“Você é um homem morto, Haralan Popov!”
Depois de havermos sido condenados, fomos mandados de volta
à Prisão Central e colocados em pequenas celas. Por algum tempo, a alimentação
e as condições melhoraram. Na mesma cela onde eu estava, achavam-se os pastores
Cherneff, Angeloff e Matteff. Ladim, meu irmão, também esteve conosco por breve
tempo, mas foi logo transferido para outro lugar. Aquela era a primeira vez em
que estávamos juntos desde o aprisionamento. Começamos a falar sobre o que
acontecera e sobre o que havíamos passado. Estávamos saindo lentamente daquele
estado em que éramos semi-robôs e gravadores humanos e recuperando o bom senso.
Naquele período de recuperação, eu disse aos pastores que estavam comigo: “Não
enfrentamos os homens, e sim o próprio Satanás. Embora ele tenha feito muito bem
a sua obra, quanto a mim, mais do que em qualquer outra época, estou certo de
que, no final, Deus triunfará. Irmãos, lembremo-nos: ‘Maior é o que está em vós
do que o que está no mundo’. Eles ganharam a batalha, mas, com a ajuda de Deus,
venceremos a guerra”.
O pastor Angeloff replicou: “Haralan, isto é verdade. Se
Deus é por nós, quem será contra nós?” Logo percebemos que o pastor Matteff
agia de modo estranho. Ele aprovava a maneira como os comunistas tinham lidado
com a questão e criticava nossas reivindicações de inocência. As conversas com
o Matteff eram cautelosas e chegamos à percepção de que a Polícia Secreta o
colocara entre nós para agir como informante. Por diversas vezes, ele era
chamado para alguma entrevista com o superintendente da prisão. Tragicamente,
ele fora quebrantado não apenas em seu físico, conforme aconteceu conosco, mas
o seu próprio espírito ruíra, tornando-o um instrumento dócil nas mãos deles. O
aprisionamento ou quebranta um homem em seu íntimo ou fortalece a sua
determinação. Era lamentável ver o pastor Matteff quebrantado. Meu coração se
entristecia por ele e orava fervorosamente em seu favor.
O poder satânico
fizera bem a sua obra. Fui levado a um pequeno escritório onde um dos membros
mais cruéis da Polícia Secreta, o Camarada Aneff, esperava por mim. De pé, a
seu lado, estava um homem que eu nunca vira antes. Era moreno e magro, com
olhos extremamente ferozes e fisionomia de um alcoólatra. Quase imediatamente
ele se lançou contra mim e começou a espancar-me em todo o corpo. Caí sob a
chuva de golpes e, estando no assoalho, ele me chutou com todas as suas forças,
gritando horríveis obscenidades. Ele exclamou: “Popov, nós o conhecemos! Você
está tentando começar uma conspiração com os outros pastores. Vamos ensinar-lhe
quem triunfará!” E ordenou que eu fosse transferido para a cela mais úmida e
profunda da prisão. Enquanto eu era levado, ele gritou: “Você apodrecerá ali,
sozinho! Nunca mais verá a luz do dia! Você é um homem morto, Haralan Popov!”
O
pastor Matteff desincumbira bem seu papel de informante. Dois guardas me
levaram ao porão da prisão. Estava cerca de quinze metros abaixo da superfície.
Empurraram-me brutalmente para além das celas, descendo por um corredor pouco
usado. Ali, no fim do corredor, havia uma pesada porta de metal, enferrujada
por conta da umidade. Quando fui empurrado através da porta, vi outro lance de
escadas que descia quase verticalmente. Desci pelos degraus inclinados até à
fria e escura umidade. A única luz que havia era a das lanternas dos guardas.
Senti como se estivesse descendo aos abismos do inferno. Esperei no fim dos
degraus, enquanto os guardas também desciam pela escada íngreme. Havia ali um
frio desumano e uma escuridão mais profunda do que qualquer outra que eu já
vira antes.
Cada guarda me tomou por um dos braços, e desceram-me,
através de uma estreita passagem, até à porta de uma cela. Abrindo-a,
empurraram-me violentamente para dentro e a trancaram. Ouvi os passos deles
subindo pelas escadas para o mundo, lá em cima. Era um lugar de silêncio
tumular, completamente escuro. Eu não podia ver a própria mão diante do rosto.
