Capítulo 1
NINGUÉM ME QUER
“SEGUREM ESSE GAROTO MALUCO!” gritou alguém.
A porta do quadrimotor da Pan American mal acabara de se
abrir, e eu já me precipitava escada abaixo, em direção ao prédio do Aeroporto
Idlewild, em Nova York. Estávamos a 4 de janeiro de 1955, e o vento frio fazia
arder minhas faces.
Algumas horas antes, meu pai me colocara no avião em San
Juan: um rapazinho porto-riquenho, rebelde e amargurado. Fora entregue aos
cuidados do piloto; haviam-me recomendado que permanecesse no avião até a
chegada de meu irmão, Frank. Porém, quando a porta abriu, fui o primeiro a
sair, correndo selvagemente pela pista de concreto.
Três funcionários do aeroporto se aproximaram de mim,
cercando-me, empurrando-me contra a cerca de correntes de aço, ao lado do
portão. O vento cortante zunia através da minha roupa tropical e leve,
enquanto eu procurava escapar. Um policial agarrou-me pelo braço, e os
funcionários voltaram ao seu trabalho. Para mim aquilo era uma brincadeira;
olhei para o guarda e sorri.
“Porto-riquenho louco! Que diabo você pretende fazer?”
Meu sorriso sumiu quando notei ódio em sua voz. Suas
bochechas gordas estavam vermelhas de frio, e os olhos lacrimejavam devido ao
vento. Um toco de cigarro apagado estava esquecido entre seus lábios balofos.
Ódio! Senti-o circular por todo o meu corpo. O mesmo ódio que eu tivera contra
meu pai e minha mãe, contra meus professores e os guardas em Porto Rico. ódio!
Tentei libertar-me, mas ele me prendeu com uma férrea chave de braço.
“Venha, garoto, vamos voltar ao avião.” Olhei para ele e dei
uma cusparada.
“Porco!” rosnou. “Porco sujo!” Ele afrouxou a pressão sobre
o meu braço e tentou segurar-me por trás, pela gola do casaco. Mergulhando por
baixo do seu braço, deslizei pelo portão aberto que levava para o edifício do
aeroporto.
Atrás de mim, ouvi gritos e pisadas rápidas. Corri pelo
longo corredor desviando-me, à esquerda e à direita das pessoas que se dirigiam
aos aviões. De repente, achei-me em um grande salão. Descobrindo uma porta de
saída, zuni pelo salão e saí para a rua.
Um grande ônibus estava parado junto ao meio-fio, com a
porta aberta e o motor ligado. A fila estava entrando. Com algumas empurradas,
consegui entrar também. O motorista me agarrou pelo ombro e pediu o dinheiro da
passagem. Encolhi os ombros e respondi-lhe em espanhol. Ele me pôs para fora
rispidamente, ocupado demais para perder tempo com um rapazinho tolo que mal
compreendia inglês. Quando ele desviou a atenção para uma senhora que estava
remexendo na bolsa, baixei a cabeça e esgueirei-me por detrás dela, atravessei
a porta e penetrei no ônibus lotado. Dando uma olhadela por sobre o ombro, para
ter a certeza de que ele não me vira, dirigi-me à parte traseira do ônibus, e
sentei-me junto a uma janela.
Quando o coletivo deu a partida, vi o guarda gorducho e mais
dois soldados sair ofegantes pela porta lateral do aeroporto, e olhar em todas
as direções. Não pude resistir à tentação de bater na vidraça, acenar para
eles e sorrir através do vidro.
Afundando no banco, apoiei os joelhos nas costas do assento
da frente e apertei o nariz contra o vidro frio e sujo da janela.
O ônibus atravessou com dificuldade o tráfego intenso de
Nova York, em direção ao centro da cidade. Lá fora havia neve e lama pelas
ruas e calçadas. Eu sempre imaginara que a neve era branca e bonita, como nos
contos de fadas. Mas aquela era parda, como mingau sujo. Minha respiração embaçou
a vidraça. Afastei-me um pouco e passei o dedo nela. Era um mundo diferente,
inteiramente diferente do que eu acabara de abandonar.
