sábado, 24 de abril de 2021

Foge Nick Foge - 05 - Tumulto nas ruas



Capítulo 5
TUMULTO NAS RUAS

DESDE O PRINCÍPIO, eu e Israel nos tornamos quase inseparáveis. Três noites depois, ele passou pelo meu apartamento para dizer que ia haver um “quebra-pau” com os Bishops. “Por fim”, pensei, “uma oportunidade para usar meu revólver — uma oportu-nidade para lutar.” Enquanto Israel descrevia o pla¬no senti-me arrepiar.
Os Mau-Maus deveriam reunir-se na Praça Washington perto de De Kalb. Deveríamos estar lá, por volta das nove da noite. O nosso conselheiro de guerra já havia se encontrado com o conselheiro de guerra dos Bishops, uma quadrilha de rapazes de cor, para marcar a hora e o lugar. Dez da noite no parque atrás do 67.° Distrito.
Israel disse: “Leva seu revólver. Todos os ou¬tros rapazes têm armas. Alguns fizeram suas pró¬prias espingardas, e Heitor tem um rifle serrado. Vamos dar uma lição nos Bishops. Se tivermos de matar, mataremos. Mas se cairmos, cairemos lutan¬do. Somos os Mau-Maus. Os tais. Os Mau-Maus afri¬canos bebem sangue, cara, e nós somos iguais a eles.”
A gang já estava reunida, quando eu cheguei à praça às oito e meia. Haviam escondido suas armas nas árvores e na grama alta, com medo que a polícia chegasse. Mas naquela noite não havia polícia, e Israel e Carlos estavam dando ordens. Às dez horas havia mais de cem rapazes vagueando pela praça. Alguns deles tinham revólveres. A maioria ti¬nha facas. Uns poucos, tacos de beisebol, porretes com pregos nas pontas, ou clavas feitas em casa. Outros tinham correntes de bicicleta, que eram ar¬ma perigosa quando batiam na cabeça de alguém. Carlos tinha uma baioneta de cerca de sessenta cen¬tímetros, e Heitor, a sua espingarda serrada. Alguns rapazes deveriam ir dois quarteirões abaixo, passar por trás do pátio da escola, na Av. Park, para cortar a retirada dos Bishops. Deveriam esperar até ouvir o barulho da luta e então atacar pela retaguarda. O restante avançaria da R. St. Edward, ao lado da escola, tentando forçar os Bishops a recuarem para onde o nosso pelotão de retaguarda cortaria sua retirada.
Movemo-nos silenciosamente, apanhando nossas armas nos esconderijos ao sairmos. Tico estava ao meu lado, rindo. “Que tal, Nicky, está com medo ?”
“Rapaz, eu não ! É isto que eu estava esperan¬do”, disse, abrindo o blusão para que ele pudesse ver o meu revólver.
“Quantas balas tem aí?” perguntou. “Está cheio, menino. Cinco balas.” “Puxa”, disse Tico, assobiando baixo, “não está nada mal. Você deve pegar um daqueles bastardos pretos   esta   noite,   sem dúvida. Eu ?   Fico com a minha faca.”
Dividimo-nos em grupos pequenos, a fim de pas-sarmos despercebidos pela delegacia que havia na es-quina das ruas Auburn e St. Edward. Reunimo-nos defronte da escola, e Carlos deu o sinal de ataque.
Corremos ao redor do edifício, e entramos no pátio. Os Bishops estavam nos esperando. “Eia! eia! matem! peguem!” gritávamos, enquanto enxameávamos em direção ao pátio, e corríamos pelo espaço aberto que separava as duas quadrilhas.
Arremeti à frente do grupo, tirando o revólver do cinto. Israel desviou-se para um lado, girando o seu taco de beisebol. Rapazes volteavam ao meu re¬dor, gritando, xingando e atacando uns aos outros. Devia haver duzentos rapazes no pátio, mas estava escuro, e era difícil distinguir-se as quadrilhas. Vi Heitor correr por uma quadra de basquete, e vi al¬guém correndo em direção a ele com uma tampa de lata de lixo. Heitor caiu para trás, disparando a es¬pingarda ao mesmo tempo, com um barulho ensur¬decedor.