Senti-me como um cego, achei a caneca de beber de metal e bati nas paredes, mas
não recebi resposta de qualquer dos lados de minha cela. Eu estava
completamente sozinho, nas entranhas escuras da terra. Então, as palavras do
enraivecido comunista me vieram à memória: “Você nunca mais verá a luz do
dia...
Você apodrecerá ali!” Resignei-me a ser abandonado ali, naquela cavidade
profunda e esquecida, muito abaixo do andar térreo, para apodrecer. Não
demoraria muito para que um homem apodrecesse naquele lugar. Toquei nas
paredes, que estavam molhadas com a umidade que pingava do alto. No fundo
daquela cela esquecida, incrivelmente escura, caí de joelhos e orei: “Ó Deus,
sei que não há cela profunda bastante, nem barras de ferro fortes o bastante
que me separem de Ti. Ó Deus, sê comigo. Dá-me forças!” O assoalho da cela era
tão úmido, por causa da umidade subterrânea, que eu não podia deitar-me.
Apalpei ao redor, fui até um canto e me agachei ali, com os braços ao redor de
mim mesmo, para aquecer-me, e dormir. Não sei dizer quando despertei.
Em meio a
trevas tão absolutas, perde-se o senso da passagem do tempo. É como estar
suspenso em outro mundo. Tentei medir a passagem do tempo com a mente, mas isso
começou a pregar-me peças. Sem alguma referência habitual, como as estrelas, a
luz do dia e as sombras — sem qualquer coisa — um homem perde todo o senso de
medida do tempo. Até os cegos têm relógios em braile ou outros meios. Aprisionado
naquele vácuo absoluto de espaço negro, eu não tinha nada. Pela primeira vez,
em mais de um ano, comecei a temer pela minha sanidade. Eu já me achava ali por
um dia ou por vinte dias? Por uma hora ou por uma semana? Só ocasionalmente eu
ouvia uma voz, uma grade de ferro se abria e um prato de metal era introduzido
depressa pelo assoalho, trazendo um pouco de água e três ou quatro cenouras ou
uma batata podre, com vermes.
Já estava resignado a passar os últimos dias de
minha vida ali. Mentalmente, eu aceitara tal sorte. Um dia, quando estava
orando, o desespero de minha situação atingiu-me em cheio. Faminto, espancado,
esquecido, eu sabia que não havia qualquer esperança de sair daquele lugar. Um
oficial de alto escalão dissera que eu “apodreceria” ali; e parece que ele
falava sério. Lágrimas surgiram em meus olhos. Durante semanas devo ter ficado
naquele estado. “Oh! Deus!” — eu clamava. Então, aconteceu algo que jamais me
havia acontecido. Uma luz esplendorosa começou a brilhar, e uma sensação de
calor invadiu a cela, envolvendo meu corpo debilitado e faminto. Senti braços
fortes ao meu redor, como se estivesse abrigado nos braços do próprio Cristo.
Aquela mesma voz que eu ouvi, quando fiquei de pé em frente da parede por duas
semanas, falou novamente. Nunca poderei descrever aquela voz. Com amor e
compaixão, Cristo falou comigo: “Meu filho, nunca o abandonarei. Meus braços
estão ao seu redor, e, neles, Eu te confortarei e te fortalecerei”. Lágrimas
escorriam pelo rosto, enquanto eu estava seguro nos braços de Cristo. Sei que
alguns leitores talvez considerem isto um exagero. Mas, quando eu estava quase
no ponto de loucura e desespero, Cristo me fez saber que não me esquecera ali,
envolto na escuridão de uma cela esquecida, nas entranhas da terra. Foi um belíssimo
e amoroso abraço, um momento que tornou dignos todos os sofrimentos passados.
Como eu O amo! Se ao menos todos homens deste mundo pudessem conhecer a Cristo,
em sua beleza e amor!
Agora eu estava com Cristo, contente por esperar a morte
e partir para estar com Ele. Cristo falou comigo, consolou-me, e a sua presença
encheu a cela quase que de maneira física. Ele segurou-me a mão em sua mão
atravessada pelo cravo. Ele sabia o que é sofrer e compartilhava dos
sofrimentos de seus filhos. Aqueles foram dias preciosos, muito preciosos.
Desfrutei de comunhão com Cristo, ao mesmo tempo que, definhando cada vez mais,
aguardava a morte. Então, algum tempo mais tarde, ouvi o barulho de passos e de
homens que conversavam. A porta da cela foi aberta num movimento rápido, e um
jato de luz brilhante resplandeceu em meu rosto. “Popov, saia daí! Você virá
conosco!” — gritou uma voz. Eu quase não podia movimentar-me, depois de ter
ficado em uma só posição por tanto tempo.
