sábado, 24 de abril de 2021

Foge Nick Foge - 03 - Sozinho



Capítulo 3

SOZINHO

UMA VIDA MOTIVADA pelo ódio e pelo temor não tem lugar para mais nada a não ser o próprio ego. Eu odiava a todo mundo, inclusive Frank. Ele representava a autoridade, e quando começou a re­clamar porque eu não ia mais à escola e ficava fora até tarde da noite, resolvi deixá-lo.
“Nicky”, disse ele, “Nova York é uma selva. O povo que vive aqui, vive pela lei da selva. Só os for­tes sobrevivem. Na verdade, você ainda não viu na­da, Nicky. Moro aqui há cinco anos e sei. Este lu­gar está cheio de prostitutas, viciados em narcóti­cos, ébrios e assassinos. Esses indivíduos podem matar você, ninguém vai saber que está morto, até que algum malandro tropece no seu corpo em de­composição, sob um monte de lixo.”
Frank tinha razão. Mas eu não podia mais ficar ali. Estava insistindo para que eu voltasse à escola, e eu sabia que tinha de tentar viver por minha con­ta, sozinho.
“Nicky, não posso forçar você a voltar para a escola. Mas se você não fizer isso, está perdido.”
“Mas o diretor me expulsou. Ele disse para eu não voltar nunca mais.”
“Não tenho nada a ver com isso. Se quiser vi­ver aqui, tem de voltar. Você precisa estudar.”
“Se pensa que vou voltar, está louco, Frank.” Respondi com maus modos. “Se tentar me obrigar, eu te mato.”
“Nicky, você é meu irmão. Isto não é coisa que se fale. Mamãe e papai me disseram para tomar conta de você e não vou deixar que fale assim. Ou você vai para a escola, ou sai daqui. Vá embora, se quiser. Mas você voltará, porque não tem onde ir. Mas se ficar, vai para a escola e é só.”
Isso foi na sexta-feira de manhã, antes de Frank sair para o trabalho. Naquela tarde deixei um bi­lhete sobre a mesa da cozinha, dizendo-lhe que fora convidado por alguns amigos para ficar com eles du­rante uma semana. Eu não tinha amigos, todavia não podia ficar mais com Frank.
Naquela noite, vagueei por Bedford-Stuyvesant, um bairro de Brooklin, procurando lugar para ficar. Dirigi-me a alguns rapazes que estavam parados nu­ma esquina. “Alguém sabe onde eu posso encontrar um quarto para morar?”
Um deles virou se e olhou para mim, tirando baforadas de um cigarro. “Sim”, disse ele, apontan­do com o polegar sobre o ombro, na direção da Es­cola de Brooklin. “O meu velho é zelador daqueles apartamentos, do outro lado da rua. Fale com ele, que encontrará um lugar para você. Lá está ele sen­tado na escada, jogando baralho com aqueles outros caras. Ele é o que está bêbado.” Todos os outros rapazes riram.
O prédio a que o rapaz se referira pertencia ao projeto Fort Greene, no coração de um dos maiores conjuntos residenciais do mundo. Mais de trinta mil pessoas viviam nos altos edifícios, sendo que a maioria era de negros e porto-riquenhos. O Conjunto Habitacional de Fort Greene vai desde a Av. Park até a Av. Lafayette, e a Praça Washington fica no centro.
Encaminhei-me para o grupo de homens e per­guntei ao zelador se havia um quarto para alugar. Ele tirou os olhos das cartas e grunhiu: “Sim, tem um. Por quê?”
Hesitei e gaguejei: “Bem, porque eu preciso de um lugar para morar.”
“Tem quinze pacotes aí?” perguntou, cuspindo fumo na direção de meus pés.
“Bem, não, agora não, mas...”
“Então não tem quarto”, disse ele, e voltou ao baralho. Os outros homens nem se dignaram a le­vantar os olhos.
“Mas posso conseguir o dinheiro”, argumentei.
