Capítulo 3
SOZINHO
UMA VIDA MOTIVADA pelo ódio e pelo temor não tem lugar para
mais nada a não ser o próprio ego. Eu odiava a todo mundo, inclusive Frank. Ele
representava a autoridade, e quando começou a reclamar porque eu não ia mais à
escola e ficava fora até tarde da noite, resolvi deixá-lo.
“Nicky”, disse ele, “Nova York é uma selva. O povo que vive
aqui, vive pela lei da selva. Só os fortes sobrevivem. Na verdade, você ainda
não viu nada, Nicky. Moro aqui há cinco anos e sei. Este lugar está cheio de
prostitutas, viciados em narcóticos, ébrios e assassinos. Esses indivíduos
podem matar você, ninguém vai saber que está morto, até que algum malandro
tropece no seu corpo em decomposição, sob um monte de lixo.”
Frank tinha razão. Mas eu não podia mais ficar ali. Estava
insistindo para que eu voltasse à escola, e eu sabia que tinha de tentar viver
por minha conta, sozinho.
“Nicky, não posso forçar você a voltar para a escola. Mas se
você não fizer isso, está perdido.”
“Mas o diretor me expulsou. Ele disse para eu não voltar
nunca mais.”
“Não tenho nada a ver com isso. Se quiser viver aqui, tem
de voltar. Você precisa estudar.”
“Se pensa que vou voltar, está louco, Frank.” Respondi com
maus modos. “Se tentar me obrigar, eu te mato.”
“Nicky, você é meu irmão. Isto não é coisa que se
fale. Mamãe e papai me disseram para tomar conta de você e não vou deixar que
fale assim. Ou você vai para a escola, ou sai daqui. Vá embora, se quiser. Mas
você voltará, porque não tem onde ir. Mas se ficar, vai para a escola e é só.”
Isso foi na sexta-feira de manhã, antes de Frank sair para o
trabalho. Naquela tarde deixei um bilhete sobre a mesa da cozinha, dizendo-lhe
que fora convidado por alguns amigos para ficar com eles durante uma semana.
Eu não tinha amigos, todavia não podia ficar mais com Frank.
Naquela noite, vagueei por Bedford-Stuyvesant, um bairro de
Brooklin, procurando lugar para ficar. Dirigi-me a alguns rapazes que estavam
parados numa esquina. “Alguém sabe onde eu posso encontrar um quarto para
morar?”
Um deles virou se e olhou para mim, tirando baforadas de um
cigarro. “Sim”, disse ele, apontando com o polegar sobre o ombro, na direção
da Escola de Brooklin. “O meu velho é zelador daqueles apartamentos, do outro
lado da rua. Fale com ele, que encontrará um lugar para você. Lá está ele sentado
na escada, jogando baralho com aqueles outros caras. Ele é o que está bêbado.”
Todos os outros rapazes riram.
O prédio a que o rapaz se referira pertencia ao projeto Fort
Greene, no coração de um dos maiores conjuntos residenciais do mundo. Mais de
trinta mil pessoas viviam nos altos edifícios, sendo que a maioria era de
negros e porto-riquenhos. O Conjunto Habitacional de Fort Greene vai desde a
Av. Park até a Av. Lafayette, e a Praça Washington fica no centro.
Encaminhei-me para o grupo de homens e perguntei ao zelador
se havia um quarto para alugar. Ele tirou os olhos das cartas e grunhiu: “Sim,
tem um. Por quê?”
Hesitei e gaguejei: “Bem, porque eu preciso de um lugar para
morar.”
“Tem quinze pacotes aí?” perguntou, cuspindo fumo na direção
de meus pés.
“Bem, não, agora não, mas...”
“Então não tem quarto”, disse ele, e voltou ao baralho. Os
outros homens nem se dignaram a levantar os olhos.
“Mas posso conseguir o dinheiro”, argumentei.
“Olhe, garoto, quando você puder mostrar-me quinze pacotes
adiantados, o quarto é seu. Não me importa como vai consegui-los. Roube de
alguma velha, não me importo. Mas até que você tenha o dinheiro, não meta mais
o nariz aqui, você está me enchendo.”