Perto dele um rapaz negro caiu para a frente, com sangue escorrendo de um ferimento na cabeça. Passei correndo perto dele e chutei seu corpo. Pare¬cia um saco de milho.
De repente, fui empurrado por trás, e me espar-ramei no cimento duro da quadra. Estendi as mãos para diminuir o impacto da queda, e senti a pele da palma das minhas mãos esfolar-se. Olhei para ver quem me empurrara, e desviei rapidamente a cabeça exatamente no instante em que um taco de beisebol espatifava-se contra o pavimento, ao meu lado. Ouvi o taco estilhaçar-se ao bater. Um golpe direto teria me matado.
Um grande grito levantou-se dos Mau-Maus, quan¬do o resto da nossa quadrilha atacou pela retaguar-da. “Acabem com eles, turma, acabem com eles !” Levantei-me cambaleando, enquanto os Bishops, ago¬ra em confusão, começavam a fugir pelas ruelas que davam para a Rua St. Edward. Israel estava a meu lado, gritando: “Atira naquele lá, Nicky, atira nele.”
Ele apontava para um menino que tentava fugir mas fora ferido e estava tentando correr, meio co¬xeando, ficando cada vez mais para trás dos Bishops que fugiam. Fiz mira com o revólver na direção da figura cambaleante, e  puxei o  gatilho. A bala disparou, mas ele ainda corria. Agarrei o revólver com ambas as mãos, e puxei o gatilho outra vez.
“Você acertou, cara, você acertou.” Vi o rapaz cair para a frente, ao impacto da bala na coxa. Ele ainda rastejava, quando Israel agarrou o meu braço e gritou: “Vamos nos mandar, rapaz; aí vêm os ti¬ras.” Ouvimos os apitos e gritos dos guardas diante da escola, e a polícia rodeando, cercando os Bishops que fugiam pelo beco, tentando escapar. Corremos na direção oposta, espalhando-nos pelo fundo do pá¬tio da escola. Olhei para trás, ao pular uma cerca de corrente. Na penumbra, pude ver ainda três rapa¬zes caídos no pátio e vários outros sentados, aper¬tando os ferimentos. A batalha não durara mais de dez minutos.
Corremos seis ou sete quarteirões, até ficarmos exaustos. Carlos e mais dois rapazes uniram-se a nós, e pulamos numa valeta de esgoto, que havia atrás de um posto de gasolina.
Israel estava sem fôlego, mas ria tanto que qua¬se não agüentava. “Você viu esse Nicky maluco ?” arquejou ele entre gargalhadas. “Rapaz, ele pensou que era um filme de mocinho e ficou dando tiros para o ar.”
Os outros estavam retomando o fôlego e rindo também. Participei da alegria geral. Estávamos dei¬tados de costas na valeta, rindo. Até pensamos que nossos pulmões iriam estourar. Israel tomou fôlego e, com o dedo esticado, fez: “Bang! Bang! Bang!” caindo outra vez na risada. Nós apertávamos a bar¬riga e rolávamos na valeta, rindo a mais não poder.
Sentia-me bem. Tinha visto sangue correr. Ha¬via atirado em alguém, e talvez o houvesse mata¬do, e havíamos conseguido escapar. Eu jamais tivera aquela sensação de pertencer a um grupo como a que sentia ali dentro daquele fosso, com aqueles rapazes. Era quase como se fôssemos uma família, e pela primeira vez na vida senti que era aceito e querido.
Israel estendeu o braço e colocou-o ao redor dos meus ombros. “Você é dos bons, Nicky. Estava es¬perando alguém como você há muito tempo. Somos do mesmo tipo — nós dois somos doidos.”
Caímos na risada outra vez, mas dentro de mim pensei que era melhor ser louco e desejado, do que ser normal e viver sozinho.
“Ei, turma, que tal a gente beber?” disse Carlos, ainda empolgado pelo êxito. “Quem tem grana?”
Estávamos todos “duros”.
“Vou arrumar dinheiro”, disse eu.
“O que é que você vai fazer? assaltar alguém?” perguntou Israel.
