Capítulo 4
BATISMO DE SANGUE
VÁRIAS SEMANAS MAIS TARDE, saí de meu apartamento por volta
de oito da noite, e fui até Papa John's, numa esquina da Av. Lafayette. Um moço
porto-riquenho chamado Tico estava encostado na parede do edifício, fumando. Eu
já me encontrara com ele uma ou duas vezes, e sabia que era perito na faca.
Ele olhou para mim e disse: “Ei, Nicky, você gostaria de ir
a uma “festinha”? Vou apresentá-lo ao Carlos, presidente da gang.”
Eu tinha ouvido falar dessas “festinhas”, mas nunca fora
convidado, por isso aceitei pressuroso o seu convite, e acompanhei-o por uma
rua transversal; entramos em um porão debaixo de um lance de escadas de um
edifício de apartamentos.
Tive dificuldade em acostumar os olhos com a penumbra. Um
quebra-luz estava aceso a um canto. Um pouco de claridade entrava pelas
janelas, e um pouquinho, pela porta, vinda das luzes da rua, lá fora.
Quando entrei no salão, pude ver figuras agarradas umas às
outras, dançando ao som de música suave. Suas cabeças caíam no ombro uma da
outra, enquanto os pés moviam-se em compasso com a música lenta. Um dos
rapazes agarrou uma garrafa de vinho por trás das costas do seu par, e
cambaleou ao mesmo tempo que rodeava o pescoço da moça com o braço e tomava um
longo trago da garrafa.
Vários rapazes se achavam sentados diante de uma pequena
mesa, jogando baralho e fumando maconha, como vim a saber mais tarde. Uma
garrafa de vinho fora colocada no meio da mesa.
Bem ao fundo do salão, longe da lâmpada, dois casais estavam
deitados numa esteira. Um casal estava aparentemente dormindo, um nos braços do
outro. Enquanto eu ainda os observava, levantaram, e saíram tropeçando por uma
porta lateral.
Tico olhou para mim e piscou. “Há uma cama ali. Eles podem
fazer amor quando quiserem.”
Um monte de revistas com figuras de mulheres nuas e
semi-nuas estava no chão, aos meus pés.
“Então, isto é uma “festinha”, pensei.
Tico agarrou meu braço e empurrou-me salão adentro. “Ei,
turma, este é um amigo meu. Vamos fazê-lo sentir-se em casa.”
Uma garota loura surgiu das trevas perto da porta, e me
agarrou pelo braço. Estava com um suéter preto apertado, uma saia vermelha, e
descalça. Coloquei a mão ao redor da sua cintura e disse: “Ei, boneca, quer
dançar comigo?”
“Como se chama?” perguntou. Antes que eu pudesse responder,
Tico falou: “Seu nome é Nicky. Ele é meu amigo e é um cara muito bom de briga.
Pode ser que entre na nossa turma.”
A garota deslizou à minha frente e ficou bem perto de mim.
“Tá bom, Nicky, se você é tão bom de briga, vamos ver se é
bom também para dançar.”
Dançamos um pouco e depois paramos para ver dois rapazes
fazer o jogo da “galinha” com uma faca. Um dos rapazes estava de pé contra a
parede, e o outro atirava uma faca em direção aos seus pés. O objetivo era
espetar a faca tão perto quanto possível, sem acertar nos pés. Se o rapaz
recuasse, ele era um “galinha”.
Surpreendi-me desejando que ele ferisse o rapaz. A idéia de
ver sangue me excitava. Ali de pé, comecei a rir interiormente, esperando que
ele errasse, e machucasse o outro.
A loura de suéter negro me puxou pelo braço: “Venha comigo.
Quero que você conheça um cara que é muito importante.”
Segui-a até uma sala ao lado. Um porto-riquenho alto e
esbelto estava estirado numa cadeira, com as pernas sobre uma mesinha à sua
frente. Uma garota estava sentada a cavalo em seu colo, encostada nele, e ele
soprava fumaça através do cabelo dela e sorria.