Minha mente voltou ao dia anterior, quando eu parara no
morro diante de minha casa. Lembrei-me da grama verde que meus pés amassavam,
salpicada dos pontinhos de cor clara, das pequeninas flores campestres. O campo
descia num declive suave, até a vila, lá em baixo. Lembrei-me da brisa fresca
que soprava contra minha face, e do calor do sol em minhas costas bronzeadas e
nuas.
Porto Rico é uma bela terra de sol e de crianças descalças.
É uma terra em que os homens não usam camisa, e as mulheres caminham preguiçosamente
sob um sol causticante. Os sons dos tambores de aço e das guitarras ouvem-se
noite e dia. É uma terra de cantigas, flores, crianças sorridentes e água azul
refulgente.
Mas é também uma terra de feitiçaria e macumba, de
superstição religiosa e de muita ignorância. De noite, os sons dos tambores da
macumba ressoam nas montanhas cobertas de palmeiras, enquanto feiticeiros
exercem o seu ofício, oferecendo sacrifícios e dançando com serpentes à luz de
fogueiras bruxuleantes.
Meus pais eram espíritas. Ganhavam a vida expulsando
demônios e estabelecendo um suposto contato com espíritos de mortos. Papai era
um dos homens mais temidos da ilha. Com mais de l,80m de altura, seus enormes
ombros encurvados haviam levado os ilhéus a se referirem a ele como “O Grande”
Ele fora ferido durante a Segunda Guerra Mundial e recebia uma pensão do
governo. Mas, como havia dezessete meninos e uma menina na família, depois da
guerra ele recorreu ao espiritismo para ganhar a vida.
Mamãe trabalhava com papai como “médium”. Nossa casa era
sede de toda sorte de reuniões de macumba, sessões e feitiçaria. Centenas de
pessoas vinham de toda a ilha para participar das sessões espíritas.
Nossa casa enorme, no alto da colina, era ligada por uma
trilha sinuosa e estreita à pequena vila modorrenta de Las Piedras, escondida
no vale, lá em baixo. Os aldeões subiam pela trilha a qualquer hora do dia ou
da noite, para ir à “Casa do Feiticeiro”. Eles tentavam falar com espíritos dos
mortos, tomavam parte em atos de feitiçaria, e pediam a papai para libertá-los
de demônios.
Papai era o chefe mas havia outros médiuns que se utilizavam
de nossa casa para sede de suas atividades. Alguns permaneciam ali semanas
seguidas, às vezes invocando espíritos, às vezes expulsando demônios.
Havia uma mesa comprida na sala da frente, ao redor da qual
o povo se assentava, quando estava tentando se comunicar com os espíritos dos
mortos. Papai era muito entendido no assunto, e tinha uma biblioteca de magia e
espiritismo, sem igual, naquela parte da ilha.
Certa manhã, dois homens trouxeram uma senhora perturbada à
nossa casa. Eu e meu irmão Gene esgueiramo-nos da cama, olhamos por uma fresta
da porta, e vimos quando eles a estenderam sobre a mesa grande. O seu corpo tremia
e gemidos escapavam de seus lábios; os homens se postaram um de cada lado da
mesa, segurando-a. Mamãe ficou aos pés dela, com os olhos erguidos para o
teto, repetindo palavras estranhas. Papai foi à cozinha e voltou com uma
pequena urna preta cheia de incenso a fumegar. Trazia também um grande sapo
que colocou sobre o estômago agitado da mulher. Depois, suspendendo a urna
sobre a cabeça dela, aspergiu pó de incenso sobre seu corpo convulso.
Nós tremíamos de medo; ele mandou que os espíritos maus saíssem
da mulher e entrassem no sapo. De repente, a mulher jogou a cabeça para trás e
soltou um grito agudo. O sapo saltou do seu estômago e espatifou-se contra a
soleira da porta. Imediatamente, ela começou a dar pontapés e, sacudindo-se,
libertou-se dos homens que a seguravam, rolou da mesa e caiu pesadamente no
chão. Picou babando e mordendo a língua e os lábios; sangue misturado com
espuma escorria pelos cantos de sua boca.