Foram um tanto me carregando e um
tanto me empurrando escadas acima. Quando vi a luz tão opaca das celas do
porão, meus olhos se rebelaram contra o fulgor, pois estavam acostumados à
completa escuridão! Finalmente, eu estava de volta ao bloco onde estivera
antes. Jogado em uma cela, perguntei ao prisioneiro que ali se achava em que
data estávamos. Fiquei lá embaixo por trinta e cinco dias e jamais teria sido
tirado daquele lugar, se o oficial que me ordenara “apodrecer” não tivesse sido
transferido. Evidentemente, Deus ainda tinha um propósito para mim, nesta vida.
Mais tarde, no corredor, encontrei um homem ligeiramente encurvado. Era o
pastor Ivan Angeloff, que passara pelo mesmo tratamento que recebi. O pastor
Angeloff e eu fomos levados ao 8o Departamento da prisão e lançados em uma cela
vazia. Encontramos algumas tábuas, com as quais fizemos camas, a fim de que,
pelo menos, não tivéssemos de dormir sobre o chão de cimento. Naquela primeira
noite, os inevitáveis percevejos nos aguardavam. Atacando em enxames, caíam do
teto como gotas de chuva.
Invadiam tudo, caindo especialmente sobre nós. Sem
dúvida, éramos os primeiros prisioneiros naquela cela, que havia muito tempo
não era ocupada; e os insetos sentiam falta das suas refeições. Jamais
poderíamos dormir sob aquelas circunstâncias, pelo que passamos a noite andando
pela cela, matando percevejos. Conseguimos dormir um pouco ao amanhecer, quando
os percevejos não estavam mais ativos. À noite, dormíamos por turnos. Enquanto
o pastor Angeloff dormia, eu permanecia como sentinela, matando os insetos e impedindo-os
que chegassem até ele. Quando eu dormia, ele fazia o mesmo. Pela terceira
noite, o número de percevejos já fora consideravelmente reduzido, mas as
paredes da cela estavam decoradas com manchas vermelhas, que logo se tornaram
negras. Em meados de junho, fomos transferidos para uma espaçosa cela de três
cantos que continha vinte outros pastores, alguns dos quais vinham de um
julgamento posterior ao nosso.
Nosso julgamento fora apenas o início da guerra
que visava a eliminar o apoio dado às igrejas. Agora, pela primeira vez,
era-nos permitido um breve passeio do lado de fora, todos os dias. Era ótimo
respirar novamente ar fresco, ver o céu azul e a luz do sol. Eu me sentia um
novo homem, embora continuasse cercado pelos muros da prisão. Um dia, notei uma
minúscula folha verde de grama que brotava de uma rachadura no cimento. Como
nosso guarda olhava para outro lado, abaixei-me rapidamente e a apanhei.
Ninguém pode imaginar o que aquela minúscula folha de grama significava para
mim. Era verde e viva. Foi o primeiro contato que eu tive com o exterior,
durante quase um ano. Segurar aquela pequena folha de grama que Deus criara fez
meu espírito elevar-se. Alguns dias depois, o superintendente da prisão visitou
a nossa cela. Ele parecia animado e informou-nos que todos receberíamos um
trabalho para fazer, mas primeiramente era mister que nos tornássemos membros
da Sociedade Cultural da prisão. A Sociedade Cultural era um movimento iniciado
pela Polícia Secreta — a DS. Em todas as prisões, a Polícia Secreta resolvera
doutrinar os prisioneiros. Na realidade, a Sociedade tinha a finalidade de
submeter-nos a “lavagem cerebral” e fornecer à Polícia Secreta informações
sobre todos os prisioneiros. A única coisa que os interessava era a atitude de
cada prisioneiro para com o regime. Os prisioneiros também eram “treinados” no
movimento. No fim do treinamento, eram classificados em uma de duas formas: ou
“irrecuperáveis” ou “reformados”.
Classificado como não-reformado
A Sociedade Cultural desenvolveu-se em uma organização
forte, com relatórios, cânticos de coral, peças teatrais e cursos (por exemplo,
sobre o marxismo, o leninismo, o cultivo de vinhas ou agricultura). Os cursos
mais importantes eram sobre o comunismo. Não importando o curso, os
palestrantes sempre conseguiam introduzir algo sobre as duas figuras principais
do comunismo: Marx e Lenin. O capitalismo era condenado: era um sistema
intolerável que tinha de ser aniquilado.
