sábado, 24 de abril de 2021

Foge Nick Foge - 01 - Ninguém me quer



Capítulo 1

NINGUÉM ME QUER

“SEGUREM ESSE GAROTO MALUCO!” gritou alguém.
A porta do quadrimotor da Pan American mal acabara de se abrir, e eu já me precipitava escada abaixo, em direção ao prédio do Aeroporto Idlewild, em Nova York. Estávamos a 4 de janeiro de 1955, e o vento frio fazia arder minhas faces.
Algumas horas antes, meu pai me colocara no avião em San Juan: um rapazinho porto-riquenho, rebelde e amargurado. Fora entregue aos cuidados do piloto; haviam-me recomendado que permaneces­se no avião até a chegada de meu irmão, Frank. Po­rém, quando a porta abriu, fui o primeiro a sair, correndo selvagemente pela pista de concreto.
Três funcionários do aeroporto se aproximaram de mim, cercando-me, empurrando-me contra a cer­ca de correntes de aço, ao lado do portão. O vento cortante zunia através da minha roupa tropical e le­ve, enquanto eu procurava escapar. Um policial agarrou-me pelo braço, e os funcionários voltaram ao seu trabalho. Para mim aquilo era uma brinca­deira; olhei para o guarda e sorri.
“Porto-riquenho louco! Que diabo você pretende fazer?”
Meu sorriso sumiu quando notei ódio em sua voz. Suas bochechas gordas estavam vermelhas de frio, e os olhos lacrimejavam devido ao vento. Um toco de cigarro apagado estava esquecido entre seus lábios balofos. Ódio! Senti-o circular por todo o meu corpo. O mesmo ódio que eu tivera contra meu pai e minha mãe, contra meus professores e os guar­das em Porto Rico. ódio! Tentei libertar-me, mas ele me prendeu com uma férrea chave de braço.
“Venha, garoto, vamos voltar ao avião.” Olhei para ele e dei uma cusparada.
“Porco!” rosnou. “Porco sujo!” Ele afrouxou a pressão sobre o meu braço e tentou segurar-me por trás, pela gola do casaco. Mergulhando por baixo do seu braço, deslizei pelo portão aberto que levava para o edifício do aeroporto.
Atrás de mim, ouvi gritos e pisadas rápidas. Corri pelo longo corredor desviando-me, à esquerda e à direita das pessoas que se dirigiam aos aviões. De repente, achei-me em um grande salão. Desco­brindo uma porta de saída, zuni pelo salão e saí pa­ra a rua.
Um grande ônibus estava parado junto ao meio-fio, com a porta aberta e o motor ligado. A fila es­tava entrando. Com algumas empurradas, consegui entrar também. O motorista me agarrou pelo ombro e pediu o dinheiro da passagem. Encolhi os ombros e respondi-lhe em espanhol. Ele me pôs para fora rispidamente, ocupado demais para perder tempo com um rapazinho tolo que mal compreendia inglês. Quando ele desviou a atenção para uma senhora que estava remexendo na bolsa, baixei a cabeça e esgueirei-me por detrás dela, atravessei a porta e penetrei no ônibus lotado. Dando uma olhadela por sobre o ombro, para ter a certeza de que ele não me vira, dirigi-me à parte traseira do ônibus, e sentei-me junto a uma janela.
Quando o coletivo deu a partida, vi o guarda gorducho e mais dois soldados sair ofegantes pela porta lateral do aeroporto, e olhar em todas as dire­ções. Não pude resistir à tentação de bater na vi­draça, acenar para eles e sorrir através do vidro.
Afundando no banco, apoiei os joelhos nas cos­tas do assento da frente e apertei o nariz contra o vidro frio e sujo da janela.
O ônibus atravessou com dificuldade o tráfego intenso de Nova York, em direção ao centro da ci­dade. Lá fora havia neve e lama pelas ruas e calça­das. Eu sempre imaginara que a neve era branca e bonita, como nos contos de fadas. Mas aquela era parda, como mingau sujo. Minha respiração emba­çou a vidraça. Afastei-me um pouco e passei o dedo nela. Era um mundo diferente, inteiramente dife­rente do que eu acabara de abandonar.
