Capítulo 2
NA SELVA DO QUADRO-NEGRO
FIQUEI DOIS MESES COM FRANK, aprendendo a manobrar o
inglês. Porém não era feliz, e as tensões internas estavam me perturbando
muito.
Frank, logo na primeira semana, matriculou-me no ginásio. A
escola era quase inteiramente de negros e porto-riquenhos. Era dirigida mais
como um reformatório do que como escola pública. Os professores e
administradores passavam a maior parte do tempo tentando manter a disciplina,
de forma que pouco tempo restava para o ensino. Era um lugar selvagem, cheio
de brigas, de imoralidade e de constante batalha contra os que tinham
autoridade.
Todas as escolas do Brooklin têm representantes de pelo
menos duas ou três gangs. Estas gangs são quadrilhas formadas por rapazes e
garotas que vivem em um certo bairro. Algumas vezes as gangs são inimigas, o
que invariavelmente cria conflitos, quando são colocadas na mesma sala de aula.
Aquilo era uma experiência nova para mim. Todo dia na
escola tinha de haver uma briga nos corredores ou em uma das salas de aula. Eu
me encostava à parede, com medo de que algum dos rapazes maiores me batesse.
Depois da aula, sempre havia uma briga no pátio, e alguém saía ferido e
perdendo sangue.
Frank costumava advertir-me, para não andar pelas ruas à
noite. “As quadrilhas, Nicky. As quadrilhas podem te matar. Eles saem como
matilhas de lobos, durante a noite, e matam qualquer pessoa que não conheçam.”
Ele me recomendou que viesse direto da escola para casa,
todas as tardes, e ficasse no apartamento, e me conservasse à distância das
gangs.
Logo fiquei sabendo também que as quadrilhas não eram a
única coisa que eu deveria temer. Havia também os “pequenos”. Eram terríveis
moleques de nove e dez anos que perambulavam pelas ruas à tarde e à noitinha,
ou que brincavam diante dos pardieiros em que moravam.
Tive meu primeiro encontro com os “pequenos” quando voltava
da escola para casa certo dia, logo na primeira semana. Uma gang de cerca de
dez meninos entre oito e dez anos investiu contra mim, saindo de um portão.
“Ei, garotos, olhem por onde andam.”
Um dos meninos deu um rodopio e disse: “Vá para o inferno!”
Outro veio por trás e abaixou-se. Antes que me desse conta
do que estava acontecendo, vi-me estatelado de costas na calçada. Tentei
levantar-me, mas um dos garotos agarrou meu pé e começou a puxar. Gritavam e
riam o tempo todo.
Perdi a calma e dei um soco no que estava mais próximo,
jogando-o na calçada. Naquele momento, ouvi uma mulher gritar. Olhei para cima,
e vi-a debruçada numa janela no quarto andar. “Afaste-se de meu filho, porco
nojento, ou eu te mato.”
Naquele momento, não havia nada que eu desejasse mais do
que afastar-me de seu filho. Mas os outros meninos estavam avançando. Um deles
atirou uma garrafa de refrigerante na minha direção. Ela acertou na calçada,
perto do meu ombro, fazendo chover vidro no meu rosto.
A mulher estava gritando ainda mais: “Não se meta com os
meus meninos! Socorro! Socorro! Ele está matando meu filho!”
De repente, outra mulher apareceu em uma porta, com uma
vassoura na mão. Era gorda e bamboleava ao correr; tinha a cara mais feia que
eu já vi. Ela entrou no meio da quadrilha de garotos, com a vassoura levantada
acima de sua cabeça. Tentei rolar no chão, fugindo dela, mas era tarde — a
vassoura acertou em cheio nas minhas costas. Rolei de novo e ela me acertou
no alto da cabeça. Ela estava gritando. Percebi então que várias outras
mulheres estavam debruçadas nas janelas, gritando, e chamando a polícia. A
mulher gorda me golpeou pela terceira vez, antes que eu pudesse pôr-me de pé e
começar a correr. Ouvi-a dizer, atrás de mim: “Se você aparecer por aqui de
novo, judiando de nossas crianças, nós te matamos.”
Na tarde seguinte, ao voltar da escola para casa, escolhi
um caminho diferente.
Uma semana mais tarde tive o primeiro encontro com uma
gang. Voltava da escola e parara em uma praça para ver um homem que tinha um papagaio.
Eu estava dançando ao redor dele, rindo e conversando com o pássaro, quando o
homem subitamente perdeu o interesse, apertou o papagaio contra o peito e foi
saindo. Olhei ao redor, e vi cerca de quinze rapazes num semicírculo em torno
de mim. Não eram “pequenos”. Ao contrário, eram bem “grandes”, na maioria,
maiores do que eu.