Mais tarde aquietou-se e ficou imóvel. Papai declarou que
ela estava curada e os homens lhe deram dinheiro. Eles pegaram o corpo
inconsciente e se foram, agradecendo a papai e chamando-o repetidamente de “Grande
Milagreiro”.
Minha infância foi cheia de temor e sobressaltos. O fato de
sermos uma família grande significava que mui pouca atenção era dada
individualmente a cada filho. Eu tinha raiva de papai e mamãe, e tinha medo da
macumba que era realizada todas as noites.
No verão anterior à época que eu devia entrar para a escola
papai trancou-me, um dia, no pombal. Já era noite e ele me apanhara roubando
dinheiro da bolsa de mamãe. Procurei correr, mas ele esticou o braço e me
agarrou pela nuca: “Não adianta correr, moleque. Você roubou; agora vai me
pagar.”
“Eu te odeio”, gritei.
Ele me levantou do chão, sacudindo me diante de si “Vou
ensiná-lo a falar assim com seu pai”, disse entre dentes. Colocando-me debaixo
do braço como se eu fosse um saco de farinha, atravessou o quintal escuro,
dirigindo-se ao pombal. Escutei o ruído de suas mãos ao abrir a porta. “Para
dentro”, rosnou ele. “Você vai ficar aí com os pombos, até aprender.”
Atirou-me porta adentro, e fechou-a atrás de mim,
deixando-me em total escuridão. Ouvi o trinco sendo colocado no lugar, e a voz
de papai, abafada, através das fendas da parede: “E nada de jantar.” Ouvi seus
passos se diminuindo na distância, de volta para casa.
Eu estava petrificado de terror. Martelava a porta com os
punhos. Chutava-a freneticamente, gritando e chorando. De repente, a casinhola
encheu-se do barulho de asas: os pássaros, assustados, haviam acordado;
repetidas vezes, chocaram-se contra o meu corpo. Apertei as mãos contra o rosto
e gritei histericamente, enquanto as pombas se arremetiam contra as paredes, e
bicavam ferozmente meu rosto e pescoço. Caí aturdido no chão imundo, e enterrei
a cabeça nos braços, tentando proteger os olhos e tapar os ouvidos para não
ouvir o som das asas que volteavam sobre minha cabeça.
Parecia que uma eternidade se passara, quando a porta abriu,
e papai me fez ficar de pé e arrastou-me para o quintal. “Da próxima vez, você
vai lembrar-se de não roubar e de não responder com insolência quando for
apanhado”, disse ele asperamente: “Agora, tome um banho e vá para a cama.”
Chorei naquela noite até dormir; depois, sonhei com pássaros
esvoaçantes que se chocavam contra meu corpo.
Meus ressentimentos contra papai e mamãe reavivaram-se no
ano seguinte, quando entrei para a escola. Eu odiava qualquer autoridade. Mais
tarde, quando já tinha oito anos, rebelei-me de uma vez contra meus pais. Foi
em uma tarde quente de verão. Mamãe e vários outros “médiuns” estavam sentados
à grande mesa da sala, tomando café. Eu me cansara de brincar com meu irmão e
entrara na sala, brincando com uma pequena bola, batendo-a no assoalho. Um dos
médiuns disse à mamãe: “O Nicky é um menino bonito. Parece com você. Deve orgulhar-se
dele.”
Mamãe olhou séria para mim e começou a balançar-se na
cadeira, para a frente e para trás. Seus olhos reviraram, a ponto de aparecer
somente o branco. Estendeu os braços para a frente, sobre a mesa. Seus dedos
ficaram duros e tremiam e ela levantou vagarosamente os braços sobre a cabeça e
começou a falar em tom de cantochão: “Este... não... meu... filho. Não, Nicky
não. Ele nunca foi meu. Ele é filho do maior de todos os bruxos. Lúcifer. Não,
meu não... não, meu não... Pilho de Satanás, filho do diabo.”
Larguei a bola, que rolou pela sala afora. Encostei-me à
parede, e mamãe continuou em transe; sua voz se levantava e baixava, enquanto
ela falava como em responso: “Não, meu não, não, meu, não... a mão de Lúcifer
sobre a sua vida... o dedo de Satanás está na sua vida... o dedo de Satanás
toca na sua alma... a marca da besta no seu coração... Não, meu não, meu não.”