Minha mente voltou ao dia anterior, quando eu parara no morro diante de minha casa. Lembrei-me da grama verde que meus pés amassavam, salpicada dos pontinhos de cor clara, das pequeninas flores campestres. O campo descia num declive suave, até a vila, lá em baixo. Lembrei-me da brisa fresca que soprava contra minha face, e do calor do sol em mi­nhas costas bronzeadas e nuas.
Porto Rico é uma bela terra de sol e de crian­ças descalças. É uma terra em que os homens não usam camisa, e as mulheres caminham preguiçosa­mente sob um sol causticante. Os sons dos tambo­res de aço e das guitarras ouvem-se noite e dia. É uma terra de cantigas, flores, crianças sorridentes e água azul refulgente.
Mas é também uma terra de feitiçaria e macum­ba, de superstição religiosa e de muita ignorância. De noite, os sons dos tambores da macumba res­soam nas montanhas cobertas de palmeiras, enquan­to feiticeiros exercem o seu ofício, oferecendo sa­crifícios e dançando com serpentes à luz de foguei­ras bruxuleantes.
Meus pais eram espíritas. Ganhavam a vida ex­pulsando demônios e estabelecendo um suposto con­tato com espíritos de mortos. Papai era um dos ho­mens mais temidos da ilha. Com mais de l,80m de altura, seus enormes ombros encurvados haviam le­vado os ilhéus a se referirem a ele como “O Gran­de” Ele fora ferido durante a Segunda Guerra Mun­dial e recebia uma pensão do governo. Mas, como havia dezessete meninos e uma menina na família, depois da guerra ele recorreu ao espiritismo para ganhar a vida.
Mamãe trabalhava com papai como “médium”. Nossa casa era sede de toda sorte de reuniões de macumba, sessões e feitiçaria. Centenas de pessoas vinham de toda a ilha para participar das sessões espíritas.
Nossa casa enorme, no alto da colina, era ligada por uma trilha sinuosa e estreita à pequena vila mo­dorrenta de Las Piedras, escondida no vale, lá em baixo. Os aldeões subiam pela trilha a qualquer ho­ra do dia ou da noite, para ir à “Casa do Feiticeiro”. Eles tentavam falar com espíritos dos mortos, to­mavam parte em atos de feitiçaria, e pediam a papai para libertá-los de demônios.
Papai era o chefe mas havia outros médiuns que se utilizavam de nossa casa para sede de suas ati­vidades. Alguns permaneciam ali semanas seguidas, às vezes invocando espíritos, às vezes expulsando demônios.
Havia uma mesa comprida na sala da frente, ao redor da qual o povo se assentava, quando estava tentando se comunicar com os espíritos dos mortos. Papai era muito entendido no assunto, e tinha uma biblioteca de magia e espiritismo, sem igual, naque­la parte da ilha.
Certa manhã, dois homens trouxeram uma se­nhora perturbada à nossa casa. Eu e meu irmão Gene esgueiramo-nos da cama, olhamos por uma fresta da porta, e vimos quando eles a estenderam sobre a mesa grande. O seu corpo tremia e gemidos escapavam de seus lábios; os homens se postaram um de cada lado da mesa, segurando-a. Mamãe fi­cou aos pés dela, com os olhos erguidos para o teto, repetindo palavras estranhas. Papai foi à cozinha e voltou com uma pequena urna preta cheia de incen­so a fumegar. Trazia também um grande sapo que colocou sobre o estômago agitado da mulher. De­pois, suspendendo a urna sobre a cabeça dela, aspergiu pó de incenso sobre seu corpo convulso.
Nós tremíamos de medo; ele mandou que os es­píritos maus saíssem da mulher e entrassem no sa­po. De repente, a mulher jogou a cabeça para trás e soltou um grito agudo. O sapo saltou do seu es­tômago e espatifou-se contra a soleira da porta. Imediatamente, ela começou a dar pontapés e, sa­cudindo-se, libertou-se dos homens que a seguravam, rolou da mesa e caiu pesadamente no chão. Picou babando e mordendo a língua e os lábios; sangue misturado com espuma escorria pelos cantos de sua boca.