“Olhe, garoto, quando você puder mostrar-me quinze pacotes adiantados, o quarto é seu. Não me importa como vai consegui-los. Roube de alguma velha, não me importo. Mas até que você tenha o dinheiro, não meta mais o nariz aqui, você está me enchendo.
Voltei para a Av. Lafayette: passei por Papa John's, Casa de Carne Harry, Bar Paradise, Shery's, The Esquire, Bar Valhal, e Rendezvous do Lincoln. Parando ao lado do último, entrei em um beco, pro­curando descobrir como conseguir dinheiro.
Sabia que se tentasse assaltar alguém e fosse apanhado, iria para a cadeia, mas estava desespera­do. Dissera a Frank que só voltaria depois de uma semana. Um quarto custava dinheiro, e eu não ti­nha um centavo. Eram quase dez horas da noite, e o vento de inverno estava frio de rachar. Recuei para a escuridão do beco, e vi pessoas passando na calçada. Tirei o punhal do bolso e apertei o botão. A lâmina abriu-se com um estalido. Encostei a pon­ta contra a palma da mão. Minha mão tremia ao pensar como iria praticar o roubo. Seria melhor empurrá-los para o beco? Eu deveria esfaqueá-los, ou apenas amedrontá-los? E se gritassem?...
Meus pensamentos foram interrompidos por duas pessoas que conversavam na entrada do beco. Um velho bêbedo fez parar um rapaz de uns deze­nove anos, que levava um enorme saco de manti­mentos. O velho pedia-lhe uns trocados para tomar café. Ouvi o rapaz, tentando escapar, dizer ao bêbe­do que não tinha dinheiro.
Atravessou-me a mente o pensamento de que o velho, provavelmente, estava com o bolso cheio de dinheiro mendigado e roubado. Não ousaria gritar pedindo socorro, se eu o roubasse. Logo que o ra­paz se fosse eu o puxaria para o beco e tiraria o dinheiro dele.
O rapaz estava pousando o saco de mantimentos no chão. Enfiou a mão no bolso e encontrou uma moeda. O velho resmungou um agradecimento e foi embora.
“Diacho”, pensei comigo. “Que faço agora?”
Naquele instante o rapaz derrubou o saco de mantimentos. Duas maçãs rolaram pela calçada. Ele curvou-se para apanhá-las, e eu o puxei para o be­co, apertando-o contra o muro. Ambos estávamos morrendo de medo, mas eu tinha a vantagem da sur­presa. Ele ficou petrificado quando eu levantei a fa­ca diante do seu nariz.
“Não quero machucar você, mas preciso de di­nheiro. Estou desesperado. Dê-me dinheiro. Já! De­pressa! Tudo o que tem, antes que o mate.”
Minha mão tremia tanto que eu tive medo de deixar cair a faca.
“Por favor, por favor. Leve tudo, mas não me mate”, rogou o rapaz. Tirou a carteira do bolso e tentou passá-la para mim, mas derrubou-a. Ele tre­mia mais do que eu. Chutei a carteira ainda mais para o fundo do beco. “Caia fora”, disse eu. “Corra, homem, corra! E se parar de correr antes do segun­do quarteirão, é um homem morto.”
Olhou para mim, com os olhos arregalados de terror, e  começou  a   correr.   Tropeçou  nos  mantimentos e estatelou-se na calçada, na entrada do beco. Cambaleando, levantou-se outra vez, e meio de gatinhas, meio em pé, saiu correndo rua abaixo. Logo que virou a esquina, peguei a carteira e corri com todas as forças na direção oposta. Emergindo da escuridão em De Kalb, saltei a cerca de corrente que cerca o parque, e corri pela grama alta, em di­reção às árvores. Escondendo-me por trás de um aterro, parei para tomar fôlego e permitir que o meu coração acelerado se acalmasse. Abrindo a carteira, contei dezenove dólares. Era uma sensação agradá­vel ter as notas na mão. Atirei a carteira no meio da grama alta, e contei o dinheiro outra vez, antes de dobrá-lo e colocá-lo no bolso.
