sábado, 24 de abril de 2021

Foge Nick Foge 08 - A gargalhada do diabo



Capítulo 8

A GARGALHADA DO DIABO

DURANTE O PERÍODO de dois anos em que fui líder dos Mau-Maus, dezessete pessoas foram mor­tas. Fui preso mais vezes do que sou capaz de me lembrar. Nós vivíamos — todos os componentes das quadrilhas — como se não existisse lei. Nada era sagrado, exceto a nossa lealdade uns para com os outros — principalmente os laços de lealdade que eu sentia em relação a Israel e a Mannie.
Certo dia Israel entrou furtivamente em meu quarto, no meio da noite, e lançou uma pomba pela porta. Ficou de fora e deu gargalhadas ao ouvir meus gritos de medo. Quando ele abriu a porta e acendeu a luz, eu estava debaixo da cama. Tentei en­cobrir meu terror, rindo enquanto ele atirava a pomba pela janela. Mas depois que ele se foi, fi­quei tremendo na cama, com o som de asas ruflando nos ouvidos. Quando finalmente consegui pegar no sono, sonhei que estava caindo. Acordei julgan­do ter ouvido a gargalhada do diabo.
Na manhã seguinte Israel voltou para me con­tar que Mannie fora esfaqueado e estava no hospital. “O que é que há, Nicky ?” disse ele depois de contar como fora a facada, “que cara é essa?”
Não pude responder na hora. Sentia o estômago embrulhado, e o sangue fugindo de minhas faces. Mannie e Israel eram os únicos amigos que eu ti­nha. De repente, via minha segurança abalada, en­quanto Israel me contava que Mannie quase mor­rera.
Sacudi a cabeça : “Estou bem. É só raiva. Vou visitar Mannie e descobrir quem fez isso. Depois vamos queimar esse cara direitinho.”
Naquela tarde tentei entrar no hospital, mas ha­via dois policiais uniformizados na porta. Trepei pe­la escada de incêndio e bati de leve na janela e Mannie a abriu por dentro. Ele estava fraco e mal pôde  arrastar-se  de volta para o leito.
“Quem fez isto, cara ?” perguntei. “Ninguém vai bater e esfaquear você sem levar o troco.”
“Foram os Bishops. Eles me pegaram sozinho, e me acertaram duas vezes: na perna e no lado.”
“Quem foi ?” perguntei. “Você sabe quem fez isso?”
“Sim. Foi  aquele cara chamado Joe. É o novo vice-presidente deles. Pensa que é o tal. Quando fugiu disse que eles voltariam para me matar. É por isso que os tiras estão aí fora.”
“Bem, só quero que você fique bom, meu chapa. E quando sair daqui, vamos agarrar aquele negro sujo.”
Esgueirei-me de volta pela escada de incêndio e naquela noite encontrei com Israel e Homer Belanchi, nosso conselheiro de guerra, para traçar planos de vingança. Decidimos fazer um seqüestro.
No dia seguinte Homer roubou um carro. Es­condemos o bicho atrás de um velho armazém du­rante duas semanas, até Mannie sair do hospital.
Estávamos na semana anterior ao Natal de 1957, quando entramos em ação. Homer foi guiando o car­ro, e nós apanhamos Mannie. Ele ainda estava usan­do bengala. Augie, Paco e eu ficamos no banco de trás. Cruzamos a Rua St. Edward, depois do Centro Católico. Havia um baile de Natal no Centro, naque­la noite, e dois policiais uniformizados estavam de guarda à porta. Não vimos nenhum dos Bishops por ali; por isso, continuamos descendo a rua, até a confeitaria, e estacionamos do lado oposto. Eram quase onze horas da noite; dissemos a Mannie para esperar no carro.
Atravessamos a rua e entramos na confeitaria. Havia vários Bishops na confeitaria, e eu disse: “Ei, turma, nós estamos procurando o nosso amigo, Vice-Presidente dos Bishops. Alguém disse que ele quer fazer um acordo, e nós viemos por causa disso. Ele  está por aqui ?”
“Você está falando do Joe ? Está lá no canto, beijando a garota”, disse um dos Bishops.
Saímos devagar e fomos até onde Joe estava, sentado no chão, ao lado de uma mocinha. Ele le­vantou os olhos e Augie disse : “Bicho, nós somos os tais. Os Mau-Maus. Viemos buscar você.”