Voltei para a Av. Lafayette: passei por Papa John's, Casa de
Carne Harry, Bar Paradise, Shery's, The Esquire, Bar Valhal, e Rendezvous do
Lincoln. Parando ao lado do último, entrei em um beco, procurando descobrir
como conseguir dinheiro.
Sabia que se tentasse assaltar alguém e fosse apanhado, iria
para a cadeia, mas estava desesperado. Dissera a Frank que só voltaria depois
de uma semana. Um quarto custava dinheiro, e eu não tinha um centavo. Eram
quase dez horas da noite, e o vento de inverno estava frio de rachar. Recuei
para a escuridão do beco, e vi pessoas passando na calçada. Tirei o punhal do
bolso e apertei o botão. A lâmina abriu-se com um estalido. Encostei a ponta
contra a palma da mão. Minha mão tremia ao pensar como iria praticar o roubo.
Seria melhor empurrá-los para o beco? Eu deveria esfaqueá-los, ou apenas
amedrontá-los? E se gritassem?...
Meus pensamentos foram interrompidos por duas pessoas que
conversavam na entrada do beco. Um velho bêbedo fez parar um rapaz de uns dezenove
anos, que levava um enorme saco de mantimentos. O velho pedia-lhe uns trocados
para tomar café. Ouvi o rapaz, tentando escapar, dizer ao bêbedo que não tinha
dinheiro.
Atravessou-me a mente o pensamento de que o velho,
provavelmente, estava com o bolso cheio de dinheiro mendigado e roubado. Não
ousaria gritar pedindo socorro, se eu o roubasse. Logo que o rapaz se fosse eu
o puxaria para o beco e tiraria o dinheiro dele.
O rapaz estava pousando o saco de mantimentos no chão.
Enfiou a mão no bolso e encontrou uma moeda. O velho resmungou um agradecimento
e foi embora.
“Diacho”, pensei comigo. “Que faço agora?”
Naquele instante o rapaz derrubou o saco de mantimentos.
Duas maçãs rolaram pela calçada. Ele curvou-se para apanhá-las, e eu o puxei
para o beco, apertando-o contra o muro. Ambos estávamos morrendo de medo, mas
eu tinha a vantagem da surpresa. Ele ficou petrificado quando eu levantei a faca
diante do seu nariz.
“Não quero machucar você, mas preciso de dinheiro. Estou
desesperado. Dê-me dinheiro. Já! Depressa! Tudo o que tem, antes que o mate.”
Minha mão tremia tanto que eu tive medo de deixar cair a
faca.
“Por favor, por favor. Leve tudo, mas não me mate”, rogou o
rapaz. Tirou a carteira do bolso e tentou passá-la para mim, mas derrubou-a.
Ele tremia mais do que eu. Chutei a carteira ainda mais para o fundo do beco. “Caia
fora”, disse eu. “Corra, homem, corra! E se parar de correr antes do segundo
quarteirão, é um homem morto.”
Olhou para mim, com os olhos arregalados de terror, e começou
a correr. Tropeçou
nos mantimentos e estatelou-se na
calçada, na entrada do beco. Cambaleando, levantou-se outra vez, e meio de
gatinhas, meio em pé, saiu correndo rua abaixo. Logo que virou a esquina,
peguei a carteira e corri com todas as forças na direção oposta. Emergindo da
escuridão em De Kalb, saltei a cerca de corrente que cerca o parque, e corri
pela grama alta, em direção às árvores. Escondendo-me por trás de um aterro,
parei para tomar fôlego e permitir que o meu coração acelerado se acalmasse.
Abrindo a carteira, contei dezenove dólares. Era uma sensação agradável ter as
notas na mão. Atirei a carteira no meio da grama alta, e contei o dinheiro
outra vez, antes de dobrá-lo e colocá-lo no bolso.