Mais tarde aquietou-se e ficou imóvel. Papai de­clarou que ela estava curada e os homens lhe deram dinheiro. Eles pegaram o corpo inconsciente e se foram, agradecendo a papai e chamando-o repetida­mente de “Grande Milagreiro”.
Minha infância foi cheia de temor e sobressal­tos. O fato de sermos uma família grande significa­va que mui pouca atenção era dada individualmente a cada filho. Eu tinha raiva de papai e mamãe, e tinha medo da macumba que era realizada todas as noites.
No verão anterior à época que eu devia entrar para a escola papai trancou-me, um dia, no pombal. Já era noite e ele me apanhara roubando dinheiro da bolsa de mamãe. Procurei correr, mas ele esticou o braço e me agarrou pela nuca: “Não adianta cor­rer, moleque. Você roubou; agora vai me pagar.”
“Eu te odeio”, gritei.
Ele me levantou do chão, sacudindo me diante de si “Vou ensiná-lo a falar assim com seu pai”, disse entre dentes. Colocando-me debaixo do braço como se eu fosse um saco de farinha, atravessou o quintal escuro, dirigindo-se ao pombal. Escutei o ruído de suas mãos ao abrir a porta. “Para dentro”, rosnou ele. “Você vai ficar aí com os pombos, até aprender.”
Atirou-me porta adentro, e fechou-a atrás de mim, deixando-me em total escuridão. Ouvi o trinco sendo colocado no lugar, e a voz de papai, abafada, através das fendas da parede: “E nada de jantar.” Ouvi seus passos se diminuindo na distância, de vol­ta para casa.
Eu estava petrificado de terror. Martelava a por­ta com os punhos. Chutava-a freneticamente, gri­tando e chorando. De repente, a casinhola encheu-se do barulho de asas: os pássaros, assustados, ha­viam acordado; repetidas vezes, chocaram-se contra o meu corpo. Apertei as mãos contra o rosto e gri­tei histericamente, enquanto as pombas se arremetiam contra as paredes, e bicavam ferozmente meu rosto e pescoço. Caí aturdido no chão imundo, e enterrei a cabeça nos braços, tentando proteger os olhos e tapar os ouvidos para não ouvir o som das asas que volteavam sobre minha cabeça.
Parecia que uma eternidade se passara, quando a porta abriu, e papai me fez ficar de pé e arrastou-me para o quintal. “Da próxima vez, você vai lem­brar-se de não roubar e de não responder com insolência quando for apanhado”, disse ele asperamente: “Agora, tome um banho e vá para a cama.”
Chorei naquela noite até dormir; depois, sonhei com pássaros esvoaçantes que se chocavam contra meu corpo.
Meus ressentimentos contra papai e mamãe rea­vivaram-se no ano seguinte, quando entrei para a escola. Eu odiava qualquer autoridade. Mais tarde, quando já tinha oito anos, rebelei-me de uma vez contra meus pais. Foi em uma tarde quente de ve­rão. Mamãe e vários outros “médiuns” estavam sen­tados à grande mesa da sala, tomando café. Eu me cansara de brincar com meu irmão e entrara na sa­la, brincando com uma pequena bola, batendo-a no assoalho. Um dos médiuns disse à mamãe: “O Nicky é um menino bonito. Parece com você. Deve orgu­lhar-se dele.”
Mamãe olhou séria para mim e começou a ba­lançar-se na cadeira, para a frente e para trás. Seus olhos reviraram, a ponto de aparecer somente o branco. Estendeu os braços para a frente, sobre a mesa. Seus dedos ficaram duros e tremiam e ela levantou vagarosamente os braços sobre a cabeça e começou a falar em tom de cantochão: “Este... não... meu... filho. Não, Nicky não. Ele nunca foi meu. Ele é filho do maior de todos os bruxos. Lúcifer. Não, meu não... não, meu não... Pilho de Satanás, filho do diabo.”