“Certo, meu chapa. Quer ir também ?” Israel deu um soco no meu braço: “Você é legal, Nicky. Rapaz, você não tem coração, nem sentimen¬tos. Tudo o que você quer é brigar. Vamos, cara, nós estamos com você.”
Olhei para Carlos, que devia ser o líder. Já es¬tava de pé, pronto para sair. Foi a minha primeira indicação de que os outros rapazes seguiriam o que fosse o mais cruel, o mais sedento de sangue, o mais corajoso.
Levantamo-nos do fosso, e atravessamos a rua, correndo para uma ruela escura. Na esquina, brilha¬vam luzes em um bar que ficava aberto a noite in¬teira. Dirigi-me para lá.
Havia três pessoas na lanchonete. Duas delas, um homem e uma senhora, estavam por trás do balcão. Um velho acabara de levantar-se dum banquinho, diante do balcão, e estava pagando a conta. Cheguei perto dele e empurrei-o contra o balcão. Ele virou-se com surpresa e medo, lábios trêmulos, ao ver-me apertar o botão da minha faca, abri-la, e encostá-la de leve no seu estômago.
“Vamos, velho. Dá aqui”, disse eu, fazendo sinal com a cabeça para as notas em sua mão.
O homem que estava atrás do balcão começou a mover-se em direção ao telefone público, na parede.
Israel abriu o punhal e agarrou o homem pela parte superior do avental. Empurrando-o com força con-tra o balcão, ele disse: “Ei, cara, você quer morrer, hein?” Ouvi a mulher engasgar-se e colocar a mão na boca para sufocar um grito. Israel empurrou o ho¬mem para trás, sobre a caixa e tirou o fone do gan¬cho. “Você quer chamar os tiras, grandão ?” zombou ele. “Pronto, aqui está!” Deu um sorriso de mofa, enquanto arrancava o receptor da parede e atirava para o homem. “Pode chamar !” O homem, estonteado, apanhou o fone e ficou a segurá-lo pelo fio, que oscilava como o fio de um pêndulo.
“Vamos depressa, velho. Não posso esperar a noite toda”, rosnei. Ele estendeu a mão trêmula à minha frente, e eu arrebatei as notas de entre os seus dedos. “Isto é tudo?” perguntei. Ele tentou respon¬der, mas nenhum som saiu dos seus lábios trêmu¬los. Os olhos começaram a girar para trás nas órbi¬tas, a saliva a correr dos cantos da boca, enquanto dava grunhidos esquisitos.
“Vamos nos mandar daqui”, disse um dos rapa¬zes. Carlos apertou um botão da caixa registradora, e rapou todas as notas, enquanto nos afastávamos para a porta. O velho despencou por terra, apertando o peito com as mãos, produzindo ruídos, como de cacarejo.
“Ei, espera”, disse Israel, enquanto agarrava um punhado de troco da caixa registradora. Moedas de todos os tamanhos tilintaram no chão duro. Israel estava rindo. “Nunca saia de uma espelunca sem deixar uma gorjeta”, gargalhou. Todos rimos. O ho¬mem e a mulher ainda estavam presos à ponta do balcão, e o velho estava ajoelhado no chão, todo cur¬vado.
Apanhei um pesado açucareiro e espatifei-o con¬tra o vidro da vitrine.
“Rapaz, você é louco”, gritou Carlos e começa¬mos a correr rua abaixo. “Isto vai atrair todos os tiras de Brooklin.   Vamos nos  mandar daqui.” O velho caiu para frente, de rosto no chão. Corremos pela rua escura até em casa, rindo e gritando.
Dois meses depois Carlos foi apanhado pela po-lícia, e condenado a seis meses de cadeia. Naquela noite tivemos uma grande reunião da quadrilha no auditório da escola perto do 67.° Distrito. Ninguém podia entrar na escola fora do expediente, mas fize¬mos um trato com Firpo, vice-presidente dos Chaplains, cujo pai era zelador da escola. Ele deixava as quadrilhas usarem o auditório do prédio, de noi¬te, para reuniões, porque tinha medo do filho. Na¬quela noite promovemos Israel à presidência, e eu fui escolhido como vice-presidente por unanimidade.