O comunismo, por outro lado, era o melhor sistema político e
o mais humanitário! É claro que tudo isso era tão idiota e falso, que o próprio
palestrante não acreditava no que dizia. Suas palavras enfadonhas, indiferentes
e vazias faziam-no parecer uma gravação. As mesmas palavras, as mesmas
sentenças, as mesmas expressões, os mesmos relatos repetidos muitas e muitas
vezes. Era enjoativo, mas tínhamos de tolerá-lo. No começo, não percebemos o
propósito da Sociedade Cultural.
Mas, quando percebemos seus objetivos, não
havia meios de escapar. Permita-me falar novamente sobre a diferença entre quebrar
a vontade e “lavar o cérebro”. Minha vontade cedeu após seis meses de
espancamento, até ser levado ao desespero, até que meu corpo chegou aos seus
limites, sucumbindo fisicamente. Mas foi temporário. A lavagem cerebral
consiste em convencer “permanentemente” alguém de que o comunismo é bom. Eles
poderiam quebrar minha vontade, porém jamais poderiam “lavar meu cérebro”.
Durante o tempo em que tentaram “converter-me” e lavar meu cérebro, trabalhei
como impressor de livros e compositor de tipos gráficos. Os outros pastores
trabalhavam em uma fábrica de papelão. Dentro de dois meses, as autoridades da
prisão perceberam que eu não poderia ser submetido à “lavagem cerebral” e
desistiram de mim.
Eu tinha sido “reprovado no curso” e destinado a uma prisão
de trabalhos forçados. Em 1º de dezembro, chegou a minha vez. Eu estava
trabalhando na sala de impressão, quando recebi ordens de arrumar as minhas
coisas e levá-las para o auditório. Eu tinha um colchão, um cobertor, dois
acolchoados, um travesseiro, uma maleta, que continha minhas roupas íntimas, e
uma cesta de alimentos. Eles nos deram muitas coisas durante a tentativa de
lavar nosso cérebro. Essa foi a única coisa boa durante o período de “lavagem
cerebral”! No auditório, encontrei trinta outros prisioneiros que aguardavam
ordens posteriores. Evidentemente, nós havíamos sido considerados
irrecuperáveis. Agora, o tratamento severo começaria novamente, como acontecera
antes do julgamento. À noitinha, chegou um caminhão fechado, e recebemos ordem
para embarcarmos com nossa bagagem.
Não havia janela na parte de trás, pelo que não tínhamos a
menor idéia sobre aonde estávamos indo. Quando o caminhão parou, achamo-nos na
estação ferroviária de Sofia. Fomos trancados em uma pequena sala que ficou
lotada conosco; mas, nos sentamos no assoalho e procuramos dormir. Na manhã
seguinte, fomos embarcados em um trem para nosso novo destino, Sliven. Há duas
prisões em Sliven: a “prisão antiga”, que fica na própria cidade, e a “prisão
nova”, para onde fomos levados, a quase um quilômetro da estação. A prisão era
um edifício espaçoso, de cinco pavimentos, que anteriormente era uma fábrica de
macarrão. Estava circundada por um muro de cinco metros de altura, com uma
torre de vigia em cada canto. Era noite quando chegamos. Fomos levados para o
8o Departamento, que, como ocorre em todas as prisões, é o pior departamento.
Visto que o edifício não era, originalmente, uma prisão, as celas eram pouco
maiores do que as celas individuais da Prisão Central de Sofia.
A nossa cela
media cinco metros de comprimento por menos de dois metros de largura, mas
havia quinze de nós ali. E tínhamos de achar um lugar para o balde, sempre
presente. Por essa razão, havia menos espaço ali do que em qualquer outro lugar
onde já estivéramos. Estávamos apertados como sardinhas em uma lata. A primeira
coisa que fizemos foi medir as paredes; então, marcamos um espaço de trinta
centímetros para cada homem dormir. Entre os prisioneiros, havia um famoso
poeta búlgaro, Trifon Konieff. Era um homem maravilhoso, jovial. Todos
gostávamos muito dele. Trifon era tão grande que lhe era impossível dormir
mesmo naquela medida dobrada. Por isso, cada um de nós cedeu alguns centímetros
de espaço, para que ele tivesse um pouco mais de espaço. Medimos com cuidado.