“Ei!” gritou para nós. “Vocês não têm educação? Não sabem
que não podem entrar aqui sem pedir licença? Vocês podem me pegar fazendo
alguma coisa que não quero que ninguém veja.” Riu, virou-se de lado, e deu
tapinhas nos quadris da garota com ambas as mãos.
Olhando para mim, ele perguntou: “Quem é esse cara?”
A loura respondeu: “É meu amigo Nicky. Veio com Tico. Tico
disse que ele é bom de briga.”
O rapaz alto tirou a garota do colo e olhou carrancudo para
mim. Depois arreganhou os dentes num sorriso e estendeu a mão.
“Toca aqui, Nicky. Meu nome é Carlos. Presidente dos
Mau-Maus.”
Cuidadosamente encostei minha mão aberta na sua e puxei-a
para trás, escorregando a palma contra a dele. Esta é a maneira de cumprimentar
das quadrilhas.
Ouvira falar dos Mau-Maus. Eles tomaram esse nome emprestado
dos sanguinários selvagens da África. Já os vira nas ruas, com seus blusões de
couro com dois M vermelhos costurados às costas. Usavam chapéus alpinos
extravagantes, muitos dos quais enfeitados com fósforos de madeira. Quase todos
carregavam bengalas e usavam sapatos pontudos e podiam matar um homem a
pontapés em questão de segundos.
Carlos acenou com a cabeça para o canto da sala e eu
reconheci o rapaz que vira na quermesse. “Aquele é Israel, vice-presidente dos
Mau-Maus.” O rosto de Israel, ao olhar para mim, estava inexpressivo. Seus
profundos olhos negros pareciam querer perscrutar minha alma, deixando-me
embaraçado.
Descobri mais tarde que o presidente e o vice-presidente
estão quase sempre juntos. Protegem-se um ao outro no caso de um dos dois ser
atacado.
“Quantos anos, Nicky?” perguntou Carlos.
“Dezesseis”, respondi.
“Sabe brigar?”
“Claro.”
“Está disposto a brigar com qualquer um, até com a polícia?”
“Claro”, respondi outra vez.
“Ei, você já “furou” alguém ?”
“Não”, repliquei pesaroso, mas falando a verdade.
“Alguém já tentou “furá-lo” ?”
“Já”, respondi.
“É ?”, disse Carlos, demonstrando renovado interesse. “E o
que foi que você fez com o cara?”
“Nada”, disse eu, “mas vou fazer. Só estou esperando
pegá-lo de novo, e quando isso acontecer, vou matá-lo.”
Israel interrompeu-nos: “Escute, meu chapa, se você quer
entrar para a nossa gang, precisa ser como nós. Somos os mais durões. Até a
polícia tem medo da gente. Mas não queremos “bolhas”. Para entrar para a nossa
quadrilha, não pode ser “bolha”. Tá certo? Se você bancar o “galinha”, nós
cortamos e matamos você.”
Eu sabia que Israel estava falando a verdade, pois já ouvira
contar de rapazes que tinham sido mortos por suas próprias quadrilhas, por
terem denunciado um colega de gang.
Carlos, então falou: “Duas coisas, rapaz: se você entrar
para os Mau-Maus, é para toda a vida. Ninguém pede demissão. Segundo, se a
polícia te pegar e você der o serviço, nós acertamos você quando sair da
cadeia, ou entramos na cadeia e acertamos você lá. O fato é que acertamos.”
Israel mostrou um sorriso escarninho no rosto simpático: “Que
tal, menino, você ainda quer entrar na turma?”
“Dêem-me três dias”, disse eu. “Se eu entrar para a sua gang
quero ir até o fim.”
“Tá bom, meu chapa”, disse Carlos, “tem três dias para
pensar. No fim desse prazo, volte aqui. Quero saber sua decisão.” Ele ainda
estava meio deitado na cadeira com as pernas sobre a mesa. Atraíra a garota
para si, outra vez, e estava com a mão esquerda sob a sua saia, ao redor dos
quadris.
Virei-me para sair, e Carlos disse: “Ei, Nicky, eu me
esqueci de lhe dizer: se você contar a alguém... a qualquer pessoa... onde
estamos, eu o mato antes de você dizer “ai”. Morou?”
