segunda-feira, 10 de maio de 2021

Este mundo tenebroso - parte 2 - Capítulo 02


 O agente Ben Cole encostou o carro de radiopatrulha no estacionamento atrás da delegacia e permaneceu sentado ao volante por um momento depois que o motor parou. Tinha sido um longo dia, e ele estava cansado. Baskon não gerava tanta atividade pesada assim, mas hoje o dia tinha sido um pouquinho mais difícil. O caminho­neiro que ele havia detido por excesso de velocidade dava dois dele e não gostou de ter de se haver com um policial tão jovem, muito menos um que era preto; Bill Schultz ainda não havia prendido aquele seu cão, e agora outra pessoa tinha sido mordida; ele havia apanhado o garoto Krantz com maconha de novo, e os pais do rapazinho ainda não queriam acreditar.

Era essa a dificuldade do trabalho policial - a gente sempre tinha de ver o lado mau das pessoas, quando elas estavam bravas, na defensiva, justificando a própria conduta, bêbadas, drogadas... Oh, deixe disso, Ben. O dia terminou. Existem algumas pessoas boas no mundo, de verdade. Você simplesmente precisa ir para casa, jantar, ver Bev. Sim, isso botará tudo em ordem.

Ele saiu do carro; escreveria uns relatórios rápidos e iria para casa assim que... Ora, de quem são esses carros? Dois carros estranhos ocupavam as vagas reservadas do estacionamento, e não era aquela a pequena perua de Tom Harris? A essa altura, a delegacia estava fechada; era tarde demais para visitas. Era melhor averiguar quando estivesse Ia dentro.

Ele entrou pela porta dos fundos e começou a percorrer o longo corredor que ligava os escritórios dos fundos e o bloco de celas com a área do escritório da frente.

Ih, credo, com quem o Mulligan está berrando agora?

Ele podia ouvir a voz do sargento Mulligan lá da outra ponta do corredor, trovejando através da porta aberta do escritório. Então, está bem, não precisa me contar nada! Pode mentir! Gente como você está sempre mentindo mesmo, e ficarei feliz em ouvir, porque assim poderei usar o que disser contra você!

— Sargento, não estou mentindo...

Ben deteve-se no corredor para ouvir. Aquela outra voz parecia conhe­cida.

— Então, diga-me a verdade, está bem? — pediu Mulligan. — Você tem feito uma verdadeira festa com aqueles garotinhos, não tem?

— Sargento, repito, não há nada de mais ocorrendo na escola, ou na minha casa, ou em parte alguma! Esta coisa toda é um terrível engano!

É, era mesmo o carro de Tom Harris lá fora, e aqui estava Tom se sentindo por baixo na conversa com o sargento.

Ben teve de espiar. Essa conversa parecia cada vez pior. Senhor, por favor, não deixe que seja o que parece ser. Eu começava a me sentir melhor pensando nas pessoas boas do mundo.

Ele seguiu pelo corredor desguarnecido até a porta de Mulligan, e enfiou a cabeça por ela.

— Já voltei, Harold. — Nada de mais, estou simplesmente avisando que cheguei, apenas tentando descobrir o que está acontecendo.

Ben permaneceu ali, rígido, olhando o homem abalado, nervoso, sentado à frente da amassada escrivaninha de metal verde do grandalhão que era o sargento Mulligan.

Mulligan estava no auge de sua feiúra gorda, e realmente gostando daquilo. Ele sempre se divertia com todas as coisas erradas. — Ei, Cole, veja o que apanhei hoje! Outro cristão! Aposto que vocês dois se conhecem!

Ben parecia confuso.

— Ei, Tom. O que há?

— Abuso de crianças!

Mulligan estava orgulhoso do fato, orgulhoso do que apanhara. — Tenho um caso de verdade cozinhando aqui.

— Então o senhor sabe muito mais a respeito do que eu! — exclamou Tom. Com olhos avermelhados por lágrimas, ele ergueu o olhar para Ben. — O sargento aí simplesmente.... simplesmente postou-se ali enquanto uma assistente social veio e levou Rute e Josias, simplesmente os arrastou de casa, e... — a voz de Tom elevou-se com medo e raiva. — Quero saber onde eles estão.

Mulligan, insensível como uma pedra, deu uma risadinha desdenhosa para Ben.

— Espere até ouvir o que este nojento tem estado a fazer com algumas crianças da escola cristã.

Tom ergueu-se de sua cadeira.

— Não estive fazendo nadai Será que não consegue meter isso na cabeça?

— Trate de sentar-se, amigo! — Mulligan era muito maior do que Tom e fazia tudo o que podia para mostrá-lo.

