sábado, 24 de abril de 2021

Foge Nick Foge - 02 - Na selva do quadro negro



Capítulo 2

NA SELVA DO QUADRO-NEGRO


FIQUEI DOIS MESES COM FRANK, aprenden­do a manobrar o inglês. Porém não era feliz, e as tensões internas estavam me perturbando muito.
Frank, logo na primeira semana, matriculou-me no ginásio. A escola era quase inteiramente de ne­gros e porto-riquenhos. Era dirigida mais como um reformatório do que como escola pública. Os pro­fessores e administradores passavam a maior parte do tempo tentando manter a disciplina, de forma que pouco tempo restava para o ensino. Era um lu­gar selvagem, cheio de brigas, de imoralidade e de constante batalha contra os que tinham autoridade.
Todas as escolas do Brooklin têm representantes de pelo menos duas ou três gangs. Estas gangs são quadrilhas formadas por rapazes e garotas que vi­vem em um certo bairro. Algumas vezes as gangs são inimigas, o que invariavelmente cria conflitos, quando são colocadas na mesma sala de aula.
Aquilo era uma experiência nova para mim. To­do dia na escola tinha de haver uma briga nos cor­redores ou em uma das salas de aula. Eu me encostava à parede, com medo de que algum dos ra­pazes maiores me batesse. Depois da aula, sempre havia uma briga no pátio, e alguém saía ferido e perdendo sangue.
Frank costumava advertir-me, para não andar pelas ruas à noite. “As quadrilhas, Nicky. As qua­drilhas podem te matar. Eles saem como matilhas de lobos, durante a noite, e matam qualquer pessoa que não conheçam.”
Ele me recomendou que viesse direto da escola para casa, todas as tardes, e ficasse no apartamen­to, e me conservasse à distância das gangs.
Logo fiquei sabendo também que as quadrilhas não eram a única coisa que eu deveria temer. Havia também os “pequenos”. Eram terríveis moleques de nove e dez anos que perambulavam pelas ruas à tar­de e à noitinha, ou que brincavam diante dos pardieiros em que moravam.
Tive meu primeiro encontro com os “pequenos” quando voltava da escola para casa certo dia, logo na primeira semana. Uma gang de cerca de dez me­ninos entre oito e dez anos investiu contra mim, saindo de um portão.
“Ei, garotos, olhem por onde andam.”
Um dos meninos deu um rodopio e disse: “Vá para o inferno!”
Outro veio por trás e abaixou-se. Antes que me desse conta do que estava acontecendo, vi-me esta­telado de costas na calçada. Tentei levantar-me, mas um dos garotos agarrou meu pé e começou a puxar. Gritavam e riam o tempo todo.
Perdi a calma e dei um soco no que estava mais próximo, jogando-o na calçada. Naquele momento, ouvi uma mulher gritar. Olhei para cima, e vi-a debruçada numa janela no quarto andar. “Afaste-se de meu filho, porco nojento, ou eu te mato.”
Naquele momento, não havia nada que eu dese­jasse mais do que afastar-me de seu filho. Mas os outros meninos estavam avançando. Um deles atirou uma garrafa de refrigerante na minha direção. Ela acertou na calçada, perto do meu ombro, fazendo chover vidro no meu rosto.
A mulher estava gritando ainda mais: “Não se meta com os meus meninos! Socorro! Socorro! Ele está matando meu filho!”
De repente, outra mulher apareceu em uma por­ta, com uma vassoura na mão. Era gorda e bamboleava ao correr; tinha a cara mais feia que eu já vi. Ela entrou no meio da quadrilha de garotos, com a vassoura levantada acima de sua cabeça. Tentei ro­lar no chão, fugindo dela, mas era tarde — a vassou­ra acertou em cheio nas minhas costas. Rolei de no­vo e ela me acertou no alto da cabeça. Ela estava gritando. Percebi então que várias outras mulheres estavam debruçadas nas janelas, gritando, e chaman­do a polícia. A mulher gorda me golpeou pela ter­ceira vez, antes que eu pudesse pôr-me de pé e co­meçar a correr. Ouvi-a dizer, atrás de mim: “Se vo­cê aparecer por aqui de novo, judiando de nossas crianças, nós te matamos.”
Na tarde seguinte, ao voltar da escola para ca­sa, escolhi um caminho diferente.
Uma semana mais tarde tive o primeiro encon­tro com uma gang. Voltava da escola e parara em uma praça para ver um homem que tinha um pa­pagaio. Eu estava dançando ao redor dele, rindo e conversando com o pássaro, quando o homem subi­tamente perdeu o interesse, apertou o papagaio con­tra o peito e foi saindo. Olhei ao redor, e vi cerca de quinze rapazes num semicírculo em torno de mim. Não eram “pequenos”. Ao contrário, eram bem “grandes”, na maioria, maiores do que eu.