Larguei a bola, que rolou pela sala afora. En­costei-me à parede, e mamãe continuou em transe; sua voz se levantava e baixava, enquanto ela falava como em responso: “Não, meu não, não, meu, não... a mão de Lúcifer sobre a sua vida... o dedo de Sa­tanás está na sua vida... o dedo de Satanás toca na sua alma... a marca da besta no seu coração... Não, meu não, meu não.”
Observei que lágrimas corriam pelas suas faces. De repente, voltou-se para mim com os olhos ar­regalados e gritou com voz esganiçada: “Sai, DIA­BO! Para longe de mim. Deixa-me, DIABO! Longe! Longe! Longe!”
Eu estava petrificado de terror. Corri para o meu quarto e joguei-me sobre a cama. Pensamentos passavam pela minha mente como rios canalizados em uma garganta estreita. “Não sou filho dela... filho de Satanás... ela não me ama... Ninguém me quer. Ninguém me quer.”
Então as lágrimas vieram, e eu comecei a cho­rar e a soluçar. A dor que sentia no peito era insu­portável, e esmurrei a cama até ficar exausto.
O velho ódio se agitou dentro de mim, a consu­mir minha alma, como a onda da maré avança sobre um recife de coral. Senti que odiava minha mãe. Puxa, como a odiava! Eu queria feri-la, torturá-la, vingar-me. Empurrei a porta e saí correndo e gri­tando até a sala. Os médiuns ainda estavam ali com mamãe. Esmurrei a mesa e gritei. Estava tão frus­trado pelo ódio que gaguejava e as palavras não saíam direito: “Eu — eu... t-te o-o-odeio.” Aponta­va um dedo trêmulo para minha mãe e gritava: “Vo-vo-você me paga. Você me paga.”
Dois de meus irmãos mais novos estavam à por­ta olhando, curiosos. Empurrei-os para o lado e cor­ri para os fundos da casa. Mergulhando escada abai­xo, virei-me e arrastei-me para baixo da varanda e cheguei ao canto escuro e frio onde eu sempre me escondia. Abaixado sob a escada, no meio daquela poeira seca, ouvi as mulheres rindo e mais alta do que as outras, a voz de minha mãe ecoando através do assoalho rachado: “Viram, eu bem disse que ele é filho de Satanás.”
Como senti ódio dela. Queria destruí-la, mas não sabia como. Esmurrando a poeira, gritei de deses­pero, meu corpo sacudindo-se em soluços, convulsi­vos. “Eu te odeio. Eu te odeio. Eu te odeio”, gritei. Mas ninguém me ouviu. Ninguém se importou. No meu desespero pegava mancheias de pó e atirava furiosamente em todas as direções. A poeira assen­tava em meu rosto transformando-se em pequenos riachos sujos ao misturar-se com as lágrimas.
Mais tarde o frenesi acalmou-se e fiquei em si­lêncio. Ouvi as crianças brincando no quintal. Um garoto estava cantando uma música que falava de passarinhos e borboletas mas eu me sentia isolado, solitário... Torturado pelo ódio e pela perseguição e obcecado pelo medo. Ouvi a porta do pombal fechar-se e as ruidosas passadas de papai que vinha dos fundos da casa; ele começou a subir os degraus da escada. Parando, olhou para as trevas, por entre as rachaduras das tábuas dos degraus. “O que está fazendo aí em baixo, menino?” Fiquei em silêncio, com a esperança de que não me reconhecesse. Ele encolheu os ombros e continuou subindo a escada, e entrou deixando a porta bater atrás de si. Ninguém me quer, pensei.
Ouvi mais risadas dentro da casa, quando a voz de baixo profundo de meu pai uniu-se à das mulhe­res. Eu sabia que eles ainda estavam rindo de mim.
Ondas de ódio me invadiram outra vez. Lágri­mas rolaram pelo meu rosto, e comecei a gritar de novo. “Eu te odeio, mamãe! Eu te odeio. Eu te odeio.” Minha voz ecoou no vácuo sob a casa.
Chegando a um auge de emoção, caí de costas na poeira, e rolei de um lado para o outro — a poei­ra cobria meu corpo. Exausto, fechei os olhos e cho­rei, até cair num sono agitado.