O coração de Ben se contorceu no peito. A escola cristã? Baskon só tinha uma — a Academia do Bom Pastor, um pequeno ministério com séries que iam da primeira à sexta, tocado pela...

— Eu diria que sua igreja está em grandes apuros! - avisou Mulligan a Ben.

Ben baixou o olhar a Tom Harris, um dos homens mais gentis, mais santos que ele já conhecera. Tom tinha uns trinta e tantos anos de idade, cabelos crespos e ondulados, e um rosto jovem. Ben sabia que o sujeito era mais do que apenas honesto — era positivamente vulnerável. De jeito nenhum, cara. Tom Harris não fez nada.

— Tom — disse Ben suavemente — você está ciente dos seus direitos?

— Ele não está preso! — falou Mulligan com aspereza. — Veio aqui por conta própria.

— E não vou embora enquanto não conseguir alguma cooperação! — ameaçou Tom.

— Ei, não venha com essa agora — defendeu-se Mulligan. — O pessoal estadual tem de averiguar tudo isso.

— Então vamos chamá-los! — sugeriu Ben.

— Vá caindo fora, Cole! Vocês dois são amigos e todo o mundo sabe disso. Você não vai chegar nem perto deste caso!

Tom exigiu em palavras lentas, bem enunciadas:

— Quero ver os meus filhos!

— Está falando com a pessoa errada. Tom apontou com o dedo.

— O senhor estava lá! Abusou de sua autoridade e deixou aquela... aquela tal de Bledsoe marchar para dentro da minha casa como se fosse algum tipo de... ataque da Gestapo! Ela aterrorizou meus filhos e invadiu minha propriedade particular bem debaixo do seu nariz!

Mulligan, ereto e alto em sua cadeira, advertiu firme e simplesmente:

— Cuidado com o que diz, Harris. A Sra. Bledsoe tem uma ordem "bona fide" do tribunal para levar os seus filhos por causa de uma queixa registrada contra você!

Tom ficou estupefato.

Que queixa?

— Não sei. Pergunte à Bledsoe. Isso é departamento dela.

— Então o senhor deve saber como entrar em contato com ela.

— Eu descobrirei — prometeu Ben.

— O seu turno não terminou? — rugiu Mulligan.

— Sim, senhor.

— Então, dê o fora daqui!

Ben teve de obedecer. Ele disse a Tom: — Ligue para mim — e voltou-se para sair.

Naquele exato momento o rádio da polícia começou a transmitir. O som que vinha dele sempre paralisava o tempo na delegacia, pois todos se detinham para ouvir a mensagem. "Baskon, Baskon, possível caso de morte no sítio de Fred Potter, Rua 197 sudoeste, 12.947. Pessoal de socorro a caminho."

Mulligan pulou da cadeira, fazendo-a estrondejar para trás e bater de encontro à parede. — Onde está o Leonardo... ele já chegou? — E naquele momento o telefone tocou. — Arre! Desgraça pouca é bobagem. Vá atender!

Ben apressou-se na direção do balcão da entrada.

Um homem e uma mulher estavam sentados na área da recepção. Ben reconheceu o homem: John Ziegler, repórter do jornal Estrela do Condado de Hampton. Ele cobria as rondas da polícia local e estava sempre na delegacia. A mulher era obviamente uma fotógrafa. Ziegler tinha um bloco de anotações à mão, e aparentemente rabiscava tudo o que ouvia!

O telefone tocou de novo.

Ben continuou de olho nos caça-notícias enquanto agarrava o telefone.

— Departamento de Polícia. — A voz do outro lado estava frenética. — Acalme-se, senhora. Não consigo entender.

Era Cecília Potter. Já havia chamado o número de emergências; agora queria certificar-se de que a polícia estava a caminho. Ben sabia onde ficava o sítio deles.

— Acabamos de receber o chamado pelo rádio. Logo estaremos aí. — Nem adiantava pensar em ir para a casa.

A porta dos fundos se abriu.

— O Leonardo acabou de chegar — informou Ben.

O policial Leonardo Jackson chegava para a ronda noturna. Era o tipo do sujeito calmo, esguio, sereno, de seus quarenta anos, quase um aces­sório permanente naquele lugar. Por pouco Mulligan não passou em cima dele ao explodir de seu gabinete.

— Vamos indo, Leonardo! Há um caso de suicídio no sítio dos Potters!

— No sítio dos Potters? — Leonardo achou difícil imaginar um dos Potters fazendo uma coisa dessas.

Ben sentia-se bastante abalado a respeito de outro assunto.

— O que faço com o John Ziegler lá fora?

Mulligan olhou para os jornalistas e começou a praguejar, olhando de um lado e de outro. — Harris, venha aqui fora! Tom saiu do gabinete, tentando cooperar. Mulligan empurrou-o na direção da entrada.

