sábado, 24 de abril de 2021

Foge Nick Foge - 04 - Batismo de sangue



Capítulo 4

BATISMO DE SANGUE

VÁRIAS SEMANAS MAIS TARDE, saí de meu apartamento por volta de oito da noite, e fui até Papa John's, numa esquina da Av. Lafayette. Um moço porto-riquenho chamado Tico estava encostado na parede do edifício, fumando. Eu já me encontrara com ele uma ou duas vezes, e sabia que era pe­rito na faca.
Ele olhou para mim e disse: “Ei, Nicky, você gostaria de ir a uma “festinha”? Vou apresentá-lo ao Carlos, presidente da gang.”
Eu tinha ouvido falar dessas “festinhas”, mas nunca fora convidado, por isso aceitei pressuroso o seu convite, e acompanhei-o por uma rua trans­versal; entramos em um porão debaixo de um lance de escadas de um edifício de apartamentos.
Tive dificuldade em acostumar os olhos com a penumbra. Um quebra-luz estava aceso a um canto. Um pouco de claridade entrava pelas janelas, e um pouquinho, pela porta, vinda das luzes da rua, lá fora.
Quando entrei no salão, pude ver figuras agar­radas umas às outras, dançando ao som de música suave. Suas cabeças caíam no ombro uma da outra, enquanto os pés moviam-se em compasso com a mú­sica lenta. Um dos rapazes agarrou uma garrafa de vinho por trás das costas do seu par, e cambaleou ao mesmo tempo que rodeava o pescoço da moça com o braço e tomava um longo trago da garrafa.
Vários rapazes se achavam sentados diante de uma pequena mesa, jogando baralho e fumando ma­conha, como vim a saber mais tarde. Uma garrafa de vinho fora colocada no meio da mesa.
Bem ao fundo do salão, longe da lâmpada, dois casais estavam deitados numa esteira. Um casal estava aparentemente dormindo, um nos braços do outro. Enquanto eu ainda os observava, levan­taram, e saíram tropeçando por uma porta lateral.
Tico olhou para mim e piscou. “Há uma cama ali. Eles podem fazer amor quando quiserem.”
Um monte de revistas com figuras de mulheres nuas e semi-nuas estava no chão, aos meus pés.
“Então, isto é uma “festinha”, pensei.
Tico agarrou meu braço e empurrou-me salão adentro. “Ei, turma, este é um amigo meu. Vamos fazê-lo sentir-se em casa.”
Uma garota loura surgiu das trevas perto da por­ta, e me agarrou pelo braço. Estava com um suéter preto apertado, uma saia vermelha, e descalça. Co­loquei a mão ao redor da sua cintura e disse: “Ei, boneca, quer dançar comigo?”
“Como se chama?” perguntou. Antes que eu pudesse responder, Tico falou: “Seu nome é Nicky. Ele é meu amigo e é um cara muito bom de briga. Pode ser que entre na nossa turma.”
A garota deslizou à minha frente e ficou bem perto de mim.
“Tá bom, Nicky, se você é tão bom de briga, vamos ver se é bom também para dançar.”
Dançamos um pouco e depois paramos pa­ra ver dois rapazes fazer o jogo da “galinha” com uma faca. Um dos rapazes estava de pé contra a parede, e o outro atirava uma faca em direção aos seus pés. O objetivo era espetar a faca tão perto quanto possível, sem acertar nos pés. Se o rapaz recuasse, ele era um “galinha”.
Surpreendi-me desejando que ele ferisse o rapaz. A idéia de ver sangue me excitava. Ali de pé, come­cei a rir interiormente, esperando que ele errasse, e machucasse o outro.
A loura de suéter negro me puxou pelo braço: “Venha comigo. Quero que você conheça um cara que é muito importante.”
Segui-a até uma sala ao lado. Um porto-riquenho alto e esbelto estava estirado numa cadeira, com as pernas sobre uma mesinha à sua frente. Uma ga­rota estava sentada a cavalo em seu colo, encostada nele, e ele soprava fumaça através do cabelo dela e sorria.