Rapidamente formaram um círculo pondo-me no meio e um dos rapazes disse: “Ei, moleque, de que é que você está rindo?”
Apontei para o homem do papagaio, que então fugia da praça. “Puxa, eu estava rindo daquele papa­gaio bacana.”
“Escute, você mora aqui por perto?” perguntou o rapaz, com olhar ameaçador.
Senti que algo estava errado, e comecei a gague­jar um pouco: “Eu-eu moro com meu irmão, no fim desta rua.”
“Você pensa que só porque mora no fim desta rua, pode entrar na nossa praça e rir como uma hiena, hein? É o que você pensa? Não sabe que está nos domínios dos Bishops, rapaz? Nós não permiti­mos que estranhos entrem em nossos domínios, prin­cipalmente paspalhos que riem como hienas.”
Olhei para eles, e percebi que falavam sério. An­tes que eu pudesse responder, o rapaz de olhar duro tirou uma faca do bolso e, pressionando um botão, abriu-a, mostrando uma lâmina reluzente de dezesse­te centímetros.
“Sabe o que vou fazer?” disse ele. “Vou cortar a sua garganta e deixar você sangrar, como o ani­mal que ri como você.”
“Ei, ra-ra-rapaz”, gaguejei. “O que é que há de errado comigo? Por que é que você quer me esfa­quear?”
“Porque não gosto da sua cara, só isso”, dis­se ele. Apontou a faca para o meu estômago, e co­meçou a andar em minha direção.
“Vamos, paizinho. Deixe-o. Esse menino aca­ba de chegar de Porto Rico. Não conhece as regras”, falou outro membro da quadrilha, um moreninho espigado.
“Certo, mas um dia vai saber. E é melhor que não pise no domínio dos Bishops.” Com um sorriso de escárnio, ele recuou.
Viraram-se e foram embora. Corri para o apar­tamento e passei o resto da tarde pensando.
No dia seguinte, na escola, alguns meninos ou­viram falar do incidente da praça. Descobri que o rapaz que tirara a faca chamava-se Roberto. Naque­la tarde, durante a aula de educação física, estáva­mos jogando beisebol. Roberto derrubou-me de pro­pósito. Todos os outros meninos começaram a gri­tar:
“Dá nele, Nicky. Bate nele. Mostre que ele não é de nada, quando não está com uma faca na mão. Vamos, Nicky, nós estamos com você. Dá ne­le!';
“Está bem”, disse eu, “vamos ver se você é bom de briga.” Levantei-me e limpei a roupa.
Tomamos posição um diante do outro, e os de­mais meninos formaram um grande círculo à nossa volta. Ouvi-os gritar: “Lutem! Lutem!” e percebi que o círculo aumentava.
Roberto riu, porque eu tomara a posição tradi­cional de pugilista, com as mãos diante do rosto. El? encurvou-se um pouco e também levantou os punhos fechados, desajeitadamente. Era óbvio que não estava acostumado a lutar daquela forma. Dan­cei em direção a ele, e antes que pudesse mover-se, acertei-lhe um soco de esquerda. O sangue espirrou de seu nariz e ele deu um passo para trás, olhando-me surpreso.  Avancei de novo.
De repente, ele baixou a cabeça e carregou con­tra mim como um touro, acertando-me no estômago e jogando-me de costas no chão. Tentei levantar-me, mas ele me chutou com seus sapatos pontudos. Ro­lei para o lado, e ele pulou sobre minhas costas e puxou-me a cabeça para trás, enterrando deliberada-mente os dedos nos meus olhos.
Fiquei pensando que os outros meninos iriam me ajudar, ou pelo menos apartar a briga, mas se limitaram a ficar ali, torcendo.
Eu não sabia brigar daquela forma. Todas as minhas brigas haviam sido segundo as regras do bo­xe, mas pensei que aquele rapaz iria me matar, se não fizesse algo. Agarrei as suas mãos e tirei-as dos meus olhos, enterrando os meus dentes no seu dedo. Ele gritou de dor e saiu de cima de mim.
De um pulo fiquei de pé e tomei novamente po­sição de pugilista. Ele levantou-se vagarosamente, segurando a mão ferida. Dancei em sua direção e acertei-lhe dois socos de esquerda no rosto. Eu o ferira, e avancei para socá-lo de novo, quando ele me agarrou pela cintura, prendendo meus braços ao la­do do corpo. Usando a cabeça como um bate-estacas, ele começou a dar-me cabeçadas no rosto. Meu nariz começou a sangrar e fiquei cego de dor. Final­mente ele me soltou e me deu dois socos, e eu caí no pó do pátio da escola. Senti que ele me deu um pontapé, quando chegou um professor que o afastou de mim.
