sábado, 24 de abril de 2021

Louvor que Liberta - Capítulo 01


CAPÍTULO 01

.       PRESO! Senti o frio do metal das algemas no braço esquerdo e ouvi uma voz áspera: "Somos do FBI. Você está preso." Eu estava sentado no banco de trás do carro, descansando, com o braço para fora da janela. O carro era roubado. Eu tinha desertado do exército. O fato de eu ser desertor não me inquietava muito, mas o de ser preso feriu meu orgulho. Sempre me considerara capaz de fazer tudo que quisesse, e escapar impune. Agora teria de sofrer a humilhação de ir para uma cela de prisão, de entrar na fila para receber a horrível ração de alimento da cadeia, de ter por cama o catre duro, e ficar ali sem nada para fazer, a não ser olhar as paredes e indagar de mim mesmo como pudera ser tão idiota para me meter numa enrascada daquelas. Eu tinha levado uma vida bem independente desde os doze anos. Meu pai morrera nessa época, deixando minha mãe com três filhos para criar. Meus irmãos tinham sete e um ano. Mamãe começou a lavar roupa para fora, já que a pequena pensão que recebia não dava para nos manter. Ela sempre falava que papai estava no céu e que Deus tomaria conta de nós, mas apesar disso, com. toda a energia dos doze anos, eu me rebelei contra esse Deus que nos tratava daquela forma. Após as aulas, eu entregava jornais até bem tarde da noite; estava determinado a ter sucesso na vida. Queria tirar o máximo proveito de tudo e, de algum modo, percebi que acabaria conseguindo. Sentia-me no direito de agarrar tudo que pudesse. Mamãe casou-se novamente e eu fui morar com uns amigos de meu pai. Terminei o primeiro ciclo da escola e comecei o segundo, mas não parei de trabalhar. Trabalhava todos os dias após as aulas e, durante as férias de verão, o dia todo. Trabalhei como acondicionador de alimentos, despachante, linotipista, e até como lenhador. Comecei o curso superior, mas o dinheiro não deu, e tive que parar para trabalhar. Dessa vez consegui serviço numa usina de aço. Meu trabalho era aparar e esmerilhar aço. Não era muito agradável, mas ajudou-me a conservar a forma física. Estar em boas condições físicas significava estar capacitado para a corrida deste mundo a qual eu não queria perder por nada. Não estava em meus planos entrar para o exército. O que eu realmente desejava era ir para o mar, era engajar-me na marinha mercante, o que, na minha opinião, era o melhor modo de entrar em ação na Segunda Grande Guerra.

Para ingressar na marinha teria que conseguir re-classificação junto às Forças Armadas passando à classe 1-A. Eu havia conseguido um adiamento do serviço militar, para cursar a faculdade. Antes, porém, que pudesse chegar à marinha, vi-me recrutado pelo exército. Disseram-me que poderia apresentar-me como voluntário para a Marinha de Guerra, e aceitei. Um estranho incidente, porém, acabou por me afastar dela: fui reprovado no exame de vista porque li a linha errada. Assim, apesar de todos os meus esforços em contrário, acabei sendo enviado para o campo de treinamento do exército, em Fort McClellan, no Alabama. Senti-me entediado. O treinamento era enfadonho, e, querendo mais aventura, apresentei-me como voluntário para o curso de pára-quedismo, em Fort Benning, na Geórgia. Tendo um gênio rebelde, enfrentei muitos problemas de adaptação, no relacionamento com os oficiais superiores. Assim sendo, logo fui notado por eles apesar de esforçar-me para passar despercebido. Certa vez, durante um período de exercícios físicos sobre uma camada de serragem, cuspi no chão sem pensar. O sargento viu-me e correu para mim com um olhar carrancudo. "Pegue aquilo com a boca e carregue daqui", gritou. "Deve estar brincando!" pensei. Mas pela expressão de seu rosto, vermelho e furioso, percebi que não estava. Assim, humilhado e revoltado, mas procurando esconder meu ressentimento, peguei a coisa e mais um tanto de serragem — e "carreguei dali"! Porém, quando chegou a ocasião de saltar de um avião em vôo, senti-me compensado por tudo. Aquilo é que era vida. Era o tipo de aventura que eu estivera procurando. Sobrepondo-se ao ronco do motor do avião ouvimos a ordem: "Preparar!... Levantar!... Alinhar-se! SALTAR!" A força do ar, a princípio, dá a impressão de que se é uma folha solta no meio de um redemoinho. Depois, quando a corda do paraquedas se estica completamente, sente-se um puxão de romper os ossos. A impressão é de ter sido atingido