“Ei!” gritou para nós. “Vocês não têm educa­ção? Não sabem que não podem entrar aqui sem pedir licença? Vocês podem me pegar fazendo alguma coisa que não quero que ninguém veja.” Riu, virou-se de lado, e deu tapinhas nos quadris da garota com ambas as mãos.
Olhando para mim, ele perguntou: “Quem é esse cara?”
A loura respondeu: “É meu amigo Nicky. Veio com Tico. Tico disse que ele é bom de briga.”
O rapaz alto tirou a garota do colo e olhou carrancudo para mim. Depois arreganhou os dentes num sorriso e estendeu a mão.
“Toca aqui, Nicky. Meu nome é Carlos. Presi­dente dos Mau-Maus.”
Cuidadosamente encostei minha mão aberta na sua e puxei-a para trás, escorregando a palma contra a dele. Esta é a maneira de cumprimentar das qua­drilhas.
Ouvira falar dos Mau-Maus. Eles tomaram esse nome emprestado dos sanguinários selvagens da África. Já os vira nas ruas, com seus blusões de cou­ro com dois M vermelhos costurados às costas. Usavam chapéus alpinos extravagantes, muitos dos quais enfeitados com fósforos de madeira. Quase to­dos carregavam bengalas e usavam sapatos pontudos e podiam matar um homem a pontapés em ques­tão de segundos.
Carlos acenou com a cabeça para o canto da sala e eu reconheci o rapaz que vira na quermesse. “Aquele é Israel, vice-presidente dos Mau-Maus.” O rosto de Israel, ao olhar para mim, estava inexpres­sivo. Seus profundos olhos negros pareciam querer perscrutar minha alma, deixando-me embaraçado.
Descobri mais tarde que o presidente e o vice-presidente estão quase sempre juntos. Protegem-se um ao outro no caso de um dos dois ser atacado.
“Quantos anos, Nicky?” perguntou Carlos.
“Dezesseis”, respondi.
“Sabe brigar?”
“Claro.”
“Está disposto a brigar com qualquer um, até com a polícia?”
“Claro”, respondi outra vez.
“Ei, você já “furou” alguém ?”
“Não”, repliquei pesaroso, mas falando a ver­dade.
“Alguém já tentou “furá-lo” ?”
“Já”, respondi.
“É ?”, disse Carlos, demonstrando renovado in­teresse. “E o que foi que você fez com o cara?”
“Nada”, disse eu, “mas vou fazer. Só estou es­perando pegá-lo de novo, e quando isso acontecer, vou matá-lo.”
Israel interrompeu-nos: “Escute, meu chapa, se você quer entrar para a nossa gang, precisa ser co­mo nós. Somos os mais durões. Até a polícia tem medo da gente. Mas não queremos “bolhas”. Para entrar para a nossa quadrilha, não pode ser “bolha”. Tá certo? Se você bancar o “galinha”, nós cortamos e matamos você.”
Eu sabia que Israel estava falando a verdade, pois já ouvira contar de rapazes que tinham sido mortos por suas próprias quadrilhas, por terem denunciado um colega de gang.
Carlos, então falou: “Duas coisas, rapaz: se você entrar para os Mau-Maus, é para toda a vida. Nin­guém pede demissão. Segundo, se a polícia te pegar e você der o serviço, nós acertamos você quando sair da cadeia, ou entramos na cadeia e acertamos você lá. O fato é que acertamos.”
Israel mostrou um sorriso escarninho no rosto simpático: “Que tal, menino, você ainda quer entrar na turma?”
“Dêem-me três dias”, disse eu. “Se eu entrar para a sua gang quero ir até o fim.”
“Tá bom, meu chapa”, disse Carlos, “tem três dias para pensar. No fim desse prazo, volte aqui. Quero saber sua decisão.” Ele ainda estava meio deitado na cadeira com as pernas sobre a mesa. Atraíra a garota para si, outra vez, e estava com a mão es­querda sob a sua saia, ao redor dos quadris.
Virei-me para sair, e Carlos disse: “Ei, Nicky, eu me esqueci de lhe dizer: se você contar a al­guém... a qualquer pessoa... onde estamos, eu o mato antes de você dizer “ai”. Morou?”