“Morei”, respondi. E eu sabia que ele falava sério.
Lá fora, na rua, interroguei Tico: “O que é que você acha,
Tico? Acha que eu devo entrar para os Mau-Maus?”
Tico apenas encolheu os ombros.
“É um negócio bom, cara. Se entrar, eles tomam conta de
você. Se não entrar, eles são capazes de matá-lo por não ter entrado. Você não
tem muita escolha agora. Além disto, você vai ter que entrar para uma
quadrilha, para continuar vivo por aqui.”
“Que é que você acha de Carlos ?” perguntei, “que tipo de
sujeito é ele?”
“É cem por cento. Não fala muito, mas quando fala, todo
mundo escuta. Ele é o chefe, e todos sabem disso.”
“É verdade que o presidente escolhe a garota que quiser?”
perguntei.
“É”, disse Tico. “Tem umas setenta e cinco garotas em nossa
gang e o presidente escolhe qualquer uma delas. Cada dia é uma diferente, se
quiser. Rapaz, elas gostam disso. Você sabe, namorar o presidente é ser
importante. Elas brigam para ver quem vai divertir-se com ele. E isto não é
tudo. A quadrilha cuida do presidente. Ele tem a parte do leão em tudo o que
roubamos — o que geralmente dá para ele pagar o aluguel, a comida e as roupas.
Ser presidente é um alto negócio.”
“Ei, Tico, se você é tão bom de faca, por que você não é o
presidente ?”
“Eu não, meu chapa. O presidente não briga muito. Ele tem
de ficar para trás e fazer os planos. Eu gosto é de brigar. Não quero ser
presidente.”
“É disso também que eu gosto”, pensei. “Prefiro
brigar... brigar.”
Tico foi para o Papa John's outra vez, e eu voltei para o
n.° 54 de Fort Greene. Sentia o sangue ferver nas veias ao imaginar o que me
esperava. As “festinhas”, as garotas... Porém, acima de tudo, as brigas. Eu não
teria mais de brigar sozinho. Poderia ferir tanto quanto quisesse, sem ser
ferido. Meu coração começou a bater mais depressa. Talvez eu tivesse a chance
de esfaquear alguém. Quase que já podia enxergar o sangue escorrendo pelas
minhas mãos e pingando na rua. Fiz movimentos com as mãos, golpeando o ar,
enquanto andava, como se estivesse com uma faca atacando e ferindo figuras
imaginárias na escuridão. Dissera a Carlos que resolveria em três dias, mas já
me decidira. Tudo o que queria era que alguém me desse um punhal e um revólver.
Duas noites mais tarde, voltei à sede da quadrilha. Entrei,
e Carlos veio me encontrar na porta.
“Ei, Nicky, você chegou bem na hora. Há outro rapaz que
deseja entrar para os Mau-Maus. Quer ver o ritual de iniciação ?”
Eu não tinha idéia do que fosse uma iniciação, mas queria
assistir. Carlos continuou: “Mas quem sabe se você veio para dizer que não quer
entrar para a gang, hein?”
“Não”, repliquei. “Vim para dizer que quero entrar. Quero
brigar. Acho que sou tão durão como qualquer de vocês, e luto melhor do que a
maioria dos outros.”
“Bom”, disse Carlos, “você pode assistir, e depois será a
sua vez. Temos duas maneiras de saber se o cara é covarde. Ou ele fica imóvel
enquanto cinco dos nossos rapazes mais fortes o surram, ou encosta na parede
esperando a faca. Se fugir de qualquer uma das provas, não pode entrar para a
quadrilha. Este rapaz diz que é durão. Vamos ver se é mesmo. E depois veremos
se você também é.”
Olhei para o outro lado do salão e vi o outro garoto. Tinha
cerca de treze anos, espinhas por todo o rosto, e longos cabelos negros que
caíam sobre os olhos. Era pequeno e magro, e seus braços caíam duros ao longo
do corpo. Estava vestido com uma camisa branca de mangas compridas, manchada na
frente e repuxada sobre o cinto. Pensei já ter visto aquele rosto espinhento na
escola, mas não tinha certeza, pois ele era mais novo do que eu.