Nada mal, pensei. As quadrilhas estão matando vagabundos por menos de um dólar, e eu consegui­ra dezenove na primeira tentativa. Afinal de contas, as coisas não iam assim tão mal.
Mas o sentimento de autoconfiança não remo­veu todo o medo e permaneci escondido detrás dos arbustos, até depois da meia-noite. A essa altura, já era tarde demais para ir procurar o quarto; voltei então ao lugar onde havia cometido o roubo. Alguém já juntara todos os mantimentos que haviam caído, com exceção de uma caixa de bolachas, que estava toda amassada. Apanhei a caixa e sacudi-a, fazendo com que os pedaços e o farelo caíssem na calçada. Reconstituí o acontecido em meus pensamentos, e sorri. Eu devia tê-lo cortado, só para ver como era, pensei. Da próxima vez, vou fazer isto.
Dirigi-me para a entrada do metrô, perto de Pa­pa John, e peguei o primeiro trem que chegou. Pas­sei a noite no metrô, e no dia seguinte, logo cedo, estava de volta à Rua Fort Greene para alugar o quarto.
O zelador subiu comigo três lances de escadas. O quarto tinha janelas para a rua que ficava defron­te à Escola Técnica de Brooklin. Era pequeno, com rachaduras no forro. O zelador disse-me que havia um banheiro comum no segundo andar, e que eu podia regular o sistema de aquecimento com a ma­çaneta do radiador de aço. Entregou-me a chave, e disse-me que o aluguel vencia todo sábado, uma se­mana adiantado. A porta fechou-se atrás dele. Es­cutei seus passos soando pesadamente escada abaixo.
Voltei-me e olhei o quarto. Havia duas camas de solteiro, uma cadeira, uma mesinha, um lavatório e um pequeno guarda-roupa. Indo à janela, olhei a rua, lá embaixo. O trânsito, logo cedinho, movia-se com um zumbido na Av. Lafayette, no fim do quar­teirão. Do outro lado da rua erguia-se a Escola Téc­nica de Brooklin. Ocupava todo o quarteirão e im­pedia a visão de qualquer outro panorama, mas não fazia muita diferença. Pelo menos, eu estava por conta própria.
Naquela manhã, dei a primeira volta pela vizi­nhança. Descendo as escadas do pardieiro, vi um rapaz sair cambaleando de debaixo da escada. Sua face estava pálida como um lençol, e seus olhos pro­fundamente encovados. O paletó sujo e esfarrapado caía de um dos ombros, e as suas calças ficaram com a braguilha aberta, depois dele ter urinado atrás do radiador. Não sabia dizer se estava bêbedo ou dopado. Parei no patamar e fiquei a observá-lo, en­quanto saía pela porta e descia os degraus externos. Debruçou-se sobre o corrimão e vomitou na calçada. Um grupo de “pequenos” irrompeu por uma porta lateral do primeiro andar e correu para fora, igno­rando completamente sua presença. O cara parou de vomitar e deixou-se cair no último degrau, olhan­do inexpressivamente para a rua.
Passei por ele e desci para a calçada. Sobre a minha cabeça ouvi uma janela abrir-se e olhei para cima exatamente a tempo de desviar-me rapidamen­te de uma avalanche de lixo que era jogada do ter­ceiro andar. Em outra porta, logo adiante, um dos “pequenos” estava agachado na penumbra, debaixo da escada, usando uma entrada de porão como latrina.  Estremeci, mas disse a mim mesmo que acaba­ria me acostumando com aquilo.
