preciso de ninguém. Vivo sozinho.”
“Há  quanto tempo vive  sozinho?”
“Desde quando cheguei a Nova York, há três anos atrás.”
“Meritíssimo”, interrompeu o oficial de justiça, “ele não presta. É o presidente dos Mau-Maus. É o centro de todos os problemas que temos tido no conjunto habitacional. Nunca vimos um rapaz tão malvado e incorrigível como este. É como um animal, e a única coisa que se pode fazer com um cachorro louco é enjaulá-lo. Gostaria de recomendar, meritíssimo, que Vossa Exª. o colocasse na prisão até que ele completasse vinte e um anos. Quem sabe se até então poderíamos manter um pouco de ordem  em Fort Greene.”
O juiz virou-se e olhou para o oficial de justiça:
“Você diz que ele é como um animal, não é? Um cachorro louco, não é assim ?”
“Exatamente, meritíssimo.   E se V. Exª., sol­tá-lo, ele matará alguém antes do escurecer.”
“Sim, creio  que você tem razão”, disse o juiz, olhando para mim outra vez   “Mas penso que pre­cisamos pelo menos tentar descobrir  o que  é  que faz com que ele seja como um animal.  Por que é tão depravado? Por que odeia, rouba, briga e mata? Centenas  de rapazes como  ele passam pelos tribu­nais todos os dias, e creio que o Estado, tem, por assim dizer, uma obrigação de tentar salvar alguns destes rapazes. Não apenas trancá-los pelo resto de suas vidas. Creio que bem no fundo do coração des­te perverso “cachorro louco” há uma alma que pode ser salva.”
Virou-se  para o  oficial de justiça:  “Você  acha que  devemos tentar ?”
“Não  sei, meritíssimo”,  disse o  policial. “Estes rapazes  mataram   três   policiais   nos    últimos dois anos,  e  tivemos  quase  cinqüenta   assassinatos  na­quele bairro, desde que estou naquela ronda. Só com­preendem a  linguagem   da   força.   Estou certo de que. se V.  Exª.  soltá-lo, teremos de prendê-lo de novo   Só que da próxima vez poderá ser por assas­sinato .”
O juiz lançou os olhos à folha de papel que ti­nha à sua frente.
“Cruz, não é? Venha aqui, Nicky Cruz, e fique de pé diante da mesa.”
Levantei-me e fui até onde ele estava. Senti que meus joelhos começavam a tremer.
O juiz debruçou-se sobre a mesa e olhou-me dentro dos olhos.
“Nicky,  eu   tenho um filho da sua  idade.   Ele vai à escola, vive em uma boa casa, em um bairro agradável.  Ele não se mete em barulho.   Joga bei­sebol no time da escola e tem boas notas. Não é um cachorro louco como você   A razão é que tem alguém que o ama.   Parece  evidente  que  ninguém ama você — e você também não ama a ninguém Não tem capacidade para amar. Você está doente, Nicky, e eu quero saber o motivo. Quero saber  o que  faz você odiar  tanto.  Você não  é normal  co­mo os outros rapazes. O oficial tem razão. Você é um animal.  Vive como um animal e age como um animal. Devia tratá-lo como a um animal, mas vou tentar descobrir porque você é tão anormal. Ficará sob a custódia do psicólogo do tribunal, o Dr. John Goodman. Não estou qualificado para decidir se você é ou não um psicopata.  Ele vai examiná-lo e dar a decisão final.”
Sacudi a cabeça. Eu não sabia se ele iria me soltar ou deixar na cela, mas compreendi que ele não ia mandar-me para a cadeia, pelo menos por enquanto.
“Mais uma coisa, Nicky”, disse o Juiz, “se você arranjar novas encrencas, se eu tiver uma só quei­xa contra você, se fizer qualquer coisa errada, sa­berei então que é completamente incapaz de seguir ordens, e aceitar responsabilidades, e será imedia­tamente enviado para Elmira, para a colônia agrí­cola . Compreendeu?”
“Sim, senhor”, respondi. E fiquei surpreso co­migo mesmo. Era a primeira vez que respondia a alguém dizendo “senhor”. Mas pareceu-me a coisa mais correta a dizer naquele caso.