Havia cerca de quarenta rapazes e garotas esperando
ansiosamente o espetáculo. Carlos estava na direção. Mandou que abrissem
espaço, e todo mundo encostou nas paredes. Carlos mandou que o menino se
encostasse na parede nua, e ficou à sua frente, com um punhal aberto na mão. A
lâmina de aço brilhava mesmo na luz fraca.
“Vou dar as costas para você e dar vinte passos em direção à
outra parede”, disse ele. “Você fica onde está. Você diz que é durão. Bem,
vamos ver se é. Quando eu acabar de contar vinte, vou virar e atirar esta faca.
Se você se encolher ou tirar o corpo fora, é “galinha”. Se não, mesmo que a
faca acerte em você, é durão, e pode entrar para os Mau-Maus. Morou?”
O menino fez que sim.
“Agora, outra coisa”, disse Carlos, levantando a faca diante
do nariz do menino. “Se ficar com medo enquanto eu estiver contando os passos, é
só gritar, mas então é melhor nunca mais mostrar o nariz por aqui.
Se aparecer, nós vamos cortar essas orelhonas, fazer você comer, e depois
arrancar o seu umbigo com um abridor de latas e deixar você sangrar até morrer
“
Os rapazes e garotas começaram a rir e a aplaudir. “Vamos,
cara, vamos!” gritavam para Carlos.
Carlos deu as costas para o menino e compassadamente cruzou
a sala. Segurava a longa faca reluzente pela ponta da lâmina e cruzou os
braços, com a faca diante dos olhos.
“Um... dois. . . três. . .” A turma começou a gritar e a
zombar : “Acerta nele, Carlos ! Atravessa os olhos dele! Mostra a cor do sangue
dele; rapaz, faz um furo nele.”
O rapazinho estava petrificado de medo, encostado à parede,
parecendo um ratinho que tivesse sido pego por um tigre. Estava tentando
desesperadamente ser valente. Seus braços rígidos ao longo do corpo, suas mãos
apertadas em punhos minúsculos, as unhas enterrando-se na palma da mão. Seu
rosto perdera todo o sangue, e os seus olhos estavam arregalados de terror.
“Onze... doze... treze...” Carlos contava em voz alta.
enquanto media as passadas. A tensão chegou ao auge, à medida que rapazes e
garotas vaiavam e clamavam por sangue.
“Dezenove.. . vinte. “ Vagarosamente Carlos virou-se e
levantou a mão, à altura da orelha, segurando a faca pela ponta da lâmina,
pontuda como uma agulha. A turba de adolescentes mostrava-se selvagem no seu furor,
pedindo sangue. No instante em que ele lançou o punhal para a frente, o menino
dobrou-se, cruzando as mãos por trás da cabeça, e gritando : “Não ! Não !” A
faca chocou-se surdamente contra a parede, a poucos centímetros de onde
estivera a sua cabeça.
“Galinha !... galinha !... galinha !...” rugiu a turba.
Carlos ficou com raiva. Os cantos de sua boca apertaram-se e
os seus olhos se franziram. “Peguem-no”, silvou ele. Dois rapazes avançaram de
cada lado da sala e agarraram o garoto encolhido de medo, pelos braços,
empurrando-o contra a parede.
Carlos atravessou o salão e parou diante do menino que
tremia. “Galinha”, falou ele entre dentes. “Galinha ! eu sabia que era covarde
desde a primeira, vez que te vi. Devia te matar.”
Os rapazes por toda a sala aproveitaram-se do tema : “Mate !
Mate esse sujo !”
“Sabe o que fazemos com os covardes ?” perguntou Carlos. O
menino olhou para ele tentando mover os lábios, mas nenhum som saía.
«Eu vou lhe contar o que fazemos com “galinhas”, disse
Carlos. “Cortamos as asas, para não voarem mais.”
Arrancou a faca que estava espetada na parede de madeira. “Estiquem
o bicho!” disse ele.