Naquela noite quando fui para casa, Frank gri­tou comigo. “Eles vão matar você, Nicky. Eu lhe disse para ficar longe das quadrilhas. Eles vão ma­tar você.” Minha face estava muito ferida e meu nariz parecia estar quebrado. Eu sabia, porém, que daí para frente ninguém mais levaria vantagem so­bre mim. Eu era capaz de lutar tão deslealmente como eles — e até mais. Da próxima vez estaria pre­parado .
A “próxima vez” foi várias semanas mais tarde. As aulas tinham terminado, e eu ia descendo pelo corredor, em direção à porta. Percebi que alguns alunos estavam me seguindo. Dei uma olhada por sobre o ombro. Atrás de mim havia cinco garotos negros e uma menina. Sabia que era comum ha­ver brigas feias entre rapazes porto-riquenhos e ne­gros. Comecei a andar mais depressa, mas percebi que eles também apressavam o passo.
Saindo pela porta, eu descia um corredor que dava para a rua. Os garotos de cor me cercaram, e um deles, um grandão, me empurrou contra a pare­de. Derrubei os livros, e outro rapaz chutou-os cor­redor abaixo, e eles caíram numa vala cheia de água suja.
Olhei ao redor, porém não vi ninguém que pu­desse chamar em meu socorro. “O que você está fazendo nestes domínios, rapaz?” perguntou o granda­lhão. “Você não sabe que isto aqui é nosso?”
“Essa não! Isto é domínio da escola. Não per­tence a quadrilha alguma”, disse eu.
“Não banque o espertinho comigo, menino, não gosto de você.”
Colocou a mão contra o meu peito e me apertou contra a parede. Naquele momento ouvi um clique e percebi que era o ruído de um canivete automá­tico.
Quase todos os rapazes andavam com um des­ses. Eles preferiam usar um tipo de canivete de pressão, que é operado com o auxílio de uma mo­la. Quando um pequeno botão de lado é apertado, a mola solta-se e a lâmina se abre.
O rapagão colocou a arma contra meu peito, picando os botões da minha camisa com a ponta afiada e fina.
“Olha o que vou fazer, espertinho”, disse ele. “Você é novo nesta escola, e nós fazemos todos os novatos nos pagarem para receber proteção de nós. É um bom negócio. Você nos paga vinte e cinco cen­tavos por dia e nós garantimos que ninguém te amola.”
Um dos outros rapazes deu uma risadinha for­çada e disse: “Sim, meu chapa; da mesma forma, nós garantimos que não amolamos você, também.”
Todos os outros rapazes riram.
Então eu disse: “Ah, é? E quem me prova que mesmo que eu dê vinte e cinco centavos para vocês todos os dias, vocês não judiarão de mim?”
“Ninguém prova, menino inteligente. Você ape­nas nos dá o dinheiro, de qualquer forma. Se não dá, morre”, respondeu ele.
“Está bem. Então é melhor que vocês me ma­tem agora mesmo. Porque se vocês não matarem, eu voltarei mais tarde e matarei vocês um por um.” Pude perceber que os outros ficaram um pouco ame­drontados . O rapagão que tinha a faca contra o meu peito, naturalmente, pensava que eu era destro. Por isso, não esperava que fosse agarrá-lo com a mão esquerda. Torci a sua mão, afastando-a do meu pei­to, o fiz girar sobre si mesmo e dobrei-lhe o braço por detrás das costas.
Ele deixou cair a faca e eu apanhei-a do chão. Senti-me bem como ela na mão. Coloquei-a contra a sua garganta, pressionando-a a ponto de marcar a pele, sem furá-la.
Empurrei o seu rosto contra a parede com a faca no lado da sua garganta, logo abaixo da orelha. A mocinha começou a gritar, com receio de que eu fosse matá-lo.
Virei-me para ela e disse: “Ei, boneca, eu conhe­ço você. Sei onde é a sua casa. Hoje à noite vou até lá e te mato; quer?”
Ela gritou mais alto e agarrou o braço de um dos outros rapazes, começando a puxá-lo para lon­ge: “Foge! Foge!” gritava ela. “Esse cara é louco. Foge!”
Eles fugiram, inclusive o rapagão que estivera preso contra a parede. Deixei que se fosse, sabendo que eles poderiam ter-me matado, se tivessem ten­tado.