Observei que lágrimas corriam pelas suas faces. De repente,
voltou-se para mim com os olhos arregalados e gritou com voz esganiçada: “Sai,
DIABO! Para longe de mim. Deixa-me, DIABO! Longe! Longe! Longe!”
Eu estava petrificado de terror. Corri para o meu quarto e
joguei-me sobre a cama. Pensamentos passavam pela minha mente como rios
canalizados em uma garganta estreita. “Não sou filho dela... filho de
Satanás... ela não me ama... Ninguém me quer. Ninguém me quer.”
Então as lágrimas vieram, e eu comecei a chorar e a
soluçar. A dor que sentia no peito era insuportável, e esmurrei a cama até ficar
exausto.
O velho ódio se agitou dentro de mim, a consumir minha
alma, como a onda da maré avança sobre um recife de coral. Senti que odiava
minha mãe. Puxa, como a odiava! Eu queria feri-la, torturá-la, vingar-me.
Empurrei a porta e saí correndo e gritando até a sala. Os médiuns ainda
estavam ali com mamãe. Esmurrei a mesa e gritei. Estava tão frustrado pelo
ódio que gaguejava e as palavras não saíam direito: “Eu — eu... t-te o-o-odeio.”
Apontava um dedo trêmulo para minha mãe e gritava: “Vo-vo-você me paga. Você
me paga.”
Dois de meus irmãos mais novos estavam à porta olhando,
curiosos. Empurrei-os para o lado e corri para os fundos da casa. Mergulhando
escada abaixo, virei-me e arrastei-me para baixo da varanda e cheguei ao canto
escuro e frio onde eu sempre me escondia. Abaixado sob a escada, no meio
daquela poeira seca, ouvi as mulheres rindo e mais alta do que as outras, a voz
de minha mãe ecoando através do assoalho rachado: “Viram, eu bem disse que ele
é filho de Satanás.”
Como senti ódio dela. Queria destruí-la, mas não sabia como.
Esmurrando a poeira, gritei de desespero, meu corpo sacudindo-se em soluços,
convulsivos. “Eu te odeio. Eu te odeio. Eu te odeio”, gritei. Mas ninguém me
ouviu. Ninguém se importou. No meu desespero pegava mancheias de pó e atirava
furiosamente em todas as direções. A poeira assentava em meu rosto
transformando-se em pequenos riachos sujos ao misturar-se com as lágrimas.
Mais tarde o frenesi acalmou-se e fiquei em silêncio. Ouvi
as crianças brincando no quintal. Um garoto estava cantando uma música que
falava de passarinhos e borboletas mas eu me sentia isolado, solitário...
Torturado pelo ódio e pela perseguição e obcecado pelo medo. Ouvi a porta do
pombal fechar-se e as ruidosas passadas de papai que vinha dos fundos da casa;
ele começou a subir os degraus da escada. Parando, olhou para as trevas, por
entre as rachaduras das tábuas dos degraus. “O que está fazendo aí em baixo,
menino?” Fiquei em silêncio, com a esperança de que não me reconhecesse. Ele
encolheu os ombros e continuou subindo a escada, e entrou deixando a porta
bater atrás de si. Ninguém me quer, pensei.
Ouvi mais risadas dentro da casa, quando a voz de baixo
profundo de meu pai uniu-se à das mulheres. Eu sabia que eles ainda estavam
rindo de mim.
Ondas de ódio me invadiram outra vez. Lágrimas rolaram pelo
meu rosto, e comecei a gritar de novo. “Eu te odeio, mamãe! Eu te odeio. Eu te
odeio.” Minha voz ecoou no vácuo sob a casa.
Chegando a um auge de emoção, caí de costas na poeira, e
rolei de um lado para o outro — a poeira cobria meu corpo. Exausto, fechei os
olhos e chorei, até cair num sono agitado.