Antes que o menino pudesse mover-se, os dois rapazes, com um
repelão, abriram-lhe os braços, afastando-os do corpo. Movendo-se tão rapidamente
que com dificuldade podia-se acompanhar o movimento da sua mão. Carlos
levantou a faca em um golpe rápido, com toda a força, e enfiou-a quase até o
cabo na axila do garoto. O menino contorceu-se e gritou de dor. O sangue saiu
aos borbotões, e em poucos instantes manchou de vermelho sua camisa branca.
Arrancando o punhal da carne do garoto, passou-o
rapidamente para a outra mão. “Veja, cara”, jactou-se ele, levantando-o
ameaçadoramente e enterrando-o na outra axila, “sou canhoto também.”
Os dois rapazes largaram o menino e ele caiu no chão, com os
braços cruzados sobre o peito e as mãos apertando lamentosamente a carne
dilacerada. Ele gritava e gemia, rolando pelo chão. A camisa estava quase que
completamente ensopada de sangue, de um vermelho vivo.
“Tirem isso daqui”, ordenou Carlos rispidamente. Dois
rapazes avançaram e, agarrando-o pelos braços, puseram-no de pé. Ele atirou a
cabeça para trás e gritou em agonia, quando eles lhe levantaram os braços.
Carlos tapou-lhe a boca e o grito cessou. Os olhos do garoto, arregalados de
terror, olhavam-nos por sobre a mão de Carlos.
“Vai para casa, “galinha”! Se eu ouvir você gritar mais uma
vez, ou se você nos delatar, vou cortar sua
língua também, tá?” Enquanto
falava, levantou o punhal, de cuja lâmina o sangue ainda corria sobre o cabo de
madrepérola. “Morou?” repetiu Carlos.
O garoto fez que sim com a cabeça.
Os rapazes levaram-no meio arrastado pelo chão até a
calçada. A quadrilha de adolescentes no salão gritou quando ele saiu: “Vai para
casa, “galinha!”
Carlos voltou-se. “Quem é o seguinte ?” perguntou...
olhando bem nos meus olhos. A turba silenciou.
Percebi então que eu não estava amedrontado. De fato, eu
tinha ficado tão envolvido com as facadas e a dor que estava gostando do
espetáculo. A vista de todo aquele sangue me dava uma sensação selvagemente
deliciosa. Eu estava com inveja de Carlos. Mas agora era a minha vez.
Lembrei-me da declaração de Carlos que eu podia escolher a
forma da minha iniciação. O bom senso me dizia que Carlos ainda estava
enraivecido. Se eu permitisse que ele atirasse o punhal em mim, iria tentar
acertar-me de propósito. Dentre as duas provas, parecia mais sábio escolher a
outra.
“Tem outro covarde
aqui?” pilheriou Carlos.
Avancei para o meio da sala e olhei à minha volta. Uma das
garotas, esbelta e alta, com calças compridas bem justas, gritou: “O que é que
há, meninão, você está com medo, ou o que é? Sobrou algum sangue, se você não
tem.” A turba vaiou e gritou rindo. Ela tinha razão. O assoalho, perto da parede
onde o menino estivera, estava coberto com uma camada grossa de sangue.
Respondi: “Eu não. Não tenho medo. Pode me experimentar,
menina. Onde estão os rapazes que querem me surrar?”
Eu estava tentando aparentar calma, mas por dentro estava
com medo. Tinha certeza de que ia acabar machucado. Compreendi que aquela gente
não era de brincadeira. Mas eu preferia morrer do que ser “galinha”. Por isso
disse: “Estou pronto”.
Carlos gritou cinco nomes. “ Johnny!” Um rapaz troncudo saiu
do grupo e parou à minha frente. Tinha o dobro do meu corpo, uma testa profundamente
vincada e quase não tinha pescoço. Sua cabeça parecia descansar diretamente
sobre os ombros. Foi até o centro da sala e estalou os dedos, com um ruído seco
e forte.
Procurei imaginar meus cinqüenta quilos contra os seus
quase cem quilos. Ele apenas olhou-me inexpressivamente, como um símio,
esperando a ordem de ataque.
