Capítulo 8
A GARGALHADA DO DIABO
DURANTE O PERÍODO de dois anos em que fui líder dos
Mau-Maus, dezessete pessoas foram mortas. Fui preso mais vezes do que sou
capaz de me lembrar. Nós vivíamos — todos os componentes das quadrilhas — como
se não existisse lei. Nada era sagrado, exceto a nossa lealdade uns para com os
outros — principalmente os laços de lealdade que eu sentia em relação a Israel
e a Mannie.
Certo dia Israel entrou furtivamente
em meu quarto, no meio da noite, e lançou uma pomba pela porta. Ficou de fora e
deu gargalhadas ao ouvir meus gritos de medo. Quando ele abriu a porta e
acendeu a luz, eu estava debaixo da cama. Tentei encobrir meu terror, rindo
enquanto ele atirava a pomba pela janela. Mas depois que ele se foi, fiquei
tremendo na cama, com o som de asas ruflando nos ouvidos. Quando finalmente
consegui pegar no sono, sonhei que estava caindo. Acordei julgando ter ouvido
a gargalhada do diabo.
Na manhã seguinte Israel voltou para me contar que Mannie
fora esfaqueado e estava no hospital. “O que é que há, Nicky ?” disse ele
depois de contar como fora a facada, “que cara é essa?”
Não pude responder na hora. Sentia o estômago embrulhado, e
o sangue fugindo de minhas faces. Mannie e Israel eram os únicos amigos que eu
tinha. De repente, via minha segurança abalada, enquanto Israel me contava
que Mannie quase morrera.
Sacudi a cabeça : “Estou bem. É só raiva. Vou visitar Mannie
e descobrir quem fez isso. Depois vamos queimar esse cara direitinho.”
Naquela tarde tentei entrar no hospital, mas havia dois
policiais uniformizados na porta. Trepei pela escada de incêndio e bati de
leve na janela e Mannie a abriu por dentro. Ele estava fraco e mal pôde arrastar-se
de volta para o leito.
“Quem fez isto, cara ?” perguntei. “Ninguém vai bater e
esfaquear você sem levar o troco.”
“Foram os Bishops. Eles me pegaram sozinho, e me acertaram
duas vezes: na perna e no lado.”
“Quem foi ?” perguntei. “Você sabe quem fez isso?”
“Sim. Foi aquele cara
chamado Joe. É o novo vice-presidente deles. Pensa que é o tal. Quando fugiu
disse que eles voltariam para me matar. É por isso que os tiras estão aí fora.”
“Bem, só quero que você fique bom, meu chapa. E quando sair
daqui, vamos agarrar aquele negro sujo.”
Esgueirei-me de volta pela escada de incêndio e naquela
noite encontrei com Israel e Homer Belanchi, nosso conselheiro de guerra, para
traçar planos de vingança. Decidimos fazer um seqüestro.
No dia seguinte Homer roubou um carro. Escondemos o bicho
atrás de um velho armazém durante duas semanas, até Mannie sair do hospital.
Estávamos na semana anterior ao Natal de 1957, quando
entramos em ação. Homer foi guiando o carro, e nós apanhamos Mannie. Ele ainda
estava usando bengala. Augie, Paco e eu ficamos no banco de trás. Cruzamos a
Rua St. Edward, depois do Centro Católico. Havia um baile de Natal no Centro,
naquela noite, e dois policiais uniformizados estavam de guarda à porta. Não
vimos nenhum dos Bishops por ali; por isso, continuamos descendo a rua, até a
confeitaria, e estacionamos do lado oposto. Eram quase onze horas da noite;
dissemos a Mannie para esperar no carro.
Atravessamos a rua e entramos na confeitaria. Havia vários
Bishops na confeitaria, e eu disse: “Ei, turma, nós estamos procurando o nosso
amigo, Vice-Presidente dos Bishops. Alguém disse que ele quer fazer um acordo,
e nós viemos por causa disso. Ele está
por aqui ?”
“Você está falando do Joe ? Está lá no canto, beijando a
garota”, disse um dos Bishops.
Saímos devagar e fomos até onde Joe estava, sentado no chão,
ao lado de uma mocinha. Ele levantou os olhos e Augie disse : “Bicho, nós
somos os tais. Os Mau-Maus. Viemos buscar você.”