Rapidamente formaram um círculo pondo-me no meio e um dos
rapazes disse: “Ei, moleque, de que é que você está rindo?”
Apontei para o homem do papagaio, que então fugia da praça. “Puxa,
eu estava rindo daquele papagaio bacana.”
“Escute, você mora aqui por perto?” perguntou o rapaz, com
olhar ameaçador.
Senti que algo estava errado, e comecei a gaguejar um
pouco: “Eu-eu moro com meu irmão, no fim desta rua.”
“Você pensa que só porque mora no fim desta rua, pode entrar
na nossa praça e rir como uma hiena, hein? É o que você pensa? Não sabe que
está nos domínios dos Bishops, rapaz? Nós não permitimos que estranhos entrem
em nossos domínios, principalmente paspalhos que riem como hienas.”
Olhei para eles, e percebi que falavam sério. Antes que eu
pudesse responder, o rapaz de olhar duro tirou uma faca do bolso e,
pressionando um botão, abriu-a, mostrando uma lâmina reluzente de dezessete
centímetros.
“Sabe o que vou fazer?” disse ele. “Vou cortar a sua
garganta e deixar você sangrar, como o animal que ri como você.”
“Ei, ra-ra-rapaz”, gaguejei. “O que é que há de errado
comigo? Por que é que você quer me esfaquear?”
“Porque não gosto da sua cara, só isso”, disse ele. Apontou
a faca para o meu estômago, e começou a andar em minha direção.
“Vamos, paizinho. Deixe-o. Esse menino acaba de chegar de
Porto Rico. Não conhece as regras”, falou outro membro da quadrilha, um
moreninho espigado.
“Certo, mas um dia vai saber. E é melhor que não pise no
domínio dos Bishops.” Com um sorriso de escárnio, ele recuou.
Viraram-se e foram embora. Corri para o apartamento e
passei o resto da tarde pensando.
No dia seguinte, na escola, alguns meninos ouviram falar do
incidente da praça. Descobri que o rapaz que tirara a faca chamava-se Roberto.
Naquela tarde, durante a aula de educação física, estávamos jogando beisebol.
Roberto derrubou-me de propósito. Todos os outros meninos começaram a gritar:
“Dá nele, Nicky. Bate nele. Mostre que ele não é de nada,
quando não está com uma faca na mão. Vamos, Nicky, nós estamos com você. Dá nele!';
“Está bem”, disse eu, “vamos ver se você é bom de briga.”
Levantei-me e limpei a roupa.
Tomamos posição um diante do outro, e os demais meninos
formaram um grande círculo à nossa volta. Ouvi-os gritar: “Lutem! Lutem!” e
percebi que o círculo aumentava.
Roberto riu, porque eu tomara a posição tradicional de
pugilista, com as mãos diante do rosto. El? encurvou-se um pouco e também
levantou os punhos fechados, desajeitadamente. Era óbvio que não estava
acostumado a lutar daquela forma. Dancei em direção a ele, e antes que pudesse
mover-se, acertei-lhe um soco de esquerda. O sangue espirrou de seu nariz e ele
deu um passo para trás, olhando-me surpreso.
Avancei de novo.
De repente, ele baixou a cabeça e carregou contra mim como
um touro, acertando-me no estômago e jogando-me de costas no chão. Tentei
levantar-me, mas ele me chutou com seus sapatos pontudos. Rolei para o lado, e
ele pulou sobre minhas costas e puxou-me a cabeça para trás, enterrando
deliberada-mente os dedos nos meus olhos.
Fiquei pensando que os outros meninos iriam me ajudar, ou
pelo menos apartar a briga, mas se limitaram a ficar ali, torcendo.
Eu não sabia brigar daquela forma. Todas as minhas brigas
haviam sido segundo as regras do boxe, mas pensei que aquele rapaz iria me
matar, se não fizesse algo. Agarrei as suas mãos e tirei-as dos meus olhos,
enterrando os meus dentes no seu dedo. Ele gritou de dor e saiu de cima de mim.
De um pulo fiquei de pé e tomei novamente posição de
pugilista. Ele levantou-se vagarosamente, segurando a mão ferida. Dancei em sua
direção e acertei-lhe dois socos de esquerda no rosto. Eu o ferira, e avancei
para socá-lo de novo, quando ele me agarrou pela cintura, prendendo meus braços
ao lado do corpo. Usando a cabeça como um bate-estacas, ele começou a dar-me
cabeçadas no rosto. Meu nariz começou a sangrar e fiquei cego de dor. Finalmente
ele me soltou e me deu dois socos, e eu caí no pó do pátio da escola. Senti que
ele me deu um pontapé, quando chegou um professor que o afastou de mim.