Joe tentou levantar, mas Augie pôs o pé sobre o seu ombro e empurrou-o para trás. Nós dois es­távamos armados e ele viu que apontávamos para ele.
Começou a gritar. Augie tirou o revólver e apon­tou para os outros que estavam no local. “Não se movam. Ninguém. O primeiro que mexer é homem morto.”
O   proprietário  parecia  que ia   ter um acesso.
“Não vamos fazer nada com você, velhinho”, disse Augie.
“Fique quieto que nós vamos cair fora num mi­nuto.
Falei com Joe, que ainda estava sentado no chão, ao lado da garota que parecia horrorizada: “Ei, pulha,  você   tem  duas  coisas  para   escolher: ou vai conosco, ou nós o matamos aqui mesmo. Quer um minuto para pensar ?”
O rapaz começou a gaguejar algo, e eu disse : “Bem, fico alegre por você ter resolvido.”
De um arranco coloquei-o de pé, e saímos pela porta, e Israel ficou apontando o revólver para os outros rapazes que ficaram no bar.
“Digam aos Bishops que vamos trazê-lo de volta depois de mostrar o que acontece quando alguém põe a mão num Mau-Mau”, disse Augie. Fechamos a porta atrás de nós e o obrigamos a correr; atraves­samos a rua empilhamo-nos no carro. Ele sentou-se atrás, entre Augie e eu, e durante todo o tempo apontamos as armas para ele. Homer deu partida no carro, e saímos em direção a um edifício aban­donado, perto da Ponte de Manhattan.
Levamos Joe para dentro, amarrando-o a uma cadeira, com uma mordaça na boca.
“Talvez sua morte seja rápida. Talvez vá ficar aqui o resto da vida”, falei zombando. Augie cuspiu no rosto dele e saímos batendo a porta atrás de nós. Era meia-noite.
Só voltamos dois dias depois. Quando o fizemos, levamos vinte e cinco Mau-Maus conosco. Joe esta­va caído de lado, ainda amarrado à cadeira. Tenta­ra escapar, mas fora muito bem amarrado. Pusemos a cadeira em pé e acendemos a luz. Ele tinha pas­sado dois dias inteiros sem comida e sem água. O edifício estava gelado. Ele piscou de medo e horror, quando nos agrupamos ao seu redor.
Chamei Mannie para ficar diante dele.
“Mannie, foi este que te deu uma facada e amea­çou te matar?”
Mannie aproximou-se mancando. “Foi ele. Foi ele mesmo.”
Tirei a mordaça da boca de Joe. Seus lábios e sua língua estavam inchados e rachados. Tinha a garganta seca e produziu ruídos esquisitos e ofegantes, ao tentar falar.
“Veja, ele está confessando”, disse eu rindo.
Augie agarrou-o pelos longos cabelos e puxou-lhe a cabeça para trás. Mannie sacudiu a cinza de seu cigarro, e colocou-o perto do pescoço do rapaz. Os olhos de Joe estavam arregalados de medo, e Man­nie riu ao encostar levemente a ponta acesa do ci­garro na pele fina. Ele gritou de dor, e Mannie tirou o cigarro.
“Outra vez”, disse Augie a Mannie, “ele esfaqueou você duas vezes.”
Desta vez Mannie esmagou vagarosamente o ci­garro contra a boca do rapaz, forçando-o deliberada-mente entre os lábios rachados, que ele cerrava for­temente. O queixo do rapaz tremia enquanto ele cor­ria a língua crestada pelas feridas avermelhadas, em uma débil tentativa de livrar-se da cinza e dos frag­mentos de fumo que se haviam apegado a elas.
“Agora, pessoal, é a vez de vocês”, disse Augie.
Cada rapaz que estava no prédio acendeu um ci­garro, e avançou para ele, enquanto Augie o agar­rava pelo cabelo outra vez, forçando sua cabeça pa­ra trás. Ele gritou de dor e a garganta produziu ruí­dos estranhos, como de lixa esfregada em uma tela. Os rapazes chegaram-se a ele, cada um apagando o cigarro contra o seu rosto e pescoço. Ele gritou sem parar, até desmaiar de dor.
Tiramos as cordas que o prendiam e ele escor­regou para o solo, em meio à sujeira e teias de ara­nha. Gritando palavrões, os rapazes deram-lhe chu­tes, com os sapatos pontudos, quebrando-lhe as cos­telas e o maxilar. Foi depois atirado no carro e levado à confeitaria que havia no território dos Bishops. Augie escreveu uma nota e prendeu-a com um alfinete às suas costas. “Ninguém fere um Mau-Mau e fica sem o troco.” Passamos vagarosamente pela confeitaria, e rolamos o seu corpo inconscien­te para a rua. Depois, chispamos para longe dali.