Depois da reunião da quadrilha, tivemos uma “festinha” no porão da escola. Havia um grande nú¬mero de “bonecas”, e um dos rapazes me apresen¬tou sua irmã, Lídia, que morava defronte à escola. Picamos muito tempo na escola, naquela noite, fu¬mando maconha, bebendo vinho barato, e sentados na escadaria interior, namorando, enquanto outros dançavam ao som de um fonógrafo. A escada estava fechada por um gradil que vários casais abriam, a fim de subir ao primeiro andar, para fazer amor, no escuro.
Puxei Lídia pela mão: “Vamos cair fora.” Quan¬do saímos pela porta, ela chegou-se a mim: “Sou sua para sempre, Nicky. Sempre que você me qui¬ser, eu sou sua.”
Nos quatro meses seguintes houve brigas, rou¬bos, e outras atividades da quadrilha. Fui agarrado pela polícia quatro vezes, mas em nenhuma delas puderam provar coisa alguma contra mim. Todas as vezes saí livre, recebendo apenas uma advertência.
Os membros da quadrilha gostavam de mim e me respeitavam. Eu não tinha medo de coisa algu¬ma, e estava disposto a brigar tanto à plena luz do dia, como sob o manto das trevas.
Certa tarde um dos Mau-Maus contou que Lídia havia me delatado a um Apache. Meu sangue ferveu e eu disse que ia matar Lídia. Voltei ao meu aparta¬mento para pegar o revólver. Um dos rapazes con¬tou ao irmão dela e ele correu a avisá-la. Quando cheguei ao apartamento dela, conversei com Luís, seu irmão mais velho. Ele me disse que um dos Apaches encontrara Lídia na rua, na noite anterior, e batera nela, para saber onde eu morava, pois queria me matar.
Saí de lá e segui para o apartamento de Israel. Saímos procurando o Apache de quem Luís nos fa¬lara. Encontramo-lo na esquina das ruas Lafayette e Fort Greene, defronte à Casa de Carnes Harry. Mais seis Mau-Maus reuniram-se a nós formando um pe¬queno círculo. Dei um soco no rapaz, derrubando-o, e bati nele com um cano de metal. Ele rogou-me que não o matasse. A turma estava rindo; continuei golpeando-o; acertei-o repetidas vezes, e ele ficou co¬berto de sangue. Os espectadores correram, enquan¬to a surra continuava. Finalmente, quando ele não podia mais levantar os braços para proteger-se con¬tra os golpes, eu, maldosamente, amassei o cano con¬tra os seus ombros, e continuei batendo nele até que caiu, inconsciente, em uma poça de sangue.
“Estúpido, sebento ! Isto te ensinará a não bater na minha garota.” Saímos correndo. Eu estava an¬sioso para dizer a Lídia o que fizera para defender sua honra, embora uma hora antes estivesse disposto a matá-la.
À medida que o verão avançava, as brigas de rua tornavam-se piores. O calor nos apartamentos era insuportável, e nós ficávamos na rua a maior parte da noite. Dificilmente uma noite se passava sem atividade das quadrilhas.
Ninguém de nossa gang tinha carro. Se quería¬mos ir a algum lugar, tomávamos o metrô, ou rou¬bávamos um carro. Eu não sabia guiar, mas uma noite Mannie Durango chegou para mim e disse: “Vamos roubar um carro e dar uma volta.”
“Você sabe de algum ?” perguntei.
“Sim, meu chapa, logo ali virando a esquina. É uma beleza, e o bobo do dono deixou as chaves no contato.”
Fui com ele e vi o carro, defronte a um prédio de apartamentos. Mannie tinha razão, era uma bele¬za. Era um Chevrolet conversível com a capota abai¬xada. Pulamos para dentro e Mannie sentou-se atrás do volante. Reclinei-me no banco ao seu lado, e fu¬mava um cigarro, sacudindo as cinzas por sobre a porta, como um grã-fino sofisticado. Mannie virava a direção para um lado e para outro, fazendo ruídos com a boca, imitando pneus derrapando e motor de carro de corrida.
“Rrruuuuummmmmmm! Rruuuummmmmmm! Rroooouurrrrr!” Comecei a rir.
“Ei, Mannie, você sabe mesmo guiar este carro?”
“Claro, rapaz, olhe só.”