Isso nos deu exatamente vinte e oito centímetros de largura.
E, visto que não
havia espaço no chão, para nossa bagagem, nossos sacos e maletas foram
penduradas em pregos, nas paredes. Todas as outras celas eram iguais a essa. À
noite, todos dormíamos do mesmo lado. Se alguém quisesse virar-se, todos
tínhamos de nos virar ao mesmo tempo, em uníssono. Durante o dia, ficávamos
assentados em nosso minúsculo espaço. Aquela ociosidade forçada dava-me
excelente oportunidade de falar sobre Deus para aqueles homens. E quase todos ansiavam
por ouvir mais. A única janela que havia naquela cela estava no teto. Embora
estivesse sempre aberta, o ar era quente e abafado. Era verão, e a cela estava
repleta de suor, com os homens que transpiravam sob um calor de 38o . Vestíamos
somente calções, mas o suor continuava a jorrar de nós.
O único alívio era a
meia hora de passeio no pátio da prisão, uma vez por dia. Era horrível ter de
voltar à cela úmida e de ar abafado, após nosso pequeno intervalo de alívio no
lado de fora, mas ninguém oferecia resistência. Nunca pude saber se a prisão de
Sliven era uma prisão de “disciplina”, mas o tratamento era mais severo do que
em outras prisões. E agora que eu fora classificado como “não-reformado”, os
outros prisioneiros e eu voltamos para a “Dieta de Morte”. Recebíamos somente
duas fatias de pão, além da sopa, que tinha um sabor pior do que o da outra
sopa que já tinha recebido. Era como beber óleo sujo. A sopa de peixe vinha
cheia de olhos de peixes flutuando. Mas eu comia tudo, até os olhos.
Ruídos noturnos
Não existe nada mais assustador do que a insônia em uma
prisão. Na quietude da noite extremamente quente, podíamos ouvir os ruídos da
prisão. Havia a respiração desigual dos prisioneiros deitados um contra o
outro. Era fácil dizer quais homens estavam tendo pesadelos, devido à sua
respiração ofegante. Quem poderia saber que sonhos desanimadores eles tinham?
Ouvíamos o rangido compassado, no assoalho do corredor, causado pelos sapatos
de feltro dos guardas, que caminhavam para lá e para cá. Vez por outra,
abria-se um cadeado, ouvíamos passadas e sussurros. Alguém estava sendo levado
para ser interrogado ou espancado. Enquanto eu permanecia deitado, apertado em
meus vinte e oito centímetros de espaço, no assoalho coberto de corpos que
dormiam, minha mente se voltava para Rute, Paulo e a pequena Rode. Onde
estariam eles? O que lhes teria acontecido?
O rosto magro e exausto de Rute,
que eu vira, quando nos encontramos antes do julgamento, me perseguia. Estariam
eles famintos agora, quando permaneço deitado aqui? Teriam um lugar para
abrigarem-se? O pior de tudo é que eu nada podia fazer para ajudá-los. Eu fora
separado deles havia quase dois anos, e isso parecia uma eternidade. Mais treze
anos de separação nos aguardavam à frente! Na tranqüilidade da noite de
insônia, eu orava: “Oh! Deus! O que acontecerá com eles? Guarda-os, protege-os,
ajuda-os”. Aquelas noites de insônia foram as piores. Por muitas vezes, eu
fechava os olhos para não ver; tapava os ouvidos para não ouvir, mas não podia
desligar os meus pensamentos. Alguém, em uma cela próxima, repleta como a
nossa, soltava um gemido. Quais seriam os seus pesadelos, temores e sonhos
desfeitos?
O tremendo calor, o mau cheiro do balde, o odor dos corpos sem banho
e o silêncio da noite, entremeado com gemidos e gritos de homens que dormiam,
faziam o ar parecer carregado de desespero. Ouvia-se os ruídos de homens que
tinham perdido tudo e cujas esperanças eram que a noite nunca terminasse, pois
o sono oferecia o único meio de escape da realidade. Em Sliven, bem como nos
anos por vir, a noite sempre era o pior momento. A noite era a ocasião favorita
para espancamentos e tortura. As piores horas eram das onze até às três da
madrugada. Um pavimento inteiro, de uma das alas, foi levado ao interrogatório
noturno, que, sem dúvida, contava com o mais moderno “método”. Os gritos e
imprecações dos torturadores se sobressaíam aos gritos dos homens torturados.
