sábado, 24 de abril de 2021

Foge Nick Foge - 19 - Epílogo



Epílogo

Em uma tarde no fim da primavera, Nicky e Gló­ria descansavam nos degraus da frente do Centro, na Av. N. Broadway, 221, observando Ralphie e Karl cortando a grama, enquanto a noite se aproximava. Estava quase na hora do culto ao ar livre no gueto. No quintal, podiam-se ouvir os sons alegres de Davi Carter e Jimmy Baez rindo para Allen, Joly e Kirk, que jogavam bolinha. O jantar terminara, e lá den­tro Frances e Angie supervisionavam os outros me­ninos que tomavam o banho diário. Alicia e a peque­na Laura, agora com um ano e quatro meses, brinca­vam alegremente na grama recém cortada.
Glória estava sentada em um degrau mais baixo, olhando com afeto e pensativamente para o seu ma­rido, encostado numa coluna do balaustre com os olhos semi-serrados, como se estivesse perdido no mundo dos sonhos. Ela inclinou-se e colocou a mão no joelho dele.
“Querido, o que há? Em que está pensando?” “O que foi?” perguntou ele  distraído,  relutando em deixar seus pensamentos.
“Qual o seu sonho agora? Ainda está fugindo? Já temos o Centro para os “pequenos”. Israel e Rosa es­tão morando em Fresno e servindo ao Senhor. Sonny está pastoreando uma grande igreja em Los Angeles. Jimmy está trabalhando com você e Maria está ser­vindo a Deus em Nova York. Na semana que vem você vai para a Suécia e Dinamarca, para pregar. Por que ainda está sonhando? O que mais poderia pedir a Deus?”
Nicky endireitou-se e olhou bem no fundo dos olhos inquiridores da companheira. Sua voz tinha um tom distante, quando disse: “Não é o que eu pe­ço a Deus, querida, mas o que ele pede a mim. Com nosso trabalho estamos só arranhando a superfície.”
Houve uma longa pausa. Só os ruídos das ativi­dades alegres soavam em torno da casa. “Mas, Ni­cky”, disse Glória, mantendo os olhos fixos nele, “não é tarefa só para você. É a tarefa de todos os cris­tãos — em toda parte.”
“Sei disto”, respondeu Nicky. “Fico pensando em todas aquelas enormes igrejas, no centro da cidade, que ficam vazias durante a semana. Não seria mara­vilhoso se aquelas salas de aula inúteis pudessem ser transformadas em dormitórios para ser cheios de centenas de crianças e adolescentes dos guetos, que nunca souberam o que é amor? Cada igreja poderia tornar-se um Centro, dirigido por voluntários...”
“Nicky”, interrompeu Glória, apertando-lhe o joe­lho. “Você é um sonhador. Você acha que os mem­bros daquelas igrejas vão transformar os seus belos prédios em dormitórios para crianças perdidas e sem lar? Eles querem prestar ajuda, mas desejam que ou­tras pessoas o façam em seu lugar. Ficam irritados quando um bêbedo perturba o seu culto. Imagine o que diriam, se fossem à igreja certa manhã de do­mingo, e encontrassem seu “santuário” profanado com camas, catres, e um bando de ex-viciados em narcóticos e cheiradores de cola nos saguões do tem­plo? Não, Nicky, você é um sonhador. Essa gente não quer sujar as mãos. Não desejam ver seus tape­tes sujos com o pó de pés descalços.”
Nicky balançou a cabeça. “Você tem razão, é claro. Fico sempre imaginando o que Jesus faria. Será que ele sujaria as mãos?”
Ele parou e olhou para as montanhas distantes, refletindo: “Você se lembra da viagem que fizemos no ano passado a Ponta Loma, na baía de San Diego? Lembra-se daquele enorme farol? Durante muitos anos ele tem orientado os navios que entram no porto, mas agora os tempos mudaram. Li na semana passada que a fumaça das fábricas é tão espessa que eles precisam construir um novo farol bem perto da água, para que a luz possa passar por baixo das nu­vens de fumaça.”
Glória ouvia atentamente.