O sol já tinha se escondido no mar, quando des­pertei e me arrastei para fora, saindo de baixo da varanda. A areia ainda rangia em meus dentes, e o meu corpo estava coberto de sujeira. Os sapos coa­xavam. Os grilos cantavam. Eu sentia o orvalho úmido e frio sob meus pés descalços.
Papai abriu a porta dos fundos, e um jato de luz amarela projetou-se onde me achava, ao pé da escada. “Porco!” gritou ele. “O que você estava fa­zendo tanto tempo debaixo da casa? Veja como es­tá. Não queremos porcos por aqui. Vá se lavar e venha jantar.”
Obedeci. Porém, meditando enquanto me lavava debaixo da bica, cheguei à conclusão de que haveria de odiar eternamente. Compreendi que nunca mais amaria de novo .. a ninguém. E nunca mais chora­ria... nunca. Medo, sujeira e ódio para o filho de Satanás. Foi quando comecei a fugir.
Muitas famílias porto-riquenhas têm o costume de mandar seus filhos para Nova York, quando es­tes alcançam idade suficiente para cuidar de si. Seis dos meus irmãos mais velhos já haviam deixado a ilha, mudando-se para Nova York. Todos estavam casados e procurando construir vida nova.
Eu, porém, era muito novo para ir. Não obstan­te, nos cinco anos seguintes meus pais chegaram à conclusão de que não era possível que eu permane­cesse em Porto Rico. Tornara-me rebelde na esco­la. Estava sempre procurando briga, principalmente com crianças menores do que eu. Um dia atirei uma pedra na cabeça de uma menina. Fiquei olhando, com um sentimento de prazer, o sangue que goteja­va através de seu cabelo. A menina estava gritando e chorando, e eu ali, rindo.
Meu pai esbofeteou-me aquela noite até minha boca sangrar. “Sangue por sangue”, gritou ele.
Comprei uma espingarda “pica-pau” para ma­tar passarinhos. Mas, para mim, matá-los não era o suficiente. Gostava de mutilar seus corpos. Meus irmãos se afastavam de mim, por causa do meu es­tranho desejo de ver sangue.
Quando estava no oitavo ano, tive uma briga com o professor de artes manuais. Era um homem alto e magro que gostava de assobiar para as mo­ças. Um dia, na classe, eu o chamei de “negro”. A sala ficou silenciosa e os outros rapazes se esgueiraram para trás das máquinas da oficina, sentindo a tensão no ar.
O professor caminhou pela classe, até o lugar onde eu estava, ao lado de um torno. “Sabe o que mais, rapaz? Você é pretensioso.”
Respondi com insolência: “Desculpe, negro, eu acho que não sou.”
Antes que pudesse safar-me, ele me bateu com o longo braço ossudo e senti a carne dos meus lábios esmagar-se contra os dentes com a violência do golpe. Senti o gosto do sangue que escorria pela minha boca e pelo meu queixo.
Avancei para ele, brandindo os braços. O pro­fessor era um homem feito enquanto eu pesava me­nos de cinqüenta quilos. Eu estava cheio de ódio e a vista do sangue fez-me explodir. Esticando os bra­ços e colocando as mãos contra a minha testa ele me conservou à distância, enquanto eu dava murros no ar.
Compreendendo a inutilidade dos meus esforços, fugi. “Você vai ver, negro”, gritei. “Vou à polícia. Espera para ver.” Saí correndo da sala de aula.
Ele correu atrás de mim, chamando-me: “Espe­re. Eu sinto muito.” Mas, não voltei.
Não fui à polícia. Em lugar disso, dirigi-me a papai e lhe disse que o professor tentara me matar. Ele ficou furioso. Correu ao quarto e depois saiu com sua enorme pistola no cinto. “Vamos garoto. Vou matar um valentão.”
Voltamos à escola. Eu tinha dificuldade em acompanhar os passos longos de papai e quase pre­cisava correr para alcançá-lo. Meu coração saltava ao pensar na sensação de ver aquele professor alto encolher-se de medo sob a fúria de meu pai.
Mas, o professor não estava na sala de aula. “Espera aqui, menino”, disse papai. “Eu vou conver­sar com o diretor, e resolver isto.” Senti medo, mas esperei.