O sol já tinha se escondido no mar, quando despertei e me
arrastei para fora, saindo de baixo da varanda. A areia ainda rangia em meus
dentes, e o meu corpo estava coberto de sujeira. Os sapos coaxavam. Os grilos
cantavam. Eu sentia o orvalho úmido e frio sob meus pés descalços.
Papai abriu a porta dos fundos, e um jato de luz amarela
projetou-se onde me achava, ao pé da escada. “Porco!” gritou ele. “O que você
estava fazendo tanto tempo debaixo da casa? Veja como está. Não queremos
porcos por aqui. Vá se lavar e venha jantar.”
Obedeci. Porém, meditando enquanto me lavava debaixo da
bica, cheguei à conclusão de que haveria de odiar eternamente. Compreendi que
nunca mais amaria de novo .. a ninguém. E nunca mais choraria... nunca. Medo,
sujeira e ódio para o filho de Satanás. Foi quando comecei a fugir.
Muitas famílias porto-riquenhas têm o costume de mandar seus
filhos para Nova York, quando estes alcançam idade suficiente para cuidar de
si. Seis dos meus irmãos mais velhos já haviam deixado a ilha, mudando-se para
Nova York. Todos estavam casados e procurando construir vida nova.
Eu, porém, era muito novo para ir. Não obstante, nos cinco
anos seguintes meus pais chegaram à conclusão de que não era possível que eu
permanecesse em Porto Rico. Tornara-me rebelde na escola. Estava sempre
procurando briga, principalmente com crianças menores do que eu. Um dia atirei
uma pedra na cabeça de uma menina. Fiquei olhando, com um sentimento de prazer,
o sangue que gotejava através de seu cabelo. A menina estava gritando e
chorando, e eu ali, rindo.
Meu pai esbofeteou-me aquela noite até minha boca sangrar. “Sangue
por sangue”, gritou ele.
Comprei uma espingarda “pica-pau” para matar passarinhos.
Mas, para mim, matá-los não era o suficiente. Gostava de mutilar seus corpos.
Meus irmãos se afastavam de mim, por causa do meu estranho desejo de ver
sangue.
Quando estava no oitavo ano, tive uma briga com o professor
de artes manuais. Era um homem alto e magro que gostava de assobiar para as moças.
Um dia, na classe, eu o chamei de “negro”. A sala ficou silenciosa e os outros
rapazes se esgueiraram para trás das máquinas da oficina, sentindo a tensão no
ar.
O professor caminhou pela classe, até o lugar onde eu
estava, ao lado de um torno. “Sabe o que mais, rapaz? Você é pretensioso.”
Respondi com insolência: “Desculpe, negro, eu acho que não
sou.”
Antes que pudesse safar-me, ele me bateu com o longo braço
ossudo e senti a carne dos meus lábios esmagar-se contra os dentes com a
violência do golpe. Senti o gosto do sangue que escorria pela minha boca e pelo
meu queixo.
Avancei para ele, brandindo os braços. O professor era um
homem feito enquanto eu pesava menos de cinqüenta quilos. Eu estava cheio de
ódio e a vista do sangue fez-me explodir. Esticando os braços e colocando as
mãos contra a minha testa ele me conservou à distância, enquanto eu dava murros
no ar.
Compreendendo a inutilidade dos meus esforços, fugi. “Você
vai ver, negro”, gritei. “Vou à polícia. Espera para ver.” Saí correndo da sala
de aula.
Ele correu atrás de mim, chamando-me: “Espere. Eu sinto
muito.” Mas, não voltei.
Não fui à polícia. Em lugar disso, dirigi-me a papai e lhe
disse que o professor tentara me matar. Ele ficou furioso. Correu ao quarto e
depois saiu com sua enorme pistola no cinto. “Vamos garoto. Vou matar um
valentão.”
Voltamos à escola. Eu tinha dificuldade em acompanhar os
passos longos de papai e quase precisava correr para alcançá-lo. Meu coração
saltava ao pensar na sensação de ver aquele professor alto encolher-se de medo
sob a fúria de meu pai.
Mas, o professor não estava na sala de aula. “Espera aqui,
menino”, disse papai. “Eu vou conversar com o diretor, e resolver isto.” Senti
medo, mas esperei.