— Sente-se lá com aquela gente simpática... eles querem conversar com você! Leonardo, usaremos o seu carro-patrulha.

Tom olhou para Ben pedindo ajuda.

— Eles estiveram lá em casa hoje quando aquela senhora levou as crianças. Tiraram fotos do que aconteceu!

Ben sentiu sua irritação crescendo.

— Tom, você não precisa lhes dizer nada. Simplesmente passe por eles e vá para a casa!

Mulligan deve ter visto algo de que não gostou.

— Cole, venha você também!

Leonardo estava pronto para rodar. Mulligan agarrou seu chapéu e jaqueta. Os jornalistas, de pé, dirigiam-se a Tom.

— O Tom pode ir embora? — perguntou Ben. Mulligan revirou os olhos ante tal pergunta.

— Cole, ele veio aqui por conta própria... pode ir embora da mesma forma. Está ouvindo, Harris?

— Tom, dê o fora daqui — aconselhou Ben, baixinho. — Você não precisa falar com ninguém.

Mulligan rosnou para ele:

— Está pronto agora, Cole? Vamos, depressa!

Ben não gostava nada daquilo, mas ordens eram ordens. Ele se dirigiu novamente à porta dos fundos.

— Fiquem à vontade — disse Mulligan inclinando o chapéu para John Ziegler e para a mulher da câmara. — Estaremos de volta dentro de mais ou menos uma hora, e terei uma declaração para vocês.

— Ligarei para você — disse Ben a Tom, e acompanhou Mulligan e Leonardo.

— Não vou deixar você ali dentro com aquele seu amigo cristão, de forma alguma — resmungou Mulligan por sobre o ombro enquanto eles se dirigiam aos carros: — Se vai estar a serviço, vai trabalhar e vai fazer o que eu lhe disser sem chiar. Não precisamos de vocês dois fanáticos trocando idéias lá dentro, não senhor!

Tom voltou ao gabinete de Mulligan para apanhar o paletó e em seguida saiu para o corredor.

John Ziegler estava plantado bem à sua frente, bloqueando o caminho.

— Com licença — disse Tom, tentando passar por ele. John insistia em ter uma conversa.

— John Ziegler, do jornal Estrela do Condado de Hampton...

Sim, eu o vi lá na minha casa — respondeu Tom secamente.

— Sr. Harris, qual é a sua resposta a essas alegações? — perguntou Ziegler.

Que alegações? Nem sei porque isto está acontecendo comigo!

— O senhor acha que isso prejudicará a escola cristã?

— Não sei.

— O senhor nega quaisquer abusos às crianças na escola cristã?

Esta pergunta mexeu com Tom ao ponto de fazê-lo estacar abrupta­mente. E Ziegler havia percebido.

— O senhor nega as alegações?

— Não sei de nenhuma alegação — respondeu Tom, mal encontrando a voz. Ziegler anotou apressado.

— Houve alguma reação por parte da sua família?

— Além do fato de meus filhos ficarem apavorados? A mulher pôs-se a bater fotos dele.

— Ei, o que é isso, ora...

A câmara continuou estalando. Ziegler ergueu uma sobrancelha.

— Pelo que sei, o senhor é viúvo. Mora em casa sozinho com os filhos?

— Chega! — Tom indignou-se. — Estou indo. Boa noite.

Ziegler atirou perguntas às costas de Tom enquanto o seguia de perto na direção da porta da frente.

— O estado está considerando seus filhos também como possíveis vítimas?

Tom abriu a porta com um safanão e olhou-os furioso por um momento. A câmara registrou sua expressão de raiva. Ziegler estava satisfeito.

— Muito obrigado, Sr. Harris.

Logo do outro lado da rua, Desespero estava sentado no teto da Biblioteca e Loja de Presentes de Baskon, um lastimável monturo de sujeira melancólica, choramingando por causa dos ferimentos e observando os dois carros de patrulha saírem na disparada.

— Oh, lá vão eles, lá vão eles. E agora?

Diversos outros espíritos escuros faziam-lhe companhia, escondidos, resmungando, chiando, babando de agitação. Constituíam um bando heterogêneo de tentadores, perturbadores e enganadores, subitamente reduzidos à metade da força, metade do seu número, e cheios de angústia pela derrota, recente e terrível, de seus camaradas.

Desespero fazia jus ao seu nome. — Perdido, perdido, perdido, está tudo perdido! Os melhores de nós se foram, todos conquistados, menos eu!

Um forte tapa jogou-lhe a cabeça redonda contra o ombro.

— Pare com essa choramingação! Você me deixa doente!

— Terga, meu príncipe, o senhor não estava lá!