“Morei”, respondi. E eu sabia que ele falava sério.
Lá fora, na rua, interroguei Tico: “O que é que você acha, Tico? Acha que eu devo entrar para os Mau-Maus?”
Tico apenas encolheu os ombros.
“É um negócio bom, cara. Se entrar, eles tomam conta de você. Se não entrar, eles são capazes de matá-lo por não ter entrado. Você não tem muita escolha agora. Além disto, você vai ter que entrar para uma quadrilha, para continuar vivo por aqui.”
“Que é que você acha de Carlos ?” perguntei, “que tipo de sujeito é ele?”
“É cem por cento. Não fala muito, mas quan­do fala, todo mundo escuta. Ele é o chefe, e todos sabem disso.”
“É verdade que o presidente escolhe a garota que quiser?” perguntei.
“É”, disse Tico. “Tem umas setenta e cinco ga­rotas em nossa gang e o presidente escolhe qualquer uma delas. Cada dia é uma diferente, se quiser. Ra­paz, elas gostam disso. Você sabe, namorar o presi­dente é ser importante. Elas brigam para ver quem vai divertir-se com ele. E isto não é tudo. A quadri­lha cuida do presidente. Ele tem a parte do leão em tudo o que roubamos — o que geralmente dá para ele pagar o aluguel, a comida e as roupas. Ser pre­sidente é um alto negócio.”
“Ei, Tico, se você é tão bom de faca, por que você não é o presidente ?”
“Eu não, meu chapa. O presidente não briga mui­to. Ele tem de ficar para trás e fazer os planos. Eu gosto é de brigar. Não quero ser presidente.”
“É disso também que eu gosto”, pensei. “Prefiro brigar...   brigar.”
Tico foi para o Papa John's outra vez, e eu vol­tei para o n.° 54 de Fort Greene. Sentia o sangue fer­ver nas veias ao imaginar o que me esperava. As “festinhas”, as garotas... Porém, acima de tudo, as brigas. Eu não teria mais de brigar sozinho. Pode­ria ferir tanto quanto quisesse, sem ser ferido. Meu coração começou a bater mais depressa. Talvez eu tivesse a chance de esfaquear alguém. Quase que já podia enxergar o sangue escorrendo pelas minhas mãos e pingando na rua. Fiz movimentos com as mãos, golpeando o ar, enquanto andava, como se es­tivesse com uma faca atacando e ferindo figuras imaginárias na escuridão. Dissera a Carlos que re­solveria em três dias, mas já me decidira. Tudo o que queria era que alguém me desse um punhal e um revólver.
Duas noites mais tarde, voltei à sede da qua­drilha. Entrei, e Carlos veio me encontrar na porta.
“Ei, Nicky, você chegou bem na hora. Há outro rapaz que deseja entrar para os Mau-Maus. Quer ver o ritual de iniciação ?”
Eu não tinha idéia do que fosse uma iniciação, mas queria assistir. Carlos continuou: “Mas quem sabe se você veio para dizer que não quer entrar para a gang, hein?”
“Não”, repliquei. “Vim para dizer que quero en­trar. Quero brigar. Acho que sou tão durão como qualquer de vocês, e luto melhor do que a maioria dos outros.”
“Bom”, disse Carlos, “você pode assistir, e de­pois será a sua vez. Temos duas maneiras de saber se o cara é covarde. Ou ele fica imóvel enquanto cin­co dos nossos rapazes mais fortes o surram, ou en­costa na parede esperando a faca. Se fugir de qual­quer uma das provas, não pode entrar para a qua­drilha. Este rapaz diz que é durão. Vamos ver se é mesmo. E depois veremos se você também é.”
Olhei para o outro lado do salão e vi o outro garoto. Tinha cerca de treze anos, espinhas por todo o rosto, e longos cabelos negros que caíam sobre os olhos. Era pequeno e magro, e seus braços caíam duros ao longo do corpo. Estava vestido com uma camisa branca de mangas compridas, manchada na frente e repuxada sobre o cinto. Pensei já ter visto aquele rosto espinhento na escola, mas não tinha certeza, pois ele era mais novo do que eu.