Papai demorou muito tempo no escritório do diretor. Quando
saiu, caminhou depressa em minha direção, e me sacudiu pelo braço. “Muito bem,
rapaz, você tem algumas explicações a dar. Vamos para casa.”
Voltamos de novo através da pequena vila, e pela trilha
sinuosa, até em casa. Ele me puxava atrás de si, preso pelo braço. “Mentiroso
sujo”, disse-me já defronte da casa. Levantou a mão para esbofetear-me, mas
consegui sair fora do seu alcance, e corri ladeira abaixo. “Está certo... Fuja,
moleque!” gritou. “Você há de voltar para casa e quando voltar, eu vou lhe
mostrar...”
Voltei para casa; mas só três dias depois. A polícia
pegou-me andando na beira de uma estrada que levava às montanhas, no interior.
Roguei-lhes que me soltassem, mas devolveram-me ao meu pai. E ele cumpriu a sua
promessa.
Eu sabia que precisava fugir outra vez. E mais outra.
Fugiria para tão longe que ninguém seria capaz de me trazer de volta. Nos dois
anos que se seguiram, fugi cinco vezes. Todas as vezes a polícia me encontrou
e me levou de volta para casa. Finalmente, sem mais esperança, papai e mamãe
escreveram para meu irmão Frank, perguntando-lhe se poderia receber-me para
morar em sua companhia. Frank concordou, e eles traçaram os planos para a minha
ida.
Na manhã em que viajei, as crianças se enfileiraram na
varanda à frente da casa. Mamãe me apertou ao peito. Havia lágrimas em seus
olhos quando ela tentou falar, porém não saiu palavra nenhuma. Eu não tinha por
ela sentimento de qualquer espécie. Pegando minha pequena mala, virei as
costas, carrancudo, e dirigi-me à velha caminhoneta onde papai me esperava. Não
olhei para trás.
Levamos quarenta e cinco minutos para chegar ao aeroporto de
San Juan, onde papai me deu a passagem e enfiou em minha mão uma nota de dez
dólares dobrada. “Telefone para Frank logo que chegar a Nova York”, disse
ele. “O piloto vai tomar conta de você até ele chegar.”
Ficou de pé olhando para mim durante longo tempo, bem mais
alto do que eu, enquanto um cacho do seu cabelo grisalho e ondulado era agitado
pela brisa quente. É provável que eu parecesse pequeno e patético a seus
olhos, parado ali na estrada, com a maleta na mão. Seus lábios tremeram quando
estendeu a mão para apertar a minha. Então, repentinamente, envolveu-me em
seus longos braços e apertou o meu corpo magro contra o seu.
Escutei-o soluçar
só uma vez: “Hijo
mio” (filho meu).
Soltando-me, ele disse rapidamente: “Seja um bom menino,
passarinho.” Virei-me, e saí correndo; galguei as escadas do enorme avião, e
sentei-me junto a uma janela.
Lá fora vi a figura magra e solitária de meu pai, “O Grande”,
encostado na cerca. Ele levantou a mão uma vez, como se fosse acenar, mas
pareceu envergonhar-se, e voltou, andando depressa, para junto da velha
caminhoneta.
Por que será que ele me chamara de “passarinho”? Recordei o
momento quando, muitos anos atrás, sentado nos degraus da grande varanda, papai
me chamara daquela forma.
Estava sentado em uma cadeira de balanço, fumando o seu
cachimbo, quando me contou a lenda de um pássaro que não tinha pés, e por isso
voava continuamente. Papai olhou-me sombrio, e disse: “Esse passarinho é você,
Nicky. Você não tem descanso. Como um passarinho, você está sempre fugindo.”
Meneou a cabeça vagarosamente, e levantou os olhos para os céus, soprando
fumaça nas trepadeiras, que subiam até o telhado da varanda.
“Esse passarinho é pequenino e muito leve. Não pesa mais do
que uma pena. Ele é levado pelas correntes de ar, e dorme ao vento. Está
sempre fugindo. Fugindo de gaviões, de águias, de corujas. Aves de rapina. Ele
se esconde colocando-se entre elas e o sol. Se elas voarem acima dele, poderão
vê-lo, em contraste com a terra escura. Mas as suas pequenas asas são
transparentes, como a água clara da lagoa. Enquanto ele permanece no alto, elas
não conseguem vê-lo, e assim ele nunca descansa.”