Naquela noite quando fui para casa, Frank gritou comigo. “Eles
vão matar você, Nicky. Eu lhe disse para ficar longe das quadrilhas. Eles vão
matar você.” Minha face estava muito ferida e meu nariz parecia estar
quebrado. Eu sabia, porém, que daí para frente ninguém mais levaria vantagem sobre
mim. Eu era capaz de lutar tão deslealmente como eles — e até mais. Da próxima
vez estaria preparado .
A “próxima vez” foi várias semanas mais tarde. As aulas
tinham terminado, e eu ia descendo pelo corredor, em direção à porta. Percebi
que alguns alunos estavam me seguindo. Dei uma olhada por sobre o ombro. Atrás
de mim havia cinco garotos negros e uma menina. Sabia que era comum haver
brigas feias entre rapazes porto-riquenhos e negros. Comecei a andar mais
depressa, mas percebi que eles também apressavam o passo.
Saindo pela porta, eu descia um corredor que dava para a
rua. Os garotos de cor me cercaram, e um deles, um grandão, me empurrou contra
a parede. Derrubei os livros, e outro rapaz chutou-os corredor abaixo, e eles
caíram numa vala cheia de água suja.
Olhei ao redor, porém não vi ninguém que pudesse chamar em
meu socorro. “O que você está fazendo nestes domínios, rapaz?” perguntou o
grandalhão. “Você não sabe que isto aqui é nosso?”
“Essa não! Isto é domínio da escola. Não pertence a
quadrilha alguma”, disse eu.
“Não banque o espertinho comigo, menino, não gosto de você.”
Colocou a mão contra o meu peito e me apertou contra a
parede. Naquele momento ouvi um clique e percebi que era o ruído de um canivete
automático.
Quase todos os rapazes andavam com um desses. Eles
preferiam usar um tipo de canivete de pressão, que é operado com o auxílio de
uma mola. Quando um pequeno botão de lado é apertado, a mola solta-se e a
lâmina se abre.
O rapagão colocou a arma contra meu peito, picando os botões
da minha camisa com a ponta afiada e fina.
“Olha o que vou fazer, espertinho”, disse ele. “Você é novo
nesta escola, e nós fazemos todos os novatos nos pagarem para receber proteção
de nós. É um bom negócio. Você nos paga vinte e cinco centavos por dia e nós
garantimos que ninguém te amola.”
Um dos outros rapazes deu uma risadinha forçada e disse: “Sim,
meu chapa; da mesma forma, nós garantimos que não amolamos você, também.”
Todos os outros rapazes riram.
Então eu disse: “Ah, é? E quem me prova que mesmo que eu dê
vinte e cinco centavos para vocês todos os dias, vocês não judiarão de mim?”
“Ninguém prova, menino inteligente. Você apenas nos dá o
dinheiro, de qualquer forma. Se não dá, morre”, respondeu ele.
“Está bem. Então é melhor que vocês me matem agora mesmo.
Porque se vocês não matarem, eu voltarei mais tarde e matarei vocês um por um.”
Pude perceber que os outros ficaram um pouco amedrontados . O rapagão que
tinha a faca contra o meu peito, naturalmente, pensava que eu era destro. Por
isso, não esperava que fosse agarrá-lo com a mão esquerda. Torci a sua mão,
afastando-a do meu peito, o fiz girar sobre si mesmo e dobrei-lhe o braço por
detrás das costas.
Ele deixou cair a faca e eu apanhei-a do chão. Senti-me bem
como ela na mão. Coloquei-a contra a sua garganta, pressionando-a a ponto de
marcar a pele, sem furá-la.
Empurrei o seu rosto contra a parede com a faca no lado da
sua garganta, logo abaixo da orelha. A mocinha começou a gritar, com receio de
que eu fosse matá-lo.
Virei-me para ela e disse: “Ei, boneca, eu conheço você.
Sei onde é a sua casa. Hoje à noite vou até lá e te mato; quer?”
Ela gritou mais alto e agarrou o braço de um dos outros
rapazes, começando a puxá-lo para longe: “Foge! Foge!” gritava ela. “Esse cara
é louco. Foge!”
Eles fugiram, inclusive o rapagão que estivera preso contra
a parede. Deixei que se fosse, sabendo que eles poderiam ter-me matado, se
tivessem tentado.