Nada mal, pensei. As quadrilhas estão matando vagabundos por
menos de um dólar, e eu conseguira dezenove na primeira tentativa. Afinal de
contas, as coisas não iam assim tão mal.
Mas o sentimento de autoconfiança não removeu todo o medo e
permaneci escondido detrás dos arbustos, até depois da meia-noite. A essa
altura, já era tarde demais para ir procurar o quarto; voltei então ao lugar
onde havia cometido o roubo. Alguém já juntara todos os mantimentos que haviam
caído, com exceção de uma caixa de bolachas, que estava toda amassada. Apanhei
a caixa e sacudi-a, fazendo com que os pedaços e o farelo caíssem na calçada.
Reconstituí o acontecido em meus pensamentos, e sorri. Eu devia tê-lo cortado,
só para ver como era, pensei. Da próxima vez, vou fazer isto.
Dirigi-me para a entrada do metrô, perto de Papa John, e
peguei o primeiro trem que chegou. Passei a noite no metrô, e no dia seguinte,
logo cedo, estava de volta à Rua Fort Greene para alugar o quarto.
O zelador subiu comigo três lances
de escadas. O quarto tinha janelas para a rua que ficava defronte à Escola
Técnica de Brooklin. Era pequeno, com rachaduras no forro. O zelador disse-me
que havia um banheiro comum no segundo andar, e que eu podia regular o sistema
de aquecimento com a maçaneta do radiador de aço. Entregou-me a chave, e
disse-me que o aluguel vencia todo sábado, uma semana adiantado. A porta
fechou-se atrás dele. Escutei seus passos soando pesadamente escada abaixo.
Voltei-me e olhei o quarto. Havia duas camas de solteiro,
uma cadeira, uma mesinha, um lavatório e um pequeno guarda-roupa. Indo à
janela, olhei a rua, lá embaixo. O trânsito, logo cedinho, movia-se com um
zumbido na Av. Lafayette, no fim do quarteirão. Do outro lado da rua erguia-se
a Escola Técnica de Brooklin. Ocupava todo o quarteirão e impedia a visão de
qualquer outro panorama, mas não fazia muita diferença. Pelo menos, eu estava
por conta própria.
Naquela manhã, dei a primeira volta pela vizinhança.
Descendo as escadas do pardieiro, vi um rapaz sair cambaleando de debaixo da
escada. Sua face estava pálida como um lençol, e seus olhos profundamente
encovados. O paletó sujo e esfarrapado caía de um dos ombros, e as suas calças
ficaram com a braguilha aberta, depois dele ter urinado atrás do radiador. Não
sabia dizer se estava bêbedo ou dopado. Parei no patamar e fiquei a observá-lo,
enquanto saía pela porta e descia os degraus externos. Debruçou-se sobre o
corrimão e vomitou na calçada. Um grupo de “pequenos” irrompeu por uma porta
lateral do primeiro andar e correu para fora, ignorando completamente sua
presença. O cara parou de vomitar e deixou-se cair no último degrau, olhando
inexpressivamente para a rua.
Passei por ele e desci para a calçada. Sobre a minha cabeça
ouvi uma janela abrir-se e olhei para cima exatamente a tempo de desviar-me
rapidamente de uma avalanche de lixo que era jogada do terceiro andar. Em
outra porta, logo adiante, um dos “pequenos” estava agachado na penumbra,
debaixo da escada, usando uma entrada de porão como latrina. Estremeci, mas disse a mim mesmo que acabaria
me acostumando com aquilo.
Por trás do edifício de apartamentos havia um terreno
baldio, cheio de espinheiros e mato que chegavam à altura da cintura. Algumas
árvores esqueléticas esticavam seus galhos desnudos para o céu cinzento. A
primavera começara, mas as árvores pareciam relutantes em fazer brotar novos
rebentos e enfrentar outro verão do gueto (Gueto: Nome dado a uma área pobre de
cidade grande, em que habitam pessoas de uma mesma raça ou cor. N. dos E.).