Ele girou a chave que estava pendurada no con¬tato e o carro rugiu. Engatou em marcha-ré e cal¬cou o pé no acelerador, trombando com um cami¬nhão que estava estacionado atrás. Ouvimos baru¬lho de vidro quebrado.
“Ei, meu chapa”, falei, rindo, “você é um moto¬rista bacana. Puxa, você sabe mesmo mexer com es¬se troço. Quero ver agora se sabe andar para a fren¬te.”
Mannie engatou a marcha, eu me retesei no ban-co, e o carro chispou para a frente, batendo na tra¬seira de outro carro. De novo houve um estrondo forte de vidro quebrado e de lata amassada.
Nós dois ríamos tanto que não vimos um ho¬mem sair correndo do apartamento, e gritar conos¬co. “Saiam do meu carro, seus cachorros!” gritava ele, tentando tirar-me do assento. Mannie arrancou para ré e fez o homem perder o equilíbrio, jogando-o para trás. Peguei uma garrafa de refrigerante que estava no banco do carro e dei-lhe uma forte pancada na mão, que se agarrava desesperadamente
à porta. Ele gritou de dor. Mannie engatou a primei¬ra e nós nos arremessamos para a rua. Eu ainda es¬tava recostado no assento, rindo desbragadamente. Joguei a garrafa na calçada, e ouvia quebrar-se, en-quanto saíamos à toda.
Mannie não sabia guiar. Ele virou a esquina, com os pneus cantando, e entrou no lado errado da Av. Park. Por pouco não colidimos com dois car¬ros, e outro, buzinando insistentemente, subiu na cal¬çada, para evitar uma colisão. Nós dois estávamos rindo e gritando. Mannie atravessou um posto de gasolina e saiu por uma rua lateral.
“Vamos pôr fogo neste carro”, disse Mannie. “Não, cara! Este carro é uma beleza. Vamos fi¬car com ele. Vamos mostrá-lo as garotas.”
Porém Mannie não foi capaz de fazer a volta e finalmente enfiou-o na traseira de um caminhão que parara diante de um sinal vermelho. Pulamos para fora e corremos rua abaixo, deixando o carro seria¬mente danificado enfiado sob a carroceria do cami¬nhão.
Mannie era o tipo ideal de companheiro para mim. Mal sabia eu o horror que estava reservado para ele.
Todos os dias nos dávamos a muitas atividades criminosas. As noites eram ainda piores. Uma noi¬te, Tony e mais quatro rapazes atacaram uma se¬nhora que voltava do serviço para casa, arrastaram-na para um jardim, onde os cinco abusaram dela, duas vezes cada um. Tony tentou matá-la por asfi¬xia, com o seu cinturão. Mais tarde ela o identifi¬cou, e ele foi condenado a doze anos de prisão.
Duas semanas depois, eu e mais quinze pega¬mos um rapaz italiano andando nos domínios dos Mau-Maus. Rodeamo-lo e jogamo-lo ao solo. Colo¬quei-me sobre ele, brincando com a faca, espetando de leve o seu pomo de Adão, e cutucando os botões da sua camisa.  Xingando-me, ele deu um tapa na faca, arrebatando-a da minha mão, e antes que eu pudesse mover-me, Tico pegou-a e riscou o rosto dele. O rapaz gritou quando Tico cortou sua camisa e riscou um enorme “M” nas suas costas. “Olhe aqui, cara, isto é para ensinar você a não pi¬sar nos domínios dos Mau-Maus”, disse ele. Saímos correndo, deixando-o ensangüentado na calçada.
Todos os dias os jornais estampavam reporta¬gens de assassinato nos jardins, nos metrôs, nas tra¬vessas, nos saguões dos prédios de apartamentos, nos becos. Todas as noites havia “quebra-pau”.
Os diretores da Escola Técnica de Brooklin man-daram colocar telas de arame grosso sobre as por¬tas e janelas da escola. Todas as janelas, mesmo as do quinto andar, estavam cobertas de tela metálica.
Muitos proprietários de lojas estavam compran¬do cães policiais, e deixavam-nos presos dentro das lojas, durante a noite.