Papai demorou muito tempo no escritório do diretor. Quando saiu, caminhou depressa em minha direção, e me sacudiu pelo braço. “Muito bem, ra­paz, você tem algumas explicações a dar. Vamos para casa.”
Voltamos de novo através da pequena vila, e pe­la trilha sinuosa, até em casa. Ele me puxava atrás de si, preso pelo braço. “Mentiroso sujo”, disse-me já defronte da casa. Levantou a mão para esbofetear-me, mas consegui sair fora do seu alcance, e corri ladeira abaixo. “Está certo... Fuja, moleque!” gritou. “Você há de voltar para casa e quando voltar, eu vou lhe mostrar...”
Voltei para casa; mas só três dias depois. A po­lícia pegou-me andando na beira de uma estrada que levava às montanhas, no interior. Roguei-lhes que me soltassem, mas devolveram-me ao meu pai. E ele cumpriu a sua promessa.
Eu sabia que precisava fugir outra vez. E mais outra. Fugiria para tão longe que ninguém seria ca­paz de me trazer de volta. Nos dois anos que se se­guiram, fugi cinco vezes. Todas as vezes a polícia me encontrou e me levou de volta para casa. Final­mente, sem mais esperança, papai e mamãe escreve­ram para meu irmão Frank, perguntando-lhe se po­deria receber-me para morar em sua companhia. Frank concordou, e eles traçaram os planos para a minha ida.
Na manhã em que viajei, as crianças se enfileiraram na varanda à frente da casa. Mamãe me aper­tou ao peito. Havia lágrimas em seus olhos quando ela tentou falar, porém não saiu palavra nenhuma. Eu não tinha por ela sentimento de qualquer espé­cie. Pegando minha pequena mala, virei as costas, carrancudo, e dirigi-me à velha caminhoneta onde papai me esperava. Não olhei para trás.
Levamos quarenta e cinco minutos para chegar ao aeroporto de San Juan, onde papai me deu a pas­sagem e enfiou em minha mão uma nota de dez dó­lares dobrada. “Telefone para Frank logo que che­gar a Nova York”, disse ele. “O piloto vai tomar conta de você até ele chegar.”
Ficou de pé olhando para mim durante lon­go tempo, bem mais alto do que eu, enquanto um cacho do seu cabelo grisalho e ondulado era agitado pela brisa quente. É provável que eu parecesse pe­queno e patético a seus olhos, parado ali na estra­da, com a maleta na mão. Seus lábios tremeram quando estendeu a mão para apertar a minha. En­tão, repentinamente, envolveu-me em seus longos braços e apertou o meu corpo magro contra o seu.
Escutei-o soluçar     uma vez:   “Hijo  mio”   (filho meu).
Soltando-me, ele disse rapidamente: “Seja um bom menino, passarinho.” Virei-me, e saí correndo; galguei as escadas do enorme avião, e sentei-me jun­to a uma janela.
Lá fora vi a figura magra e solitária de meu pai, “O Grande”, encostado na cerca. Ele levantou a mão uma vez, como se fosse acenar, mas pareceu enver­gonhar-se, e voltou, andando depressa, para junto da velha caminhoneta.
Por que será que ele me chamara de “passari­nho”? Recordei o momento quando, muitos anos atrás, sentado nos degraus da grande varanda, papai me chamara daquela forma.
Estava sentado em uma cadeira de balanço, fu­mando o seu cachimbo, quando me contou a lenda de um pássaro que não tinha pés, e por isso voava continuamente. Papai olhou-me sombrio, e disse: “Esse passarinho é você, Nicky. Você não tem des­canso. Como um passarinho, você está sempre fu­gindo.” Meneou a cabeça vagarosamente, e levantou os olhos para os céus, soprando fumaça nas trepa­deiras, que subiam até o telhado da varanda.