Chutei uma lata de cerveja vazia — o terreno estava cheio delas. Caixas velhas
de papelão, jornais e caixas quebradas estavam espalhados no meio do mato
crescido. Uma cerca de arame toda estragada, estendia-se através do lote, até
outro edifício de apartamentos que fazia frente com a Rua St. Edward. Olhando
para trás, vi o meu prédio, e algumas das janelas do primeiro andar tapadas com
tábuas ou com folhas de zinco, para resguardar os apartamentos do vento frio.
Dois prédios além, eu vi as faces redondas de uns negrinhos pequenos, com seus
narizes apertados contra a vidraça suja, observando-me chutar o lixo. Eles me
fizeram pensar em animaizinhos engaiolados, ansiando pela liberdade, mas com
medo de aventurar-se fora da gaiola, temerosos de serem feridos ou mortos.
Parte da janela estava quebrada e em seu lugar haviam posto folhas de papelão
manchado de umidade. Contei cinco faces amedrontadas. Possivelmente havia
mais cinco no pequeno apartamento de três cômodos.
Dei a volta, e retornei à frente do apartamento. O
apartamento do porão, debaixo do número 54, estava vago. O portão de ferro
estava aberto. Chutei-o e entrei O cheiro de urina, excrementos, vinho, fumo e
graxa era maior do que eu podia suportar. Saí depressa prendendo a respiração.
Pelo menos eu tinha um quarto no terceiro andar.
Comecei a descer pela calçada. As prostitutas constituíam
uma cena patética. As mulheres brancas exerciam o seu comércio do lado direito
da rua e ocupavam um prédio de apartamentos a um quarteirão do meu. As
mulheres de cor “trabalhavam” do outro lado da rua, e viviam perto da entrada
do metrô. Eram todas viciadas em narcóticos. Picavam por ali, vestidas com
casacos sujos, em grupos. Algumas bocejavam ou porque estavam doentes, ou
porque precisavam de um “estimulante”, uma picada de heroína, logo de manhã,
para animá-las.
Dois meses se passaram e eu ainda não me acostumara com
Nova York. Lá em Porto Rico vira
gravuras da estátua da Liberdade e do edifício das Nações Unidas, mas aqui,
nesta área pobre, só havia edifícios de apartamentos até perder de vista,
cheios de carne humana. Cada janela simbolizava uma família, amontoada em quartos minúsculos, levando uma vida
miserável. Pensei no jardim zoológico de San Juan, onde os ursos andavam
lentamente, e os macacos tagarelavam detrás das grades. Eles se espojavam na
sua própria imundície. Comiam carne
estragada ou alface murcha. Lutavam uns contra os outros, e a única vez em que
concordavam era quando se reuniam para rechaçar um intruso. Os animais não foram feitos para viver desta
forma, só com uma floresta pintada na parede de trás da jaula, a recordar-lhes
o lugar onde deveriam estar. Nem as pessoas.
Mas aqui, nos guetos, elas vivem assim.
Parei no meio-fio, na esquina da Av. Myrtle, esperando o
sinal abrir. Sobre minha cabeça um trem rugiu e matraqueou, cobrindo os que
estavam embaixo com uma camada fina de fuligem e poeira. As ruas estavam
cobertas com uma mistura lamacenta de neve, sujeira e sal, que o povo
atravessava quando o sinal abria.
Nos fundos dos prédios de apartamentos os varais iam de uma
sacada a outra, de uma chaminé a outra. As camisas azuis e calças cáqui
drapejavam ao vento gélido. Roupas de baixo que uma vez haviam sido brancas
agora eram de um cinzento encardido, devido à constante exposição ao ar
poluído. O sábado amanhecera. Os lojistas abriam as pesadas grades de ferro
defronte às lojas. Em muitos quarteirões não havia loja que não tivesse uma grade
de ferro em forma de tela ou barras de ferro, para protegê-la das quadrilhas
que por ali vagueavam à noite.