Por trás do edifício de apartamentos havia um terreno baldio, cheio de espinheiros e mato que che­gavam à altura da cintura. Algumas árvores esque­léticas esticavam seus galhos desnudos para o céu cinzento. A primavera começara, mas as árvores pa­reciam relutantes em fazer brotar novos rebentos e enfrentar outro verão do gueto (Gueto: Nome dado a uma área pobre de cidade grande, em que habitam pessoas de uma mesma raça ou cor. N. dos E.). Chutei uma lata de cerveja vazia — o terreno estava cheio delas. Caixas velhas de papelão, jornais e caixas quebradas estavam espalhados no meio do mato crescido. Uma cerca de arame toda estragada, estendia-se através do lote, até outro edifício de apartamentos que fazia frente com a Rua St. Edward. Olhando para trás, vi o meu prédio, e algumas das janelas do primeiro andar tapadas com tábuas ou com folhas de zinco, para resguardar os apartamentos do vento frio. Dois prédios além, eu vi as faces redondas de uns negrinhos pequenos, com seus narizes apertados contra a vidraça suja, observando-me chutar o lixo. Eles me fizeram pensar em animaizinhos engaiolados, ansian­do pela liberdade, mas com medo de aventurar-se fora da gaiola, temerosos de serem feridos ou mor­tos. Parte da janela estava quebrada e em seu lugar haviam posto folhas de papelão manchado de umi­dade. Contei cinco faces amedrontadas. Possivelmen­te havia mais cinco no pequeno apartamento de três cômodos.
Dei a volta, e retornei à frente do apartamento. O apartamento do porão, debaixo do número 54, es­tava vago. O portão de ferro estava aberto. Chutei-o e entrei O cheiro de urina, excrementos, vinho, fu­mo e graxa era maior do que eu podia suportar. Saí depressa prendendo a respiração. Pelo menos eu ti­nha um quarto no terceiro andar.
Comecei a descer pela calçada. As prostitutas constituíam uma cena patética. As mulheres bran­cas exerciam o seu comércio do lado direito da rua e ocupavam um prédio de apartamentos a um quar­teirão do meu. As mulheres de cor “trabalhavam” do outro lado da rua, e viviam perto da entrada do metrô. Eram todas viciadas em narcóticos. Pica­vam por ali, vestidas com casacos sujos, em grupos. Algumas bocejavam ou porque estavam doentes, ou porque precisavam de um “estimulante”, uma picada de heroína, logo de manhã, para animá-las.
Dois meses se passaram e eu ainda não me acos­tumara com Nova York. Lá em Porto Rico  vira gravuras da estátua da Liberdade e do edifício das Nações Unidas, mas aqui, nesta área pobre, só havia edifícios de apartamentos até perder de vista, cheios de carne humana. Cada janela simbolizava uma fa­mília, amontoada em  quartos minúsculos, levando uma vida miserável. Pensei no jardim zoológico de San Juan, onde os ursos andavam lentamente, e os macacos tagarelavam detrás das grades. Eles se es­pojavam na sua própria imundície.  Comiam carne estragada ou alface murcha. Lutavam uns contra os outros, e a única vez em que concordavam era quan­do se reuniam para rechaçar um intruso.  Os ani­mais não foram feitos para viver desta forma, só com uma floresta pintada na parede de trás da jau­la, a recordar-lhes o lugar onde deveriam estar. Nem as pessoas.   Mas aqui, nos guetos, elas vivem as­sim.
Parei no meio-fio, na esquina da Av. Myrtle, es­perando o sinal abrir. Sobre minha cabeça um trem rugiu e matraqueou, cobrindo os que estavam em­baixo com uma camada fina de fuligem e poeira. As ruas estavam cobertas com uma mistura lama­centa de neve, sujeira e sal, que o povo atravessava quando o sinal abria.
Nos fundos dos prédios de apartamentos os va­rais iam de uma sacada a outra, de uma chaminé a outra. As camisas azuis e calças cáqui drapejavam ao vento gélido. Roupas de baixo que uma vez ha­viam sido brancas agora eram de um cinzento encardido, devido à constante exposição ao ar poluído. O sábado amanhecera. Os lojistas abriam as pe­sadas grades de ferro defronte às lojas. Em muitos quarteirões não havia loja que não tivesse uma gra­de de ferro em forma de tela ou barras de ferro, para protegê-la das quadrilhas que por ali vaguea­vam à noite.