No dia seguinte, logo de manhã, o psicólogo do tribunal, Dr. John Goodman, entrou em minha ce­la. Era um homenzarrão de cabelos prematuramen­te grisalhos nas têmporas, e uma profunda cicatriz na face. O colarinho de sua camisa estava gasto e os sapatos sem brilho.
“Fui encarregado de acompanhar o seu caso”, disse ele, sentando-se no meu catre e cruzando as pernas. “Isto significa que teremos de passar al­gum tempo juntos.”
“Está certo, grandão, seja como quiser.”
“Escute, vagabundo, converso com vinte sujei­tos como você todos os dias. Veja como fala co­migo,  senão vai ser pior para você.”
Fiquei surpreendido com seus modos rudes, mas repliquei com arrogância: “Quem sabe quer receber uma visita dos Mau-Maus uma noite destas?”
Antes que pudesse mover-me, o médico havia me agarrado pelo colarinho, e quase me levantou do chão.
“Deixe-me dizer-lhe algo, espirro. Passei quatro anos nas gangs e três nos Fuzileiros Navais, antes de ir para a Faculdade. Está vendo esta cicatriz?” Ele virou a cabeça para que eu pudesse ver a pro­funda cicatriz  que ia da ponta  do  seu  queixo até o colarinho da camisa. “Ganhei isto nas quadrilhas, mas não antes de ter matado seis outros pulhas com um taco de beisebol. Agora, se quer bancar o valente,  encontrou o homem  certo.”
Ele me empurrou para trás. Tropecei no catre e caí sentado. Cuspi no chão, mas não falei mais nada.
Sua voz voltou a um tom normal quando disse: “Amanhã de manhã tenho de fazer uma viagem à montanha  Bear. Você pode  ir  comigo,  e então conversaremos.
No dia seguinte estive sob o exame informal do psicólogo. Saímos da cidade e entramos no Estado de Nova York. Era a minha primeira viagem fora da selva de asfalto, desde que chegara de Porto Rico, três anos antes. Senti um certo entusiasmo, mas permaneci amuado e arrogante, quando me fa­zia perguntas.
Depois de uma breve parada na clínica, levou-me ao jardim zoológico, no parque público. Anda­mos pelo caminho que passava defronte às jaulas. Parei e observei os animais selvagens andando para lá e para cá, detrás das grades.
“Você  gosta de zoológicos, Nicky ?” perguntou ele.
“Detesto”,  respondi,  dando   as   costas  para   as jaulas e descendo caminho abaixo. “Ah, é? Por quê?”
“Odeio esses bichos fedorentos. Sempre andan­do para lá e para cá.  Sempre querendo sair.”
Sentamos em um banco do parque, e conversa­mos. O Dr. John tirou alguns cadernos de uma pasta, e pediu-me para fazer alguns desenhos. Ca­valos. Vacas. Casas. Fiz uma casa com uma porta enorme na frente.
“Por que colocou uma porta tão grande na ca­sa?” perguntou ele.
“Para o estúpido psiquiatra poder entrar”, res­pondi .
“Não aceito isto.  Dê-me outra resposta.”
“Pois bem, para eu poder sair depressa no caso de alguém estar atrás de mim.”
“Muita gente desenha portas para entrar.”
“Eu não. Estou querendo sair.”
“Agora desenhe uma árvore”, disse ele.
Desenhei uma árvore. Pensei, então, que não es­tava certo ter uma árvore sem um passarinho, e por isso desenhei um no alto da árvore.
O Dr. Goodman olhou para o desenho e disse: “Você gosta de pássaros, Nicky?”
“Detesto.”
“Você parece que tem ódio de tudo.”
“Sim. Pode ser que sim. Mas detesto pássaros mais do que tudo.”
“Por quê ?” perguntou ele, “por que são livres ?”
Ouvi um trovão rolando surdamente no céu, à distância.
Aquele homem estava começando a me ame­drontar com suas perguntas. Peguei um lápis e fiz um buraco no lugar da figura do pássaro.
