Epílogo
Em uma tarde no fim da primavera, Nicky e Glória
descansavam nos degraus da frente do Centro, na Av. N. Broadway, 221,
observando Ralphie e Karl cortando a grama, enquanto a noite se aproximava.
Estava quase na hora do culto ao ar livre no gueto. No quintal, podiam-se ouvir
os sons alegres de Davi Carter e Jimmy Baez rindo para Allen, Joly e Kirk, que
jogavam bolinha. O jantar terminara, e lá dentro Frances e Angie
supervisionavam os outros meninos que tomavam o banho diário. Alicia e a pequena
Laura, agora com um ano e quatro meses, brincavam alegremente na grama recém
cortada.
Glória estava sentada em um degrau mais baixo, olhando com
afeto e pensativamente para o seu marido, encostado numa coluna do balaustre
com os olhos semi-serrados, como se estivesse perdido no mundo dos sonhos. Ela
inclinou-se e colocou a mão no joelho dele.
“Querido, o que há? Em que está pensando?” “O que foi?”
perguntou ele distraído, relutando em deixar seus pensamentos.
“Qual o seu sonho agora? Ainda está fugindo? Já temos o
Centro para os “pequenos”. Israel e Rosa estão morando em Fresno e servindo ao
Senhor. Sonny está pastoreando uma grande igreja em Los Angeles. Jimmy está
trabalhando com você e Maria está servindo a Deus em Nova York. Na semana que
vem você vai para a Suécia e Dinamarca, para pregar. Por que ainda está
sonhando? O que mais poderia pedir a Deus?”
Nicky endireitou-se e olhou bem no fundo dos olhos
inquiridores da companheira. Sua voz tinha um tom distante, quando disse: “Não
é o que eu peço a Deus, querida, mas o que ele pede a mim. Com nosso trabalho
estamos só arranhando a superfície.”
Houve uma longa pausa. Só os ruídos das atividades alegres
soavam em torno da casa. “Mas, Nicky”, disse Glória, mantendo os olhos fixos
nele, “não é tarefa só para você. É a tarefa de todos os cristãos — em toda
parte.”
“Sei disto”, respondeu Nicky. “Fico pensando em todas
aquelas enormes igrejas, no centro da cidade, que ficam vazias durante a
semana. Não seria maravilhoso se aquelas salas de aula inúteis pudessem ser
transformadas em dormitórios para ser cheios de centenas de crianças e
adolescentes dos guetos, que nunca souberam o que é amor? Cada igreja poderia
tornar-se um Centro, dirigido por voluntários...”
“Nicky”, interrompeu Glória, apertando-lhe o joelho. “Você
é um sonhador. Você acha que os membros daquelas igrejas vão transformar os
seus belos prédios em dormitórios para crianças perdidas e sem lar? Eles querem
prestar ajuda, mas desejam que outras pessoas o façam em seu lugar. Ficam
irritados quando um bêbedo perturba o seu culto. Imagine o que diriam, se
fossem à igreja certa manhã de domingo, e encontrassem seu “santuário”
profanado com camas, catres, e um bando de ex-viciados em narcóticos e
cheiradores de cola nos saguões do templo? Não, Nicky, você é um sonhador.
Essa gente não quer sujar as mãos. Não desejam ver seus tapetes sujos com o pó
de pés descalços.”
Nicky balançou a cabeça. “Você tem razão, é claro. Fico
sempre imaginando o que Jesus faria. Será que ele sujaria as mãos?”
Ele parou e olhou para as montanhas distantes, refletindo:
“Você se lembra da viagem que fizemos no ano passado a Ponta Loma, na baía de
San Diego? Lembra-se daquele enorme farol? Durante muitos anos ele tem
orientado os navios que entram no porto, mas agora os tempos mudaram. Li na
semana passada que a fumaça das fábricas é tão espessa que eles precisam
construir um novo farol bem perto da água, para que a luz possa passar por
baixo das nuvens de fumaça.”
Glória ouvia atentamente.
“É isto que está acontecendo hoje em dia. A igreja ainda
continua com a sua luz brilhando, bem alto. Todavia, poucas pessoas conseguem
vê-la, porque os tempos mudaram, e há muita fumaça. Faz-se necessário que uma
nova luz brilhe perto do chão — bem embaixo, onde o povo está. Não é suficiente
ser o guarda do farol: eu preciso também ser o portador da luz. Não, eu não
estou fugindo mais. Só quero estar onde há ação.”