Desci pela calçada até onde os livros estavam jo­gados na água. Apanhei-os e sacudi-os. Ainda tinha o punhal na mão. Fiquei parado muito tempo, abrin­do e fechando a lâmina. Era o primeiro “canivete de pressão” que segurava em minha mão. Achei de­licioso manejá-lo. Deixei-o cair no bolso do paletó e fui para casa. “Daquela hora em diante, seria me­lhor que eles pensassem duas vezes antes de se enroscarem com o Nicky”, pensei.
Logo espalhou-se o boato de que eu era terrível. Aquilo fez de mim uma isca atraente para qualquer rapaz que quisesse brigar. Cheguei à conclusão de que algo drástico aconteceria: era apenas uma ques­tão de tempo. Mas, estava preparado.
A explosão final veio dois meses depois de eu ter começado a estudar. A professora acabara de estabelecer a ordem na classe e estava fazendo a chamada. Um rapaz de cor chegou atrasado. Veio gingando e tinha um sorriso cínico nos lábios. Havia uma linda garota porto-riquenha sentada na última fileira. Ele curvou-se e beijou-a  no pescoço.
Ela afastou-se dele e sentou-se ereta na carteira. Ele deu a volta e beijou-a na boca; ao mesmo tem­po tentando acariciá-la. Ela pulou do lugar e co­meçou a gritar.
Os outros alunos estavam rindo e gritando: “Va­mos, rapaz, larga brasa!”
Dei uma olhadela para a professora. Ela pôs-se a descer entre as fileiras, mas um latagão levantou-se diante dela e disse: “Ora, professora, a senhora não vai querer estragar a festa, vai?” A professora encarou o rapaz que era mais alto do que ela, e re­cuou para a sua mesa, enquanto a classe urrava, divertindo-se.
A esta altura, o rapaz tinha a garota presa con­tra a parede, e tentava beijar lhe a boca. Ela gritava e tentava afastá-lo.
Ele finalmente desistiu e deixou-se cair pesada­mente no seu lugar.
A professora limpou a garganta e começou de novo a fazer a chamada.
Algo estalara dentro de mim. Levantei-me da carteira e dirigi-me aos fundos da classe. A garota sentara de novo e soluçava, enquanto a professora fazia a chamada.
Cheguei por trás do rapaz, que agora estava sentado na carteira, limpando as unhas. Peguei uma pesada cadeira de madeira que estava no fim do cor­redor e disse: “Ei, olhe, garotão, eu tenho uma coi­sa para você.”
Quando ele virou-se para olhar, dei-lhe uma cadeirada no alto da cabeça. Ele afundou na carteira, enquanto o sangue escorria de um profundo corte na cabeça.
A professora saiu correndo da classe e voltou em um segundo com o diretor. Ele agarrou-me pelo braço e me empurrou corredor a fora, para seu es­critório. Fiquei sentado lá enquanto ele chamava uma ambulância, e tomava providências para que alguém cuidasse do rapaz ferido.
Virou-se para mim. Depois de dizer tudo o que ouvira a meu respeito, nos últimos dois meses, isto é, as confusões em que eu estivera metido, pediu-me uma explicação do que acontecera na classe. Contei-lhe exatamente o que houvera. Disse-lhe que o rapaz estava se aproveitando da garota porto-ri­quenha, e que a professora nada fizera para impedi-lo. Por isso eu me colocara a seu lado.
Enquanto falava, pude ver o seu rosto se aver­melhar. Finalmente, ele se levantou e disse: “Es­tá bom, já agüentei essas brigas até onde pu­de. Vocês vêm aqui e pensam que podem agir da mesma forma que agem nas ruas. Penso que já é hora de dar um exemplo, e quem sabe se a autori­dade será mais respeitada aqui dentro. Não estou para me sentar aqui todos os dias e ver vocês se matando e mentindo depois, para explicar o que não tem explicação. Vou chamar a polícia.”
Pus-me de pé: “Senhor, a polícia vai me pôr na cadeia.”
“Espero que sim”, disse o diretor. “Pelo menos o resto desses monstros que há aqui aprenderão a respeitar a autoridade.”
“Chame a polícia”, disse eu; ao mesmo tempo, encostei na porta tremendo de medo e de raiva, “e quando eu sair da cadeia, voltarei, e um dia pego o senhor sozinho e o mato.”
Meus dentes rangiam enquanto falava.
O diretor ficou branco. Sua face empalideceu e ele pensou durante um momento.
“Está bem, Cruz. Vou deixar você ir desta vez. Mas nunca mais quero vê-lo nesta escola. Não me importa onde você vai; para mim, pode ir para o inferno; mas nunca mais deixe que eu veja a sua cara aqui por perto. Quero que saia daqui corren­do, e não pare enquanto não estiver fora das minhas vistas.  Compreendeu?”