Joe tentou levantar, mas Augie pôs o pé sobre o seu ombro e
empurrou-o para trás. Nós dois estávamos armados e ele viu que apontávamos
para ele.
Começou a gritar. Augie tirou o revólver e apontou para os
outros que estavam no local. “Não se movam. Ninguém. O primeiro que mexer é
homem morto.”
O proprietário parecia
que ia ter um acesso.
“Não vamos fazer nada com você, velhinho”, disse Augie.
“Fique quieto que nós vamos cair fora num minuto.”
Falei com Joe, que ainda estava sentado no chão, ao lado da
garota que parecia horrorizada: “Ei, pulha,
você tem duas
coisas para escolher: ou vai conosco, ou nós o matamos
aqui mesmo. Quer um minuto para pensar ?”
O rapaz começou a gaguejar algo, e eu disse : “Bem, fico
alegre por você ter resolvido.”
De um arranco coloquei-o de pé, e saímos pela porta, e
Israel ficou apontando o revólver para os outros rapazes que ficaram no bar.
“Digam aos Bishops que vamos trazê-lo de volta depois de
mostrar o que acontece quando alguém põe a mão num Mau-Mau”, disse Augie.
Fechamos a porta atrás de nós e o obrigamos a correr; atravessamos a rua empilhamo-nos
no carro. Ele sentou-se atrás, entre Augie e eu, e durante todo o tempo
apontamos as armas para ele. Homer deu partida no carro, e saímos em direção a
um edifício abandonado, perto da Ponte de Manhattan.
Levamos Joe para dentro, amarrando-o a uma cadeira, com uma
mordaça na boca.
“Talvez sua morte seja rápida. Talvez vá ficar aqui o resto
da vida”, falei zombando. Augie cuspiu no rosto dele e saímos batendo a porta
atrás de nós. Era meia-noite.
Só voltamos dois dias depois. Quando o fizemos, levamos
vinte e cinco Mau-Maus conosco. Joe estava caído de lado, ainda amarrado à
cadeira. Tentara escapar, mas fora muito bem amarrado. Pusemos a cadeira em pé
e acendemos a luz. Ele tinha passado dois dias inteiros sem comida e sem água.
O edifício estava gelado. Ele piscou de medo e horror, quando nos agrupamos ao
seu redor.
Chamei Mannie para ficar diante dele.
“Mannie, foi este que te deu uma facada e ameaçou te matar?”
Mannie aproximou-se mancando. “Foi ele. Foi ele mesmo.”
Tirei a mordaça da boca de Joe. Seus lábios e sua língua
estavam inchados e rachados. Tinha a garganta seca e produziu ruídos esquisitos
e ofegantes, ao tentar falar.
“Veja, ele está confessando”, disse eu rindo.
Augie agarrou-o pelos longos cabelos e puxou-lhe a cabeça
para trás. Mannie sacudiu a cinza de seu cigarro, e colocou-o perto do pescoço
do rapaz. Os olhos de Joe estavam arregalados de medo, e Mannie riu ao
encostar levemente a ponta acesa do cigarro na pele fina. Ele gritou de dor, e
Mannie tirou o cigarro.
“Outra vez”, disse Augie a Mannie, “ele esfaqueou você duas
vezes.”
Desta vez Mannie esmagou vagarosamente o cigarro contra a
boca do rapaz, forçando-o deliberada-mente entre os lábios rachados, que ele
cerrava fortemente. O queixo do rapaz tremia enquanto ele corria a língua
crestada pelas feridas avermelhadas, em uma débil tentativa de livrar-se da
cinza e dos fragmentos de fumo que se haviam apegado a elas.
“Agora, pessoal, é a vez de vocês”, disse Augie.
Cada rapaz que estava no prédio acendeu um cigarro, e avançou
para ele, enquanto Augie o agarrava pelo cabelo outra vez, forçando sua cabeça
para trás. Ele gritou de dor e a garganta produziu ruídos estranhos, como de
lixa esfregada em uma tela. Os rapazes chegaram-se a ele, cada um apagando o
cigarro contra o seu rosto e pescoço. Ele gritou sem parar, até desmaiar de
dor.
Tiramos as cordas que o prendiam e ele escorregou para o
solo, em meio à sujeira e teias de aranha. Gritando palavrões, os rapazes
deram-lhe chutes, com os sapatos pontudos, quebrando-lhe as costelas e o
maxilar. Foi depois atirado no carro e levado à confeitaria que havia no
território dos Bishops. Augie escreveu uma nota e prendeu-a com um alfinete às
suas costas. “Ninguém fere um Mau-Mau e fica sem o troco.” Passamos
vagarosamente pela confeitaria, e rolamos o seu corpo inconsciente para a rua.