“Eu sei”, disse Glória, refletindo profunda alegria e
compreensão em sua voz. “É isto o que eu desejo para você. Mas você tem de
prosseguir sozinho. Você sabe disso, não sabe?”
“Sozinho, não”, disse Nicky, abaixando-se, e colocando as
mãos sobre as dela. “Estarei andando no território de Jesus.”
As risadas dos garotos no quintal tornaram-se mais altas;
eles terminaram o jogo e entraram. Karl e Ralphie tinham pegado suas Bíblias, e
estavam sentados no meio-fio, defronte da casa.
Nicky baixou a cabeça, e olhou para Glória. “Hoje de manhã
recebi um telefonema de uma senhora de Pasadena.” Parou, esperando uma reação.
Glória esperou que ele continuasse. “O filho de doze anos foi apanhado pela
polícia, porque estava vendendo maconha. O marido dela quer que ele vá para a
cadeia.” Nicky fez uma pausa. “Mas não temos lugar para ele, nem dinheiro para
sustentá-lo.”
Silêncio. Nicky observava um pardalzinho que pulava na
grama. Seus olhos encheram-se de lágrimas, enquanto pensava na criança
desconhecida... uma entre milhares de outras... famintas de amor... disposta a
enfrentar a cadeia, só para chamar a atenção de alguém... procurando alguma
coisa real... procurando Jesus, mesmo sem o saber...
Glória interrompeu seus pensamentos. “Nicky”, disse ela
suavemente, seus dedos entrelaçados com os dele, “o que é que você vai fazer?”
Nicky sorriu e olhou-a nos olhos, dizendo: Farei o que Jesus
quer que eu faça. Vou me interessar.”
“Oh Nicky, Nicky...” disse Glória, enquanto enlaçava suas
pernas com os braços. “Eu o amo! Sempre há lugar para mais um. E Deus vai
suprir o que faltar.”
Jimmy tirou a Kombi da garage. Os meninos subiram nela,
para ir ao culto ao ar livre no gueto. Nicky pôs Glória de pé: “Vamos!
Depressa! Está na hora de realizar a obra de Jesus.”
Eu estava para começar a gravação de um programa no estúdio
de rádio, ao lado do meu escritório, quando Nicky Cruz entrou. Olhando à sua
volta, para assegurar-se de que ninguém mais se achava ali, fechou a porta e
ficou à minha frente silenciosamente, com os ombros curvados, as mãos enfiadas
bem fundo nos bolsos da calça. Sua face quase não tinha expressão, embora, quando
eu a estudei, percebesse sinais de que lutava para controlar suas emoções.
“Tome”, disse ele laconicamente, tirando vagarosamente as
mãos dos bolsos. Por alguns instantes, eu não sabia se devia ficar calma ou
alarmada!
Então, sobre a mesa diante de mim, Nicky começou a colocar
a mais estranha coleção de objetos que eu já vira. Ele os identificava à medida
que os colocava na mesa: uma garrucha feita em casa, um par de soqueiras que
me pareceram horríveis, um punhal de cabo de osso, duas bolinhas de chumbo
engenhosamente amarradas na ponta de um chicote de couro, e “os apetrechos” —
uma agulha hipodérmica, um conta-gotas e uma tampinha de cerveja para ferver a
droga — as ferramentas indispensáveis de um viciado em psicotrópicos.
“Esta é a minha entrega final”, disse Nicky, com os olhos
brilhantes de decisão. Olhou para a mesa, tocando cada um dos objetos com a
ponta dos dedos, como num adeus. “Eu vivi por eles. Minha vida dependeu deles.
Mas agora minha necessidade cessou. Eu os entrego a ele.”
Ele os teria literalmente colocado nas mãos de Jesus,
feridas pelos cravos, se isso fosse possível. Entregou-os a mim, como a uma
espécie de depositária. Agora era minha vez de ficar emocionada.
Ainda conservo aquela bizarra coleção. De vez em quando eu a
tomo entre as mãos para recordar-me do que foi Nicky Cruz... e do Deus cuja
misericórdia e graça fez dele o que ele é hoje em dia.
Kathryn Kuhlman
Pittsburg, Pensilvânia