“Então  esqueça  o passarinho. Já está morto.”
“Você pensa que pode livrar-se de todas as coisas  de  que tem medo, matando-as, não  é?”
“Que diacho você pensa que é, seu charlatão estúpido?” gritei.
“Pensa que pode me fazer desenhar uma figura estúpida, fazer-me algumas perguntas bobas, e sa­ber tudo a meu respeito? Eu não tenho medo de ninguém. Todo mundo tem medo de mim. Pergun­te aos Bishops, eles lhe contarão. Não há nenhu­ma quadrilha de Nova York que queira encrenca com os Mau-Maus. Eu não tenho medo de nin­guém.” Minha voz se elevara febrilmente, enquanto o enfrentava.
O Dr. John continuou escrevendo coisas em seu bloco.
“Sente-se, Nicky”, disse ele, levantando os olhos, “não   precisa   tentar  impressionar-me.”
“Escute, cara, para de encher, senão acabo com você “
O ribombar no horizonte tornou-se mais forte. Continuei de pé à sua frente, tremendo. Dr. John olhou para cima e começou a dizer alguma coisa, mas os pingos de chuva começaram a cair com for­ça no caminho, ao nosso lado. Ele sacudiu a cabe­ça: “É melhor irmos embora antes que fiquemos molhados”, disse.
Fechamos as portas do carro exatamente no instante em que a primeira pancada forte de chuva salpicava o pára-brisa. O Dr. John ficou sentado silenciosamente durante muito tempo, antes de dar partida no carro e sair para a estrada.
“Eu não sei, Nicky”, disse ele, “não sei mesmo.” A viagem de volta foi horrível. A chuva bom­bardeava o carro sem compaixão. O Dr. John guia­va silenciosamente. Eu estava perdido em meus pensamentos. Odiava ter de voltar para a cidade. A idéia de voltar para a cadeia me amedrontava. Era insuportável ficar enjaulado como um animal sel­vagem
A chuva parou, mas o sol já se escondera quan­do passamos pelas centenas de quarteirões de altos edifícios de apartamento encardidos. Eu me sen­tia como se estivesse afundando em uma fossa. Gostaria de sair e correr. Mas, em lugar de diri­gir-se ao presídio, o Dr. John diminuiu a marcha e entrou na Av. Lafayette, em direção ao conjunto habitacional de Fort Greene.
“Não vai me levar para a cadeia?” perguntei, confuso.
“Não.   Tenho   direito  de   trancá-lo   ou  soltá-lo. Não acho que a cadeia vai lhe trazer nenhum bene­fício .”
“Boa, meu chapa, agora você está na minha”, falei  rindo.
“Não, você não compreende o que eu quero di­zer.  Acho que nada pode ajudá-lo!”
“Que é isso, doutor, acha que não há esperança?” gargalhei.
Ele estacionou o carro na esquina da Av La­fayette com Fort Greene.
“Exatamente, Nicky. Tenho trabalhado com ra­pazes como você durante anos. Eu vivi num gueto. Mas é a primeira vez que vejo alguém tão duro, frio e selvagem como você. Não reagiu a nada que eu lhe disse. Odeia a tudo e a todos, e tem medo de tudo que possa ameaçar a sua segurança.”
Abri a porta e saí: “Olhe, doutorzinho, pode ir para o inferno. Não preciso de você nem de nin­guém .”
“Nicky”, disse ele, quando eu comecei a afastar-me do carro, “quero ser bem claro : você está con­denado. Não tem esperança A menos que mude, está numa estrada que o levará direto à cadeia, à cadeira elétrica, e ao inferno.”
“Acha ? Vejo você lá então”, disse eu. “Onde?” perguntou.
“No inferno, meu chapa”, respondi, dando uma risada.
Ele sacudiu a cabeça e arrancou, perdendo-se em meio à noite escura. Tentei continuar rindo, mas o som morreu na minha garganta.