As gangs estavam ficando mais organizadas, e novas quadrilhas estavam se formando. Três gangs novas haviam surgido em nosso bairro: a Scorpions, a Viceroys e a Quentos.
Descobrimos pouco depois que a lei da cidade de Nova York proibia os policiais de revistarem mulheres. Por isso, deixávamos as garotas carregar nossos revólveres e facas, até na hora em que pre¬cisássemos deles. Se um guarda parasse para nos revistar, as garotas ficavam para trás e gritavam: “Ei, tira sujo! Largue dele. Ele não tem nada, está limpo. Por que você não vem me revistar? depois eu te ponho na cadeia. Ei, tira, você não quer pôr as mãos em mim? Venha!”
Aprendemos a fazer revólveres para balas cali¬bre vinte e cinco, usando antena de carro e peças de fechadura. Ocasionalmente um desses revólveres explodia na mão de alguém, ou atirava para trás cegando-o. Mas nós conseguimos fabricar grande número deles e vendê-los para membros de outras quadrilhas — sabendo que eles os usariam contra nós, se tivessem oportunidade.
Naquele verão, no dia quatro de julho, todas as gangs reuniram-se no parque de diversões de Coney Island. Os jornais calcularam que mais de oito mil jovens, membros de quadrilhas, convergiam para Co¬ney Island. Ninguém pagou. Eles apenas entraram empurrando o portão, e ninguém ousou dizer coisa alguma. O mesmo aconteceu no metrô.
No dia primeiro de agosto, Israel foi apanhado pela polícia. Quando saiu da cadeia, disse-nos que as coisas estavam mesmo pretas para ele, e que que¬ria assumir uma posição secundária, até que a situa¬ção esfriasse. Concordamos, e a quadrilha me ele¬geu presidente, designando Israel para servir como vice-presidente até que tudo esfriasse. Eu fazia par¬te da quadrilha há seis meses, quando passei a ser chefe.
Não levei muito tempo para perceber que os Mau-Maus eram muito temidos, e que eu havia ga¬nhado reputação de ser um valentão sanguinário. Eu me gloriava dessa reputação.
Certa noite, fomos todos a um grande baile que era promovido pelo centro social da igreja de St. Edward — St. Michael. A igreja estava fazendo uma tentativa para afastar os rapazes das ruas, e havia aberto uma cantina logo abaixo da delegacia de po¬lícia, para realizar bailes nos fins de semana. Toda sexta-feira havia ali um conjunto de dança e todos os membros das quadrilhas iam ao centro para dan¬çar. Ficavam na rua também, defronte ao centro, e bebiam cerveja e vinho barato. Na semana anterior nós havíamos nos embebedado, e quando os padres tentaram fazer-nos ficar quietos, batemos e cuspi¬mos neles. A polícia veio e nos pôs a correr. Rara¬mente passava-se uma sexta-feira sem que o baile da cantina não se transformasse em tumulto.
Naquela noite, eu fora com Mannie e Paco. Es-távamos bebendo muito e fumando maconha. Mar¬quei uma bonita garota loura e dancei várias vezes com ela. Ela me disse que o irmão estava compli¬cado com a gang Phantom Lords. Eles iam matá-lo.
“Onde está seu irmão?” perguntei. “Ninguém vai machucá-lo sem minha ordem. Vamos falar com ele.”
Levou-me a um canto da sala, e apresentou-me ao irmão. Ele disse que a turma Phantom Lords da Av. Bedford queria matá-lo porque ele namorava uma das suas “bonecas”. O rapaz estava completa¬mente bêbedo e muito amedrontado.
“Olhe”, disse eu “sua irmã é uma menina baca¬na. Acho que vou querer sair com ela mais vezes, e como gosto dela, vou tomar conta de você tam¬bém.”
Eu já marcara encontro com a garota, para le¬vá-la ao cinema. Disse-lhe que teria de fazer tudo o que eu quisesse, porque eu era o presidente dos Mau-Maus. Ela ficou amedrontada, e disse que iria comigo, mas não queria que nenhum dos outros ra¬pazes tocasse nela. Nós nos beijamos e eu disse que enquanto ela estivesse comigo eu cuidaria dela.