Terga, o príncipe de Baskon, mais parecia um sapo limboso com uma medonha peruca de arame preto e dois olhos amarelos, que rolavam de cá para lá. Ele, indignado, coçava a cabeça retorcida por pura coceira de frustração.

— Fracasso, isso é o que aconteceu. Uma demonstração abominável de incapacidade!

Homicídio foi pronto em objetar.

— Se a missão tivesse sido bem sucedida, sem dúvida o senhor teria sido o primeiro a elogiá-la.

— Ela não foi, e eu não o faço!

Engano tentou avaliar objetivamente o desastre. — Nossas forças eram poderosas, e estou certo de que lutaram com valentia, mas... as orações dos santos são mais fortes. O Exercito Celestial é mais forte. Eles esperavam por nossos guerreiros e estavam prontos. Subestimamos seriamente o seu número e poderio. Apenas isso.

Terga voltou-se bruscamente e fixou um olhar enraivecido em Engano, detestando-lhe as palavras, mas sabendo que o astuto demônio tinha razão.

Ele caminhou de um lado para o outro, moveu-se irrequieto, esforçou-se por compreender o que ocorria.

— Atacamos Tom Harris e a escola! O Plano do Homem Forte desenro­la-se neste exato momento. Cumpre-se agorinha mesmo! Mas aqui estão vocês, lamentando uma derrota fragorosa e dizendo-me que o Plano pode estar marchando precipitadamente rumo à destruição, e tudo por causa dessa... dessa... mulher?

Engano pensou a respeito da pergunta, e então confirmou com a cabeça.

— Essa seria uma avaliação justa.

Terga rolou os olhos na direção do céu e soltou um berro de medo e frustração.

— Destruidor tirará o nosso couro por causa disto! Os que não caíram nesta derrota certamente cairão debaixo da espada dele!

Ele contou os demônios à sua volta e concluiu com um número menor do que desejava.

— Onde está Ódio?

— Foi-se — responderam todos. — Um dos primeiros a cair. — E Violência?

— Acorrentado no Abismo, imagino — sugeriu Engano.

— Cobiça? Luxúria? Estupro?

Apenas recebeu olhares desanimados. Ele correu os olhos sobre a cidade, e sua cabeça apenas contorceu-se de um lado para outro. Não conseguia admitir o acontecido.

— Uma tarefa tão fácil... um simples assassinatozinho... Todos nós já fizemos isso antes...

— Quando o Homem Forte descobrir... — gemeu Desespero. VAPT! Terga jogou a cabeça de Desespero contra o outro ombro.

— Ele precisa saber! — salientou Adivinhação.

— Então diga-lhe! — respondeu Terga. — Vá você dizer-lhe! Adivinhação silenciou-se, esperando que algum outro demônio falasse.

Terga fechou a mão cheia do couro empapuçado de Desespero c segurou-o como um troféu.

— O nosso mensageiro!

Eles se puseram a dar vivas, as garras batendo seu aplauso.

— Não... não o Homem Forte! — choramingou Desespero. — Já não basta uma sova?

— Vá agora — ordenou Terga — ou a sova do Homem Forte será a terceira que levará hoje!

Desespero adejou loucamente no ar. Uma asa ainda estava contundida e torta.

— Vá! — continuou Terga. — E não demore!

Desespero saiu às pressas, choramingando e berrando ao ir.

— E quando tiver dado conta do recado - gritou Terga - volte para junto da mulher c continue a cumprir aquilo que é a sua obrigação!

Algumas risadinhas fizeram com que Terga rodopiasse. Alguns espíritos pequenos se encolheram, erguendo os olhos para ele —haviam sido apanhados.

— Ah — esbravejou Terga, e eles podiam ver o limbo no céu da sua boca. — Medo, Morte c Loucura, três dos bichinhos de estimação favoritos da mulher! Vocês parecem estar bem desocupados no momento.

Os três demônios se entreolharam estupidamente.

— De volta a seus postos! Sigam a mulher!

Eles adejaram no ar como pombas assustadas, arranhando para ganhar altura.

Terga não estava satisfeito. Depois de esbofetear diversos outros demô­nios, ele berrou:

— Vocês também! Todos vocês! Encontrem-na! Torturem-na! Aterrori­zem-na! Querem que Destruidor pense que são os pelotes insignificantes que são? Corrijam a asneira que fizeram! Destruam a mulher!

O ar encheu-se de asas estrondejantes, esvoaçantes. Terga cobriu a cabeça, protegendo-a de alguma ponta de asa desgovernada. Eles desapa­receram em segundos. Terga olhou para a rua, para a estrada que levaria os carros-patrulha ao sítio dos Potters.

— O nosso sargento não vai encontrar o que esperava —resmungou ele.