“Mattie !” Outro rapaz apresentou-se. Era pouco maior do que
eu, mas os seus braços eram compridos, muito mais longos do que os meus. Ele
dançou no centro da sala, dando socos no ar, como um pugilista. Conservava o
queixo bem junto ao peito, olhando por entre as sobrancelhas. Deu uma volta no
salão, esmurrando o ar com a velocidade do relâmpago. As garotas assobiaram e
suspiraram enquanto ele continuava sua luta fantasma, bufando pelo nariz
enquanto se esquivava e dava pequenos golpes.
“José !” Um terceiro rapaz juntou se ao grupo. Tinha uma
cicatriz profunda na face esquerda, que ia desde sob o olho até a ponta do
queixo. Começou a tirar a camisa e flexionar os músculos. Tinha a constituição
física de um halterofilista. Rodeou-me, olhando-me de todos os ângulos.
“Coruja!” Uma aclamação fez-se ouvir dos outros rapazes que
estavam na sala. Coruja, sem dúvida, era um dos favoritos. Mais tarde fiquei
sabendo que eles o chamavam Coruja porque era capaz de ver tão bem de noite
como de dia. Lutava na linha de frente, durante os “quebra-paus”, para que ele
avisasse os outros da presença de quadrilhas inimigas, quando elas se aproximassem.
Tinha olhos grandes e rasgados, e um nariz recurvado que certamente fora
quebrado diversas vezes. Perdera metade de uma orelha ao ser atingido por uma
tábua com um prego comprido. Isso acontecera durante um tumulto no pátio da
escola, e o prego rasgara sua orelha, arrancando mais da metade. Coruja era um
garotão baixo e gordo, e tinha um olhar maldoso, o pior que eu já vira.
“Paco!” Não cheguei a ver Paco. Ouvi-o dizer o meu nome, às
minhas costas: “Ei, Nicky”. Virei-me para olhar e ele me deu um murro nas
costas, pouco acima da cintura. A dor foi excruciante. Parecia que ele me
rompera o rim. Procurei tomar fôlego, mas ele me golpeou de novo. Quando eu me
endireitei e coloquei as mãos às costas para apertar o lugar dolorido, um dos
outros rapazes me esmurrou no estômago com tanta força que perdi o fôlego.
Senti que começava a desmaiar de dor, quando alguém me deu um soco no rosto, e
eu ouvi o osso do nariz quebrar-se sob o impacto.
Não tive oportunidade de revidar. Senti-me cair. Percebi que
alguém me agarrou pelo meu cabelo comprido. Meu corpo despencou no chão, mas
minha cabeça continuava suspensa pelo cabelo. Um deles chutou-me o rosto com um
sapato sujo, e pude sentir a areia em meus lábios e rosto. Eu estava levando
chutes em todas as partes do corpo e, o que estava me agarrando pelo cabelo,
golpeava-me na têmpora.
As luzes então se apagaram e eu não me lembro de mais nada.
Algum tempo depois percebi que alguém estava me sacudindo e
estapeando-me as faces. Ouvi alguém dizer:
“Ei, acorda, Nicky.”
Procurei focalizar os olhos, mas não era capaz de ver nada
além do forro. Passei a mão pelo rosto, e pude sentir sangue na pele. Estava
coberto de sangue. Olhei para cima e vi o rosto do rapaz a quem chamavam de
Coruja. O sangue me fez ficar louco. Com um movimento rápido acertei-o na boca.
Repentinamente, toda a minha energia retornou. Eu estava deitado de costas
naquela grande poça de sangue endurecido, e comecei a voltear, mesmo deitado,
chutando todos os que estivessem ao meu alcance, xingando, gritando, batendo
com as mãos e com os pés.
Alguém agarrou meus pés e imobilizou-me contra o solo, até
passar a fúria. Israel curvou-se sobre mim, rindo.
“Você é um dos nossos, Nicky. Rapaz, você pode nos ajudar.
Você pode ser um monte de coisa, mas não é covarde. No duro. Toque aqui.” Ele
apertou algo contra a minha mão.
Era um revólver trinta e dois. “Você é Mau-Mau agora, Nicky.
Mau-Mau.”