Com freqüência, eu tentava pôr algodão nos ouvidos, para abafar a horrível
cacofonia de gritos distantes. Era durante a noite que os homens tinham tempo
para pensar e lembrar o que poderia ter acontecido. Era à noite que muitos
homens enlouqueciam. Eu podia ouvir seus delírios, quando sua mente ruía,
recusando-se a continuar funcionando. Então, chegavam os guardas e os levavam
embora. Esses eram os ruídos de uma prisão, à noite. Eu procurava ajudar os
homens, sobretudo naquelas noites tão difíceis. E, ajudando-os, eu ajudava a
mim mesmo. Não demorou muito para que a Polícia Secreta viesse classificar-nos.
A primeira classe consistia de prisioneiros políticos, pastores, sacerdotes,
etc.
A segunda classe consistia de criminosos, assassinos, estupradores. Além
disso, cada uma dessas classes foi dividida em três categorias. Os piores
“criminosos” eram os da primeira classe e da primeira categoria. Fui
classificado nesta categoria. Éramos selecionados dentre todos para receber o
pior tratamento. A cada ano éramos classificados novamente. Para que alguém
fosse transferido a uma classe melhor, tinha de mostrar-se mais inclinado ao novo
regime. Durante todo o meu tempo de encarceramento, fui mantido na primeira
classe e na primeira categoria. Evidentemente, desistiram de tentar
reformar-me, mas ainda parecia estranho o fato de ser classificado oficialmente
como alguém mais perigoso do que um assassino de muitas vidas. No entanto, eu
percebia a razão dos comunistas. Minha fé e meu testemunho eram perigosos para
eles, que não são homens ignorantes. Reconhecem que a fé em Deus é o pior
inimigo deles. Durante treze anos, tive de ficar assentado ouvindo palestras
sobre o marxismo e o comunismo. Nunca “me formei”, mas permaneci na mesma
classe.
Deixei a prisão como um iletrado nestes assuntos. Parece que eu
simplesmente não aprendia como se constrói uma sociedade comunista. Houve um
grande número de homens que cedeu e passou a concordar com tudo. Eles não
somente foram transferidos para uma classe melhor, mas também foram soltos
muito antes dos outros. Tinham sido “reformados” e foram considerados como
“treinados”. Algum tempo depois disso, um grande número de prisioneiros
políticos e religiosos de Sliven, incluindo eu mesmo, recebeu ordem de arrumar
seus pertences. Ao todo, éramos cerca de duzentas e oitenta pessoas. Fomos
levados à estação ferroviária e colocados em três vagões de carga, enquanto
nossa bagagem foi colocada em um caminhão aberto.
Fomos levados ao
entroncamento ferroviário mais próximo e ficamos curiosos para saber em que
direção seguiríamos. No caminhão aberto, que levava nossa bagagem, havia um
guardafreio que reconheci ser um antigo conhecido meu. Secretamente, fiz-lhe um
sinal indagando se ele sabia para onde estávamos sendo levados. Ele respondeu
escrevendo a letra “k” no vidro da janela coberta de geada. Então, compreendi
que estávamos a caminho de Kolarovgrad.
A prisão de Kolarovgrad era recém-construída e, em algumas
partes, ainda não estava bem terminada. Ela tinha não somente celas
individuais, mas também celas para dois ocupantes. As janelas eram maiores que
o tamanho habitual, e havia tábuas no assoalho. Foi-nos dito que aquela prisão
estava reservada para prisioneiros políticos que tivessem problemas de
disciplina e que o tratamento ali seria particularmente severo. Portanto,
esperávamos receber um tratamento brutal.
Todavia, os oficiais se mostraram
mais humanos do que os de Sliven. Devem ter ignorado as ordens recebidas e
dirigiam a prisão conforme eles mesmos queriam. Estávamos localizados na ala
norte. Nossas celas eram limpas e bem ventiladas, e tudo era completamente
novo. Os únicos percevejos existentes eram os que tínhamos levado em nossa
bagagem. (E eram abundantes!) Nossa cela fora construída para conter doze
pessoas, mas ali havia apenas oito; portanto, pela primeira vez, desde que
fôramos aprisionados, tínhamos um lugar confortável. Nossa ração de alimentos ainda
consistia de meia fatia de pão diário, mas a sopa era simplesmente deliciosa.