Os apartamentos eram, porém, o que mais me deprimia. Havia evidências de tentativas anêmicas dos ocupantes, procurando alguma forma de identi­dade, acima da selva de concreto e dos precipícios de tijolos. Mas era um esforço desesperado à seme­lhança de um homem que está se enterrando em areia movediça, que tateia às bordas do lodaçal com dedos frementes, procurando uma raiz que seja, agarrando-se a ela desesperadamente, enquanto é ar­rastado para o fundo, com a raiz quase esmagada nas mãos apertadas em desespero.
Um vaso de cerâmica, sujo, com flores, enfeita­va o batente de uma janela coberta de fuligem. Um gerânio mal cuidado apoiava-se contra o vidro.
Ocasionalmente, via um apartamento com esca­das pintadas de cores vivas, e às vezes os umbrais de uma janela estavam pintados, aparecendo assim em flagrante contraste com as pedras escuras. Em outro local uma jardineira improvisada, feita com a madeira rústica de um engradado, aparecia depen­durada de uma janela imunda. Nela, algumas flores artificiais desafiavam o vento de inverno, cobertas da fuligem que saía de milhares de chaminés ergui­das por toda a cidade.
Eu chegara à Rua St. Edward, e parara defron­te à biblioteca Walt Whitman, perto do Distrito Po­licial. Do outro lado da rua havia um enorme edi­fício de apartamentos de doze andares, que cobria um quarteirão inteiro.  Suas seiscentas  janelas  davam para a rua, cada uma representando um estado miserável de humanidade, tremendo por trás das vi­draças De uma das janelas pendia um trapo esfar­rapado, outrora de cores brilhantes, agora desbota­do devido às intempéries. A maior parte das jane­las' não tinha venezianas ou cortinas — estavam ali, arregaladas como os olhos de um cadáver congela­do, deitado na rua.
Voltei sobre os meus passos, em direção à Pra­ça Washington. O que há de errado com este povo, aqui neste lugar imundo? pensei. Por que vive as­sim? Não há quintais. Nem grama. Nem espaços abertos. Nem árvores. Eu não sabia que uma vez que alguém muda para uma daquelas gaiolas de con­creto, fica prisioneiro dela. Não há escapatória na selva de asfalto.
Naquela tarde, desci rua abaixo de novo. Eu notara que havia uma espécie de parque de diver­sões e espetáculos, no pátio que havia atrás da Igre­ja Católica de St. Michael e St. Edward na esquina das ruas Auburn e St. Edward. Era uma quermes­se. Cheguei às quatro horas. A música do alto-fa­lante ressoava no volume máximo. Ainda tinha um pouco de dinheiro que restara do furto, e o pensa­mento de uma quermesse fazia meu sangue formi­gar. Na porta, notei um grupo de rapazes em volta de um tocador de realejo. Vestiam blusões negros, com dois M vermelhos costurados nas costas. A mú­sica do realejo era quase sufocada pelo barulho que os rapazes estavam fazendo, batendo palmas e dan­çando no meio da calçada.
No centro do grupo estava um rapaz de cabelos negros, bem magro, mais ou menos da minha idade. Seu rosto bonito abria-se num sorriso, enquanto ele sapateava, em ritmo acelerado. Com as mãos na cin­tura, ele girava ao ritmo da música. Repentinamen­te seus olhos negros encontraram os meus. Parou de repente e o sorriso foi instantaneamente substi­tuído por um olhar duro e frio.
“Ei, cara, o que é que você está fazendo neste território? Aqui é domínio dos Mau-Maus. Nós não queremos nenhum quadrado rondando por aqui.”
Devolvi-lhe o olhar duro, e percebi que os outros rapazes de blusão preto haviam, silenciosamente, for­mado um pequeno círculo ao nosso redor. O rapaz bonito, de olhos frios como o aço, encaminhou-se pa­ra mim e me empurrou com o peito, rindo: “Qual a sua “turma”, moleque?”
“Não tenho turma”, respondi. “Vim aqui para entrar na quermesse. É crime?”
Um rapaz do grupo avançou para mim.
“Ei, meu chapa, você sabe o que é isto?” disse ele, brandindo uma faca aberta. “Isto é um punhal, cara. Isso vai cortar sua barriga. Quero ver você a bancar o espertinho comigo! Eu não sou mole co­mo o Israel.”