Havia cerca de quarenta rapazes e garotas es­perando ansiosamente o espetáculo. Carlos estava na direção. Mandou que abrissem espaço, e todo mundo encostou nas paredes. Carlos mandou que o menino se encostasse na parede nua, e ficou à sua frente, com um punhal aberto na mão. A lâmina de aço brilhava mesmo na luz fraca.
“Vou dar as costas para você e dar vinte passos em direção à outra parede”, disse ele. “Você fica onde está. Você diz que é durão. Bem, vamos ver se é. Quando eu acabar de contar vinte, vou virar e atirar esta faca. Se você se encolher ou tirar o corpo fora, é “galinha”. Se não, mesmo que a faca acerte em você, é durão, e pode entrar para os Mau-Maus.  Morou?”
O menino fez que sim.
“Agora, outra coisa”, disse Carlos, levantando a faca diante do nariz do menino. “Se ficar com medo enquanto eu estiver contando os passos, é só gritar, mas então é melhor nunca mais mostrar o nariz por aqui. Se aparecer, nós vamos cortar essas orelhonas, fazer você comer, e depois arrancar o seu umbigo com um abridor de latas e deixar você san­grar até morrer “
Os rapazes e garotas começaram a rir e a aplau­dir. “Vamos, cara, vamos!” gritavam para Carlos.
Carlos deu as costas para o menino e compassadamente cruzou a sala. Segurava a longa faca re­luzente pela ponta da lâmina e cruzou os braços, com a faca diante dos olhos.
“Um... dois. . . três. . .” A turma começou a gri­tar e a zombar : “Acerta nele, Carlos ! Atravessa os olhos dele! Mostra a cor do sangue dele; rapaz, faz um furo nele.”
O rapazinho estava petrificado de medo, encos­tado à parede, parecendo um ratinho que tivesse sido pego por um tigre. Estava tentando desesperada­mente ser valente. Seus braços rígidos ao longo do corpo, suas mãos apertadas em punhos minúsculos, as unhas enterrando-se na palma da mão. Seu rosto perdera todo o sangue, e os seus olhos estavam arregalados de terror.
“Onze... doze... treze...” Carlos contava em voz alta. enquanto media as passadas. A tensão che­gou ao auge, à medida que rapazes e garotas vaiavam e clamavam por sangue.
“Dezenove.. . vinte. “ Vagarosamente Carlos vi­rou-se e levantou a mão, à altura da orelha, segu­rando a faca pela ponta da lâmina, pontuda como uma agulha. A turba de adolescentes mostrava-se sel­vagem no seu furor, pedindo sangue. No instante em que ele lançou o punhal para a frente, o menino dobrou-se, cruzando as mãos por trás da cabeça, e gritando : “Não ! Não !” A faca chocou-se surdamen­te contra a parede, a poucos centímetros de onde estivera a sua cabeça.
“Galinha !... galinha !... galinha !...” rugiu a turba.
Carlos ficou com raiva. Os cantos de sua boca apertaram-se e os seus olhos se franziram. “Peguem-no”, silvou ele. Dois rapazes avançaram de cada lado da sala e agarraram o garoto encolhido de medo, pelos braços, empurrando-o contra a parede.
Carlos atravessou o salão e parou diante do me­nino que tremia. “Galinha”, falou ele entre dentes. “Galinha ! eu sabia que era covarde desde a primei­ra, vez que te vi. Devia te matar.”
Os rapazes por toda a sala aproveitaram-se do tema : “Mate ! Mate esse sujo !”
“Sabe o que fazemos com os covardes ?” pergun­tou Carlos. O menino olhou para ele tentando mover os lábios, mas nenhum som saía.
«Eu vou lhe contar o que fazemos com “galinhas”, disse Carlos. “Cortamos as asas, para não voarem mais.”
Arrancou a faca que estava espetada na pare­de de madeira. “Estiquem o bicho!” disse ele.