Fiquei parado na esquina com as mãos nos bol­sos da capa. Eram sete horas da noite, e as ruas estavam cheias de incontáveis rostos, pessoas de passos apressados.. andando, andando, andando... Eu me senti como uma folha no mar da humani­dade, sendo levado para todas as direções pelas mi­nhas próprias paixões insensatas. Olhei para o po­vo. Todo mundo se movia. Alguns estavam corren­do. Estávamos em maio, mas o vento era frio. O vento fustigou minhas pernas e esfriou-me por den­tro.
As palavras do psicólogo continuaram soando em minha mente como um disco enguiçado: “O seu único caminho é a cadeia, a cadeira elétrica, e o inferno.”
Eu jamais havia olhado para mim mesmo, an­tes. Seriamente, não. Gostava de olhar para mim mesmo no espelho. Sempre fora um rapaz asseado, o que é um pouco incomum para a maioria dos porto-riquenhos do meu bairro. Diferentemente de quase todos os rapazes da quadrilha, eu me orgu­lhava da forma como me vestia. Gostava de usar gravatas e camisas coloridas. Sempre procurava conservar as calças bem passadas, e usava montes de loção no rosto. Não fumava muito, para evitar o mau hálito produzido pelo cigarro.
Senti-me, porém, sujo por dentro, repentinamen­te. O Nicky que eu via no espelho não era o verdadei­ro Nicky. E o Nicky que eu estava vendo agora era sujo... imundo... perdido.
Da vitrola automática no bar do Papa John ou­via-se o som gritante de um disco de música popu­lar. O trânsito na rua era intenso: um carro encos­tado no pára-choque do outro. As buzinas tocavam, apitos silvavam, pessoas gritavam. Olhei para os seus rostos inexpressivos e anônimos. Ninguém sor­ria. Todos pareciam apressados. Alguns mendigos estavam embriagados. Na frente do bar, a maioria dos sujeitos estava maconhada. Aquele era o ver­dadeiro Brooklin.  Aquele o verdadeiro Nicky...
Comecei a subir a rua em direção ao meu quar­to na Fort Greene. Folhas de jornal levadas pelo vento agarravam-se à cerca de ferro e às grades de aço diante das lojas. Havia garrafas quebradas e latas de cerveja vazias ao longo da calçada. O chei­ro de comida sebosa descia até a rua, e eu me senti nauseado. A calçada tremia debaixo dos meus pés, quando os trens passavam matraqueando rumo às trevas desconhecidas.
Encontrei-me com um trapo de velha. Eu dis­se “velha”, mas pelas costas não se podia dizer a sua idade. Ela era baixa, mais baixinha do que eu. Tinha um lenço preto enrolado na cabeça, bem aper­tado. Seu cabelo amarelo-avermelhado, tingido re­petidas vezes, aparecia nas beiradas. Vestia uma velha jaqueta de lã de marinheiro, seis números maior que o tamanho certo. Suas pernas magras, envoltas em calças negras, pareciam palitos abaixo do casaco. Calçava sapatos de homem, sem meias.
Odiei-a. Ela simbolizava toda a sujeira e imun­dície da minha vida. Procurei a faca no bolso. Des­ta vez eu não estava brincando. Fiquei imaginando com que força precisaria golpeá-la para que a lâ­mina atravessasse o casaco grosso e atingisse suas costas. Imaginar que o sangue gotejaria da barra do casaco e se empoçaria na rua, deu-me uma sen­sação pegajosa de calor.
Naquele momento um cachorrinho veio corren­do rua abaixo em nossa direção, e desviou-se dela. Ela virou-se e olhou para ele com olhos vazios e mortiços. Reconheci-a como uma das prostitutas decadentes que viviam no meu quarteirão. Pela sua aparência, pelos olhos semicerrados, inexpressivos, percebi que estava “baratinada”.
Soltei a faca, voltando a pensar em mim mes­mo, e comecei a ultrapassá-la. Ao fazê-lo, vi seus olhos vazios observando um balão vermelho vivo, levado pelo vento para o meio da rua.
Um balão. Meu primeiro instinto foi correr para o meio da rua e pisá-lo. Que ódio senti dele. Era livre.