“É isto que está acontecendo hoje em dia. A igreja ainda continua com a sua luz brilhando, bem alto. Todavia, poucas pessoas conseguem vê-la, por­que os tempos mudaram, e há muita fumaça. Faz-se necessário que uma nova luz brilhe perto do chão — bem embaixo, onde o povo está. Não é suficiente ser o guarda do farol: eu preciso também ser o portador da luz. Não, eu não estou fugindo mais. Só quero estar onde há ação.”
“Eu sei”, disse Glória, refletindo profunda alegria e compreensão em sua voz. “É isto o que eu desejo para você. Mas você tem de prosseguir sozinho. Vo­cê sabe disso, não sabe?”
“Sozinho, não”, disse Nicky, abaixando-se, e co­locando as mãos sobre as dela. “Estarei andando no território de Jesus.”
As risadas dos garotos no quintal tornaram-se mais altas; eles terminaram o jogo e entraram. Karl e Ralphie tinham pegado suas Bíblias, e estavam sen­tados no meio-fio, defronte da casa.
Nicky baixou a cabeça, e olhou para Glória. “Ho­je de manhã recebi um telefonema de uma senhora de Pasadena.” Parou, esperando uma reação. Glória esperou que ele continuasse. “O filho de doze anos foi apanhado pela polícia, porque estava vendendo maconha. O marido dela quer que ele vá para a ca­deia.” Nicky fez uma pausa. “Mas não temos lugar para ele, nem dinheiro para sustentá-lo.”
Silêncio. Nicky observava um pardalzinho que pulava na grama. Seus olhos encheram-se de lágri­mas, enquanto pensava na criança desconhecida... uma entre milhares de outras... famintas de amor... disposta a enfrentar a cadeia, só para chamar a atenção de alguém... procurando alguma coisa real... procurando Jesus, mesmo sem o saber...
Glória interrompeu seus pensamentos. “Nicky”, disse ela suavemente, seus dedos entrelaçados com os dele, “o que é que você vai fazer?”
Nicky sorriu e olhou-a nos olhos, dizendo: Farei o que Jesus quer que eu faça. Vou me interessar.”
“Oh Nicky, Nicky...” disse Glória, enquanto en­laçava suas pernas com os braços. “Eu o amo! Sem­pre há lugar para mais um. E Deus vai suprir o que faltar.”
Jimmy tirou a Kombi da garage. Os meninos su­biram nela, para ir ao culto ao ar livre no gueto. Nicky pôs Glória de pé: “Vamos! Depressa! Está na hora de realizar a obra de Jesus.”
Eu estava para começar a gravação de um pro­grama no estúdio de rádio, ao lado do meu escritó­rio, quando Nicky Cruz entrou. Olhando à sua volta, para assegurar-se de que ninguém mais se achava ali, fechou a porta e ficou à minha frente silenciosamen­te, com os ombros curvados, as mãos enfiadas bem fundo nos bolsos da calça. Sua face quase não tinha expressão, embora, quando eu a estudei, percebesse sinais de que lutava para controlar suas emoções.
“Tome”, disse ele laconicamente, tirando vagaro­samente as mãos dos bolsos. Por alguns instantes, eu não sabia se devia ficar calma ou alarmada!
Então, sobre a mesa diante de mim, Nicky come­çou a colocar a mais estranha coleção de objetos que eu já vira. Ele os identificava à medida que os colo­cava na mesa: uma garrucha feita em casa, um par de soqueiras que me pareceram horríveis, um punhal de cabo de osso, duas bolinhas de chumbo engenho­samente amarradas na ponta de um chicote de cou­ro, e “os apetrechos” — uma agulha hipodérmica, um conta-gotas e uma tampinha de cerveja para ferver a droga — as ferramentas indispensáveis de um vi­ciado em psicotrópicos.
“Esta é a minha entrega final”, disse Nicky, com os olhos brilhantes de decisão. Olhou para a mesa, tocando cada um dos objetos com a ponta dos de­dos, como num adeus. “Eu vivi por eles. Minha vida dependeu deles. Mas agora minha necessidade ces­sou. Eu os entrego a ele.”
Ele os teria literalmente colocado nas mãos de Jesus, feridas pelos cravos, se isso fosse possível. Entregou-os a mim, como a uma espécie de deposi­tária. Agora era minha vez de ficar emocionada.
Ainda conservo aquela bizarra coleção. De vez em quando eu a tomo entre as mãos para recordar-me do que foi Nicky Cruz... e do Deus cuja miseri­córdia e graça fez dele o que ele é hoje em dia.

Kathryn Kuhlman
Pittsburg, Pensilvânia