“Esse passarinho é pequenino e muito leve. Não pesa mais do que uma pena. Ele é levado pelas cor­rentes de ar, e dorme ao vento. Está sempre fugin­do. Fugindo de gaviões, de águias, de corujas. Aves de rapina. Ele se esconde colocando-se entre elas e o sol. Se elas voarem acima dele, poderão vê-lo, em contraste com a terra escura. Mas as suas pequenas asas são transparentes, como a água clara da lagoa. Enquanto ele permanece no alto, elas não conseguem vê-lo, e assim ele nunca descansa.”
Papai recostou-se e soltou uma baforada de fu­maça azul. “Mas, como é que ele come?” perguntei.
“Ele come ao vento”, respondeu papai. Falava vagarosamente, como se tivesse visto a avezinha. “Ele apanha insetos e borboletas. Não tem pernas... nem pés... está sempre se movendo.”
Fiquei fascinado com a estória. “E nos dias chu­vosos?” perguntei-lhe. “O que acontece quando o sol não brilha? Como é, então, que ele escapa dos seus inimigos?”
“Nos dias feios, Nicky”, disse papai, “ele voa tão alto que ninguém pode vê-lo. A única hora em que pára de voar — o único momento em que pára de fugir — a única vez que vem à terra — é quando morre. Pois, uma vez que toca o solo, não pode mais fugir”
Papai me deu um tapinha no traseiro e me to­cou de casa. “Vá agora, passarinho. Fuja, voe. Seu pai o chamará quando já não for hora de correr.”
Literalmente voei pelo campo gramado, batendo os braços como um pássaro que tentasse alçar vôo. Contudo, por alguma razão, parece que não conse­guia ganhar suficiente velocidade para subir.
Os motores do avião tossiram, soltaram fumaça negra, e entraram em funcionamento. Finalmente, eu ia voar. Estava a caminho...
O ônibus parou. Lá fora, as luzes brilhantes e os anúncios luminosos multicoloridos acendiam e apagavam na penumbra fria. Um homem que esta­va do outro lado levantou-se para descer. Segui-o até a porta, e saímos. As portas se fecharam atrás de mim, e o ônibus partiu. Fiquei ali na calçada... sozinho no meio de oito milhões de pessoas.
Apanhei um punhado de neve suja e tirei a crosta que a cobria. Ali estava: neve pura e brilhante. Desejei colocá-la na boca e comê-la Porém, ao olhar bem, pequenas manchas negras começaram a apare­cer na superfície. Compreendi que o ar estava cheio de fuligem das chaminés e que a neve estava toman­do o aspecto de queijo fresco pulverizado com pimenta-do-reino.
Joguei a neve para o lado. Não fazia diferença. Eu estava livre.
Vagueei pela cidade dois dias. Encontrei um ca­saco velho jogado em uma lata de lixo. As mangas cobriam as minhas mãos, e a barra varria a calçada. Os botões tinham sido arrancados e os bolsos rasga­dos, mas ele me aquecia. Aquela noite eu dormi no metrô, encolhido em um banco.
No fim do segundo dia, meu entusiasmo esfria­ra . Eu estava com fome... e com frio. Em duas ocasiões, tentei falar com alguém, pedindo ajuda. O primeiro homem simplesmente ignorou-me. Conti­nuou andando, como se eu não estivesse ali. O se­gundo empurrou-me contra a parede: “Caia fora, seu. Não ponha essas mãos gordurentas em mim.” Pi­quei com medo. Tentava impedir que o pânico su­bisse do estômago para a garganta.
Naquela noite, percorri de novo as ruas da ci­dade, o paletó comprido varrendo a calçada e a pe­quena mala segura firmemente em minha mão. Pes­soas passavam por mim, e me olhavam, mas ninguém parecia importar-se comigo. Apenas olhavam e con­tinuavam andando.
Nessa mesma noite gastei os dez dólares que papai me dera. Entrei em um pequeno restaurante e pedi um cachorro-quente, apontando para a figura de um, que estava dependurada acima do balcão. Engoli-o sofregamente e indiquei que desejava ou­tro. O homem sacudiu a cabeça negativamente e es­tendeu a mão. Enfiei a mão no bolso e tirei a nota amarfanhada. Limpando as mãos em uma toalha, ele abriu a nota, alisou-a, e meteu-a no bolso do aven­tal sujo. Trouxe-me então outro cachorro-quente e uma terrina de feijão com carne. Quando terminei, procurei-o, mas ele havia desaparecido na cozinha. Peguei a mala e voltei para a rua fria. Acabara de ter meu primeiro encontro com a esperteza ameri­cana. Como iria saber que um cachorro-quente ame­ricano não custa cinco dólares?