Os apartamentos eram, porém, o que mais me deprimia. Havia
evidências de tentativas anêmicas dos ocupantes, procurando alguma forma de
identidade, acima da selva de concreto e dos precipícios de tijolos. Mas era
um esforço desesperado à semelhança de um homem que está se enterrando em
areia movediça, que tateia às bordas do lodaçal com dedos frementes, procurando
uma raiz que seja, agarrando-se a ela desesperadamente, enquanto é arrastado
para o fundo, com a raiz quase esmagada nas mãos apertadas em desespero.
Um vaso de cerâmica, sujo, com flores, enfeitava o batente
de uma janela coberta de fuligem. Um gerânio mal cuidado apoiava-se contra o
vidro.
Ocasionalmente, via um apartamento com escadas pintadas de
cores vivas, e às vezes os umbrais de uma janela estavam pintados, aparecendo
assim em flagrante contraste com as pedras escuras. Em outro local uma
jardineira improvisada, feita com a madeira rústica de um engradado, aparecia
dependurada de uma janela imunda. Nela, algumas flores artificiais desafiavam
o vento de inverno, cobertas da fuligem que saía de milhares de chaminés erguidas
por toda a cidade.
Eu chegara à Rua St. Edward, e parara defronte à biblioteca
Walt Whitman, perto do Distrito Policial. Do outro lado da rua havia um enorme
edifício de apartamentos de doze andares, que cobria um quarteirão inteiro. Suas seiscentas janelas
davam para a rua, cada uma representando um estado miserável de
humanidade, tremendo por trás das vidraças De uma das janelas pendia um trapo
esfarrapado, outrora de cores brilhantes, agora desbotado devido às
intempéries. A maior parte das janelas' não tinha venezianas ou cortinas —
estavam ali, arregaladas como os olhos de um cadáver congelado, deitado na
rua.
Voltei sobre os meus passos, em direção à Praça Washington.
O que há de errado com este povo, aqui neste lugar imundo? pensei. Por que vive
assim? Não há quintais. Nem grama. Nem espaços abertos. Nem árvores. Eu não
sabia que uma vez que alguém muda para uma daquelas gaiolas de concreto, fica
prisioneiro dela. Não há escapatória na selva de asfalto.
Naquela tarde, desci rua abaixo de novo. Eu notara que havia
uma espécie de parque de diversões e espetáculos, no pátio que havia atrás da
Igreja Católica de St. Michael e St. Edward na esquina das ruas Auburn e St.
Edward. Era uma quermesse. Cheguei às quatro horas. A música do alto-falante
ressoava no volume máximo. Ainda tinha um pouco de dinheiro que restara do
furto, e o pensamento de uma quermesse fazia meu sangue formigar. Na porta,
notei um grupo de rapazes em volta de um tocador de realejo. Vestiam blusões negros,
com dois M vermelhos costurados nas costas. A música do realejo era quase
sufocada pelo barulho que os rapazes estavam fazendo, batendo palmas e dançando
no meio da calçada.
No centro do grupo estava um rapaz de cabelos negros, bem
magro, mais ou menos da minha idade. Seu rosto bonito abria-se num sorriso,
enquanto ele sapateava, em ritmo acelerado. Com as mãos na cintura, ele girava
ao ritmo da música. Repentinamente seus olhos negros encontraram os meus.
Parou de repente e o sorriso foi instantaneamente substituído por um olhar
duro e frio.
“Ei, cara, o que é que você está fazendo neste território?
Aqui é domínio dos Mau-Maus. Nós não queremos nenhum quadrado rondando por
aqui.”
Devolvi-lhe o olhar duro, e percebi que os outros rapazes de
blusão preto haviam, silenciosamente, formado um pequeno círculo ao nosso
redor. O rapaz bonito, de olhos frios como o aço, encaminhou-se para mim e me
empurrou com o peito, rindo: “Qual a sua “turma”, moleque?”
“Não tenho turma”, respondi. “Vim aqui para entrar na
quermesse. É crime?”
Um rapaz do grupo avançou para mim.
“Ei, meu chapa, você sabe o que é isto?” disse ele,
brandindo uma faca aberta. “Isto é um punhal, cara. Isso vai cortar sua
barriga. Quero ver você a bancar o espertinho comigo! Eu não sou mole como o
Israel.”