Repentinamente, uma grande onda de compai­xão me dominou. Identifiquei-me com aquela estú­pida bola flutuante. É estranho que a primeira vez em que tive piedade em toda a minha vida, foi por um objeto inanimado sendo levado pelo vento, sem destino.
Assim, em vez de descer até o meio da rua e estourá-lo, ultrapassei a mulher e apertei o passo para acompanhar o balão que voava e saltava pela rua suja.
Parecia estranhamente deslocado naquele lugar imundo. Ao seu redor havia papéis e lixo também soprados pelo vento frio. Na calçada viam-se gar­rafas de vinho quebradas e latas de cerveja amassadas. De ambos os lados da rua ficavam as paredes de concreto e pedras negras, desbotadas, da prisão inescapável onde eu morava. E ali, no meio de tu­do aquilo, estava uma bola vermelha, livre, sendo le­vada pelas forças invisíveis do vento.
O que havia naquele estúpido balão que me in­teressava? Apertei ainda mais o passo para acom­panhá-lo. Surpreendi-me desejando que o balão não batesse em um pedaço de vidro e estourasse, em­bora soubesse que ele não duraria muito. Era mui­to delicado. Muito limpo; tenro e puro demais para continuar a existir no meio daquele inferno.
Prendia a respiração cada vez que ele saltava no asfalto, esperando o estouro final e inevitável, mas continuou seu trajeto saltitante pelo meio da rua. Fiquei pensando: “Pode ser que ele consiga. Pode ser que chegue até o fim do quarteirão, e seja levado pelo vento, para a praça, livre. Afinal de contas, é possível que ele tenha chance de sobre­viver .”
Eu estava quase rezando para que tal aconte­cesse. Porém, a depressão voltou quando pensei na praça. Aquela praça mal-cheirosa e estúpida. O que acontecerá se ele chegar ao jardim? E depois? Não há nada para ele ali. Será atirado, pelo vento, contra a cerca enferrujada e explodirá. Ou mesmo que consiga passar por cima da cerca e entre no gramado, cairá em cima de algum espinho na gra­ma ou nos arbustos, e lá se vai...
“Ou então”, pensei com meus botões, “mesmo que alguém o pegue, vai levá-lo para o seu imundo apartamento, onde ficará aprisionado para o resto da vida. Não há esperança. Não há esperança para ele — nem para mim.”
Subitamente, sem aviso prévio, um carro da po­lícia surgiu na esquina. Antes que eu pudesse inter­romper minha cadeia de pensamentos, ele estava em cima do balão. Ouvi um pequeno estouro, quan­do o carro, sem compaixão, esmagou-o contra o chão. O carro sumiu — desceu a rua e virou a esquina. Nem percebeu o que acontecera, e mesmo que soubesse, não se importaria. Mas eu quis cor­rer atrás do carro e gritar: “Meganhas imundos, não enxergam?” Queria matá-los por me terem es­magado no meio da rua.
Senti um desânimo mortal. Parei no meio-fio e olhei para a rua escura, porém não havia sinal do balão. Seus restos se misturaram com o lixo e o cascalho, no meio da rua, e se identificaram com toda  a sujeira de Brooklin.
Voltei e sentei-me na escada. A velha meretriz desaparecera nas trevas. O vento ainda assobiava e os papéis e o lixo continuaram sendo soprados rua abaixo, e atirados contra a cerca que rodeava a praça. Outro metrô matraqueou debaixo da terra, e retumbou nas trevas. Eu estava com medo. Eu, Nicky. Estava com medo. Estava tremendo, não de frio, mas por dentro. Coloquei a cabeça entre as mãos, e pensei: “Não adianta. Estou condenado. É exatamente como o Dr. John disse. Não há es­perança para o Nicky; seu destino é a cadeia, a ca­deira elétrica e o inferno.”
Depois daquilo nada mais me importava. Devolvi a presidência da quadrilha a Israel. Estava na fossa; não podia descer mais fundo. Não havia mais esperança. Eu podia muito bem fazer como todos os outros no gueto, e recorrer à agulha. Es­tava cansado de fugir. O que o juiz dissera que me faltava? Amor! Mas onde poderia encontrar amor dentro da fossa?