Desci pela calçada até onde os livros estavam jogados na
água. Apanhei-os e sacudi-os. Ainda tinha o punhal na mão. Fiquei parado muito
tempo, abrindo e fechando a lâmina. Era o primeiro “canivete de pressão” que
segurava em minha mão. Achei delicioso manejá-lo. Deixei-o cair no bolso do
paletó e fui para casa. “Daquela hora em diante, seria melhor que eles
pensassem duas vezes antes de se enroscarem com o Nicky”, pensei.
Logo espalhou-se o boato de que eu era terrível. Aquilo fez
de mim uma isca atraente para qualquer rapaz que quisesse brigar. Cheguei à
conclusão de que algo drástico aconteceria: era apenas uma questão de tempo.
Mas, estava preparado.
A explosão final veio dois meses depois de eu ter começado a
estudar. A professora acabara de estabelecer a ordem na classe e estava fazendo
a chamada. Um rapaz de cor chegou atrasado. Veio gingando e tinha um sorriso
cínico nos lábios. Havia uma linda garota porto-riquenha sentada na última
fileira. Ele curvou-se e beijou-a no
pescoço.
Ela afastou-se dele e sentou-se ereta na carteira. Ele deu a
volta e beijou-a na boca; ao mesmo tempo tentando acariciá-la. Ela pulou do
lugar e começou a gritar.
Os outros alunos estavam rindo e gritando: “Vamos, rapaz,
larga brasa!”
Dei uma olhadela para a professora. Ela pôs-se a descer
entre as fileiras, mas um latagão levantou-se diante dela e disse: “Ora,
professora, a senhora não vai querer estragar a festa, vai?” A professora
encarou o rapaz que era mais alto do que ela, e recuou para a sua mesa,
enquanto a classe urrava, divertindo-se.
A esta altura, o rapaz tinha a garota presa contra a
parede, e tentava beijar lhe a boca. Ela gritava e tentava afastá-lo.
Ele finalmente desistiu e deixou-se cair pesadamente no seu
lugar.
A professora limpou a garganta e começou de novo a fazer a
chamada.
Algo estalara dentro de mim. Levantei-me da carteira e
dirigi-me aos fundos da classe. A garota sentara de novo e soluçava, enquanto a
professora fazia a chamada.
Cheguei por trás do rapaz, que agora estava sentado na
carteira, limpando as unhas. Peguei uma pesada cadeira de madeira que estava no
fim do corredor e disse: “Ei, olhe, garotão, eu tenho uma coisa para você.”
Quando ele virou-se para olhar, dei-lhe uma cadeirada no
alto da cabeça. Ele afundou na carteira, enquanto o sangue escorria de um
profundo corte na cabeça.
A professora saiu correndo da classe e voltou em um segundo
com o diretor. Ele agarrou-me pelo braço e me empurrou corredor a fora, para
seu escritório. Fiquei sentado lá enquanto ele chamava uma ambulância, e
tomava providências para que alguém cuidasse do rapaz ferido.
Virou-se para mim. Depois de dizer tudo o que ouvira a meu
respeito, nos últimos dois meses, isto é, as confusões em que eu estivera
metido, pediu-me uma explicação do que acontecera na classe. Contei-lhe
exatamente o que houvera. Disse-lhe que o rapaz estava se aproveitando da
garota porto-riquenha, e que a professora nada fizera para impedi-lo. Por isso
eu me colocara a seu lado.
Enquanto falava, pude ver o seu rosto se avermelhar.
Finalmente, ele se levantou e disse: “Está bom, já agüentei essas brigas até
onde pude. Vocês vêm aqui e pensam que podem agir da mesma forma que agem nas
ruas. Penso que já é hora de dar um exemplo, e quem sabe se a autoridade será
mais respeitada aqui dentro. Não estou para me sentar aqui todos os dias e ver
vocês se matando e mentindo depois, para explicar o que não tem explicação. Vou
chamar a polícia.”
Pus-me de pé: “Senhor, a polícia vai me pôr na cadeia.”
“Espero que sim”, disse o diretor. “Pelo menos o resto
desses monstros que há aqui aprenderão a respeitar a autoridade.”
“Chame a polícia”, disse eu; ao mesmo tempo, encostei na
porta tremendo de medo e de raiva, “e quando eu sair da cadeia, voltarei, e um
dia pego o senhor sozinho e o mato.”
Meus dentes rangiam enquanto falava.
O diretor ficou branco. Sua face empalideceu e ele pensou
durante um momento.
“Está bem, Cruz. Vou deixar você ir desta vez. Mas nunca
mais quero vê-lo nesta escola. Não me importa onde você vai; para mim, pode ir
para o inferno; mas nunca mais deixe que eu veja a sua cara aqui por perto.
Quero que saia daqui correndo, e não pare enquanto não estiver fora das minhas
vistas. Compreendeu?”