Embora nunca pudéssemos dizer que estávamos satisfeitos, pelo menos não
padecíamos as dores da fome que experimentávamos em Sliven.
Alguns de meus
colegas de prisão tinham sido oficiais de altas patentes. Um deles freqüentara
uma escola americana, em Sofia, e sabia falar inglês muito bem. Outros podiam
falar um pouco de inglês; por isso, todos os prisioneiros de nossa cela
começaram a aprender inglês. Eu lhes ministrava como seu “pastor da prisão” e
lhes ensinei um belo hino, que entoávamos em inglês, assim: Que comunhão, que
gozo divino, descansando nos braços eternos, Que bênção, que paz é a minha,
descansando nos braços eternos. Descansando, descansando, salvo e seguro de todo
alarme, Descansando, descansando, descansando nos braços eternos. Depois de um
ano de horror, em Sofia e Sliven, a permanência em Kolarovgrad era um belo
testemunho sobre a maravilhosa graça do Senhor. Era como uma vida nova, embora
eu soubesse que teria pouca duração.
No mês de outubro, tivemos permissão de ver nossos queridos
pela primeira e única vez naquele ano. Rute veio visitar-me com nosso filhinho
Paulo, que estava na idade em que as crianças perdem seus dentes da frente.
Logo percebi que Rute perdera muito peso. Ela me contou que naquele tempo
trabalhava como faxineira no jornal Trud (“Trabalho”). Para minha surpresa,
foi-me permitido segurar o pequeno Paulo nos braços, através da dupla grade de
ferro que havia entre nós. A visita deles foi um tônico para mim.
Um presente de Deus
Pouco depois daquela visita, recebi pelo correio todas as
minhas roupas de baixo e todas as minhas camisas. Fiquei muito perturbado.
Quando isso acontecia com um homem, geralmente significava que a esposa dele
havia morrido. Quando isso acontecia a um prisioneiro, ele ficava horrorizado.
Não me era permitido escrever e receber mais de uma carta a cada três meses;
portanto, não pude descobrir a situação de minha família. Durante três meses,
eu não sabia se Rute estava viva ou morta. Sentia-me em terrível tormento. Se
Rute estivesse morta, o que ocorreria a Paulo e Rode? Meus colegas de prisão
tentavam consolar-me e convencer-me de que haveria outra razão, mas o meu
desespero aumentava cada vez mais. A idéia de que não havia ninguém para cuidar
de meus filhos, que ainda eram pequenos, quase me fez perder a cabeça.
Orei,
pedindo graça, e deixei o assunto nas mãos do Senhor. Na manhã seguinte, ao
levar o balde ao banheiro, um colega de prisão, chamado Dragan, veio até mim. Ele
sussurrou: “Haralan, sua esposa e seus filhos foram para a Suécia”. Dragan
trabalhava no escritório da prisão, estando em posição de saber das coisas que
aconteciam fora da prisão; mas passara por grande risco ao contar-me aquela
notícia dos acontecimentos exteriores. Ele não me diria mais do que aquela
escassa informação. Demoraria algum tempo, até que eu descobrisse toda a
história. Parece que o tesoureiro do escritório, que não era comunista,
conhecia o pastor que ministrava em Kolarovgrad. O pastor contou ao tesoureiro
que Rute e as crianças tinham conseguido chegar com segurança à Suécia; e lhe
pedira que me desse a notícia. O tesoureiro não tinha permissão de entrar em
contato com qualquer dos prisioneiros, por isso, ele transmitiu a mensagem a
Dragan, cujo trabalho permitia contatos ocasionais conosco. Alguns dias depois
desta notícia, recebi uma carta enviada por minha filha de doze anos, que
dizia: “Com a ajuda de Deus chegamos à Suécia. Agora estamos em Estocolmo”.
Nunca, em minha vida, havia experimentado tão grande alegria! Minha esposa e
meus filhos estavam livres, salvos de outras perseguições e da pobreza. O longo
braço da Polícia Secreta não poderia alcançá-los na Suécia. O pesado fardo que
deprime e mata a muitos prisioneiros — as preocupações e inquietações com seus
familiares – tinha caído de meus ombros. Quanto agradeci a Deus! Todo o bloco
de celas se regozijou comigo. Até os prisioneiros que não eram crentes foram
contaminados por minha alegria e deram graças a Deus comigo. Compartilharam da
minha felicidade. Eu sabia que quase certamente nunca mais veria os meus
queridos novamente, mas, pelo menos, eles estavam em segurança. Não posso dizer
o que isto significou para mim. Os anos seguintes, na prisão, foram muito mais
fáceis de suportar. Eu não tinha mais temor dos comunistas. Eles tinham a mim,
mas não podiam tocar em minha família! Rute, Paulo e Rode estavam livres.