No dia de Natal encontrei Mannie no bar do Gino. Estávamos sentados em banquetas diante do balcão, fumando, e rindo do que acontecera na se­mana anterior.
Levantei os olhos e vi cinco Bishops atravessan­do a rua. Dei uma olhadela em volta : embora esti­véssemos no centro do território dos Mau-Maus, es­távamos sozinhos. Cutuquei Mannie : “Bishops, meu chapa. Vamos nos raspar.”
Mas era tarde demais. Eles nos viram mergulhar detrás do balcão para tentar sair pela porta lateral. Tínhamos algum tempo de vantagem sobre eles, e corremos porta a fora, atravessamos a rua e nos en­fiamos por uma travessa Corríamos o mais depres­sa possível, mas fraco como estava, Mannie foi fi­cando para trás. Quando viramos a esquina da tra­vessa e saímos na outra rua — eles estavam à nossa frente.
Baixei a cabeça e corri diretamente através de­les. Peguei-os de surpresa com minha ousadia, e eles não estavam preparados para o ataque. Atingi um deles no estômago, de cabeça, e ele caiu de costas na calçada. Pus a mão sobre a capota de um carro estacionado, e saltei sobre ele, caindo no meio da rua. Um carro de entregas vinha a toda pela rua, e tocou insistentemente a buzina enquanto eu me sa­fava por pouco. Esperava que Mannie aproveitasse a vantagem do meu ataque, e me seguisse.
De repente, percebi que Mannie não me seguira. Olhei para trás. Nenhum dos Bishops estava me se­guindo. Parei de correr e voltei pela rua, para ver o que tinha acontecido. Na entrada da travessa vi que os cinco tinham cercado Mannie, apertando-o contra o muro, e davam-lhe socos e chutes no estô­mago e na virilha.
Algo brilhou por um instante, e percebi que era o reflexo da luz do sol na lâmina de uma faca. Cor­ri para eles, procurando tirar apressadamente a mi­nha faca do bolso, e gritando: “Bastardos! Larguem dele   Vou matar vocês.”
Era, porém, muito tarde. Vi o rapaz que esta­va com a faca levantar o braço, e num golpe des­leal, abaixá-lo em direção à costela de Mannie, com grande força. Este gemeu e vi-o ereto contra o muro por um curto momento; depois começou a cair de rosto no concreto. Enquanto caía, o rapaz, maldosa­mente enterrou a faca outra vez no seu peito.
Eu tinha parado no meio-fio. Não acreditava que eles tentariam matá-lo. Fiquei como louco. Corri para o grupo brandindo a faca e dando socos com a outra mão. Eles espalharam-se e correram em todas as direções. Mannie ficou caído na calçada. O san­gue corria da boca e do nariz, e uma poça começou a formar-se ali, com o que vazava de sob o casaco de couro.
Estava deitado de bruços, mas tinha o rosto virado de lado, e os seus olhos me encaravam cheios de terror. Tentou falar, mas quando abriu a boca, só saíram pequenas bolhas de sangue.
Ajoelhei-me e virei-o de costas. Levantei sua ca­beça e coloquei-a em meu colo, abraçando-a con­tra meu blusão de couro. Seu sangue manchou mi­nhas calças, e eu o sentia quente e pegajoso em minhas mãos.
Continuou tentando dizer-me algo. Os olhos es­tavam arregalados de terror. Porém, quando abriu a boca para falar, tudo o que pude ouvir foi um gorgolejo que subia dos pulmões. Continuou sol­tando pequenas bolhas de sangue com os lábios.
“Mannie, Mannie”, gritei, “não morra, Mannie. Não morra, Mannie.”
Ele abriu a boca uma vez, muito pouco, e pude ouvir um som como de ar escapando. Parecia um pneu acabando de se esvaziar. Sua cabeça rolou em meus braços e senti que o seu peito baixava sob a jaqueta.
Olhei para os seus olhos fixos.  Estava morto!
“Mannie! Mannie! Mannie!” eu estava gritando com todas as forças, e minha própria voz se en­chera do horror infinito da realidade que eu aca­bara de presenciar.