O rapaz a quem ele chamara de Israel fez sinal para o outro
afastar-se, e continuou: “Sabe, um quadrado pode ser morto num instante. Pode
ser que eu o mate. Agora, se você quer viver, é melhor pinicar .”
Eu estava com raiva, e pus a mão no bolso, procurando minha
faca, mas cheguei à conclusão de que a minha desvantagem era muito grande. Não
queria portar-me como covarde, mas sabia que haveria outra oportunidade para
demonstrar minha coragem. Assenti com a cabeça e voltei rua acima, em direção à
Praça Washington, e ao meu quarto. Atrás de mim pude ouvir a quadrilha rindo e
apupando: “Isto é que é falar, Israel. Aquele pirralho aprendeu a lição, desta
vez. Vai fazer frio no inferno antes que ele ponha o nariz aqui de novo.”
Eu estava zangado e frustrado. Passando por baixo do
pontilhão do trem na Av. Myrtle, entrei na praça e sentei-me em um banco. Não
notei que um garoto de cerca de treze anos me seguira. Virei-me e olhei para
ele, que riu e sentou-se no banco, ao meu lado.
“Eles lhe fizeram passar um aperto, não?” disse ele.
“O que você está pensando?” perguntei. “Eu dou em todos
eles, mas seria um bobo se tosse lutar contra todos de uma só vez.”
“Rapaz, as quadrilhas aqui são duronas”, disse o menino,
tirando do bolso da camisa um cigarro feito em casa. “Matam a gente se não
concordar com eles.”
Acendeu o cigarro e notou que eu o observava.
“Você fuma maconha?” perguntou. Meneei a cabeça, embora
soubesse do que estava falando.
“Quer experimentar? Tenho mais um. É bárbaro, bicho.”
“Claro”, respondi. Recuara uma vez naquela tarde, e não
queria recuar de novo.
Ele enfiou a mão no bolso da camisa e tirou um cigarro
dobrado e amarfanhado. Estava dobrado em ambas as pontas, e manchado
lateralmente, onde ele lambera o papel para colá-lo.
“É preciso tragar”, disse o rapaz. “Se não, ele se apaga.”
Ele acendeu o cigarro e comecei a fumar cuidadosamente .
“Não”, riu o menino, “é assim.”
Deu um trago profundo no cigarro e inalou vagarosamente a
fumaça para os pulmões.
“Puxa, como isto é bom! Se você der baforadas, ele se queima
e você não aproveita. Você precisa tragar, meu chapa!”
Eu traguei. Tinha um gosto estranhamente doce, e um cheiro
forte.
“O que acontece?” perguntei, começando a sentir os efeitos
atordoantes da erva.
“Meu chapa, isto faz a gente voar”, respondeu o rapaz. “Faz
a gente rir um bocado. Faz a gente achar que é o melhor dançarino, melhor
namorador, melhor lutador. Todos aqueles rapazes lá na quermesse estavam
fumando a erva. Você não viu como os
olhos deles estavam vermelhos? A gente pode saber se eles
estão “altos”, observando o brilho dos olhos.”
“Onde é que você consegue isto?”
“Ah, é fácil. Tem umas cem bocas de fumo aqui na vizinhança.
A maior parte dos rapazes pode consegui-la para você. Eles conseguem de
contatos mais importantes. Cuba, México. Eu? Meu velho tem uma plantação de
maconha no fundo do quintal. Nosso quintal está cheio de mato. Ninguém vai lá,
e o meu velho plantou algumas sementes no meio do mato. Nós temos umas mudas,
para o gasto. Não é tão boa como outros tipos de mercadoria, mas é de graça.”
“Quanto custa, a gente comprando numa boca de fumo?”
perguntei, procurando aprender o vocabulário e um pouco embaraçado pelo fato
de um menino de treze anos saber mais do que eu.