Antes que o menino pudesse mover-se, os dois rapazes, com um repelão, abriram-lhe os braços, afastando-os do corpo. Movendo-se tão rapidamente que com dificuldade podia-se acompanhar o movi­mento da sua mão. Carlos levantou a faca em um golpe rápido, com toda a força, e enfiou-a quase até o cabo na axila do garoto. O menino contorceu-se e gritou de dor. O sangue saiu aos borbotões, e em poucos instantes manchou de vermelho sua camisa branca.
Arrancando o punhal da carne do garoto, pas­sou-o rapidamente para a outra mão. “Veja, cara”, jactou-se ele, levantando-o ameaçadoramente e enterrando-o na outra axila, “sou canhoto também.”
Os dois rapazes largaram o menino e ele caiu no chão, com os braços cruzados sobre o peito e as mãos apertando lamentosamente a carne dilacera­da. Ele gritava e gemia, rolando pelo chão. A camisa estava quase que completamente ensopada de san­gue, de um vermelho vivo.
“Tirem isso daqui”, ordenou Carlos rispidamente. Dois rapazes avançaram e, agarrando-o pelos bra­ços, puseram-no de pé. Ele atirou a cabeça para trás e gritou em agonia, quando eles lhe levantaram os braços. Carlos tapou-lhe a boca e o grito cessou. Os olhos do garoto, arregalados de terror, olhavam-nos por sobre a mão de Carlos.
“Vai para casa, “galinha”! Se eu ouvir você gritar mais uma vez, ou se você nos delatar, vou cortar sua   língua também,  tá?” Enquanto falava, levantou o punhal, de cuja lâmina o sangue ainda corria sobre o cabo de madrepérola. “Morou?” repetiu Carlos.
O garoto fez que sim com a cabeça.
Os rapazes levaram-no meio arrastado pelo chão até a calçada. A quadrilha de adolescentes no salão gritou quando ele saiu: “Vai para casa, “galinha!”
Carlos voltou-se. “Quem é o seguinte ?” pergun­tou... olhando bem nos meus olhos. A turba silen­ciou.
Percebi então que eu não estava amedrontado. De fato, eu tinha ficado tão envolvido com as fa­cadas e a dor que estava gostando do espetáculo. A vista de todo aquele sangue me dava uma sen­sação selvagemente deliciosa. Eu estava com inveja de Carlos. Mas agora era a minha vez.
Lembrei-me da declaração de Carlos que eu po­dia escolher a forma da minha iniciação. O bom sen­so me dizia que Carlos ainda estava enraivecido. Se eu permitisse que ele atirasse o punhal em mim, iria tentar acertar-me de propósito. Dentre as duas pro­vas, parecia mais sábio escolher a outra.
“Tem   outro  covarde  aqui?”  pilheriou  Carlos.
Avancei para o meio da sala e olhei à minha volta. Uma das garotas, esbelta e alta, com calças compridas bem justas, gritou: “O que é que há, meninão, você está com medo, ou o que é? Sobrou algum sangue, se você não tem.” A turba vaiou e gritou rindo. Ela tinha razão. O assoalho, perto da parede onde o menino estivera, estava coberto com uma camada grossa de sangue.
Respondi: “Eu não. Não tenho medo. Pode me experimentar, menina. Onde estão os rapazes que querem me surrar?”
Eu estava tentando aparentar calma, mas por dentro estava com medo. Tinha certeza de que ia acabar machucado. Compreendi que aquela gente não era de brincadeira. Mas eu preferia morrer do que ser “galinha”. Por isso disse: “Estou pronto”.
Carlos gritou cinco nomes. “ Johnny!” Um rapaz troncudo saiu do grupo e parou à minha frente. Tinha o dobro do meu corpo, uma testa profunda­mente vincada e quase não tinha pescoço. Sua ca­beça parecia descansar diretamente sobre os ombros. Foi até o centro da sala e estalou os dedos, com um ruído seco e forte.
Procurei imaginar meus cinqüenta quilos con­tra os seus quase cem quilos. Ele apenas olhou-me inexpressivamente, como um símio, esperando a or­dem de ataque.