por um caminhão de dez toneladas. Assim que retoma a consciência das coisas, a pessoa se acha num maravilhoso mundo silencioso; acima, como um toldo, está o gigantesco arco de seda do paraquedas. Foi assim que me tornei paraquedista, e conquistei a honra de usar aquelas brilhantes botas de salto. Entretanto, eu queria ainda mais aventuras e apresentei-me como voluntário para o treinamento de técnico em demolição. Queria entrar em ação na guerra, e quanto mais perto da linha de fogo, melhor, pensava. Após terminar esse treinamento, regressei a Fort Benning para esperar ordens de seguir para a frente de combate. Nesse meio tempo, montei guarda, servi na cozinha, e esperei mais um pouco. Paciência não era o meu forte. Pelo modo como as coisas iam, calculei que ia perder o bom da coisa, e ficar lavando panelas até o fim da guerra. Eu não queria ficar ali à toa, só esperando; por isso, juntamente com um amigo, resolvi abandonar tudo. Um dia, simplesmente saímos do alojamento, roubamos um carro e partimos. Para o caso de estarmos sendo procurados, abandonamos o carro e roubamos outro, e assim chegamos a Pittsburg, na Pensilvânia. Ali, nosso dinheiro acabou e resolvemos praticar um assalto. Saí, levando uma arma e meu amigo ficou no carro. Tínhamos decidido assaltar uma loja que parecia fácil. Eu planejara rebentar os cabos telefônicos para que não pudessem chamar a polícia, mas embora empregasse toda a minha força, os cabos não cediam. Senti-me frustrado. O revólver estava no bolso, a caixa registradora estava ali cheia de dinheiro, mas a linha que os ligaria à polícia ainda estava intata. Eu não queria arranjar mais problemas. Voltei ao carro e contei tudo ao colega. Estávamos assentados no banco de trás do carro, comendo maçã verde, quando o longo braço da lei nos alcançou. Não sabíamos então, mas um alarme a nosso respeito havia sido dado para seis estados e o FBI estava em nosso encalço. Nossa busca de aventuras tinha terminado em fracasso. Fui enviado à cadeia de Fort Benning, onde eu mesmo estivera de guarda pouco tempo antes. Fui sentenciado a seis meses de detenção, mas imediatamente comecei uma campanha para ser enviado para o "front". Meus colegas de prisão diziam: "Se você queria ir para a guerra, não devia ter fugido." Insisti em dizer que havia fugido porque ficara entediado de tanto esperar a ordem de ir para o exterior. Finalmente meus pedidos foram atendidos; colocaram-me numa tropa que devia partir e, sob guarda, fui para Camp Kilmer, em Nova Jersey, onde me conservaram na cadeia, enquanto aguardava o navio que me levaria à Europa. Afinal, já estava a caminho... ou quase. Um dia antes da partida do navio, fui chamado ao escritório do comandante, onde me informaram que eu não iria com o resto do grupo. "O FBI quer que você seja enviado a Pittsburg." Uma vez mais, senti o frio do aço das algemas, e, sob guarda armada, voltei a Pittsburg, onde um juiz de aspecto austero leu as acusações contra mim e depois perguntou: "Culpado ou inocente? O que você diz? "

Minha mãe se encontrava ali, e ao ver seus olhos cheios de lágrimas, senti uma ponta de remorso. Não que eu estivesse arrependido do que fizera, mas eu queria sair dali, e começar a "viver" o mais depressa possível. "Culpado, senhor." Eu tinha sido preso em flagrante e prometi a mim mesmo que aquela seria a última vez. Eu iria aprender algumas artimanhas e agiria com cautela, dali por diante. O promotor expôs cuidadosamente meus atos passados, e o juiz perguntou aos oficiais o que eles recomendavam. "Recomendamos clemência, meritíssimo." "O que você quer, soldado?" O juiz indagou. "Quero voltar ao exército e ir para a guerra", foi tudo que pude dizer. "Condeno-o a cinco anos de reclusão na Penitenciária Federal." Aquelas palavras foram como uma paulada na cabeça. Eu tinha dezenove anos, e estaria com vinte e quatro, quando saísse da cadeia. Vi minha vida como que se escoando, perdida. "Sua sentença fica temporariamente suspensa, e você volta para o exército." Salvo, graças! Em menos de uma hora estava solto, mas antes o promotor me passou um sermão e explicou que se eu deixasse o exército antes de cinco anos, teria que me apresentar em seu escritório. Livre, enfim! Voltei a Fort Dix, onde recebi outra "paulada". Ah, examinaram meus documentos e me mandaram de volta à cela do quartel para cumprir minha pena de seis meses por deserção. A esta altura