“Alguns “pacaus” custam um dólar. Algumas vezes a gente
encontra a setenta e cinco centavos, mas é melhor comprar uma lata. É como uma
pequena lata de fumo. Dessa forma a gente pode fazer os próprios “pacaus” por
quarenta centavos, mais ou menos. Mas, precisa ter cuidado. Alguns caras podem
querer tapear você. Eles misturam orégano com a maconha, e assim a gente não
compra a erva pura. Sempre é bom provar antes de pagar, pois certamente eles
quererão tapear.”
Eu terminara de fumar o meu “pacau”, e esticara as pernas
para a frente, descansando a cabeça nas costas do banco. Não parecia estar
sentindo o vento frio, e a tontura desaparecera, deixando-me uma sensação de
estar flutuando em uma nuvem de sonho.
Voltei-me para olhar o garoto. Ele estava sentado no banco,
com a cabeça nas mãos.
“Pensei que esta droga devia fazer a gente feliz. Por que
você não está rindo?”
“Rapaz, por que é que eu vou rir?” disse ele. “Meu velho é
um beberrão. Só que ele não é meu
verdadeiro pai. Ele veio morar com minha mãe no ano passado. Pra te contar a
verdade, eu nem sei quem é o meu velho. Esse homem bate na minha mãe o tempo
todo. Na semana passada tentei tirá-lo de cima dela e ele deu uma garrafada na
minha cara, quebrando-me dois dentes. Joguei um despertador nele, que pegou
nas suas costas. Então minha mãe, minha própria mãe me xingou e disse para eu
me mandar... que eu não tinha direito de machucar o seu homem. Agora eu estou
morando na rua, esperando a hora de poder matá-lo. Não faço parte de nenhuma
quadrilha. Não estou unido a ninguém. Estou só esperando pegar aquele vagabundo
sozinho, para matá-lo. Também não gosto mais de minha mãe. Que motivo tenho
para sorrir?”
Nenhuma vez levantou a cabeça enquanto falava.
“Esse é o mesmo homem que plantou a maconha no fundo do
quintal?” perguntei.
“É. Ele também é traficante. Meu chapa, espera só eu o
pegar sozinho. Vou furá-lo — atravessá-lo com uma faca.” Ele olhou para cima, o
rosto contorcido e cansado. Parecia mais a face de um macaco velho, do que a de
um rapazinho de treze anos.
“E o seu velho, ele também é um pau dágua?” “Não, eu sou de
sorte. Eu nem mesmo tenho um velho ou uma velha”, menti. “Sou sozinho.”
O menino levantou a cabeça: “É,
agora eu também; espero.”
Depois, animando-se, acrescentou: “Bem, “ciao”. Tome cuidado
com as quadrilhas. Eles te matam, se te pegarem na rua durante a noite!”
“Ei, e o que você me diz dessas quadrilhas? Quantas são?”
“Centenas”, disse ele. “Rapaz, há tantas que a gente nem
pode contar.”
“O que é que eles fazem?”
“Brigam, meu chapa; o que mais? Estão sempre saindo para
lutar contra outra gang, ou então ficam perto de casa para defender seus
domínios contra alguma gang invasora. Quando não estão combatendo uns com os
outros, estão combatendo com a polícia. Usam tudo o que podem para brigar.
Carregam facas, porretes, pistolas, revólveres, soqueiras de bronze, rifles,
espingardas de cano serrado, baionetas, tacos de beisebol, garrafas quebradas,
tijolos, pedras, correntes de bicicleta... rapaz, qualquer coisa que você
pensar, eles usam para matar. Chegam a afiar a ponta do guarda-chuva, pôr
pregos nos sapatos, e algumas das quadrilhas dos italianos carregam navalhas,
e colocam lâminas de barbear entre os dedos, quando vão dar socos. Fique por
aqui, e você vai ver. É por isto que não me uno a eles. Eu só ando pelos becos
e ruas escuras, e fico longe deles. Mas você vai aprender; fica por aí, que
você aprende.”
Ele se levantou e foi andando sem destino pela praça,
desaparecendo no crepúsculo. Voltei ao número 54 da Fort Greene. Já estava
ficando escuro.