Tendo
sido retirado de meus ombros aquele imenso fardo esmagador, resolvi expandir
meu ministério pastoral na prisão. O que poderiam eles fazer contra mim? Minha
esposa e meus filhos estavam livres. Poderiam torturar-me, mas não podiam
atingir-me no único ponto realmente vulnerável — a esposa e os filhos! Intenso
sofrimento e tortura estavam à minha frente, devido ao meu testemunho por
Cristo, na prisão. Contudo, eu não era mais um prisioneiro. Certamente, havia
muros e barras de ferro em redor de mim, mas ninguém podia tirar de mim a
liberdade interior. Posteriormente, soube que foi a intervenção do governo da
Suécia em favor de minha esposa que lhes obteve a liberdade. Ela era uma cidadã
sueca, casada com um cidadão búlgaro. Somente isso salvou Rute e nossas
crianças. Aquela notícia foi um marco decisivo para mim. Foi o maior presente
que Deus poderia dar-me. O último obstáculo — o temor de causar sofrimento a
Rute e às crianças — fora afastado. Agora eu ensinaria, pregaria, testemunharia
e trabalharia para Cristo em todas as prisões em que me colocassem. Eles tinham
perdido o seu domínio sobre mim. Agora, tinham um Haralan Popov diferente!
Pouco depois de haver recebido aquela notícia maravilhosa, fui enviado a
Persin, com quatrocentos outros prisioneiros. Persin era uma ilha-prisão no rio
Danúbio; era uma prisão com trabalhos forçados. Fomos postos em vagões tão
apertados que tivemos de fazer a viagem inteira em pé. À noite, começamos nossa
viagem para Belene, a estação ferroviária mais próxima da ilha. O oficial
encarregado do transporte estava tão receoso da possibilidade de escaparmos,
que insistiu em fechar até as janelas de ventilação dos vagões!
Percorremos
cerca de oitenta quilômetros naquela noite; depois, chegamos a um desvio no
qual permanecemos até ao fim da tarde. O dia estava muito quente — mais de 38
graus centígrados dentro do vagão repleto de pessoas. Homens entraram em pânico
e batiam nos lados do vagão, implorando por ar e água; mas ninguém vinha
ajudar-nos. Os homens começaram a perder os sentidos devido ao calor e à sede.
Mas estávamos tão apinhados que, ao desmaiar um homem, ele não caía no chão.
Não havia espaço. Ele ficava de pé, embora inconsciente. O calor deve ter
subido a mais de quarenta graus centígrados naquela tarde — e todos dentro
daquele vagão fechado e sem ar. Finalmente, como resultado dos nossos gritos e
batidas, o oficial permitiu que abrissem uma fresta das portas, para que nossas
garrafas vazias fossem passadas para fora, a fim de serem enchidas com água.
Percorremos cerca de mais cinqüenta quilômetros naquela noite. No dia seguinte,
repetiu-se a história.
Ficamos parados em um desvio das sete da manhã às cinco
da tarde, sob um tremendo calor, com sede e exaustos — sempre de pé. No final
do segundo dia, ficamos estacionados em um desvio a apenas dez quilômetros de
Belene. Devido ao calor, outros prisioneiros perderam a consciência. Acontecendo
isso, o oficial finalmente permitiu que as portas fossem abertas e que os
homens inconscientes fossem levados e deitados na grama. Depois de haverem
recebido respiração artificial, recuperaram a consciência. Esse incidente levou
o oficial a permitir que as portas ficassem abertas alguns centímetros, e,
quando o sol se pôs, nossa viagem continuou. Era noite, quando chegamos à
estação de Belene; e por toda parte encontramos soldados armados. Apanhamos
nossa bagagem e marchamos atravessando os campos até ao rio, escoltados pelos
soldados. Curvados sob o peso de nossa bagagem, quase não agüentamos a
caminhada; mas, os que caíam por terra, logo se levantavam novamente, para não
serem pisados pelos que vinham marchando atrás. Molhados de transpiração,
finalmente chegamos ao edifício de administração da prisão, que era cercado por
arame farpado. Ali entramos.