O rapaz a quem ele chamara de Israel fez sinal para o outro afastar-se, e continuou: “Sabe, um qua­drado pode ser morto num instante. Pode ser que eu o mate. Agora, se você quer viver, é melhor pi­nicar .”
Eu estava com raiva, e pus a mão no bolso, pro­curando minha faca, mas cheguei à conclusão de que a minha desvantagem era muito grande. Não queria portar-me como covarde, mas sabia que haveria ou­tra oportunidade para demonstrar minha coragem. Assenti com a cabeça e voltei rua acima, em direção à Praça Washington, e ao meu quarto. Atrás de mim pude ouvir a quadrilha rindo e apupando: “Isto é que é falar, Israel. Aquele pirralho apren­deu a lição, desta vez. Vai fazer frio no inferno an­tes que ele ponha o nariz aqui de novo.”
Eu estava zangado e frustrado. Passando por baixo do pontilhão do trem na Av. Myrtle, entrei na praça e sentei-me em um banco. Não notei que um garoto de cerca de treze anos me seguira. Virei-me e olhei para ele, que riu e sentou-se no banco, ao meu lado.
“Eles lhe fizeram passar um aperto, não?” disse ele.
“O que você está pensando?” perguntei. “Eu dou em todos eles, mas seria um bobo se tosse lutar contra todos de uma só vez.”
“Rapaz, as quadrilhas aqui são duronas”, disse o menino, tirando do bolso da camisa um cigarro feito em casa. “Matam a gente se não concordar com eles.”
Acendeu o cigarro e notou que eu o observava.
“Você fuma maconha?” perguntou. Meneei a cabeça, embora soubesse do que estava falando.
“Quer experimentar? Tenho mais um. É bárba­ro, bicho.”
“Claro”, respondi. Recuara uma vez naquela tar­de, e não queria recuar de novo.
Ele enfiou a mão no bolso da camisa e tirou um cigarro dobrado e amarfanhado. Estava dobrado em ambas as pontas, e manchado lateralmente, onde ele lambera o papel para colá-lo.
“É preciso tragar”, disse o rapaz. “Se não, ele se apaga.”
Ele acendeu o cigarro e comecei a fumar cuida­dosamente .
“Não”, riu o menino, “é assim.”
Deu um trago profundo no cigarro e inalou va­garosamente a fumaça para os pulmões.
“Puxa, como isto é bom! Se você der baforadas, ele se queima e você não aproveita. Você precisa tragar, meu chapa!”
Eu traguei. Tinha um gosto estranhamente do­ce, e um cheiro forte.
“O que acontece?” perguntei, começando a sen­tir os efeitos atordoantes da erva.
“Meu chapa, isto faz a gente voar”, respondeu o rapaz. “Faz a gente rir um bocado. Faz a gente achar que é o melhor dançarino, melhor namorador, me­lhor lutador. Todos aqueles rapazes lá na quermes­se estavam fumando a erva. Você não viu como os
olhos deles estavam vermelhos? A gente pode saber se eles estão “altos”, observando o brilho dos olhos.”
“Onde é que você consegue isto?”
“Ah, é fácil. Tem umas cem bocas de fumo aqui na vizinhança. A maior parte dos rapazes pode consegui-la para você. Eles conseguem de contatos mais importantes. Cuba, México. Eu? Meu velho tem uma plantação de maconha no fundo do quin­tal. Nosso quintal está cheio de mato. Ninguém vai lá, e o meu velho plantou algumas sementes no meio do mato. Nós temos umas mudas, para o gasto. Não é tão boa como outros tipos de mercadoria, mas é de graça.”
“Quanto custa, a gente comprando numa boca de fumo?” perguntei, procurando aprender o vo­cabulário e um pouco embaraçado pelo fato de um menino de treze anos saber mais do que eu.