Ouvi vozes rua abaixo. Uma mulher gritou: “O que  está  acontecendo aí?”
Eu não podia mais ficar ali.  Com todas as mi­nhas  passagens pela polícia, eles tentariam culpar-me. Não havia outra coisa que eu pudesse fazer na­quela hora.  As vozes se aproximavam.  Levantei-me cambaleando.   O corpo   inerte   de Mannie caiu  pe­sadamente na calçada.  O som cavo de sua cabeça, chocando-se contra o concreto duro, ecoava em ca­da uma de minhas passadas, enquanto corria pela travessa, até sair na rua seguinte. Em minha men­te, ainda estava vendo Mannie caído na calçada com a face virada para mim, com  aqueles  olhos mortos, arregalados   de terror.   Eu estava com  medo.
Corri até chegar ao meu  apartamento.   Bati  a porta  atrás de mim, e tirei o revólver do guarda-roupa.   Minha   respiração   saía  aos   arrancos, e eu me sentei, na beira da cama, tremendo, com a pis­tola armada apontada para a porta fechada. Eu es­tava petrificado de terror.
Nunca vira a morte  tão  de perto — pelo me­nos não face a face.  Ele fora meu amigo. Um mi­nuto antes estava rindo e falando.  No minuto se­guinte, estava deitado   na   rua,   com   sangue escor­rendo  da boca...   Eu  não podia agüentar   aquilo. Pensara que era valente — que não tinha medo de nada.  Mas a morte era demais para mim.   Come­cei a sentir-me mal.   Grandes ondas de náusea me dominaram, e eu   me   esforcei   para não vomitar. Queria  chorar, mas  não conseguia.
Fiquei de pé e corri em direção à parede. “Não estou com medo! Não estou com medo!” gritei re­petidas vezes.
Parecia que estava possuído por demônios. Olhei para minhas mãos. Vi o sangue coagulado em minha pele e sob as unhas. Aquela imagem, de lábios rachados e olhos arregalados atravessou de novo minha mente.
Comecei a bater a cabeça na parede, gritando: “Ninguém pode me fazer mal! Ninguém pode me fazer mal! Ninguém...”
Exausto, caí ofegante no chão. Medo! Terror infinito, indefensável, invencível, terrificante! Era como se um pesadelo tivesse se tornado realidade. Rolei no chão durante muito tempo, apertando o peito com os braços, gemendo e gritando. As pa­redes do quarto pareciam aproximar-se de mim, à medida que o forro se afastava. Parecia estar a dez quilômetros de distância. Piquei deitado no fundo daquele retângulo minúsculo, olhando para ci­ma, vendo a porta e a janela que pareciam estar a centenas de metros acima de mim. Eu estava apertado e preso no fundo do que era, para mim, como um canudinho de refresco, quadrado, que ti­nha dez quilômetros de altura, sem saída.
Então, de cima, uma nuvem negra, grossa e lodosa apareceu e começou a achatar o canudo em minha direção. Eu estava sufocando. Abri a boca para gritar, mas nada saía a não ser bolhas de san­gue. Eu estava arranhando a parede, tentando es­capar, tentando trepar. Mas meu pescoço insistia em cair de lado, e eu senti minha cabeça chocando-se contra o solo com um ruído como o da cabeça de Mannie, quando, ao rolar de meu colo, choca­ra-se contra a calçada de cimento.
A nuvem negra foi descendo, e eu fiquei dei­tado de costas, com as mãos e os pés estendidos para cima, tentando afastá-la. Era a nuvem da mor­te — morte — morte... e vinha buscar-me. Ouvi o chiado suave do ar escapando dos meus pul­mões que se esvaziavam. Tive náuseas e tentei gri­tar, mas só saíram mais bolhas, e então aquele gor­golejo cavo que ouvira no peito de Mannie, quando o sangue enchera seu pulmão e subira pela gargan­ta. Escutei-o em meu próprio peito. Então, a nu­vem negra me envolveu e ouvi uma gargalhada fan­tasmagórica ecoar pelas paredes daquele canudo quadrado no fundo do qual eu estava. O eco repe­tiu-se vezes sem conta. MORTE. .. Morte .. Mor­te... Era a gargalhada do Diabo.
Quando acordei, era dia. O sol estava tentando penetrar pela minha janela imunda. Eu ainda es­tava no chão paralisado, dolorido, e enregelado. A primeira coisa que notei foram minhas mãos, ain­da cobertas de sangue endurecido.