Papai recostou-se e soltou uma baforada de fumaça azul. “Mas,
como é que ele come?” perguntei.
“Ele come ao vento”, respondeu papai. Falava vagarosamente,
como se tivesse visto a avezinha. “Ele apanha insetos e borboletas. Não tem
pernas... nem pés... está sempre se movendo.”
Fiquei fascinado com a estória. “E nos dias chuvosos?”
perguntei-lhe. “O que acontece quando o sol não brilha? Como é, então, que ele
escapa dos seus inimigos?”
“Nos dias feios, Nicky”, disse papai, “ele voa tão alto que
ninguém pode vê-lo. A única hora em que pára de voar — o único momento em que
pára de fugir — a única vez que vem à terra — é quando morre. Pois, uma vez que
toca o solo, não pode mais fugir”
Papai me deu um tapinha no traseiro e me tocou de casa. “Vá
agora, passarinho. Fuja, voe. Seu pai o chamará quando já não for hora de
correr.”
Literalmente voei pelo campo gramado, batendo os braços como
um pássaro que tentasse alçar vôo. Contudo, por alguma razão, parece que não
conseguia ganhar suficiente velocidade para subir.
Os motores do avião tossiram, soltaram fumaça negra, e
entraram em funcionamento. Finalmente, eu ia voar. Estava a caminho...
O ônibus parou. Lá fora, as luzes brilhantes e os anúncios
luminosos multicoloridos acendiam e apagavam na penumbra fria. Um homem que
estava do outro lado levantou-se para descer. Segui-o até a porta, e saímos.
As portas se fecharam atrás de mim, e o ônibus partiu. Fiquei ali na calçada...
sozinho no meio de oito milhões de pessoas.
Apanhei um punhado de neve suja e tirei a crosta que a
cobria. Ali estava: neve pura e brilhante. Desejei colocá-la na boca e comê-la
Porém, ao olhar bem, pequenas manchas negras começaram a aparecer na
superfície. Compreendi que o ar estava cheio de fuligem das chaminés e que a
neve estava tomando o aspecto de queijo fresco pulverizado com
pimenta-do-reino.
Joguei a neve para o lado. Não fazia diferença. Eu estava
livre.
Vagueei pela cidade dois dias. Encontrei um casaco velho
jogado em uma lata de lixo. As mangas cobriam as minhas mãos, e a barra varria
a calçada. Os botões tinham sido arrancados e os bolsos rasgados, mas ele me
aquecia. Aquela noite eu dormi no metrô, encolhido em um banco.
No fim do segundo dia, meu entusiasmo esfriara . Eu estava
com fome... e com frio. Em duas ocasiões, tentei falar com alguém, pedindo
ajuda. O primeiro homem simplesmente ignorou-me. Continuou andando, como se eu
não estivesse ali. O segundo empurrou-me contra a parede: “Caia fora, seu. Não
ponha essas mãos gordurentas em mim.” Piquei com medo. Tentava impedir que o
pânico subisse do estômago para a garganta.
Naquela noite, percorri de novo as ruas da cidade, o paletó
comprido varrendo a calçada e a pequena mala segura firmemente em minha mão.
Pessoas passavam por mim, e me olhavam, mas ninguém parecia importar-se
comigo. Apenas olhavam e continuavam andando.
Nessa mesma noite gastei os dez dólares que papai me dera.
Entrei em um pequeno restaurante e pedi um cachorro-quente, apontando para a
figura de um, que estava dependurada acima do balcão. Engoli-o sofregamente e
indiquei que desejava outro. O homem sacudiu a cabeça negativamente e estendeu
a mão. Enfiei a mão no bolso e tirei a nota amarfanhada. Limpando as mãos em
uma toalha, ele abriu a nota, alisou-a, e meteu-a no bolso do avental sujo.