Descendo a rua, parei em frente a uma igreja. Um pesado portão de ferro, trancado com um cadeado, fora colocado diante das portas. Parei diante do grande edifício de pedra cinzenta e observei a torre que apontava para o céu. As frias paredes de pedra e os escuros vitrais estavam fora do meu alcan­ce, protegidos pela cerca de ferro. A estátua de um homem de rosto simpático e olhos tristes espiava através do portão fechado. Os seus braços estavam estendidos e cobertos de neve, mas ele estava tran­cado lá dentro, e eu aqui fora.
Arrastei-me rua abaixo... andando... andando sem parar.
O pânico voltava furtivamente. Era quase meia-noite, e eu tremia não só de frio, mas também de medo. Tinha esperança de que alguém parasse e me perguntasse em que poderia me ajudar. Nem sei o que teria dito, se alguém parasse e oferecesse ajuda. Mas eu me sentia sozinho, com medo, e perdido...
A multidão apressada foi embora e me deixou. Nunca pensei que uma pessoa pudesse sentir solidão no meio de um milhão de pessoas. Para mim, soli­dão era perder-se na floresta ou em uma ilha deser­ta. Porém, essa era a pior das solidões. Vi pessoas bem vestidas, voltando do teatro para suas casas... velhos vendendo jornais e frutas em pequenas ban­cas que ficavam abertas a noite toda... policiais pa­trulhando, aos pares... calçadas cheias de pessoas apressadas. Ao olhar para seus rostos, elas também pareciam solitárias. Ninguém ria. Ninguém de ros­to alegre. Todos apressados.
Sentei-me na calçada e abri minha pequena ma­la. Encontrei um pedaço de papel dobrado, com o número do telefone de Frank, escrito por mamãe. De repente, senti algo empurrando-me por trás. Era um cachorro velho, felpudo que encostava o focinho no enorme casaco que cobria meu corpo magro. Rodeei seu pescoço com o braço, e puxei-o para mim. Ele lambeu meu rosto e eu enterrei a cabeça no seu pelo sarnento.
Não sei quanto tempo fiquei ali sentado, tremen­do e afagando o cão. Quando olhei para cima, vi os pés e pernas de dois policiais uniformizados. As suas galochas estavam molhadas e sujas. O cachorro sarnento pressentiu o perigo, e saiu correndo, desapa­recendo num beco.
Um dos guardas bateu no meu ombro com a ponta do cassetete. “O que é que você está fazendo aqui sentado, no meio da noite?” perguntou ele. A sua face parecia estar cem quilômetros acima. Com dificuldade procurei explicar, em meu inglês de pé quebrado, que estava perdido.
Um deles murmurou algo para o outro, e se foi. O que ficara ajoelhou-se ao meu lado, na calçada su­ja. “Posso ajudá-lo, garoto?”
Acenei que sim e tirei o pedaço de papel com o nome e número do telefone de Frank. “Irmão”, dis­se-lhe, mostrando o papel.
Ele sacudiu a cabeça ao olhar para a escrita quase ilegível. “É aí que você mora, garoto?”
Eu não sabia responder e apenas disse: “Irmão”. Ele acenou que sim, levantou-me pelo braço, e dirigimo-nos a uma cabine telefônica atrás de uma ban­ca de jornais. Pescou um níquel no bolso e discou o número. Quando a voz sonolenta de Frank respon­deu, ele me entregou o fone. Em menos de uma ho­ra eu estava a salvo, no apartamento de meu irmão.
A sopa quente que tomei já na casa de Frank estava gostosa, e a cama limpa, deliciosa. Na manhã seguinte Frank me contou que eu deveria ficar com ele, que ele cuidaria de mim e me poria na escola. Algo dentro de mim, porém, me dizia que eu não fi­caria ali. Começara a fugir, e agora nada me faria parar.