Levantamos os olhos exatamente no instante em que três Phantom Lords entravam pela porta. Esta¬vam vestidos com paletós espalhafatosos e calças xadrez, e tinham chaveiro com corrente longa. Um dos rapazes passou perto de nós girando a corrente e piscou para a minha garota. Ela deu-lhe as costas e eu pus o braço ao seu redor.
“Ei, menina”, zombou ele, “que tal sair comigo? Meu irmão está com o carro aí fora, e o banco de trás fica reservado só para nós...” “Está querendo morrer”, rosnei. “Bruto”, riu o rapaz, “nós já estamos planejan¬do matar o seu amigo bêbedo, e bem podemos ma¬tar você também, vagabundo.”
Mannie deu uma gargalhada zombeteira. O ra¬paz virou-se rápido: “Quem foi?”
Mannie começou a rir, mas eu senti a tempes¬tade no ar, e respondi: “Ninguém.” Comecei a me afastar, mas o rapaz voou para o lado de Mannie, e deu-lhe um soco, derrubando-o. Depois de Israel, Mannie era o meu melhor amigo. Ninguém iria feri-lo na minha presença, sem receber o troco. Voltei e dei no rapaz um golpe terrível nas costas, bem acima dos rins. Ele apertou os rins com as mãos, e gritou de dor.
Mannie levantou-se aos tropeções e puxou da faca. Eu peguei a minha também e os outros rapa¬zes formaram um semicírculo e avançaram contra nós. Não havia muitos de nosso grupo para brigar, por isso recuamos para a porta. Quando chegamos à escada, um rapagão arremeteu contra mim com uma faca. Ele errou o golpe, mas a faca cortou meu paletó. Quando ele tropeçou devido à violência do golpe frustrado, atingi-o na nuca e chutei-o pelos de¬graus de concreto abaixo. Dois outros pularam so¬bre mim. Mannie puxou o meu paletó e nós come¬çamos a correr. “Vamos”, gritei. “Vou procurar os Mau-Maus, e voltamos para incendiar este lugar.”
Os rapazes olharam um para o outro. Não sa¬biam que eu era Mau-Mau, pois estava vestido de paletó e gravata, naquela noite. Começaram a recuar para a sala, e Mannie e eu viramo-nos e saímos.
No dia seguinte chamei Mannie e Paco. Estáva¬mos atrás de Santo, o Phantom Lord que havia ameaçado o irmão da loura. Mannie e eu havíamos bebido, e estávamos quase bêbedos. Fomos até a Loja de Doces da Rua Três, e vi alguns Phantom Lords. “Qual de vocês é Santo?” perguntei. Um dos rapazes deu uma olhadela na direção de um rapaz alto de cabelo anelado. Eu disse: “Ei, garotão, qual é o seu nome? Santo do Dia?”
Mannie riu, e o rapaz olhou para mim e me xingou de um palavrão.
“Olhe, menino”, disse eu, “está sendo bobo. Sa¬be quem são os Mau-Maus?”
“Sim, ouvi falar deles. Eles são sabidos demais para ficar vadiando por aqui.”
“Hoje eles estão aqui, cara. Aqui estão os Mau-Maus. Meu nome é Nicky.  Sou o presidente. Você vai lembrar este nome o resto da vida, moleque.”
O dono da loja estendeu a mão para o telefone. Pus a mão no bolso e espetei o dedo contra o forro, como se tivesse um revólver no bolso. “Você aí!” gritei, “largue isso!”
Os outros ficaram com medo e recuaram.  En-caminhei-me para Santo e dei-lhe dois tapas no ros¬to. Conservava ainda a outra mão no bolso: “Quem sabe se você agora vai lembrar de mim, cara.” Ele vacilou, e eu o golpeei no estômago. “Vamos”, disse eu a Paco, “vamos sair daqui. Esses caras estão com medo.” Viramo-nos e come¬çamos a sair; cuspi por sobre o ombro. “Da próxi¬ma vez, diga à sua mamãe para não se esquecer de pôr a fralda em vocês, antes de deixá-los sair. Vocês ainda são nenês.” Rimos um para o outro e saímos. Quando chegamos à rua, Mannie colocou a mão no bolso do paletó e apontou o dedo através do te¬cido: “Bang! bang! bang! Você está morto!” gritou ele. Rimos e descemos bamboleando rua abaixo.