“Alguns “pacaus” custam um dólar. Algumas ve­zes a gente encontra a setenta e cinco centavos, mas é melhor comprar uma lata. É como uma pequena lata de fumo. Dessa forma a gente pode fazer os próprios “pacaus” por quarenta centavos, mais ou menos. Mas, precisa ter cuidado. Alguns caras po­dem querer tapear você. Eles misturam orégano com a maconha, e assim a gente não compra a erva pura. Sempre é bom provar antes de pagar, pois certa­mente  eles  quererão  tapear.”
Eu terminara de fumar o meu “pacau”, e esti­cara as pernas para a frente, descansando a cabeça nas costas do banco. Não parecia estar sentindo o vento frio, e a tontura desaparecera, deixando-me uma sensação de estar flutuando em uma nuvem de sonho.
Voltei-me para olhar o garoto. Ele estava sen­tado no banco, com a cabeça nas mãos.
“Pensei que esta droga devia fazer a gente feliz. Por que você não está rindo?”
“Rapaz, por que é que eu vou rir?” disse ele. “Meu velho é um beberrão.  Só que ele não é meu verdadeiro pai. Ele veio morar com minha mãe no ano passado. Pra te contar a verdade, eu nem sei quem é o meu velho. Esse homem bate na minha mãe o tempo todo. Na semana passada tentei tirá-lo de cima dela e ele deu uma garrafada na minha ca­ra, quebrando-me dois dentes. Joguei um desperta­dor nele, que pegou nas suas costas. Então minha mãe, minha própria mãe me xingou e disse para eu me mandar... que eu não tinha direito de machucar o seu homem. Agora eu estou morando na rua, espe­rando a hora de poder matá-lo. Não faço parte de nenhuma quadrilha. Não estou unido a ninguém. Estou só esperando pegar aquele vagabundo sozinho, para matá-lo. Também não gosto mais de minha mãe. Que motivo tenho para sorrir?”
Nenhuma vez levantou a cabeça enquanto fala­va.
“Esse é o mesmo homem que plantou a maconha no fundo do quintal?” perguntei.
“É. Ele também é traficante. Meu chapa, espe­ra só eu o pegar sozinho. Vou furá-lo — atravessá-lo com uma faca.” Ele olhou para cima, o rosto contorcido e cansado. Parecia mais a face de um macaco velho, do que a de um rapazinho de treze anos.
“E o seu velho, ele também é um pau dágua?” “Não, eu sou de sorte. Eu nem mesmo tenho um velho ou uma velha”, menti. “Sou sozinho.”
O menino levantou a cabeça: “É, agora eu tam­bém; espero.”
Depois, animando-se, acrescentou: “Bem, “ciao”. Tome cuidado com as quadrilhas. Eles te matam, se te pegarem na rua durante a noite!”
“Ei, e o que você me diz dessas quadrilhas? Quantas são?”
“Centenas”, disse ele. “Rapaz, há tantas que a gente nem pode contar.”
“O que é que eles fazem?”
“Brigam, meu chapa; o que mais? Estão sempre saindo para lutar contra outra gang, ou então ficam perto de casa para defender seus domínios contra al­guma gang invasora. Quando não estão combatendo uns com os outros, estão combatendo com a polícia. Usam tudo o que podem para brigar. Carregam fa­cas, porretes, pistolas, revólveres, soqueiras de bron­ze, rifles, espingardas de cano serrado, baionetas, ta­cos de beisebol, garrafas quebradas, tijolos, pedras, correntes de bicicleta... rapaz, qualquer coisa que você pensar, eles usam para matar. Chegam a afiar a ponta do guarda-chuva, pôr pregos nos sapatos, e algumas das quadrilhas dos italianos carregam na­valhas, e colocam lâminas de barbear entre os de­dos, quando vão dar socos. Fique por aqui, e você vai ver. É por isto que não me uno a eles. Eu só ando pelos becos e ruas escuras, e fico longe deles. Mas você vai aprender; fica por aí, que você apren­de.”
Ele se levantou e foi andando sem destino pela praça, desaparecendo no crepúsculo. Voltei ao nú­mero 54 da Fort Greene. Já estava ficando escuro.