Depois, chispamos para longe dali.
No dia de Natal encontrei Mannie no bar do Gino. Estávamos
sentados em banquetas diante do balcão, fumando, e rindo do que acontecera na
semana anterior.
Levantei os olhos e vi cinco Bishops atravessando a rua.
Dei uma olhadela em volta : embora estivéssemos no centro do território dos
Mau-Maus, estávamos sozinhos. Cutuquei Mannie : “Bishops, meu chapa. Vamos nos
raspar.”
Mas era tarde demais. Eles nos viram mergulhar detrás do
balcão para tentar sair pela porta lateral. Tínhamos algum tempo de vantagem
sobre eles, e corremos porta a fora, atravessamos a rua e nos enfiamos por uma
travessa Corríamos o mais depressa possível, mas fraco como estava, Mannie foi
ficando para trás. Quando viramos a esquina da travessa e saímos na outra rua
— eles estavam à nossa frente.
Baixei a cabeça e corri diretamente através deles.
Peguei-os de surpresa com minha ousadia, e eles não estavam preparados para o
ataque. Atingi um deles no estômago, de cabeça, e ele caiu de costas na
calçada. Pus a mão sobre a capota de um carro estacionado, e saltei sobre ele,
caindo no meio da rua. Um carro de entregas vinha a toda pela rua, e tocou
insistentemente a buzina enquanto eu me safava por pouco. Esperava que Mannie
aproveitasse a vantagem do meu ataque, e me seguisse.
De repente, percebi que Mannie não me seguira. Olhei para
trás. Nenhum dos Bishops estava me seguindo. Parei de correr e voltei pela
rua, para ver o que tinha acontecido. Na entrada da travessa vi que os cinco
tinham cercado Mannie, apertando-o contra o muro, e davam-lhe socos e chutes no
estômago e na virilha.
Algo brilhou por um instante, e percebi que era o reflexo da
luz do sol na lâmina de uma faca. Corri para eles, procurando tirar
apressadamente a minha faca do bolso, e gritando: “Bastardos! Larguem
dele Vou matar vocês.”
Era, porém, muito tarde. Vi o rapaz que estava com a faca
levantar o braço, e num golpe desleal, abaixá-lo em direção à costela de Mannie,
com grande força. Este gemeu e vi-o ereto contra o muro por um curto momento;
depois começou a cair de rosto no concreto. Enquanto caía, o rapaz, maldosamente
enterrou a faca outra vez no seu peito.
Eu tinha parado no meio-fio. Não acreditava que eles
tentariam matá-lo. Fiquei como louco. Corri para o grupo brandindo a faca e
dando socos com a outra mão. Eles espalharam-se e correram em todas as
direções. Mannie ficou caído na calçada. O sangue corria da boca e do nariz, e
uma poça começou a formar-se ali, com o que vazava de sob o casaco de couro.
Estava deitado de bruços, mas tinha o rosto virado de lado,
e os seus olhos me encaravam cheios de terror. Tentou falar, mas quando abriu a
boca, só saíram pequenas bolhas de sangue.
Ajoelhei-me e virei-o de costas. Levantei sua cabeça e
coloquei-a em meu colo, abraçando-a contra meu blusão de couro. Seu sangue
manchou minhas calças, e eu o sentia quente e pegajoso em minhas mãos.
Continuou tentando dizer-me algo. Os olhos estavam
arregalados de terror. Porém, quando abriu a boca para falar, tudo o que pude
ouvir foi um gorgolejo que subia dos pulmões. Continuou soltando pequenas
bolhas de sangue com os lábios.
“Mannie, Mannie”, gritei, “não morra, Mannie. Não morra,
Mannie.”
Ele abriu a boca uma vez, muito pouco, e pude ouvir um som
como de ar escapando. Parecia um pneu acabando de se esvaziar. Sua cabeça rolou
em meus braços e senti que o seu peito baixava sob a jaqueta.
Olhei para os seus olhos fixos. Estava morto!
“Mannie! Mannie! Mannie!” eu estava gritando com todas as
forças, e minha própria voz se enchera do horror infinito da realidade que eu
acabara de presenciar.