Naquela noite Israel foi à minha casa e disse que os Phantom Lords estavam se preparando para um grande “quebra-pau”. por causa da briga da con¬feitaria.   Israel e eu passamos na casa de Mannie para apanhá-lo, e dirigimo-nos para os domínios dos Phantom Lords, a fim de surpreendê-los antecipada¬mente. Quando chegamos perto da ponte de Brook¬lin, separamo-nos. Israel e Mannie rodearam o quar¬teirão, e eu desci diretamente pela rua. Poucos ins¬tantes depois, ouvi Israel gritar e saí correndo a to¬da, rodeando o edifício. Eles haviam surpreendido um Phantom Lord sozinho, e tinham-no deitado na calçada, pedindo misericórdia.
“Tira a calça dele”, ordenei. Os rapazes desafi-velaram o cinto e tiraram-lhe a calça. Jogaram-na na sarjeta de água suja, e depois rasgaram sua cue¬ca.
“De pé, aborto, e comece a correr.” Observamo-lo enquanto ele corria aterrorizado, rua abaixo. Fi¬camos rindo e gritando nomes.
“Vamos”, disse Israel, “nenhum daqueles malo-queiros está por aqui. Vamos voltar para casa.” Co-meçamos a voltar, quando repentinamente fomos rodeados por uma turma de doze ou quinze Phan¬tom Lords. Era uma emboscada. Reconheci alguns membros de uma gang de judeus com eles. Um ra¬paz avançou para mim com uma faca, e eu o feri com um cano de ferro. Outro arremeteu com ímpe¬to contra mim; dei uma guinada e golpeei-o no lado da cabeça com o cano.
Foi então que eu senti uma explosão na nuca, e caí na calçada. Minha cabeça parecia que ia estou¬rar. Tentei olhar para cima, porém um deles chu¬tou-me o rosto com um sapato de chapinha. Outro chutou-me nas costas, à altura da cintura. Tentei levantar-me, mas fui atingido acima dos olhos, com um cano. Eu sabia que eles iriam matar-me, se eu não fugisse, mas não conseguia levantar-me. Caí de volta na calçada, de bruços, e senti que o rapaz que tinha chapinhas no sapato pulou nas minhas pernas e depois sapateou sobre as minhas costas. As cha¬pinhas eram afiadas como giletes. Senti o aço afia¬do rasgando minha calça e afundando-se na carne de minhas coxas e nádegas.  Desmaiei de dor
A primeira coisa de que me lembro a seguir, é de Israel e Mannie arrastando-me por um beco. Eu sabia que estava muito ferido, porque não era ca¬paz de firmar as pernas. “Vamos, corra!” continua¬vam a dizer. “Aqueles bastardos vão estar de volta num minuto. Precisamos nos raspar “
Desmaiei de dor outra vez, e, quando recuperei os sentidos, estava no chão de meu apartamento. Eles haviam-me arrastado o caminho todo, até em casa, e subido os três lances de escada, levando-me até meu quarto. Haviam-me ajudado a deitar na ca¬ma, onde eu desmaiara de novo. O sol forte jorrava através da janela, quando acordei e arrastei-me para fora da cama. Estava tão dolorido que mal po¬dia mover-me. A parte inferior do meu corpo esta¬va coberta de sangue coagulado. Tentei tirar as cal¬ças, mas o sangue colara o tecido à minha carne, e eu senti que estava rasgando a pele, ao tirá-la. Desci cambaleante um lance de escadas, até o banheiro e fiquei debaixo do chuveiro, de roupa e tudo, até que o sangue amoleceu e pude afastar a roupa das feridas. Minhas costas e quadris eram uma verdadei¬ra massa de cortes profundos e chagas horríveis. Voltei cambaleante, subi nu as escadas, lembrando-me do rapaz que correra de nós, sem calças.
“Puxa”, pensei, “se ele pudesse me ver agora...” Arrastei-me até o quarto e passei o resto do dia fazendo curativos nos meus cortes. Ser presidente dos Mau-Maus era bom, mas havia certas horas em que podia significar a morte. Desta vez ela chegara bem perto.