“Mattie !” Outro rapaz apresentou-se. Era pouco maior do que eu, mas os seus braços eram com­pridos, muito mais longos do que os meus. Ele dan­çou no centro da sala, dando socos no ar, como um pugilista. Conservava o queixo bem junto ao peito, olhando por entre as sobrancelhas. Deu uma volta no salão, esmurrando o ar com a velocidade do re­lâmpago. As garotas assobiaram e suspiraram enquan­to ele continuava sua luta fantasma, bufando pelo nariz enquanto se esquivava e dava pequenos gol­pes.
“José !” Um terceiro rapaz juntou se ao grupo. Tinha uma cicatriz profunda na face esquerda, que ia desde sob o olho até a ponta do queixo. Começou a tirar a camisa e flexionar os músculos. Tinha a constituição física de um halterofilista. Rodeou-me, olhando-me de todos os ângulos.
“Coruja!” Uma aclamação fez-se ouvir dos ou­tros rapazes que estavam na sala. Coruja, sem dú­vida, era um dos favoritos. Mais tarde fiquei saben­do que eles o chamavam Coruja porque era capaz de ver tão bem de noite como de dia. Lutava na li­nha de frente, durante os “quebra-paus”, para que ele avisasse os outros da presença de quadrilhas ini­migas, quando elas se aproximassem. Tinha olhos grandes e rasgados, e um nariz recurvado que certa­mente fora quebrado diversas vezes. Perdera metade de uma orelha ao ser atingido por uma tábua com um prego comprido. Isso acontecera durante um tumulto no pátio da escola, e o prego rasgara sua orelha, arrancando mais da metade. Coruja era um garotão baixo e gordo, e tinha um olhar maldoso, o pior que eu já vira.
“Paco!” Não cheguei a ver Paco. Ouvi-o dizer o meu nome, às minhas costas: “Ei, Nicky”. Virei-me para olhar e ele me deu um murro nas costas, pouco acima da cintura. A dor foi excruciante. Pa­recia que ele me rompera o rim. Procurei tomar fôlego, mas ele me golpeou de novo. Quando eu me endireitei e coloquei as mãos às costas para apertar o lugar dolorido, um dos outros rapazes me esmur­rou no estômago com tanta força que perdi o fôle­go. Senti que começava a desmaiar de dor, quando alguém me deu um soco no rosto, e eu ouvi o osso do nariz quebrar-se sob o impacto.
Não tive oportunidade de revidar. Senti-me cair. Percebi que alguém me agarrou pelo meu cabelo comprido. Meu corpo despencou no chão, mas minha cabeça continuava suspensa pelo cabelo. Um deles chutou-me o rosto com um sapato sujo, e pude sen­tir a areia em meus lábios e rosto. Eu estava levando chutes em todas as partes do corpo e, o que estava me agarrando pelo cabelo, golpeava-me na têmpora.
As luzes então se apagaram e eu não me lembro de mais nada.
Algum tempo depois percebi que alguém estava me sacudindo e estapeando-me as faces. Ouvi alguém dizer:  “Ei, acorda, Nicky.”
Procurei focalizar os olhos, mas não era capaz de ver nada além do forro. Passei a mão pelo rosto, e pude sentir sangue na pele. Estava coberto de san­gue. Olhei para cima e vi o rosto do rapaz a quem chamavam de Coruja. O sangue me fez ficar louco. Com um movimento rápido acertei-o na boca. Repen­tinamente, toda a minha energia retornou. Eu esta­va deitado de costas naquela grande poça de sangue endurecido, e comecei a voltear, mesmo deitado, chutando todos os que estivessem ao meu alcance, xin­gando, gritando, batendo com as mãos e com os pés.
Alguém agarrou meus pés e imobilizou-me con­tra o solo, até passar a fúria. Israel curvou-se sobre mim, rindo.
“Você é um dos nossos, Nicky. Rapaz, você pode nos ajudar. Você pode ser um monte de coisa, mas não é covarde. No duro. Toque aqui.” Ele apertou algo contra a minha mão.
Era um revólver trinta e dois. “Você é Mau-Mau agora, Nicky. Mau-Mau.”