eu queria ir para a guerra ou seria capaz de explodir. Só pensava numa coisa. Novamente comecei a batalhar para ser enviado para o exterior. Amolei tanto o comando, que finalmente, depois de cumprir quatro meses de minha pena, fui solto. Pouco depois, estava a caminho da Europa, atravessando o Atlântico a bordo do Mauretania. No porão do navio, seis camadas de beliches se sobrepunham, e eu tive a sorte de pegar um beliche superior. Desse modo, não recebia o chuveiro de vômitos que os de baixo freqüentemente recebiam. Não que eu me importasse muito com aquilo. Estava encantado por estar a caminho e não perdi tempo. Estava disposto a tirar o máximo da guerra, tanto em diversão quanto em lucro material. Tinha adquirido, durante o período de prisão, uma certa habilidade com baralho, e agora aquilo vinha bem a calhar. Durante a travessia, todas as horas do dia e da noite eram gastos nessa ocupação altamente rendosa. Consegui acumular uma boa quantia, e durante aqueles dias, a única coisa que me fez lembrar das circunstâncias em que nos achávamos, foi um breve encontro com um submarino inimigo que tentou nos torpedear, mas errou. Ao chegar à Inglaterra, embarcamos em trens que nos conduziram até a costa do mar da Mancha. Ali tomamos botes e penetramos as águas revoltas do canal. Chovia muito, e ao nos aproximarmos do território francês tivemos que pular na água, que nos dava pela cintura, e vadear até à praia. Uma vez em terra, fizemos uma fila — todos ensopados — para receber nossas rações de alimento. Dali corremos para outro trem que nos levou em direção ao leste. Atravessamos a França sem paradas; depois passamos para caminhões que nos levaram à Bélgica. Chegamos ali bem a tempo de participar da batalha de Bulge, com a 82ª divisão de paraquedistas. No primeiro dia de combate o oficial comandante viu meus documentos, notou minha classificação de especialista em demolição e mandou-me fazer pequenas bombas usando plásticos explosivos que estavam amontoados numa pilha de mais ou menos um metro de altura. Sentei-me numa tora e comecei a trabalhar. Outro soldado juntou-se a mim. Disse-me que já estava naquela unidade há muitos meses. Enquanto ele relatava suas experiências na 82ª divisão, olhei para o campo à nossa frente e vi balaços inimigos explodindo, e chegando cada vez mais perto do lugar onde nos achávamos. Com o canto do olho eu observava o outro soldado, indagando a mim mesmo quando ele daria sinal para procurarmos cobertura. Ele já tinha muita experiência e eu era apenas um substituto, ainda bem novo ali, e não queria demonstrar covardia... As explosões chegavam mais e mais perto, e meu medo aumentou. Se um daqueles disparos acertasse perto de nós, o lugar onde estava a pilha de bombas certamente se transformaria numa gigantesca cratera. O soldado permaneceu sentado não dando a mínima importância à artilharia. Eu queria desesperadamente procurar refúgio, mas não desejava mostrar sinais de medo. Por fim, as explosões estavam para além de nós. Não nos haviam acertado. Dias depois descobri porque aquele soldado tinha ficado tão calmo. Estávamos caminhando por uma floresta que sabíamos estar muito minada. Eu estava examinando o caminho cuidadosamente procurando indícios de minas, mas o outro não prestava a menor atenção aonde pisava. Finalmente eu disse: "Por que você não está prestando atenção ao caminho?" "Eu quero pisar numa mina", disse. "Estou farto dessa confusão toda. Quero morrer." Daquele momento em diante procurei conservar-me o mais distante dele possível. Já no fim da guerra fui com o 508º regimento para Francfort, na Alemanha, para servir na guarda do Gal. Dwight Eisenhower. Gostaria de ter visto mais ação, mas participar dos espólios da guerra não foi nada mal. Morávamos em apartamentos luxuosos, que haviam pertencido aos altos oficiais alemães. Ainda estava à cata de aventuras, e certa vez consegui quase mais do que queria. Tínhamos embarcado em aviões para um salto de paraquedas. Era um treino de rotina, mas tínhamos sido avisados que a atriz de cinema, Marlene Dietrich, estaria em terra apreciando o salto. Todos nós esperávamos cair perto de onde ela se encontraria. Logo que saltei do avião, comecei a olhar para baixo para ver se descobria "a moça das pernas bonitas". De repente percebi que havia algo errado. Ouvi gritos horríveis ao meu redor, e acima de minha cabeça, o ronco de um