Trouxe-me então outro cachorro-quente e uma terrina de feijão com carne. Quando
terminei, procurei-o, mas ele havia desaparecido na cozinha. Peguei a mala e
voltei para a rua fria. Acabara de ter meu primeiro encontro com a esperteza
americana. Como iria saber que um cachorro-quente americano não custa cinco
dólares?
Descendo a rua, parei em frente a uma igreja. Um pesado
portão de ferro, trancado com um cadeado, fora colocado diante das portas.
Parei diante do grande edifício de pedra cinzenta e observei a torre que
apontava para o céu. As frias paredes de pedra e os escuros vitrais estavam
fora do meu alcance, protegidos pela cerca de ferro. A estátua de um homem de
rosto simpático e olhos tristes espiava através do portão fechado. Os seus
braços estavam estendidos e cobertos de neve, mas ele estava trancado lá
dentro, e eu aqui fora.
Arrastei-me rua abaixo... andando... andando sem parar.
O pânico voltava furtivamente. Era quase meia-noite, e eu
tremia não só de frio, mas também de medo. Tinha esperança de que alguém
parasse e me perguntasse em que poderia me ajudar. Nem sei o que teria dito, se
alguém parasse e oferecesse ajuda. Mas eu me sentia sozinho, com medo, e
perdido...
A multidão apressada foi embora e me deixou. Nunca pensei
que uma pessoa pudesse sentir solidão no meio de um milhão de pessoas. Para
mim, solidão era perder-se na floresta ou em uma ilha deserta. Porém, essa
era a pior das solidões. Vi pessoas bem vestidas, voltando do teatro para suas
casas... velhos vendendo jornais e frutas em pequenas bancas que ficavam
abertas a noite toda... policiais patrulhando, aos pares... calçadas cheias de
pessoas apressadas. Ao olhar para seus rostos, elas também pareciam solitárias.
Ninguém ria. Ninguém de rosto alegre. Todos apressados.
Sentei-me na calçada e abri minha pequena mala. Encontrei
um pedaço de papel dobrado, com o número do telefone de Frank, escrito por
mamãe. De repente, senti algo empurrando-me por trás. Era um cachorro velho,
felpudo que encostava o focinho no enorme casaco que cobria meu corpo magro.
Rodeei seu pescoço com o braço, e puxei-o para mim. Ele lambeu meu rosto e eu
enterrei a cabeça no seu pelo sarnento.
Não sei quanto tempo fiquei ali sentado, tremendo e
afagando o cão. Quando olhei para cima, vi os pés e pernas de dois policiais
uniformizados. As suas galochas estavam molhadas e sujas. O cachorro sarnento
pressentiu o perigo, e saiu correndo, desaparecendo num beco.
Um dos guardas bateu no meu ombro com a ponta do cassetete. “O
que é que você está fazendo aqui sentado, no meio da noite?” perguntou ele. A
sua face parecia estar cem quilômetros acima. Com dificuldade procurei
explicar, em meu inglês de pé quebrado, que estava perdido.
Um deles murmurou algo para o outro, e se foi. O que ficara
ajoelhou-se ao meu lado, na calçada suja. “Posso ajudá-lo, garoto?”
Acenei que sim e tirei o pedaço de papel com o nome e número
do telefone de Frank. “Irmão”, disse-lhe, mostrando o papel.
Ele sacudiu a cabeça ao olhar para a escrita quase ilegível.
“É aí que você mora, garoto?”
Eu não sabia responder e apenas disse: “Irmão”. Ele acenou
que sim, levantou-me pelo braço, e dirigimo-nos a uma cabine telefônica atrás
de uma banca de jornais. Pescou um níquel no bolso e discou o número. Quando a
voz sonolenta de Frank respondeu, ele me entregou o fone. Em menos de uma hora
eu estava a salvo, no apartamento de meu irmão.
A sopa quente que tomei já na casa de Frank estava gostosa,
e a cama limpa, deliciosa. Na manhã seguinte Frank me contou que eu deveria
ficar com ele, que ele cuidaria de mim e me poria na escola. Algo dentro de
mim, porém, me dizia que eu não ficaria ali. Começara a fugir, e agora nada me
faria parar.