Ouvi vozes rua abaixo. Uma mulher gritou: “O que está
acontecendo aí?”
Eu não podia mais ficar ali.
Com todas as minhas passagens
pela polícia, eles tentariam culpar-me. Não havia outra coisa que eu pudesse
fazer naquela hora. As vozes se
aproximavam. Levantei-me
cambaleando. O corpo inerte
de Mannie caiu pesadamente na
calçada. O som cavo de sua cabeça,
chocando-se contra o concreto duro, ecoava em cada uma de minhas passadas,
enquanto corria pela travessa, até sair na rua seguinte. Em minha mente, ainda
estava vendo Mannie caído na calçada com a face virada para mim, com aqueles
olhos mortos, arregalados de terror. Eu estava com medo.
Corri até chegar ao meu
apartamento. Bati a porta
atrás de mim, e tirei o revólver do guarda-roupa. Minha
respiração saía aos
arrancos, e eu me sentei, na beira da cama, tremendo, com a pistola
armada apontada para a porta fechada. Eu estava petrificado de terror.
Nunca vira a morte
tão de perto — pelo menos não
face a face. Ele fora meu amigo. Um minuto
antes estava rindo e falando. No minuto
seguinte, estava deitado na rua,
com sangue escorrendo da boca...
Eu não podia agüentar aquilo. Pensara que era valente — que não
tinha medo de nada. Mas a morte era
demais para mim. Comecei a sentir-me
mal. Grandes ondas de náusea me
dominaram, e eu me esforcei
para não vomitar. Queria chorar,
mas não conseguia.
Fiquei de pé e corri em direção à parede. “Não estou com
medo! Não estou com medo!” gritei repetidas vezes.
Parecia que estava possuído por demônios. Olhei para minhas
mãos. Vi o sangue coagulado em minha pele e sob as unhas. Aquela imagem, de
lábios rachados e olhos arregalados atravessou de novo minha mente.
Comecei a bater a cabeça na parede, gritando: “Ninguém pode
me fazer mal! Ninguém pode me fazer mal! Ninguém...”
Exausto, caí ofegante no chão. Medo! Terror infinito,
indefensável, invencível, terrificante! Era como se um pesadelo tivesse se
tornado realidade. Rolei no chão durante muito tempo, apertando o peito com os
braços, gemendo e gritando. As paredes do quarto pareciam aproximar-se de mim,
à medida que o forro se afastava. Parecia estar a dez quilômetros de distância.
Piquei deitado no fundo daquele retângulo minúsculo, olhando para cima, vendo
a porta e a janela que pareciam estar a centenas de metros acima de mim. Eu
estava apertado e preso no fundo do que era, para mim, como um canudinho de
refresco, quadrado, que tinha dez quilômetros de altura, sem saída.
Então, de cima, uma nuvem negra, grossa e lodosa apareceu e
começou a achatar o canudo em minha direção. Eu estava sufocando. Abri a boca
para gritar, mas nada saía a não ser bolhas de sangue. Eu estava arranhando a
parede, tentando escapar, tentando trepar. Mas meu pescoço insistia em cair de
lado, e eu senti minha cabeça chocando-se contra o solo com um ruído como o da
cabeça de Mannie, quando, ao rolar de meu colo, chocara-se contra a calçada de
cimento.
A nuvem negra foi descendo, e eu fiquei deitado de costas,
com as mãos e os pés estendidos para cima, tentando afastá-la. Era a nuvem da
morte — morte — morte... e vinha buscar-me. Ouvi o chiado suave do ar escapando
dos meus pulmões que se esvaziavam. Tive náuseas e tentei gritar, mas só
saíram mais bolhas, e então aquele gorgolejo cavo que ouvira no peito de
Mannie, quando o sangue enchera seu pulmão e subira pela garganta. Escutei-o
em meu próprio peito. Então, a nuvem negra me envolveu e ouvi uma gargalhada
fantasmagórica ecoar pelas paredes daquele canudo quadrado no fundo do qual eu
estava. O eco repetiu-se vezes sem conta. MORTE. .. Morte .. Morte... Era a
gargalhada do Diabo.
Quando acordei, era dia. O sol estava tentando penetrar pela
minha janela imunda. Eu ainda estava no chão paralisado, dolorido, e
enregelado. A primeira coisa que notei foram minhas mãos, ainda cobertas de
sangue endurecido.