avião. Centenas de paraquedistas estavam no ar. O motor de um dos aviões havia parado e esse mergulhava para o solo, passando bem no meio de nós. Alguns paraquedas foram cortados e os homens se precipitavam para o chão. Caíam perto de onde se encontrava Marlene Dietrich. Meu paraquedas, porém, ficou intato e quando cheguei em terra vi muitos mortos ao redor, e o avião que explodia entre chamas. Em Francfort tínhamos muitas horas de folga. No meu modo de ver, divertimento significava muita bebida. Às vezes eu bebia até ficar fora de mim e depois os outros soldados me contavam as coisas que tinha feito. Certa feita, num bonde, havia me deitado no piso e desafiara a todos a que ousassem passar sobre mim. Os soldados riram a valer e acharam o incidente divertidíssimo. Nunca me ocorreu que aquele comportamento prejudicava muito a boa imagem do exército americano de ocupação. Descobri que o mercado negro era uma fonte de renda ainda melhor e mais segura que o jogo. Comprei maços de cigarro dos outros soldados, a 10 dólares. Enchi deles uma maleta e fui para a zona do mercado negro onde os vendi a cem dólares cada. Aquele lugar freqüentemente era palco de roubos, brigas e assassinatos mas eu não me importava. Conservava sempre uma das mãos dentro do bolso, num revólver calibre 45 carregado e engatilhado. Em pouco tempo tinha grande quantidade de notas de 10 dólares no papel moeda especial usado pelos soldados. O problema era arranjar um modo de transferir aquele dinheiro para os Estados Unidos. Um controle rigoroso permitia a cada soldado enviar apenas a quantia referente ao seu salário. Durante várias noites, fiquei acordado tentando descobrir um modo de ludibriar a fiscalização. Na agência do correio, vi os homens entregarem seu salário mensal para ser transformado em ordem de pagamento. Cada soldado tinha que apresentar um cartão, no qual estava registrada a quantia exata por ele recebida. Depois, vi um homem que estava com um grande número deles. Era do escritório de uma companhia, e estava adquirindo as ordens para toda a companhia. De repente compreendi que tudo o que eu precisava era uma boa quantidade daqueles cartões. Procurei o encarregado da unidade de finanças, falei-lhe e ele se dispôs a fornecer-me os cartões ao preço de cinco dólares cada. Fechei o negócio. Tornei-me responsável por uma companhia — minha própria companhia. Com o dinheiro e os cartões, fui ao correio e consegui as ordens de pagamento sem encontrar o mínimo obstáculo. Feito isto, descobri novos meios de ganhar papel moeda. Vim a saber que soldados vindos de Berlim davam 1000 dólares em papel moeda por cem dólares em ordem de pagamento. Alegremente, eu lhes fazia esse favor e depois só tinha que transformar os novecentos em ordem de pagamento. Estava a caminho de me tornar muito rico. O exército decidiu mandar alguns soldados para universidades da Europa. Fiz o exame e fui classificado. Enviaram-me para a Universidade de Bristol, na Inglaterra. Os cursos que fiz eram muito menos importantes do que o fato de que estávamos rodeados de moças que falavam inglês. Logo fiquei conhecendo uma loura bonita chamada Sadie. Ela era muito alegre e extrovertida e eu me apaixonei por ela. Dentro de dois meses estávamos casados e passamos trinta dias juntos, felizes, antes que eu fosse mandado de volta à Alemanha. Sadie ficou na Inglaterra com outras jovens esposas de guerra, esperando o dia de vir para os Estados Unidos. Cheguei ao meu país quase seis meses antes de minha esposa, e fiquei aguardando ansioso que ela viesse juntar-se a mim. Recebi o esperado documento de baixa do exército. Livre, enfim! Não tinha o mínimo desejo de me ver dentro de um quartel mais. Tinha muito dinheiro, e a vida pela frente parecia-me promissora. Havia o problema de converter as ordens de pagamento, que lotavam minha maleta, em notas verdadeiras. Não poderia, absolutamente, ir ao correio de minha cidadezinha, na Pensilvânia, e derramar tudo no balcão. Finalmente, encontrei a solução. Comecei a enviar as ordens a uma agência do correio em Nova York. Pouco depois o dinheiro começou a chegar. Meus atritos com a lei haviam-me ensinado que a melhor coisa a fazer era entrar numa profissão em que aprendesse a circundar, com segurança, todos os possíveis problemas. Eu sempre quisera ser advogado e assim comecei a dar os passos necessários para entrar na escola de direito de Pittsburg.